O novo espírito do capitalismo
LEITURAS
O NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO
[Luc Boltanski e Ève Chiapello (1999), Le Nouvel Esprit du Capitalisme, Paris,
Gallimard, 640 páginas de texto acrescentadas de anexos e notas, no total de
844 páginas]
António Pedro Dores*
Com um nome destes, à semelhança de O Trabalho das Nações (Reich, Robert B.,
1991, O Trabalho das Nações, Lisboa, Quetzal), só pode ser um candidato forte a
leitura clássica. Trata-se de um trabalho de sociologia que procura responder à
questão de como caracterizar os tempos que vivemos, à luz das competências
analíticas que nos mostraram os fundadores da nossa disciplina. É um trabalho
inspirado e inspirador. Por isso, o texto que se segue só pode ser um convite à
leitura, para a emergência de discussões que urge serem feitas e que podem
encontrar neste livro um bom pretexto e um bom fundamento.
Os analistas simbólicos, tematizados por Reich, em particular os consultores e
os gurus do management, aparecem-nos desenhados, em grande pormenor, pelos
autores, como fornecedores e difusores de formas de encarar os problemas
práticos do capitalismo. Evidentemente que nenhum deles terá sido capaz de se
sentar num lugar de pilotagem dos caminhos do capitalismo, ao contrário do que
possam pensar aqueles que ainda concebem como viáveis e até desejáveis mesmo
que só como reminiscência de ideologias derrotadas formas centralizadas de
controlo económico e social. No seu conjunto, porém, das ideias divulgadas, as
melhor acolhidas e as mais eficazes medidas pelo número de livros vendidos e
pelo prestígio dos seus autores, eventualmente simplificadas e até
transformadas a partir de originais com intenções diversas, tais ideias,
dizíamos, foram sendo socialmente escolhidas para fins de mobilização da
cooperação produtiva capitalista. Reich chama-nos também a atenção para o papel
do trabalho dos juristas e das novas formas de proceder na manipulação dos
códigos legais. O número de activos nas profissões jurídicas cresceu
exponencialmente nos EUA desde os anos 70. O texto que estamos a tratar não se
refere a estes assuntos, embora eles sejam importantes para caracterizar as
novas relações entre os estados e as grandes iniciativas económicas globais.
A análise de Boltanski e Chiapello parte dos acontecimentos de 1968, em França,
para chegar a uma visão do que se passa trinta anos depois. Passa por
compreender os actores sociais revolucionários, a respectiva trajectória social
e política, desde os tempos da contestação radical até à cooperação e
exploração no seio do capitalismo renovado, inclui a análise das formas
históricas de separação dos campos político, social e artístico, conforme têm
sido vividos, a história recente do capitalismo e os dilemas práticos para
aqueles que, do lado do patronato, do lugar da política e da burocracia, e do
lado dos trabalhadores, se têm sentido responsáveis por continuar a funcionar
quotidianamente enquanto organizadores da luta de classes, apesar da rapidez
das mudanças e da dificuldade de lhes atribuir sentido.
Ficamos a saber que a ideia de constituição de redes técnicas como a internet é
imaginada ao mesmo tempo que, em sociedade, as redes empresariais se formavam
na prática, independentemente da consciência que disso tinham os empreendedores
e trabalhadores, preocupados antes de mais em reagir à "crise" dos anos 70, em
emagrecer custos de funcionamento, do lado do capitalismo, e em disciplinar os
fornecedores de força-de-trabalho, do lado dos sindicatos. Efectivamente, na
sequência dos acontecimentos de 68, os poderes instituídos foram perturbados
com a exigência de desburocratização e com a procura de realização dos ideais
de "vida autêntica", vindas de baixo (das classes subordinadas, fornecedoras de
força-de-trabalho, e dos estudantes, mas também das respectivas vísceras, i. e.
de forma inegociável). As instituições de concertação social dessolidarizaram-
se entre si.
Face ao dobre de finados do segundo espírito do capitalismo, do keynesianismo e
do estado-providência (o primeiro espírito do capitalismo terá sido aquele que
foi abordado por Max Weber) e perante a iminência do soçobrar do capitalismo
face à contestação radical dos anos 70, o novo espírito do capitalismo foi
capaz, sabemo-lo hoje, de integrar as críticas anticapitalistas, de inspirar a
implosão do socialismo real e conquistar para o seu campo a parte importante
dos seus contestatários, através do estímulo à flexibilização e mobilidade dos
trabalhadores e de um forte incremento das qualificações académicas e
profissionais como condição de emprego e justificação para o desemprego.
A perspectiva de verdadeiras mudanças de estado social ao longo da vida,
consoante o talento e capacidade de trabalho de cada um, começou a superar o
ideal das carreiras burocraticamente pré-desenhadas até à reforma e da
mobilidade social intergeracional. O ideal da segunda fase do capitalismo, do
capitalismo monopolista de estado, conforme era conhecido, deixou de ser uma
aspiração moderna. A nova forma de organizar a vida, através de um sistema de
concorrência entre os trabalhadores, revelou-se produtora de exclusões sociais,
não apenas no terceiro mundo mas também nos próprios países do centro.
