Regulação política dos meios de comunicação social
Sobre a influência dos média
Recentemente, autores muito conhecidos, como Popper (1993), Bourdieu (1996) e
Putnam (1995), apresentaram fortes críticas à televisão, acusando-a de
distorcer a realidade e prejudicar a estruturação social. Popper afirmou que a
violência televisiva está a destruir a civilização, tendo chegado a sugerir a
necessidade de instaurar uma nova censura.1 Bourdieu denunciou a censura
exercida pelos próprios média e criticou a superficialização dos conteúdos, o
que impediria a difusão do conhecimento sobre a sociedade e, portanto,
afastaria o cidadão da intervenção cívica e política. Putnam criticou, de forma
ainda mais enfática, a destruição do capital social.2
Desde os anos 30 que se estudam os efeitos dos meios audiovisuais populares,
num clima de preocupação sobre os seus efeitos (Charters, 1933; Peterson e
Thurstone, 1933). Em 1983 surgiu mesmo, nos EUA, a National Coalition on
Television Violence (NCTV), um movimento de oposição à violência nos média e
que procedeu a várias avaliações dos níveis de exibição de violência nestes
(Denisoff, 1988). Também em relação ao cinema e outros meios de comunicação
social o panorama crítico não é muito diferente (Clark e Blankenburg, 1972;
Yang e Linz, 1990).
Apesar de existirem centenas de estudos que tentam mostrar a existência de
efeitos negativos dos média,3 nem sempre conseguem ultrapassar convincentemente
a dificuldade inerente à complexidade do tema.4
Não obstante, existem suficientes estudos que parecem dar bastantes garantias
metodológicas. Por exemplo, existem estudos laboratoriais (Steuer e outros,
1971; Josephson, 1987) que verificaram que os grupos de crianças que eram
submetidos a visionamento de programas violentos se tornavam mais agressivos
que o grupo de controlo. As experiências de Berkowitz e Green (1966; 1967),
tentando mostrar que não existe um efeito de catarse através do visionamento de
violência, chegaram a conclusões semelhantes. Evidentemente que as definições
empíricas do que são conteúdos violentos e comportamentos violentos e anti-
sociais nem sempre são as mesmas nos diversos estudos, existindo contudo
suficientes semelhanças. Note-se, aliás, que a estrutura dos conteúdos em que a
violência é visionada (isto é, o contexto dos filmes e das peças em que ela é
apresentada) tem também muita influência, como esclarecem, por exemplo, as
experiências de Zillman, Johnson e Hanrahan (1973) e as análises de Condry
(1994).
No campo dos estudos com base em recolhas estatísticas de dados de situações
sociologicamente reais, McIntyre e Teevan (1972) chegaram a conclusões
idênticas, que apontam para efeitos anti-sociais do consumo de exibições de
violência e comportamentos anti-sociais nos média, tendo tido o cuidado de
controlar variáveis terceiras que poderiam pôr em causa a inferência da relação
causa-efeito estudada. De facto, McIntyre e Teevan controlaram variáveis como a
tendência para a agressividade dos sujeitos e as suas performances escolares
que, em princípio, poderiam ser a causa comum de comportamentos anti-sociais e,
simultaneamente, da apetência por consumo de exibições de comportamentos anti-
sociais nos média. Verificaram, também, que a correlação positiva entre
visionamento de violência nos média e comportamento anti-social não podia ser
explicada pela hipótese de que as pessoas com comportamentos mais violentos
prefeririam ver programas violentos. Belson (1978), usando uma metodologia
semelhante, chega a conclusões idênticas, com base noutros dados estatísticos.
Mark, Sanna e Shotland (1992) concluíram que o visionamento de certos combates
de boxe pode induzir maior tendência para o homicídio, com base em anteriores
dados de Phillips (1983). Outros estudos (Williams, 1986) verificaram que, em
comunidades em que tinha sido recentemente introduzida a televisão, as crianças
tornaram-se mais agressivas do que em comunidades em que a televisão não tinha
sido ainda introduzida.
Também as teorias gerais da aprendizagem social (Bandura, 1973), neo-
associacionismo (Berkowitz, 1990) e transferência de excitação5 (Zillman, 1982,
e Tannenbaum e Zillman, 1975), procurando fundamentação em estudos
experimentais, fornecem construções teóricas para a afirmação de efeitos anti-
sociais da exibição nos média de comportamentos anti-sociais, esclarecendo,
adicionalmente, sobre a influência da estrutura e do contexto da narrativa
(filme, peça documental, notícia, etc.) em que se inserem esses conteúdos.6
Outros estudos, sobre a relação entre consumo dos média e performance escolar
(Koolstra e van der Voort, 1996; Morgan e Gros, 1980), controlando várias
outras variáveis que poderiam interferir nas conclusões, mostraram que o
visionamento da televisão diminui a predisposição para investir na procura e
compreensão de informação complexa. Comstock e Scharrer (1999) chegam também a
conclusões semelhantes na sua meta-análise, com base em dezenas de estudos
empíricos.
Portanto, embora uma prova absoluta pareça não ser possível, dada nomeadamente
a complexidade das situações sociais, consubstanciada na multiplicidade de
variáveis passíveis de influenciar os resultados, existem fortes indícios de
que o consumo de conteúdos frequentes nos média tem efeitos anti-sociais e
prejudica o desenvolvimento mental.
Ora se os conteúdos dos média influenciam estes aspectos então, possivelmente,
também influenciam outros aspectos, igualmente fundamentais na sociedade, como
a estruturação dos desejos, os níveis de expectativas, os valores partilhados,
os conhecimentos sobre os processos de cooperação social, etc.7
Nesta perspectiva, parece razoável ter alguma expectativa sobre a acentuação do
potencial dos média no sentido da sustentabilidade e evolução do bem-estar e da
coesão social. Este potencial poderá exercer-se na consciencialização e
informação que estruture os processos associativos mentais do indivíduo nos
seus aspectos racionais mas, também, em zonas que, embora emocionais,
subliminares ou afectivas, estruturam radicalmente as dinâmicas sociais.
Nomeadamente:
· na autoconfiança existencial;
· na adesão a valores éticos de relação social;
· nas competências e hábitos de execução, na prática, desses valores éticos;8
· na edificação controlada, socialmente coerente e individualmente realizável,
dos desejos e expectativas de vida, nomeadamente em relação ao consumo, poder,
sexualidade e romantismo;9
· na edificação de sistemas de atitudes face à relação social que se repercutam
na eficiência do trabalho, como, por exemplo, a atitude em relação à
cooperação, à confiança mútua, à crença na possibilidade de resolver os
problemas materiais pessoais sem prejuízo de terceiros, etc. (Fukuyama, 1995;
Hofstede, 1980; 1991).10
É possível que o desenvolvimento das forças produtivas, ao permitir a ausência
potencial de situações de fome, tenha deslocado o centro de gravidade social.
Este centro terá sido deslocado da preservação primária para a cultura. De
facto, a cultura é sistema produtor das expectativas moldáveis (padrões de
sexualidade, sistemas de consumo, estruturas de confiança no futuro, etc.),
determinando, em consequência, as possibilidades de bem-estar social. Daí se
poder entender que as questões da gestão da cultura, nomeadamente as tratadas
aqui no contexto dos média, possivelmente constituem a prioridade do
desenvolvimento social.
É pois num contexto de preocupação com os efeitos dos meios de comunicação
social mas, também, de expectativa em relação ao seu potencial socialmente
estruturante que se reflectirá sobre os processos de regulação dos média.
Vertentes de regulação
Este tipo de preocupações levou Popper (1993) a sugerir a criação de um
Instituto da Televisão para controlar os efeitos negativos dos média. Tratar-
se-ia de uma organização corporativa, dos profissionais da televisão, que
estabeleceria regras de licenciamento e controlo dos profissionais. Seria pois
uma espécie de ordem profissional, como a Ordem dos Médicos ou a Ordem dos
Engenheiros.
Bourdieu (1996) propôs uma organização conjunta dos artistas, escritores e
intelectuais que são utilizados pela televisão (em entrevistas, como tema de
programas, ou como produtores de conhecimento que a televisão pretende
divulgar), com o fim de estes negociarem, colectivamente, as condições em que
aceitariam colaborar com a televisão. Este autor sugeriu também acordos entre
os diversos meios de comunicação social para estabelecerem regras de
concorrência que minimizem as "deficiências" nos conteúdos dos média actuais.
Contri (1998) propôs o desenvolvimento de escolas de autores nas quais se
veiculasse uma nova atitude de trabalho.
