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EuPTHUHu0873-65292001000300003

EuPTHUHu0873-65292001000300003

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6529
ano2001
Issue0003
Article number00003

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A redefinição do papel do estado e as políticas educativas: elementos para pensar a transição

A temática escolhida para este texto é particularmente propensa à mobilização de perspectivas teórico-conceptuais ou disciplinares diferenciadas. No entanto, fiel quanto posso ao ofício e ao habitus do sociólogo, o enfoque que privilegiarei é o da sociologia das políticas educativas designação que venho adoptando para nomear a especificidade do olhar a partir do qual tenho procurado construir um dos meus objectos preferenciais de investigação e de docência.

Na verdade, a observação que acabei de fazer tem implícita a convicção (estou certo que muito discutível) de que as formações académicas dos investigadores que, em Portugal ou em outros países, trabalham as questões das políticas educativas (ou que leccionam disciplinas que designam de política educativa), não sendo mais determinantes do que as suas opções políticas ou visões do mundo, têm, todavia, alguma influência nas abordagens que privilegiam. Refiro- me, mais concretamente, a três atitudes recorrentes. Uma, de teor mais marcadamente normativo ou prescritivo traduzindo, talvez, disposições mais afins às disciplinas do direito, da ciência política e da administração pública tende a convocar e reactualizar velhos postulados funcionalistas na análise da educação, e disfarça mal a obsessão por tornar mais eficaz a agenda política, assim privilegiando e enunciando modelos, propostas e orientações que, regra geral, não questionam os valores e a ordem social e pedagógica dominantes. Uma outra atitude, mais acentuadamente explicativa ou compreensiva, não raras vezes induzida por formações académicas mais próximas de uma sociologia weberiana ou mesmo da própria filosofia, apesar de procurar desconstruir os processos de formulação, de decisão e de implementação das políticas educativas, no sentido de perceber as lógicas, as relações de poder, as contradições e as consequências dessas mesmas políticas, tende, todavia, a deixar apenas implícitas as alternativas defendidas.1 Finalmente, uma terceira atitude, mais referenciada à sociologia crítica, pode ser melhor caracterizada como aquela que não se limita à desconstrução analítica das políticas educativas, ou à desocultação das ambiguidades e contradições que as atravessam, mas assume, em simultâneo, um compromisso ético e político explícito, procurando e valorizando o confronto tenso e instável entre a objectividade pretendida pela prática científica e a politicidade inerente a toda a acção humana. Traduzindo a procura de uma explicação rigorosa e empiricamente sustentada relativamente às políticas educativas que são objecto de análise o que, certamente, implica a sempre mais difícil assunção da tarefa de interpretar as especificidades nacionais onde elas ocorrem, em vez da (mais fácil) importação mimética de agendas de investigação dominantes em outros contextos esta postura não dispensa o investigador de assumir os valores e visões do mundo que defende, ainda que eles, frequentemente, estejam em profunda divergência com o statu quo que pretende compreender e problematizar, sem que isso justifique menos esforço de rigor e de objectividade.

Em congruência com esta última atitude, que é aquela com a qual mais me identifico, a questão que se coloca como mais pertinente parece-me ser a seguinte: será possível construir com objectividade o objecto políticas educativas sem deixar de manter um compromisso com as lutas sociais em torno dessas mesmas políticas? Aceito, por agora, que a resposta possa ser a que é dada por Raymond Morrow e Carlos Alberto Torres quando propõem: uma análise integrada da política educativa deve, na perspectiva de uma sociologia da educação crítica e política, possuir dois momentos: a análise objectiva dos determinantes da política pública; e uma análise da antecipação das condições de possibilidade das mudanças e das estratégias prováveis de implementação de uma política de transformação (Morrow e Torres, 1997: 312- 313).

Fazendo desta proposta um roteiro para o meu próprio texto, não irei, no entanto, muito além do primeiro momento que estes autores propõem para a análise das políticas públicas. Assim sendo, procurarei, sobretudo, colocar em evidência alguns dos eixos e condicionantes das políticas educativas actuais, tendo como pano de fundo a redefinição do papel do estado. Do meu ponto de vista, esta parece ser uma etapa prévia pela qual se torna necessário passar antes que possamos estar em condições de equacionar os desenvolvimentos futuros e as políticas de transformação.

O estado, as teorias do estado e as políticas educativas Pela complexidade das questões em jogo, pretendo tão-somente ensaiar uma possível abordagem ao tema que me propus, começando por referir um dos vectores que tem sido (e continuará ainda a ser) determinante na configuração das políticas educativas: o estado-nação.

O projecto da modernidade, em grande medida construído em torno do estado enquanto produto histórico da conquista e afirmação do monopólio da violência física legítima, pôde contar mais tarde com a escola pública, tornada também uma das instituições centrais do exercício da violência simbólica, para submeter todas as identidades dispersas, fragmentadas e plurais, em torno de um ideário político e cultural a que se haveria de chamar nação.