Entretanto, as fontes de indignação consideradas típicas das sociedades
capitalistas têm permanecido estáveis, através das profundas mudanças
verificadas. A saber (cf.: 82):
· a produção de sentimentos de desencantamento relativamente a objectos,
pessoas, tipos de vida não "autênticos", i. e. incoerentes com os desejos
profundos de realização pessoal de cada um;
· as resistências ao exercício das liberdades através de processos opressivos,
centrados no controlo do trabalho nas empresas e extensíveis a outros campos
sociais;
· a miséria e as desigualdades numa dimensão desconhecida no passado;
· egoísmo e oportunismo recompensados mas destrutores da solidariedade social.
A oposição ao capitalismo, de acordo com os autores, tem hoje, no final dos
anos 90, um novo recrudescimento, depois de mais de 20 anos sem dar acordo. Tal
oposição tem já uma vertente social activa e evidente em França, e merece e
precisa de desenvolver uma expressão artística, estética para atingir maior
sucesso e ser mais eficaz. O que não significa, necessariamente, qualquer
previsão de substituição do capitalismo por qualquer outro sistema económico-
social, já que as provas da capacidade de encaixe e de transformação do
capitalismo estão bem documentadas historicamente. Tão bem como a perversidade
de estratégias simplistas (unidimensionais, como as políticas de inspiração
marxista mais conhecidas) demonstradamente menos capazes de manipular e pilotar
a mudança estrutural do que o capitalismo.
A acção social é apoiada nas sensibilidades de compaixão pelos mais pobres e
desafortunados. Primeiro lá longe, nos países que pareciam estar em vias de
desenvolvimento, desenvolveu-se uma indústria de solidariedade entre povos e de
apoio ao desenvolvimento. Depois mais perto, nos guetos urbanos dos países
ditos desenvolvidos, ao lado dos condomínios fechados. Fechados por sistemas de
segurança cada vez mais pesados e menos eficazes, a nível do conjunto da
sociedade, principalmente se comparados com a segurança que se vivia antes do
sucesso empresarial das empresas de segurança. Neste quadro de intensificação
da rapidez das mudanças incompreendidas, das desigualdades sociais e da
insegurança real e subjectiva, derivada tanto da maior consciência dos riscos
envolvidos como de uma estética concorrencial de organização da vida em geral,
o associativismo temático reivindica e consegue apoios, estatais e das
populações. A contestação assim organizada é comparada, pelos autores, às
formas de socialismo utópico referidas classicamente por Marx, servindo tal
comparação para que, mais um vez, se estabeleça uma demarcação dos autores face
ao marxismo ou não fosse o livro inspirado directamente na obra de um dos
seus maiores críticos. Para Boltanski e Chiapello tal tipo de reflexões é útil
e até indispensável, mesmo se localizadas em campo de acção que apenas
proporciona consequências limitadas para a mudança da estrutura social.
As limitações das acções sociais são variadas. Por exemplo, as que decorrem da
legitimação de recolha de fundos, quando as acusações de uso privado de fundos
de solidariedade já desestruturaram, nestes últimos trinta anos, todas as boas
intenções de redistribuição de recursos pelas populações excluídas do
desenvolvimento. Quem se esqueceu da experiência antiburocrática global do
Live-Aid, organizado pelo mundo da música? Entusiasmado com as novas condições
técnicas de divulgação de mensagens, com vontade de "ensinar" as organizações
internacionais de cooperação para o desenvolvimento, nem por isso Bob Geldof,
organizador do Live-Aid para África, conseguiu demonstrar aquilo que pensava
poder fazer um tecido social corrompido utilizava todos os recursos para
enriquecer, incluindo as ajudas humanitárias. Alguns anos mais tarde, no
próprio centro político da Comunidade Europeia, um escândalo de corrupção sobre
os recursos de apoio ao desenvolvimento em África esteve na origem da demissão
da Comissão Europeia! A solidariedade internacional, entendida no quadro da
contestação social, está, por isso, reduzida a acções humanitárias de
emergência e a orçamentos extraordinários, enquanto notícias de corrupção nos
continuam a chegar dos países do terceiro mundo, lá onde a vida quotidiana dos
povos é improvável, explorada, desprezada.
Tais problemas são ultrapassáveis, através de novas conceptualizações a
produzir por movimentos sociais de um tipo mais radical que as de âmbito
estritamente social, referidas anteriormente: as críticas artísticas e
estéticas ao capitalismo e aos poderes que com ele colaboram. Críticas que
sejam capazes de interferir directamente na classificação, catalogação,
controlo e gestão das redes empresariais e de solidariedade. De acordo com a
proposta apresentada por Boltanski e Chiapello, não se trata de opor à lógica
organizativa de projectos em rede ou à flexibilização e mobilidade de mão-de-
obra, que caracteriza o terceiro espírito do capitalismo actualmente
estabelecido, a velha lógica da segurança carreirista e de um mesmo trabalho
rotineiro para toda a vida. Trata-se de, pelo contrário, desenvolver formas de
utilização da criatividade disponível para barrar as circunstâncias que têm
vindo a fazer crescer de forma intolerável a exclusão social, das
circunstâncias que são propiciadoras da exploração capitalista.