Collins e Murroni (1996) propuseram a existência de mecanismos complementares e
correctivos, a serem assegurados pelos governos, que garantam a qualquer
cidadão o acesso à informação e comunicação necessárias para uma plena
participação na vida económica, social e política.
A prática de controlo a monopólios ou oligopólios nos média também tem sido
referida como um importante meio correctivo, tentado preservar a qualidade,
pela dinamização de mercado que poderá induzir, bem como pelo pluralismo e
conformidade com os diversos segmentos de consumidores que pode possibilitar
(Feintuck, 1997).
O aparecimento recente de descodificadores que possibilitam aos espectadores
barrarem a recepção de certos tipos de programas (Feintuck, 1997; Oftel 1997) é
também um método de controlo com evidente potencial. Este último dispositivo
representa uma medida de controlo com natureza oposta às outras antes
referidas, pois essas situam-se a nível da regulação pelo lado da oferta
(produtores e distribuidores de informação), enquanto esta última se situa a
nível da regulação exercida pela procura (consumidores de informação).11
Olhando pelo lado da procura, torna-se claro que a optimização da performance
social dos média pode depender, inteiramente, do nível educativo do consumidor,
o qual lhe permite seleccionar devidamente os conteúdos das informações a que
se expõe (Starobinski, 1994).
A regulação na perspectiva dos direitos e deveres
A questão do controlo dos média implica pois a reanálise de um dos paradigmas
do mercado e, aliás, também do sistema democrático. Este paradigma a reanalisar
é a convicção da inexistência de barreiras significativas à aquisição de saber,
por parte dos consumidores e eleitores, que permita a estes seleccionar
devidamente a opção de consumo ou a opção política.12
Já nos anos 70, Coase (1974), prémio Nobel de economia, num artigo que parece
ter suscitado reacções violentas dos média dos EUA (Coase, 1995), defendeu que
existem motivos teóricos para efectuar intervenções reguladoras dos conteúdos
dos média, à semelhança da regulação sobre o mercado económico de produtos não
informativos e com base no conceito de "ignorância do consumidor". Coase
considerou que a regulação é fraca no mercado de bens informativos e culturais,
nomeadamente devido ao peso político das corporações dos profissionais e
intelectuais.13
O fundamento teórico de um certo tipo de regulação sobre os meios de
comunicação social pode, portanto, basear-se no direito do cidadão à informação
sobre os produtos/serviços (bens correntes, equipamentos, imóveis, bens
informativos, culturais, ideológicos, etc.) que consome e utiliza.
Ora, como a orientação da oferta do mercado não está dependente de cada
consumidor isoladamente, mas sim de conjuntos vastos destes, acontece que
aquilo que cada consumidor pode consumir está dependente das escolhas dos
outros. De facto, se apenas existir um número pequeno de consumidores a
preferirem certo tipo de filmes, peças de teatro e outros tipos de produtos, é
claro que, na perspectiva do produtor e distribuidor desses produtos, pode não
ser rentável lançá-los no mercado.
Esta dependência, entre o que cada um pode consumir e as escolhas feitas pelos
outros, remete do campo do direito à informação para o campo do dever de estar
informado. De facto, se a grande massa de cidadãos não estiver bem informada
sobre o possível leque da oferta informativa e cultural, pode limitar a
produtos de baixa qualidade, eventualmente com efeitos negativos, o que o
mercado oferece, e assim reduzir drasticamente as opções de outros cidadãos e a
sua liberdade de escolha.
A creditação cognitiva enquanto dever
Este tipo hipotético de dever, que se passará aqui a chamar creditação
cognitiva, poderá ser operativamente expresso de várias formas. Poderá, a
título de exemplificação e enfaticamente para uma melhor ilustração, ser
expresso do seguinte modo:
qualquer indivíduo só pode ter acesso a um bem (um filme de recreação ou um
concurso televisivo, um carro, um alimento, a participação eleitoral, etc.)
quando der provas de que possui a informação de base necessária para o uso e
selecção correcta desse bem, desde que a sociedade implemente o direito de
acesso, rápido e sem custos pessoais excessivos, a essa informação. A esta
informação de base passa-se aqui a chamar informação ou conhecimento
seleccionante.
Evidentemente exclui-se da alçada da creditação cognitiva o acesso a bens como
o conhecimento factual, técnico, científico e propostas sociais (conjunto de
bens que se passará a designar aqui por conhecimento técnico-social), pois o
seu consumo não parece passível de efeitos anti-sociais e porque muito dele
constituirá a referida informação seleccionante, não fazendo sentido processos
que tornariam mais difícil o seu acesso.14
Terá pois de se procurar, relativamente ao acesso a estes conhecimentos
técnico-sociais, um processo de regulação que não exija a prévia creditação
cognitiva dos seus utilizadores. Este é, aliás, um dos fundamentos para a
existência de educação pública e de serviços públicos informativos e
pedagógicos, acessíveis a todos, produzindo notícias de actualidade e outros
conteúdos, segundo critérios de relevância e de forma, definidos
politicamente.15
Excluir-se-á também, possivelmente, da alçada deste princípio de creditação
cognitiva, os bens de consumo insuspeitos de poderem ter efeitos sociais
negativos como, por exemplo, a chamada música e pintura clássicas, pois a
experiência histórica aparentemente não revelou suspeitas negativas sobre os
seus efeitos.
Mesmo admitindo a exequibilidade teórica deste princípio de creditação
cognitiva, restam grandes dificuldades conceptuais e práticas como, por
exemplo, a dificuldade em definir com exactidão quer o seu campo de aplicação,
quer o conceito de custos pessoais excessivos e, sobretudo, a dificuldade de
conceber os mecanismos da implementação prática de um princípio deste tipo em
coerência com outros princípios como os de liberdade e de livre expressão,
passando pela definição da informação seleccionante.16
Nesta última maior dificuldade, repare-se que o problema de implementação
prática prende-se, primeiro que tudo, com a complexidade dos mecanismos que
definiriam qual seria essa informação seleccionante que permitiria ao
consumidor o uso correcto de um bem, assim como com a dificuldade de
comprovação da creditação cognitiva de cada cidadão e ainda com a dificuldade
da respectiva fiscalização de cada acesso a bens.
Contudo, em princípio parece que o sistema político poderia efectuar estas
definições com suficiente viabilidade social, sendo todavia importante realizar
duas condições prévias.17
A primeira condição seria o sistema político não eliminar, através do processo
decisório por maioria, concepções e informações que certos grupos, embora
minoritários, pensam ser importante levar ao conhecimento do consumidor. De
facto é, evidentemente, impossível seleccionar a verdade mediante a regra da
maioria democrática, e igualmente impossível escrutinar conhecimentos
inovadores, emergentes ou recessivos. A questão da amplidão do pluralismo é
pois, como é claro, uma das questões cruciais a ter em conta nesta matéria.
A segunda condição seria o sistema político evoluir no sentido de executar
intervenções de melhor qualidade global, nomeadamente no caso da regulação dos
média. Por exemplo, mediante sistemas de descentralização, participação,
educação do cidadão para os aspectos mais relevantes da decisão política,
avaliação comparativa e objectiva dos efeitos das governações mediante
critérios constitucionais, novo equilíbrio entre poderes com mandatos curtos e
outros com mandatos longos (considerando as questões estruturantes a longo
prazo), etc. Especial expectativa poderá ser colocada na implementação de um
sistema de co-decisão política, envolvendo câmaras de cidadãos, cada uma
especializada num dado tema muito específico, abertas à participação efectiva
de todos os que se queiram interessar, de forma contínua e informada, por estas
temáticas.
Em relação a esta segunda condição, e em parêntesis, relativamente distante das
preocupações centrais deste texto, convém não obstante reparar na seguinte
questão operacional que releva de questão filosófica significativa. Note-se
que, possivelmente, já estes cidadãos, constituintes destas câmaras, teriam de
mostrar algum conhecimento que os habilitasse a uma decisão informada sobre
este assunto (isto é, a exigência de uma certa creditação cognitiva geral
deveria aplicar-se, antes do mais, à própria constituição destas câmaras que
iriam decidir sobre os processos, gerais, de creditação cognitiva em relação a
cada tipo de produtos). Existe pois aqui um problema teórico de regressão
infinita do processo de creditação que poderia ser resolvida, eventualmente, da
seguinte maneira, embora outras existam. Em termos práticos poderiam ser os
partidos políticos a definir quais esses conhecimentos básicos para participar
numa câmara (mais uma vez tentando evitar uma excessiva normalização através da
regra da maioria, isto é, os cidadãos teriam de saber responder às diversas
exigências de admissão vindas dos diversos quadrantes políticos). Note-se que,
se os partidos políticos forem muito exigentes, não haverá quorum para estas
câmaras e elas não abrangerão minimamente as populações representadas por cada
partido. Se, pelo contrário, não forem exigentes, podem ter dificuldade em co-
decidir com cidadãos com os quais não partilhem um mínimo conhecimento sobre o
assunto (sobretudo no caso dos partidos com posições relativamente mais
inovadoras e sofisticadas). É provável, pois, que um equilíbrio pragmático se
estabeleça, permitindo consensos constitucionais sobre os critérios de entrada
nas câmaras. Em fases posteriores, as exigências cognitivas para participar
numa câmara de cidadãos poderiam ser definidas de outra maneira, menos
dependente do sistema político-partidário e mais dependente das câmaras.