Sendo, em parte, impulsionador e, também em parte, consequência da acção eficaz da educação pública, o binómio estado-nação continua a manter alguma centralidade para a análise das políticas educativas. E, muito embora não detenha essa prerrogativa em exclusivo, não me parece que possamos falar de uma sociologia das políticas educativas sem que isso implique, ainda que nem sempre de forma imediata ou explícita, a remissão para uma teoria do estado, ou, pelo menos, para alguns pressupostos teórico-conceptuais referenciáveis a uma (ou a mais do que uma) teoria do estado.2 Entretanto, uma questão que hoje se coloca é a de saber se, dada a des- nacionalização do estado, ainda faz sentido convocar teorias que assentam nos pressupostos do estado-nação, isto é, teorias cuja capacidade explicativa supõe a existência de uma grande autonomia de decisão do poder político numa determinada configuração territorial. Como sugere Boaventura de S. Santos: o processo de descentramento a que o estado nacional vem sendo sujeito, nomeadamente por via do declínio do seu poder regulatório, torna obsoletas as teorias do estado que até agora dominaram, tanto as de origem liberal, como as de origem marxista (Santos, 1998a: 59).

Algumas dessas teorias, como, por exemplo, as teorias pluralistas, por pretenderem justificar a acção do estado enquanto expressão neutra de uma suposta vontade geral, estão muito desacreditadas como instrumento analítico no campo das ciências sociais sendo certo, todavia, que essa representação social em torno do estado continua a mostrar alguma eficácia simbólico- ideológica, sem a qual, aliás, não seria certamente tão frequente a sua evocação, quer nos momentos consagrados, nas democracias representativas, aos rituais de persuasão pré-eleitorais, quer, mesmo, nos discursos em torno das opções e práticas governativas quotidianas.

Em contraposição, algumas teorias marxistas mais ortodoxas, embora privilegiando o conflito em vez do consenso, nem sempre se distanciaram do determinismo classista na concepção da acção do estado, pelo que, não apenas se tornaram gradualmente incapazes de explicar a relação deste com os novos movimentos sociais, sobretudo aqueles fundados em processos contra-hegemónicos locais e mais centrados na valorização das subjectividades e identidades multiculturais e de género, como acabaram, por vezes, por promover explicações (e induzir motivações) sobre a mudança social que, ganhando sentido apenas no horizonte exclusivo de promessas revolucionárias, acabaram, paradoxalmente, por justificar alguma desmobilização ou descompromisso político.

Finalmente, mesmo as teorias (neomarxistas ou outras) que privilegiaram a autonomia relativa do estado e que demonstraram capacidade heurística bastante para, no contexto nacional, explicar de forma consistente, quer o compromisso com a acumulação capitalista, quer a permeabilidade conjuntural às lutas sociais e ao processo de legitimação democrático , parecem tender também a ficar anacrónicas (ou, pelo menos, sob suspeita) dada não apenas a erosão (real) do estado-providência, enquanto forma política do estado capitalista democrático, mas também dada a eficácia de todo um trabalho de inculcação simbólica que consegue impor, mesmo às consciências mais críticas, a inevitabilidade da globalização neoliberal, e todas as suas consequências nos campos político, económico, cultural e educacional (cf. Bourdieu, 1998: 37).

Perante este cenário, se me parece fazer algum sentido dizer que não podemos convocar, sem profundas actualizações, algumas das teorias disponíveis sobre o estado, também não poderemos deixar de considerar que o estado, em si mesmo, enquanto sujeito histórico e político, continua a existir, pelo que continuamos a precisar de teorias que dêem conta da redefinição do seu papel e que sejam capazes de explicar quais os limites e possibilidades da sua acção no contexto das novas condicionantes mega-estruturais. Neste sentido, julgo que, apesar de ser necessário problematizar os efeitos (não lineares e contraditórios) da globalização, e discutir a sua própria configuração como nova e poderosa ideologia, a análise sociológica das políticas educativas continua a não poder abrir mão da referência ao papel e à natureza do estado nacional e às suas relações com as classes sociais, e a não dispensar, portanto, o entendimento das especificidades (culturais, sociais, políticas, económicas e educacionais) que estão impregnadas da (e na) história de uma dada formação social.

Como fazê-lo, entretanto, sem uma teoria do estado reactualizada? Ou, então, como falar da reforma do estado sem que se comece por chamar a atenção para a necessidade da reforma das teorias do estado? Se partes velhas e anacrónicas nas teorias do estado (e sabemos que isso se tornou evidente antes mesmo de a redução da autonomia do estado-nação ser atribuída aos supostos efeitos da globalização) é então urgente encontrar teorias que, permitindo superar os défices existentes e diagnosticados, procurem explicar a redefinição do papel do estado e a sua relocalização, tendo agora em conta as novas e múltiplas condicionantes emergentes da actual reestruturação do capitalismo a nível global. As possibilidades, por enquanto, são apenas experimentais, e as teorias apenas exploratórias.