As inspirações teóricas do trabalho passam pelas teorias da regulação,
divulgadas em Portugal por Maria João Rodrigues (ver, por exemplo, Sistema de
Emprego em Portugal: Crise e Mutações, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995).
O livro em apreço é também, na melhor tradição sociológica, uma reacção às
visões economicistas, em aliança com as teorias que, do lado da economia, se
mostram sensíveis neste caso através da análise histórica contemporânea às
determinantes sociais do desenvolvimento da modernidade e, portanto, do
capitalismo.
A análise aprofundada, teórica e metodologicamente, dos manuais e livros de
referência do management lembra-nos os modos de proceder e de raciocinar de
Norbert Elias quando, no seu O Processo Civilizacional (Elias, Norbert, 1939,
1990, O Processo Civilizacional, Lisboa, D. Quixote), analisa os manuais de
boas maneiras de séculos longínquos.
O poder é-nos apresentado não como um actor maquiavélico mas em forma de uma
plêiade de ideais-tipo de lógicas relacionais que incluem modos de raciocínio
ético próprios desenvolvidos por Boltanski num trabalho anterior (Boltanski,
L. e L. Yhènevot, 1991, De la Justification: Les Économies de la Grandeur,
Paris, Gallimard), a que agora é acrescentado mais um, a que os autores chamam
a cité des projects. Trata-se de uma lógica de referência adequada ao
funcionamento económico em rede, à procura de formas de avaliação de desempenho
mais "autênticas" e "flexíveis", num quadro de (i)mobilidade potencial
crescente da mão-de-obra, em que a esfera do social é mobilizada (ou
desmobilizada) ao nível de cada trabalhador e já não ao nível associativo ou
sindical.
O reconhecimento da centralidade do trabalho e do seu valor ético, identitário
e social caracteriza este livro, onde se dedicam largas páginas a tratar de
problemas de sindicalismo nos últimos trinta anos em França. O capítulo IV, com
o título "A desconstrução do mundo do trabalho", e o capítulo V, "O
enfraquecimento das defesas do mundo do trabalho", são dois dos sete capítulos
que constituem o livro e dos três que formam a sua segunda parte: "As
transformações do capitalismo e o desarmamento da crítica".1
A inspiração dos clássicos da sociologia leva-nos a revisitar temas como os
movimentos sociais, as classes sociais, a exclusão social, o individualismo e o
egoísmo, a exploração, a crítica do romantismo, a vida das classes médias, a
igualdade de oportunidades, as formas democráticas e justas de distribuição de
prestígio social, o sentido do valor da liberdade na vida social tal qual ela é
vivida, a esfera mercantil e também a actualização do valor teórico da anomia
durkheimiana. De forma menos evidente e concisa trata de temas fundamentais,
como sejam o lugar do social e do económico na vida social moderna e nas formas
de expressão teórica dessa mesma vida ou o lugar do espírito (neste caso do
capitalismo) na condução da história da modernidade.
De facto, foi a procura de aprender a lidar com o "espírito", enquanto tema
sociológico, que me levou até esta obra magnífica. Da primeira leitura fica a
sensação de que as respostas neste campo possam ser algo vulneráveis a
interpretações funcionalistas, talvez por estarem tão vinculadas a análises
ideal-típicas. O que, ao mesmo tempo, mostra como a sociologia tem produzido
poucas propostas para abordar este tópico clássico, no último século.
Provavelmente por preferir não o levar a sério.
Se o(a) leitor(a) chegou a este ponto, há que lhe lembrar que o objectivo deste
texto é o de fixar o meu agradecimento a Luc Boltanski e a Ève Chiapello, pelo
trabalho que desenvolveram, pelo prazer da leitura, pela inspiração que
produziram em mim e de o(a) convidar vivamente a ficar mais próximo(a) de uma
interpretação profunda e cientificamente fundada dos tempos que vivemos. Para o
efeito ser mais benéfico, porém, exige algum planeamento. A densidade do texto
e o seu volume não se compadecem com tempos cronometrados, leituras em diagonal
ou outras estratégias consumistas, próprias do espírito do capitalismo que
estamos a viver. Reserve uma suite de hotel para uma semana, guarde bastas
horas para leitura única e deixe a sua imaginação voar com os nacos mais
inspiradores. Vai ver que sai do hotel diferente do que era quando entrou. Quem
sabe, mais contestatário(a)?
Notas
1 Tradução dos subtítulos da minha responsabilidade (APD).
*António Pedro Dores é investigador do CIES e professor auxiliar do ISCTE.
E-mail: antonio.dores@iscte.pt