Contudo, de forma a evitar um fechamento corporativo destas câmaras, teria de
se preservar a necessidade de as manter continuamente abertas a mais cidadãos,
consumidores e produtores dos bens em causa, de forma a que a grande maioria
dos cidadãos se venha a envolver neste tipo de câmaras (a existirem,
idealmente, sobre vários outros assuntos políticos) e se assegure a sua
renovação, em função da saída natural de cidadãos das mesmas, por falecimento,
motivos de saúde ou outros. Contudo, um sistema de câmaras de cidadãos poderá
não vir a exigir mais do que a recepção de informação dos diversos quadrantes,
sem exigência de prova de assimilação dessa informação, o que evitaria
radicalmente o problema colocado neste parêntesis teórico. Para uma discussão
um pouco mais ampla destas vertentes da reforma do sistema político ver Fonseca
(1999c).
Em relação às dificuldades de comprovação da creditação cognitiva de cada
cidadão e de fiscalização de cada acesso a bens, este assunto poderá vir a ser
equacionado, com viabilidade progressiva, no quadro de um desenvolvimento
telemático, que venha a facilitar o controlo informatizado e personalizado de
acesso a cada bem.
Aproximações a um cenário de creditação cognitiva
Evidentemente que a realização plena de um cenário de creditação cognitiva
exigiria reformas sociais e evoluções técnicas, de implementação cabal
evidentemente distante, sendo, portanto, de interesse analisar a viabilidade de
cenários de aproximação progressiva e parcial a um cenário absoluto de
creditação cognitiva que, na prática, não é mais do que um referencial teórico.
Contudo, note-se que a creditação cognitiva é uma ideia que está, já hoje,
inequivocamente consubstanciada em certas situações, embora delimitadas. Por
exemplo, o facto de o desconhecimento da lei não desculpar o seu incumprimento
é uma exigência de creditação cognitiva, instaurada como condição à própria
condição de cidadania. Também a escolaridade obrigatória é uma exigência de
creditação cognitiva do mesmo teor. Portanto, o acesso a quaisquer bens sociais
é condicionado a uma creditação cognitiva de carácter geral. A questão é pois a
de saber até que ponto a creditação cognitiva deve e pode ser ampliada na sua
exigência, como pode ser implementada e até que ponto se poderão definir tipos
de creditação cognitiva em função do tipo de bem a aceder.
No intuito de continuar a problematizar esta questão e a tentar fornecer alguns
incentivos heurísticos a posteriores tratamentos destas questões, podem-se aqui
esquematizar algumas possibilidades abstractas de intervenção promotora de uma
creditação cognitiva mais ampla e mais especificada.
Informação anexa sobre os produtos
Será conveniente que antes de consumir qualquer produto, nomeadamente de
carácter cultural, o consumidor tenha que ter acesso à descrição sobre
possíveis efeitos desse consumo? Esta descrição seria pois uma análise apensa a
cada produto. Esta situação é claramente prefigurada na evolução de práticas
sociais como a rotulagem de bens de consumo correntes (nomeadamente produtos
alimentares e literatura inclusa nos medicamentos), análises comparativas
disponibilizadas por associações de consumidores a produtos diversos, símbolos
de certificação da qualidade dos produtos, etc. Note-se que em Portugal, como
em vários outros países, estas práticas continuam a desenvolver-se, o que é
exemplificado pelas novas preocupações informativas relativas à higiene
alimentar e aos organismos geneticamente modificados, pelo crescimento do uso
de símbolos de qualidade como as denominações de origem e certificações ISO,
pela criação do rótulo ecológico, pela expansão da associação de defesa dos
consumidores, etc., todas vertidas em legislação relativamente recente. Em
relação, especificamente, a produtos de carácter informativo e cultural, podem
ser entendidas como prefigurações de uma informação sistematizada sobre este
tipo de produtos, a existência de concursos e respectivos prémios (que
evidentemente actuam como chancelas de qualidade), a pluralidade da literatura
de análise "crítica" aos produtos culturais, as classificações oficiais de
filmes (com indicações etárias), etc.
De um modo geral, pode-se afirmar que existe uma tendência para informar de
forma sintética, com base na credibilidade do emissor da informação, numa
lógica próxima das marcas comerciais (Kotler, 1991), e uma outra tendência,
formalmente contrária mas potencialmente sinérgica, para disponibilizar
informação detalhada e fundamentada sobre os produtos.
Neste contexto, parece especialmente interessante o sistema informativo sobre
produtos televisivos dos EUA, instaurado na sequência do Children's Television
Act (CME, 2000). A informação é inicialmente dada por um símbolo que refere o
nível etário a que se destina o programa televisivo, o nível de violência,
situações sexuais, linguagem crua, diálogos insinuantes e violência valorizada
por fantasia. Uma opção como esta por um simbolismo simplificado, fortalecida
pela credibilidade da entidade classificadora, não se deve apenas ao
pragmatismo da utilização do tempo do espectador. Informação apensa mais
detalhada incorreria, mais claramente, na necessidade de pluralismo de opiniões
e evidência de subjectividade da análise. Solução interessante, na conciliação
destas duas vertentes (sintetismo e pluralismo) parece consagrada na revisão do
Children's Television Act (FCC, 1996). Esta revisão consubstanciou mecanismos
que permitem a avaliação, pelo público, de cada programa televisivo, segundo
normas da FCC. Os resultados desta avaliação, bem como outra informação sobre
cada programa, são disponibilizados ao público, existindo para o efeito um
responsável em cada estação televisiva (children's liaison). É interessante
notar que se está, portanto, a disponibilizar uma informação apensa multinível,
podendo o telespectador aprofundar o acesso à informação sobre cada programa, à
medida dos seus interesses e da gestão do seu tempo.
Contudo, a limitação desta solução é, evidentemente, não dar garantias de
acesso a análises que expressem o efectivo pluralismo de perspectivas e que,
simultaneamente, incorporem os conhecimentos técnicos e sociais relevantes para
a apreciação dos programas televisivos.
Pluralismo e agências críticas
Será alguma vez possível definir, em consenso social, que entidades devem
produzir a referida análise apensa, expressando o pluralismo de todo o
conhecimento relevante?
O espectro do que são as perspectivas relevantes sobre cada tema e cada produto
cultural parece só ser determinável por sistemas pluralistas de livre
comunicação que não se esgotam, necessariamente, nos espectros político-
partidários actuais e, muito menos, nas forças dominantes políticas, económicas
ou de outros campos.18
Em geral, o pluralismo sobre um dado tema só parece ser realizável mediante
sistemas que possam tratar e seleccionar todo o conhecimento e a diversidade de
interesses sociais, de forma a disponibilizar ao público todas as perspectivas
relevantes sobre esse tema. Para tal devem expressar, com igual intensidade
perante o público, todas as perspectivas, independentemente da sua dominância,
nomeadamente exprimindo igualmente as posições emergentes e as recessivas.
Admitindo que o livre mercado informativo não garante a oferta de produtos
amplamente pluralistas (isto é, neste caso, não garante análises apensas
pluralistas) mas privilegia a massificação, procurando economias de escala, e
que nem sequer consegue ser transparente na qualidade e características de
produtos complexos que oferece (como o são sobremaneira os produtos
informativos sofisticados), a operacionalização deste princípio terá de ser de
carácter político.19
A operacionalização mais óbvia parece consistir no facto de cada partido
político constituir uma agência crítica, eventualmente no seu interior,
responsável pela elaboração e divulgação de análises apensas. Note-se que, de
acordo com exigências efectivas de pluralismo na informação ao público, cada
agência crítica deveria possuir exactamente a mesma quantidade de meios
financeiros, técnicos e logísticos para efectuar a sua missão.
Contudo, uma operacionalização deste tipo deixaria de fora sensibilidades que
não encontrassem expressão nos partidos políticos e poderia ainda ocasionar
dependência das análises apensas face à luta política. Evidentemente esta
dependência poderia extremar campos e facções, entre os criadores culturais e
entre os produtores de cultura em geral, bem como perturbar a clareza das
análises pelo sistema de troca de favores e influências, em função das
necessidades do marketing político e das lutas pelo poder.