Como defende a este propósito David Held (1995), numa época em que coexistem múltiplos centros de poder e sistemas de autoridade, dentro e fora das fronteiras nacionais, é necessário renovar as bases da política e da teoria democráticas. Neste sentido, o conceito de poder legítimo ou autoridade deve ser separado da sua tradicional associação com os estados e com os limites rígidos das fronteiras nacionais, para que possa ser relocalizado no âmbito de uma nova configuração internacional da vida política, moldada e organizada por um novo direito democrático cosmopolita ou por uma democracia cosmopolita internacional. No entanto, adverte ainda este autor, isto não implica abandonar o estado moderno mas sim concebê-lo como um elemento de um contexto mais amplo de condições, relações e associações políticas (cf. Held, 1995: 22).

Esta perspectiva de David Held parece-me ser compatível com uma outra sugerida por Boaventura de S. Santos quando afirma: sob a mesma designação de estado está a emergir uma nova organização política mais vasta que o estado, de que o estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais e globais (Santos, 1998: 59).

Sendo este um enunciado muito amplo e abstracto tem, todavia, a vantagem de permitir integrar, de imediato, as alterações actuais em curso no papel do estado, apontando, ao mesmo tempo, para vectores mais prospectivos relativamente à sua evolução futura. Neste sentido, parece-me haver alguma confirmação empírica convergente com a ideia de o protagonismo do estado estar a manter-se, muito embora a sua centralidade, responsabilidade e visibilidade sociais estarem, simultaneamente, a esbater-se. A isto não será indiferente o facto de o estado transferir responsabilidades e funções para novos actores sociais, e induzir, por processos muito diferenciados, novas representações e concepções em torno do bem comum e do espaço público que pretendem legitimar esse descentramento. Dois exemplos paradigmáticos podem ser referenciados a este propósito: a promoção de quase-mercados e as relações com o terceiro sector.

Uma das características das políticas neoliberais tem sido a promoção de mecanismos de mercado no interior do espaço estrutural do estado, liberalizando e promovendo pressões competitivas entre serviços, transformando os utentes em clientes, privatizando, adoptando instrumentos e princípios de gestão baseados na racionalidade instrumental, e subordinando os direitos sociais às lógicas da eficácia e da eficiência. Surgem assim os designados quase-mercados (cf. Le Grand, 1991) que põem em evidência o carácter híbrido das novas formas de financiamento, fornecimento e regulação (que o próprio estado incentiva e que se inscrevem na redefinição das suas funções), mas que não significam necessariamente a diminuição do seu poder de intervenção.

, aliás, vários exemplos relativos a políticas educativas neoconservadoras e neoliberais que mostram que em algumas situações se produziu um desequilíbrio (paradoxal) a favor do estado e em prejuízo do livre-mercado, por causa das tensões e contradições assentes na fórmula política da nova direita que se caracterizou por exigir um estado limitado, portanto, mais reduzido e circunscrito nas suas funções, mas, ao mesmo tempo, forte enquanto mecanismo de coerção e controlo social (cf. Afonso, 1998a, 1998b).

Os quase-mercados são assim uma espécie de ex libris do carácter híbrido público/privado, estado/mercado, inerente às políticas adoptadas na fase de expansão neoliberal. No entanto, estes mecanismos estão longe de esgotar o sentido das mudanças em curso no que diz respeito à redefinição do papel do estado.

outros híbridos que vêm ganhando protagonismo porque, não pressupondo a hegemonia do mercado nem a destruição radical do velho espaço público estatal, parecem poder constituir-se como alternativas credíveis para uma reinvenção solidária do estado (como a designa Boaventura de S. Santos), contribuindo assim para que os valores do domínio público (como a igualdade, a justiça e a cidadania) possam ser reactualizados num novo contexto.

Analisando a reemergência do chamado terceiro sector, e consciente não apenas das suas potencialidades mas também dos seus limites e perigos, Boaventura de S. Santos interroga-se cautelosamente sobre a viabilidade de este terceiro sector poder contribuir para a reforma solidária do estado, ao admitir que estaria agora aberta a possibilidade de reconvocar a comunidade para protagonizar uma nova proposta de regulação social, mais justa, capaz de repor a equação entre regulação social e emancipação social. Considerando ainda que a refundação democrática do terceiro sector poderia implicar que este assumisse os valores que subjazem ao princípio da comunidade (como a cooperação, a solidariedade, a participação, a transparência, a democracia interna, entre outros), B. de S. Santos problematiza a criação de um espaço público não estatal a partir da complementaridade entre este novo terceiro sector e o estado, referindo ainda que os caminhos de uma política progressista desenham-se na busca de uma articulação virtuosa entre a lógica da reciprocidade própria do princípio da comunidade e a lógica da cidadania própria do princípio do estado (cf. Santos, 1998b).