Mas será que estes novos campos de intervenção dos partidos políticos
incentivariam a renovação dos partidos, bem como a proliferação de novos
partidos e organizações vocacionadas para este tema, expressando a diversidade
das sensibilidades culturais? Será que tal aconteceria menos dificilmente se
existisse um quadro de apoios propiciando a organização política de tendências
e sensibilidades culturais emergentes ou minoritárias e outorgando agências
críticas a organizações temáticas não partidárias?
Ainda no âmbito desta preocupação, em evitar uma eventual excessiva
subordinação das agências críticas às lógicas imediatistas e proselitistas dos
sistemas partidários actuais, a escolha destas agências poderá vir a ser feita
mediante regras, explícitas, de exigências qualitativas e de aplicação o mais
mecânica e objectiva possível, garantindo a expressão do máximo de perspectivas
minoritárias e, eventualmente, garantindo também mandatos mais longos para as
agências críticas do que os dos partidos. Ainda neste sentido, poderão vir a
ser implementados sistemas diversificados de sondagem ao público, sobre a
qualidade percebida das agências, diferenciando, para efeitos de análise, o
público segundo nível cultural, interesse pelas questões, filiação partidária,
etc. A participação das referidas câmaras de cidadãos em tarefas idênticas de
selecção, avaliação e incentivo às agências críticas poderá também actuar neste
sentido, parecendo aliás ser a forma mais cabal de o fazer.
Admitindo que assim ficará assegurado o pluralismo do conhecimento relevante,
poderão surgir, deste pluralismo, consensos sobre as análises aos produtos.
Esta informação mais consensual, possivelmente curta e relativamente
simplificada, poderá vir a constituir a informação apensa a cada produto. As
questões em que existe divergência na análise das diversas agências críticas
poderão encontrar-se, sobretudo, em informação multinível, já não tão
directamente apensa ao produto, nem tão simplificada e curta, acessível
telematicamente ou por outras formas mais indirectas. Num ou noutro caso,
parece previsível a existência de listas descritoras da variedade dos produtos
oferecidos pelo mercado (listas eventualmente de carácter telemático), onde se
encontrem as análises das agências críticas sobre os diversos produtos
culturais.
A problematização, através de hipóteses de regulação, que aqui se acaba de
fazer das relações entre pluralismo, qualidade crítica, sistema cultural e
sistema político, pretende sobretudo chamar a atenção para o facto de que
reformulações dos processos de regulação dos meios de comunicação social
poderão exigir reformulações significativas na lógica interna do sistema
político regulador.
De reparar que isto é válido para a informação social sobre produtos culturais
mas, eventualmente, também poderá ser válido para informação sobre outros
temas, ocasionando outros espectros de agências informativas específicas
(informação económica, ambiental, etc.).20
Note-se, de facto, que uma problematização deste tipo arrasta também para uma
problematização muito geral das relações entre sistema político e mercado
económico. Estas relações ocorrem a dois níveis, sendo um deles regular o
mercado através de um processo de informação dos produtos existentes neste,
como, aliás, se tem vindo a fazer notar neste texto.
Um outro nível de relacionamento, entre sistema político e mercado económico,
ocorre pelo facto de o sistema político poder escolher os agentes produtores de
análises apensas e de estes poderem vir, posteriormente, a actuar em grande
parte como agentes autónomos e privados, recebendo dividendos em função dos
resultados das referidas sondagens ou de outros indicadores.
Em termos de política económica, tratar-se-ia de o sistema político escolher as
empresas que podem competir no mercado e criar novos sistemas de incentivo
remuneratório ao funcionamento deste. Embora uma pré-selecção seja prática
corrente em muitas situações económicas (licenciamento de empresas, atribuição
de frequências a empresas de radiodifusão, etc.), tratar-se-ia, neste
enquadramento aqui em reflexão, de situação muito mais selectiva e
generalizada.
A argumentação usada para esta pré-selecção política das empresas que podem
actuar no mercado é também de carácter muito diferente do habitual, pois
articula-se na preocupação de oferecer uma gama suficientemente vasta,
pluralista e qualitativa de serviços, evitando, simultaneamente, o excesso de
oferta de serviços que poderia confundir o consumidor na escolha dos mesmos.21
A discussão teórica global deste tipo de intervencionismo, na óptica da
economia política e recaindo sobre qualquer tipo de actividade (agências
críticas sobre produtos culturais, agências informativas mais amplas, agências
escolares, quaisquer empresas produtoras de quaisquer bens e serviços), cai,
infelizmente, fora do âmbito específico deste artigo.
Autonomia expressiva e edição popular
Regressando ao tema da aproximação a cenários de creditação cognitiva no campo
do consumo de bens culturais, convirá perguntar se, hoje, o cidadão terá
efectiva liberdade de expressão e intervenção cultural, bem como acesso às
perspectivas relevantes sobre cada tema, de forma a consubstanciar um efectivo
pluralismo e a decorrente efectiva creditação cognitiva. É que parece não
existir um espaço que permita a qualquer cidadão comunicar as suas perspectivas
sobre a vida pública, chegando efectivamente aos outros cidadãos, sem incorrer
em excessivos custos pessoais e profissionais. São bastante conhecidas
teorizações que propõem e valorizam a criação de espaços interactivos de
diálogo social, por exemplo na linha de Dewey (1927) e Habermas (1987). Embora
Dewey concretize as suas reflexões no sentido de valorizar fóruns de carácter
local, o cerne das suas teorizações pode ser utilizado a favor de comunidades
virtuais de carácter não localizado (Aikens, 1996). De igual modo podem ser
entendidas as ideias de Habermas, no quadro de um processo de resistência à
colonização do "mundo da vida" pelos sistemas normalizadores articulados sobre
o dinheiro e o poder. Mais recentemente, autores como Fishkin (1991; 1997) e
Fonseca (1999c) têm argumentado sobre a importância vital de uma nova relação
entre os processos informativos envolvendo os cidadãos e os processos gerais de
decisão política. Outros autores têm vindo recentemente a chamar a atenção para
as potencialidades da Internet em relação a este aspecto (Pool, 1983; Abranson,
1988; Dyson e Toffler, 1994; Rheingold, 1994; Tomita, 1980, entre outros).
Aliás a prática actual na Internet é já claramente prefigurativa deste tipo de
utilização, com milhares de fóruns de discussão temáticos (newsgroups), com
partidos e instituições políticas a disponibilizarem correios electrónicos para
contacto com os seus elementos, com sites temáticos e fóruns de discussão
lançados por ocasião de temas da agenda política (vejam-se por exemplo as
inúmeras iniciativas da CE, nomeadamente o fórum "Diálogo sobre a Europa",
ligado à conferência intergovernamental, etc.).
Contudo, destas realidades não se pode inferir, evidentemente, que exista uma
massificação do diálogo interactivo de cariz político. Por exemplo, Aikens
(1996) tem defendido que este fenómeno não abrange efectivamente muito mais do
que aqueles cidadãos que já eram politicamente activos; embora este autor
reconheça uma certa expansão no número de intervenientes e na frequência da
intervenção. Ainda menos optimistas têm sido autores como Neuman (1991),
retomando análises de Lipmmann (1960) sobre a impossibilidade de envolvimento
informado e efectivo da maioria dos cidadãos, bem como autores como Schiller
(1989), que ressaltam o domínio monopolista da generalidade dos meios de
comunicação e a sua instrumentalização.
Será um espaço de autonomia expressiva popular consubstanciável, por exemplo,
numa estrutura telemática, essencialmente automática e absolutamente
democrática, na qual os temas e intervenções, de cada cidadão, que fossem
colhendo mais interesse dos outros cidadãos, fossem sendo realçados como tal,
num real espaço de edição popular? Sem uma disciplina deste tipo as tendências
para a universalização do acesso aos meios telemáticos pressionarão
eventualmente para o caos informativo, dificultando discernir quais as fontes
de informação relevantes e credíveis, dificultando promover plataformas de
consenso e perspectivar acções de cidadania. Este caos relativo poderá suscitar
a intervenção de forças organizativas exógenas, muito possivelmente dependentes
dos centros de poder económico e político já hoje existentes e, portanto, com
possíveis tendências essencialmente reprodutivas das suas lógicas habituais,
não necessariamente pluralistas.
Será, indo ainda mais longe, que este espaço de autonomia expressiva só poderá
ser realizado num quadro de suporte de libertação informativa, no qual, por
definição, qualquer cidadão teria acesso, sem pagamento, ao conhecimento
técnico-social e ao mapeamento da informação?22 Será que esta libertação
informativa exigirá também a promoção pública da descoberta de conhecimentos
para os quais o mercado não impulsione? Evidentemente que a discussão da
possibilidade desta libertação informativa implica a discussão sobre a
capacidade do estado para financiá-la, bem como a discussão sobre os malefícios
que um financiamento deste tipo poderia ter sobre as virtualidades do mercado
de todo e qualquer tipo de informação, nomeadamente a informação tecnológica, o
que está fora das possibilidades do presente artigo?23
Educação crítica para os média
Ainda no âmbito das preocupações com a informação seleccionante e pluralista, é
de perguntar se será conveniente que nos currículos escolares esteja inserida
informação que facilite ao aluno vir a detectar as mensagens ideológicas e as
induções psicológicas que podem ser veiculadas pelos média. Já que se trata de
discutir a indução de estilos de vida e comportamentos sociais, será que esta
formação sociomediática deve incluir informação explicativa da importância das
regras e mecanismos sociais vigentes, suas tendências evolutivas e modelos
alternativos? A educação para os média, em contextos curriculares,é já uma
realidade desde os anos 70, tendo vindo a crescer nos países economicamente
mais desenvolvidos (Hefzaiiah, 1987; Brown, 1991; Quin e McMahon, 1991;
Bazalgette e outros, 1992).24 Vejam-se, por exemplo, projectos como o Center
for Media Education (Washington), o Project Look Sharp (www.ithaca.edu) e o
Center for Media Literacy (LA).
Embora tendo sido já comprovados efeitos educativos na capacidade de análise
das mensagens (Kubey, 1990; Hobbs, 2000), há contudo suspeitas de que resulte
efectivamente num entendimento do impacto social dos média (Quin e McMahon,
1991; Shoole, 1994; Messaris, 1997).
A questão é também, neste aspecto da educação, a de assegurar a informação
sobre todas as perspectivas relevantes, as veiculadas quer na educação básica
quer na educação ao longo da vida, o que remete para figuras e interrogações
semelhantes às aqui referidas para as agências críticas, no contexto do seu
papel na escola.
O direito à não publicidade e à informação fria
Até aqui, neste texto, tem-se tratado da aproximação à creditação cognitiva na
óptica da oferta. Isto é, na óptica da capacitação informativa do consumidor. A
partir de agora será abordada a óptica da regulação da oferta de produtos com
conteúdos culturalmente activos, isto é, na óptica da regulação directa sobre
as empresas e agentes dos média.
É neste contexto que parece interessante perguntar se será possível que,
progressivamente, a publicidade imposta ao consumidor (emoutdoors ou no seu
trajecto pelos média à procura de informação e recreação) seja substituída por
informações técnicas e comparativas, sobre qualquer tipo de produto, às quais o
consumidor acede sempre que precisa e não por intrusão do vendedor. Esta
ausência de publicidade,25 e em geral de informação não requisitada
expressamente pelo cidadão, constituiria uma situação de higiene informativa,
enquanto a possibilidade de aceder a essa informação somente quando deseja e
sempre que dela precisa constituiria um acesso frio, evidentemente facilitável
pelos meios telemáticos.26 De facto, todas as tendências já referidas no
sentido da produção de análises apensas detalhadas, bem como o incremento das
associações de defesa de consumidores e do tipo de informação que
disponibilizam sobre os produtos prefiguram lógicas informativas de carácter
não publicitário. De realçar, ainda, várias dinâmicas proibicionistas em
relação a certos produtos considerados perigosos (como o tabaco), a actos
publicitários que envolvem custos de oportunidade para os consumidores
(proibição do envio de faxes publicitários), a publicidade ambientalmente
agressiva (como no caso da proibição de outdoors não urbanos) e a publicidade
domiciliária (concedendo o direito ao consumidor de impedir o seu envio, caso
expressamente o declare), aliás já consagrados no código publicitário e noutra
legislação portuguesa sobre publicidade domiciliária e sobre outdoors.
Também em relação à Internet ocorrem neste momento movimentos de carácter
proibicionista relativamente ao correio electrónico publicitário (Coalition
Against Commercial Mail:www.CAUCE.org).
Sobre estes factos podem-se esboçar algumas análises, na perspectiva da higiene
informativa:
· parece existir tendência para consagrar o direito individual à recusa de
recepção de publicidade, por exemplo, em relação à Internet (CDT, 2000;
Burkert, 1997), mediante a sistematização de filtros individuais, bem como na
publicidade domiciliária;
· admitindo este direito individual, à não publicidade, como válido, ter-se-á,
também, de admitir que a publicidade só não é proibida em qualquer contexto
público devido à convicção de que a maioria significativa dos cidadãos deseja a
publicidade ou lhe é indiferente. Esta convicção parece estar longe de ser
provada, já que parece não ter ainda ocorrido uma consulta pública, após
informação e formação do público sobre os possíveis efeitos da publicidade nas
expectativas, valores e estilos de vida;27
· existe proibição da publicidade nos casos em que a sua recepção prejudica a
recepção de bens alternativos (usufruto da paisagem, no caso da proibição dos
outdoors não urbanos, e usufruto do fax). Este argumento poderá, eventualmente,
ser usado em situações muito mais vastas, já que a ocupação de um canal de
recepção impede sempre um uso alternativo de um bem especial que é o tempo do
receptor;
· a proibição de publicidade ao tabaco pressupõe que a informação pública sobre
os malefícios do tabaco não é suficientemente forte para compensar o apelo da
publicidade. Neste pressuposto a creditação cognitiva em relação ao tabaco, ou
seja, a informação sobre os seus efeitos, implica necessariamente a proibição
da sua publicidade. Portanto, os cidadãos que considerarem que a publicidade,
em geral, tem sobre eles efeitos negativos e apelos intrusivos não se poderão
defender sem beneficiarem da proibição da possibilidade de depararem com a
publicidade em espaços públicos.
Por último, convirá reparar que, numa situação de inexistência de publicidade
pública, a poupança económica assim realizada poderá reverter para a compra dos
conteúdos dos média a preços reais, já que a publicidade funciona, actualmente,
como um subsídio à produção dos conteúdos dos meios de comunicação social.28
Evidentemente que a força económica da publicidade (note-se, por exemplo que,
em grande parte, a ela se deve a gratuitidade e expansão da Internet), a sua
aproximação às corporações dos médiae aos círculos artísticos e intelectuais,
confere-lhe um estatuto de quasi-tabu virtual e extraordinária resistência à
reflexão pública e à reforma, sendo provável que, a médio prazo, esta venha a
ocorrer, na melhor das hipóteses, apenas na regulação interna das próprias
práticas publicitárias e nalgumas limitações do seu campo.
Subsídios e apoios públicos à produção cultural
Admitindo que o mercado cultural, incluindo os média, tem excessiva tendência
para reprodução dos valores dominantes massificados e das suas agendas,
encontra-se assim argumento para a intervenção política também pelo lado da
oferta cultural, mediante políticas de apoio de formas diversas (subsídios pré-
produção, pós-produção, prémios e distinções, etc.). Dada a subjectividade e
consequente carácter polémico destas matérias, poderá existir retracção na
amplitude dos apoios, se entretanto não se afirmarem mais vastas
consensualidades sobre aspectos da política cultural.29 A intensificação do
apoio às questões culturais parece carecer do desenvolvimento de mecanismos
políticos que credibilizem a intervenção do estado neste aspecto.30 Assim, será
que os referidos apoios deverão ter como critério não só a decisão política das
forças maioritárias, mas também o número de cada tipo de espectadores, o
parecer dos "críticos", de agentes culturais e de criadores de saber,
corporativamente organizados (representações dos produtores de conhecimento,
como sugerido por Bourdieu, e dos agentes dos média, como sugerido por Popper)?
Será que se deverá ir ainda mais longe e implementar uma avaliação democrática/
técnica de efeitos possíveis dos produtos culturais? Esta avaliação poderá vir
a ser efectuada pelos consumidores de cada produto em avaliação, depois de
estes consumidores serem informados, de forma pluralista, dos possíveis efeitos
existenciais de cada produto cultural, mediante a organização de várias câmaras
de cidadãos especializadas nos diversos temas em causa, num modelo de câmaras
idêntico ao já referido.31 Será a norma cultural em relação aos apoios públicos
uma real tolerância activa, fugindo a lógicas de imposição das maiorias e
privilegiando, o mais possível, expressões ideológicas minoritárias emergentes,
recessivas ou segmentares em termos de público?
Será que a constituição de mecanismos de avaliação de carácter sociopolítico,
como as referidas câmaras, abre portas para novos sistemas económicos, em
relação a qualquer produto e bem, nos quais as representações dos utentes
teriam um papel fundamental, não só na avaliação dos produtos posteriormente à
sua produção mas, também, na decisão sobre que produtos produzir e com que
características?32
A questão da credibilização da intervenção cultural do estado criará
eventualmente bases de apoio social para adequar sistemas de taxação à
indústria cultural de massas que revertam directamente para a promoção da
qualidade, do pluralismo e da inovação, podendo ir muito mais além de esquemas
muito restritos como, por exemplo, as actuais taxas de exibição
cinematográfica?
A educação dos média
Ainda relativamente à regulação pelo lado da oferta, e na ordem de ideias da
proposta de Popper, será conveniente não restringir os processos de formação e
credenciação aos profissionais de televisão, alargando-os a todos os produtores
de cultura (como propõe Contri), de forma a todos beneficiarem de especial
sensibilização e formação sobre os possíveis efeitos subliminares e ideológicos
das mensagens que podem veicular?33 Será que esta formação deve envolver a
mesma abrangência e pluralismo da referida formação sociomediática dos alunos
do sistema escolar normal? Tratar-se-ia de capacitar civilizacionalmente os
produtores culturais? Aliás, será que o conceito de produtor cultural deve ser
entendido de forma especialmente abrangente? De facto, será que as mensagens de
maior impacto estão sobretudo centradas nos locus culturais tradicionais
(espaços informativos nos média, espaços da educação formal, salas dedicadas
aos eventos culturais e espaços culturais nos meios de comunicação), ou será
que a mensagem cultural está associada a todo o tipo de mensagens? Reconhecendo
e valorizando a imanência da cultura em todo o tipo de mensagens, deverá a
capacitação civilizacional referida abranger, necessária e prioritariamente, os
comunicadores de massas, como publicitários actuando segundo novos códigos para
ajudar a estruturar comportamentos sociais (Kotler e Roberto, 1989, 1992),
comentadores desportivos, novelistas, grupos de música popular, jornalistas,
cronistas sociais, etc?34
Em suma, as propostas de Popper e Contri parecem prefigurar tendências e aduzir
argumentos que podem ser utilizados para intervenções mais vastas do que as
propostas por estes autores, no campo da educação e capacitação dos agentes dos
média.
Conclusão
Evidentemente que todas estas perguntas não fazem mais do que sugerir
potencialidades e problemáticas de uma intervenção reguladora, estando muito
longe de constituírem afirmações absolutamente fundamentadas ou programas de
regulação. Obviamente, será ainda necessário continuar a estudar as relações
entre os conteúdos dos média e os seus efeitos sociais, analisar as implicações
e os contextos filosóficos de princípios reguladores como o da creditação
cognitiva, analisar contextos e resultados de tendências e experiências
emergentes que se aproximaram das hipóteses de intervenção sugeridas,
clarificar as lógicas de actuação dos agentes e grupos sociais envolvidos,
conceber operacionalizações mais detalhadas e cautelosas de eventuais novos
processos de regulação, etc.
Não obstante, a criação de uma procura efectiva deste tipo de trabalhos
teóricos pode ter de passar por uma intensificação da polémica, envolvendo um
número considerável de cidadãos e entidades, que revele a possibilidade de
novas intervenções reguladoras que possam, eventualmente, assumir considerável
significado social.
De facto, os fortes impactos dos produtos mediáticos e a eventual deslocação do
centro de gravidade social para as questões culturais, parecem exigir novos
processos de sua regulação, eventualmente não se devendo restringir aos
sistemas tradicionais de mercado nem aos habituais sistemas políticos de
promoção cultural.
Como referência orientadora desses novos processos pode falar-se de um cenário
de informação generalizada dos consumidores, em certa medida de carácter
compulsório, que lhes permitiria, em livre opção de mercado, seleccionar os
produtos, com conhecimento dos seus possíveis efeitos e produtos alternativos.
Trata-se, evidentemente, de um cenário distante e irrealizável em absoluto,
sendo interessante perspectivar intervenções reguladoras aproximativas e mais
imediatas. Sob a égide deste cenário referencial parece ser possível, desde já,
conceber várias novas possibilidades de intervenção, iniciar a sua
problematização e reflectir sobre o seu potencial, de forma a constituir um
incentivo heurístico para posteriores aprofundamentos destas temáticas da
regulação dos conteúdos da comunicação social e da regulação dos produtos
culturais e informativos em geral. As preocupações vão no sentido de assegurar
uma informação mais clara sobre os efeitos sociais do consumo de cada produto,
propiciar uma informação que chegue seguramente à compreensão crítica do
consumidor e uma informação efectivamente pluralista. Nenhuma destas condições
parece ser realizada pelos sistemas actualmente dominantes de informação sobre
produtos culturais, sobretudo os veiculados pelos média, nem sobre produtos de
consumo em geral.
Contudo, parece claro, desde já, que a percepção da dificuldade, prática e
política, de intervenções nestas questões pode inibir o seu debate, já que
estas intervenções aproximam-se excessivamente de quasi-tabus como a censura e
a distorção do mercado. Estas intervenções parecem exigir, portanto, não só
novos quadros teóricos desafiantes sobre informação e cultura, mas, também, a
concepção de um significativo desenvolvimento qualitativo do sistema político
regulador, eventualmente passando por inovadora descentralização, participação
aberta a todos os cidadãos, em fóruns permanentes de especialização temática
com poderes políticos, fornecimento sistemático de informação adequada a estes
fóruns, reforço do pluralismo na sua amplitude e campos de intervenção, criação
de agências críticas, etc.
Sem este tipo de desenvolvimentos sinérgicos entre sistema político e sistema
cultural, frequentemente possibilitados pelos avanços das novas tecnologias de
comunicação, torna-se difícil perspectivar sistemas de regulação cultural que
não sejam dominados pelas lógicas do mercado livre desinformado ou não sejam,
evidentemente, permeáveis aos perigos da censura e instrumentalização política.
Notas
1 Em entrevista com G. Bosetti, publicada em La Lezione del Novecento, 1992,
Veneza, Marsilio Editore. Posteriormente Popper optou por outros processos de
controlo.
2 Segundo Putnam (1995), o conceito de capital social refere-se à
participação dos cidadãos nos assuntos da comunidade, ou seja, é a sua teia de
inter-relações, confiança mútua, partilha de normas e empenhamento geral nos
assuntos comuns. Coleman (1990) utilizou anteriormente este conceito.
3 Referidos nas meta-análises de Adison (1977), Hearold (1986), Paik e
Comstock (1994) e Comstock e Scharrer (1999).
4 As limitações que afectam a profundidade das conclusões dos estudos, para
além das definições semânticas dos conceitos utilizados, podem classificar-se
da seguinte maneira: 1) serem efectuados em condições laboratoriais que têm
sempre um certo afastamento face à realidade; 2) no caso de serem estudos de
correlação estatística entre variáveis, expressando a exibição da violência e
os seus eventuais efeitos negativos em contextos reais: a) nem sempre tentam
verificar a hipótese da correlação ser devida a que os indivíduos com
comportamentos mais agressivos e anti-sociais desenvolvam especial apetência
por programas violentos (isto é, a violência e o comportamento anti-social não
seriam o efeito mas sim a causa da apetência pelo consumo de violência nos
média); b) nem sempre controlam variáveis que podem ser a causa,
simultaneamente, de comportamentos anti-sociais e da apetência pelo consumo de
violência nos média. Exemplo de uma variável deste tipo é a falta de atenção
dos pais para com as crianças (Thornton 1984). Evidentemente que não é possível
garantir o controlo de todas as variáveis externas deste tipo. Contudo, é
possível controlar aquelas sobre as quais existem suspeitas com algum
fundamento teórico ou empírico.
5 Excitation transfer, no original.
6 Para uma abordagem neo-associacionista teórica, integrada com os
paradigmas da computação neural, ver Fonseca 1989.
7 Concepções teóricas relacionáveis com as primeiras críticas à "indústria
cultural". O conceito crítico de "indústria cultural" foi lançado por Adorno e
Horkheimer (1944). Para críticas filosóficas à indústria cultural ver Marcuse
(1964), Althusser e Balibar (1970), Habermas (1970). Sobre dominação,
libertação e cultura ver Marx e Engels (1975), Adorno (1973), Horkheimer
(1969), Vaneigem (1967), Munch (1992). Ver também o desenvolvimento de ideias
de Gramsci sobre o papel libertador da luta cultural em Poulantzas (1971).
Sobre os mecanismos e valores veiculados em programas televisivos para crianças
ver Alonso e Vasquez (1995). Na perspectiva dos cultural studies, padrões de
construção ideológica pela indústria cultural são estudados em Hall (1990),
West (1993), Hebdige (1979) e Ang (1985).
8 Todos estes três aspectos têm estado, por exemplo, no centro das
actividades religiosas que, portanto, têm constituído uma das formas na gestão
destas componentes da cultura. Quer nestes três aspectos quer nos outros
aspectos de gestão dos processos cognitivos e emocionais envolvidos na cultura,
poderá falar-se de um processo filonómico (filo = amor a + nomia= gestão), ou
seja, a gestão das afinidades psicológicas e éticas. Embora a utilização do
conceito de "gestão", neste contexto da cultura, possa ser vista como um
neomodernismo incompatível com validações pós-modernistas, parecem ser
possíveis compatibilizações num quadro de pluralismo radical na referida
gestão, como se exporá adiante. Sobre o conceito de filonomia pode-se encontrar
análise em Fonseca (1999c), na perspectiva da psicologia e filosofia da
religião, num contexto articulado sobre as questões dos sistemas sociais de
informação.
9 Papel que hoje, aparentemente, tende a ser dominado pelo sistema
publicitário e por diversas formas, mais ou menos artísticas e recreativas, de
reprodução dos valores da sociedade, nomeadamente os de carácter consumista e
hierarquista. Sem uma dinâmica filonómica a este nível da estruturação de
desejos, expectativas e estilos de vida é muito difícil ou talvez impossível
sustentar uma instilação ética favorável à relação social e à salvaguarda do
ambiente natural. De facto, desejos e expectativas excessivas em relação ao
consumo, poder, sexualidade, etc., criam ambientes socialmente tão competitivos
que, aparentemente, deixam pouco espaço para estruturas éticas de
relacionamento e cooperação social e salvaguarda dos ecossistemas.
10 Como é amplamente conhecido, segundo Max Weber (1904), a religião
protestante consistiu numa adaptação da religião à novas necessidades dos
valores do trabalho capitalista. Talvez também este tipo de actualização
socioeconómica deva continuar a enformar uma futura filonomia do trabalho, numa
perspectiva de consciente actualização constante das relações entre a cultura e
as dinâmicas tecnológicas/económicas.
11 Keats (1994) defende que deve sempre existir alguma autoridade do
produtor nas opções e avaliação da produção em assuntos que envolvem
conhecimentos profundos, não sendo desejável uma plena autoridade do
consumidor.
12 Sobre semelhanças operativas entre sistema de mercado e sistema político,
considerar a public choice theory, ver o percursor Downs (1957), o mais
conhecido autor Buchanan (1962), premiado pelo Nobel em relação a esta
temática, uma recente introdução em Gunning (1999) e abordagem sintetizada em
Mueler (1997).
13 Fundamentações teóricas diversas podem ser encontradas em Popper e
Bourdieu (op. cit.).
14 Contudo, não existe, evidentemente, uma expressão pura de factos da
actualidade social, da técnica e da ciência, que não seja já uma opção de quem
descreve, até porque é preciso escolher quais os factos que se consideram
relevantes para descrever e comunicar (trata-se do tema clássico da agenda-
setting, referenciada, por exemplo, nos manuais de Wolff (1987) e Saperas
(1993). É duvidoso, portanto, que as notícias e informações sobre este tipo de
conhecimento devam ficar completamente fora da alçada de algum tipo de
regulação. Contudo, por outro lado, não parece possível impedir o acesso a este
tipo de informação, colocando barreiras em termos de exigência de preparação
para as aceder, nomeadamente por três razões: 1) pode ser urgente que os
indivíduos tenham conhecimento dos factos relatados, sobretudo em relação a
notícias de actualidade; 2) é pouco provável que os conhecimentos técnicos,
científicos e as propostas sociais, quando expressos segundo semânticas
caracterizáveis de objectividade, incutam mensagens subliminares de carácter
anti-social (contudo levantam sempre o problema da agenda-setting); 3) muitos
destes conhecimentos constituirão a própria informação seleccionante. Este tema
voltará a ser tratado mais adiante, num contexto de preocupação com o
pluralismo.
15 É de notar que, caso a consciência pública sobre o poder estruturante dos
média aumente significativamente, esta definição de critérios poderá vir a
articular-se, por exemplo, em torno de perguntas como as seguintes: 1) até que
ponto é que sistemáticas notícias sobre acidentes de viação, crimes, desastres
naturais, etc., devem ser substituídas por campanhas preventivas, levantamentos
periódicos de ocorrências deste género e debates sobre a acção do cidadão e dos
poderes para intervir nestes problemas, em vez de constituírem notícias
permanentes apresentadas como espectáculos mórbidos, com eventuais efeitos
psicossociais negativos? 2) até que ponto grande parte das notícias insistentes
sobre eventos político-partidários e realizações governamentais não devem ser
substituídas por balanços globais deste tipo de actividade? 3) até que ponto é
que as notícias sobre a ciência e a tecnologia não devem ser sempre
acompanhadas da elucidação dos interesses dos grupos socioeconómicos que ficam
especialmente beneficiados com cada tipo de tecnologia e linha de investigação,
bem como da elucidação de seus possíveis efeitos negativos e alternativas de
investigação? Estas questões, relativas às condições de acesso ao conhecimento
técnico-social e à forma como ele é transmitido, voltarão a ser tratadas mais
adiante, quando se abordar o conceito de agências críticas, num clima de
preocupação com a efectividade da informação pluralista e de consensos ou
diferenciações que a expressem cabalmente.
16 Sem poder ir muito longe na reflexão sobre a superação dos custos
pessoais excessivos, deve referir-se que aquela pode passar pela procura de um
equilíbrio entre as seguintes variáveis: 1) o tempo dedicado pelo consumidor a
procurar e absorver a informação seleccionante (sendo este tempo o único custo
pessoal a considerar, por definição do conceito de creditação cognitiva); 2) o
tempo disponível para o consumo dos bens acessíveis mediante essa informação
seleccionante.
17 Aproveite-se para notar que o desenvolvimento de sistemas de informação
seleccionante, regulados pelo sistema político, constituiria um sistema misto
entre o desenvolvimento dos campos de intervenção da democracia política
(possibilitando, pelo lado da procura, ao cidadão/consumidor a creditação
cognitiva) e empowerment individual do consumidor na escolha cultural (por não
existir regulação política significativa a nível da oferta efectuada pelo
mercado). Este tipo de intervenção parece conciliar as propostas da nova
esquerda (democratização da decisão sobre produção e consumo) e da nova direita
(subordinação da produção cultural aos mecanismos de procura no mercado). Sobre
propostas da nova direita e nova esquerda ver Kershaw (1994) e Keat (1994a).
18 Será de perguntar se as condições especiais de equalização mediática que
são criadas e exigidas em períodos de campanha eleitoral representam o
reconhecimento, pela sociedade, que não existe, fora do regime especial das
campanhas eleitorais, suficiente igualdade mediática para as diversas
ideologias e perspectivas. Tal parece constituir a admissão de que não existe
um efectivo pluralismo na maior parte do tempo da vida social mas, apenas, um
pluralismo de permissão e de tolerância, na melhor das hipóteses.
19 Contudo, é sabido que o aumento do poder produtivo ocasiona produções de
pequena escala para segmentos especiais de consumidores. Não obstante,
persistem, obviamente, forças de concentração e massificação. Aliás, tratando-
se de garantir que o consumidor tenha acesso à análise apensa, seguramente
pluralista, não se vê como é que qualquer empresa em mercado livre poderia
fornecer essa garantia de pluralismo, nem como qualquer cidadão se poderia
assegurar de qual o leque de empresas que estariam a cobrir o leque de
informação pluralista.
20 Uma das possíveis consequências desta perspectiva seria reequacionar o
pluralismo na gestão dos serviços públicos de informação, como nos canais
públicos televisivos, actualmente sob a administração das forças políticas
maioritárias, embora na alçada de regras que se pretendem equilibradoras do
pluralismo.
21 Assim evitando custos de transacção excessivos. Neste caso os custos de
transacção (tempo e recursos gastos) seriam os que o consumidor teria para
descobrir quais as agências críticas dignas de credibilidade e qual o leque
destas agências que expressam o leque de perspectivas gerais sobre cada tema em
apreço. Este conceito de custo de transacção é subsidiário do conceito de custo
de transacção de Ronald Coase (The Nature of the Firm, 1937, referido em Coase,
1995).
22 O conhecimento envolvido neste mapeamento consiste numa informação
organizativa matricial ou organo-informação (isto é, definindo o conceito de
organo-informação - a classificação e mapeamento do conhecimento, em geral, que
permita, facilmente, encontrar a informação que se pretende). Trata-se, é
claro, de um tipo de meta-informação, tal como é meta-informação a análise
apensa de produtos culturais.
23 Sobre as características especiais da informação enquanto mercadoria e as
dificuldades inerentes no sistema de mercado livre, ver Romer (1990a), Stiglitz
(1995), Mirlees (1997), Arrow (1962a; 1984) e Fonseca (1998). Por exemplo, o
prémio Nobel Arrow afirmou, já em 1962: "O valor de uma informação para o
comprador só é conhecido depois de ele conhecê-la, mas então é como se a
tivesse adquirido sem custo". ("Information's value for the purchaser is not
known until he has the information, but then he has, in effect, adquired it
without cost") (Arrow, 1962a: 148). Em 1984 afirmou: "A informação só é uma
mercadoria até certo ponto. No caso da informação a convicção de que os
mercados levam a uma correcta utilização dos recursos não é válida. Existem,
pelo menos, duas características da mercadoria informativa que a distinguem do
conceito de mercadoria usado nos modelos económicos" (Arrow, 1984: 142).
24 Como definição do conceito de "educação para os média" pode usar-se a
proposta na National Leadership Conference on Media Education, no início dos
anos 90, entendendo-se como a promoção da capacidade de aceder, analisar,
avaliar e comunicar mensagens em formatos diversos (Hobbs 2000).
25 Estudos sobre os média e a publicidade, neste contexto crítico: ver
Williams (1980), Gitlin (1983), Schudson (1984), Tuchman (1978). Parecem
existir razões para crer que mesmo as pessoas que se dizem não afectadas pela
publicidade o são (Garfinkel, 1967: 113-114). A maior parte das decisões de
compra parece não implicar sequer uma deliberação consciente (Olshansky, 1979:
93-100). Segundo Leiss (1983), a publicidade não dá de facto informação sobre o
produto, sendo um modelo irracional de informação.
26 O conceito "frio" é inspirado na distinção de McLuhan (1964) entre meios
de comunicação "quentes" e "frios". Os "quentes" são os que deixam pouco espaço
para reflexão ou contributos pessoais, por serem uma torrente, sobreaquecida,
de densas mensagens, circulando num só sentido. Contudo, também numa informação
fria pode haver espaço para o pluralismo de opinião. O universo de preocupações
expressas, anteriormente, na questão das agências críticas tem também sentido
para a elaboração de análises técnicas de produtos não culturais. Todavia,
parece evidente que em relação à avaliação de produtos como carros,
frigoríficos, casas, etc., o grau de consenso entre as diversas correntes de
análise poderá ser maior do que em relação a produtos culturais e produtos
informativos sofisticados. Neste contexto talvez se possa falar da substituição
de espaços publicitários por espaços de informação pública ou, sinteticamente,
espaços de publi-informação.
27 Daqui decorre a questão de saber o que seria uma maioria significativa
numa consulta pública, bem como saber da correcção social da imposição de uma
proibição em nome dessa maioria. Note-se que, no caso de uma minoria pretender
aceder à publicidade, mesmo tendo acesso a formas alternativas de informação,
eventualmente por motivos estéticos (hipótese que se afigura muito remota),
nada impediria substancialmente a criação de canais unicamente publicitários.
28 Como é que a poupança das empresas em publicidade poderia reverter para o
poder de compra dos consumidores dos média é questão a esclarecer. Será
possível que o intervencionismo estatal se torne necessário (eventualmente
articulado com um serviço público de acesso frio a informação sobre os
produtos) se os rendimentos dos trabalhadores e participantes das empresas não
aumentarem, em consequência das poupanças com a ausência de investimento
publicitário, de forma equilibrada. Esta questão de carácter económico não pode
aqui ser tratada.
29 O Decreto-Lei de 1999, regulador dos apoios ao cinema, audiovisual e
multimédia, refere unicamente como objectivo da intervenção do estado: "a
afirmação da identidade nacional, a projecção da língua e a valorização da
imagem de Portugal no mundo e o desenvolvimento de uma indústria nacional de
conteúdos". Objectivos culturais como a promoção da tolerância, da participação
cívica, o afastamento de soluções recorrentes de violência, a promoção da
inovação, a capacidade de análise a preconceitos, as atitudes face ao trabalho,
cooperação, investimento, etc., parecem ser considerados exteriores à política
cultural.
30 De notar que recentemente (Março 1999) foram expandidas as atribuições do
Instituto da Comunicação Social, para este poder passar a atribuir prémios.
Além da aparência de maior objectividade e consensualidade relativa de um
prémio (outorgado por um "conselho de peritos" com um conhecimento efectivo do
produto final), comparativamente com subsídios pré-produção, o prémio funciona
como uma análise apensa, embora excessivamente sintética. Tentativas de
objectivação dos critérios de concessão de subsídios podem ser encontradas,
também, no facto de um dos critérios para apoio ser agora os números de
anteriores resultados de bilheteira. Neste caso a procura de uma credibilização
da lógica de atribuição de apoios verga-se, parcialmente, às deficiências do
mecanismo (o mercado) que supostamente justificam a existência destes apoios.
31 Em geral, sistemas de descentralização e co-decisão que induzam uma
participação cívica mais ampla e informada concorrem neste sentido.
Recentemente algumas experiências mais radicais, neste contexto, como, por
exemplo, as sondagens deliberativas de Fishkin (1991; 1997) têm sido levadas à
prática, embora com limitações relevantes se tomadas isoladamente.
32 Poderá, no contexto deste planeamento com consumidores, falar-se de
economias planeadas democraticamente. O que não implicaria, necessariamente, a
ausência de concorrência. De facto, este planeamento poderia ser feito
escolhendo propostas concorrentes oriundas dos produtores, num clima de diálogo
sistemático entre todas as partes. Um pouco neste sentido, vejam-se as leituras
de Polanyi (1944) sobre o sistema económico de Robert Owen, as propostas de
Guild Socialism de G. D. H. Coase (1920) e suas decorrências pós-modernas em
Hirst (1994). Aliás, a decisão sobre o que produzir poderia também escolher
simultaneamente vários produtos e produtores concorrentes, deixando espaço ao
consumidor final para as últimas decisões em função da qualidade e da
eficiência demonstradas, na prática, por cada entidade produtora. Note-se, de
passagem, que se cada produtor for recompensado em função dos seus resultados
práticos de carácter comercial, nada obsta a que as entidades produtoras sejam
entidades de capitais públicos, pois estes níveis de concorrência e de
incentivo à eficiência e qualidade deixam perspectivar níveis elevados de
empenhamento dos produtores, sem cair em estagnações administrativas. As
vantagens de capitais públicos funcionando neste sistema misto planeamento/
democracia informada/mercado seriam as de maior igualdade social, maior
transparência face aos consumidores, bem como as de melhor circulação de
informação entre todos os produtores por dispositivo anti-secretista (Fonseca
1996, 1998, 1999a, 1999b). O incentivo à inovação seria assegurado pelo sistema
de decisão democrática (pelos "representantes" dos consumidores) e,
eventualmente, também por prémios dados aos criadores das ideias inovadoras.
Talvez este tipo de esquema seja mais fácil de aplicar em produtos como
viaturas, computadores e outros tipos de mercadorias correntes que não os bens
culturais, embora, em qualquer caso, as complexidades deste esquema de
planeamento concorrencial sejam consideráveis, estando fora das possibilidades
deste artigo debater as suas facetas em termos de teoria económica.
33 Mesmo no caso dos jornalistas, uma classe supostamente bem informada,
parece verificar-se pouca sensibilidade efectiva sobre as implicações
ideológicas e civilizacionais do que veiculam. Sobre o conceito do jornalista
como gatekeeper, reproduzindo a ideologia dominante, devido às pressões
profissionais, ver Breed (1955). Sobre a relativa superficialidade das
informações jornalísticas, ver Rosegreen (1981) e o já citado Bourdieu.
34 Esta distinção entre cultura imanente e cultura patente não coincide
completamente com a distinção entre cultura popular e cultura de elites, embora
existam pontos comuns. Sobre a interpenetração entre estas duas formas
culturais, ver Bakhtin (1984). Para um conceito englobante de cultura, ver
Williams (1979). Para uma recensão dos diversos significados do conceito de
cultura, ver Geertz (1973). Para uma defesa da qualidade e da função de certos
produtos da cultura popular moderna de massas, ver, por exemplo, Seldes (1924),
Wolfe (1965), Dyer (1977), Aronowitz (1993).