Neste mesmo sentido, poderíamos perguntar: até que ponto as políticas educativas podem favorecer novas articulações com a comunidade que sejam referenciáveis ao debate sobre a reinvenção solidária e participativa do estado? Poder-se-ão desenvolver projectos que se inscrevam na agenda acima sinalizada, pressupondo, por exemplo, a construção de políticas educativas locais que não deixem de ser, antes de mais, políticas públicas, embora não referenciadas exclusivamente ao estado? Como pensar uma política educacional por referência a um novo espaço público (não estatal) que continue a incluir de forma privilegiada o estado (e os valores do domínio público) mas que não se possa equacionar sem a comunidade (e os valores que esta pressupõe), sem esquecer também o papel dos novos movimentos sociais? A este propósito, perspectivas analíticas que têm vindo a ganhar uma presença crescente, sobretudo na literatura que tem origem ou influência francófona, e que procuram equacionar as políticas educativas actuais essencialmente por referência à ideia de um bem comum local, que se traduziria na conciliação entre o interesse público, representado pelo estado, e os interesses privados, representados pelas famílias e outras instituições, serviços ou actores locais.

De acordo com João Barroso (1998), para viabilizar este compromisso, designado por bem comum local, propõem-se medidas de territorialização e parcerias socioeducativas que devem constituir um processo de contratualização que co- responsabilize diversos organismos e entidades (entre elas a escola) na concretização de interesses comuns, no quadro de desenvolvimento de uma política educativa local, fugindo assim à polarização quer num modelo de súbdito, fortemente subjugado ao estado, quer num modelo de mercado, exclusivamente motivado pelos interesses particulares. Acredita-se, assim, por exemplo, que: uma política deliberada (e globalmente assumida) de partilha de poderes e recursos entre a administração central e local (incluindo a escola), sustentada pela participação social e pela intervenção do estado na defesa do bem comum, poderá fazer com que a descentralização e a autonomia da escola sejam uma forma de devolver o sentido cívico e comunitário à escola pública (cf. Barroso, 1998: 51-54).

Todavia, na minha perspectiva, para além de a ideia da construção de um bem comum local ser extremamente problemática, nomeadamente pelo facto de haver hoje concepções, referências e apelos ideológicos à comunidade que são muito diversos e contraditórios (cf. Afonso, 1999a), é também necessário discutir em maior profundidade a valorização das redes (ou parcerias) entre actores colectivos e o estado porque, embora traduzam uma das alternativas mais inovadoras e interessantes das actuais políticas educativas, elas também escondem uma nova (e mais eficaz) forma de legitimação da acção do estado, num contexto de retracção das políticas públicas e dos direitos sociais, económicos e culturais. Neste sentido, pode mesmo dizer-se que a crise de legitimação do estado capitalista democrático não tem sido mais acentuada porque a assunção do seu novo papel de articulador ( também quem discuta hoje o estado- articulador como uma outra forma de actuação do estado) permite-lhe mais facilmente descentrar a pressão social relativa aos direitos para uma pluralidade de novos actores colectivos não-estatais, os quais, sendo levados a assumir-se como parceiros, assumem também, em decorrência desse facto, uma importante parcela de responsabilidade na consecução de objectivos públicos que antes recaía exclusivamente no estado. Talvez, por isso, as parcerias constituam hoje um eixo fundamental na elaboração e implementação das políticas públicas e educativas, não significando, necessariamente, a diminuição, mas, antes, a reactualização em novos moldes do poder de regulação do estado, e assim contribuindo também para a substituição da noção de governo pela (nova) noção de governação.

Globalização e educação: a hipótese de uma globalização de baixa intensidade Para equacionar a relação da globalização com a educação pelo menos duas propostas teóricas muito diferentes que podem ser convocadas. Sigo aqui muito de perto Roger Dale, que tem vindo a discutir criticamente estas questões nos seus últimos trabalhos de análise sociológica das políticas educativas (cf., por exemplo, Dale, 1999, e 2000a).

Uma delas, que pode ser designada como a perspectiva dos institucionalistas do sistema mundial (world institutionalists), tenta demonstrar que o desenvolvimento dos sistemas educativos tem como pressuposto a existência de uma cultura educacional mundial comum, que se traduz num conjunto de recursos imateriais disponíveis, partilhados por uma comunidade internacional (mundial) composta por estados-nações autónomos que tendem a institucionalizar modelos estandardizados e a seguir orientações idênticas, isto é, a reproduzir um certo isomorfismo educacional (cf., por exemplo, Ramírez, 1992; Ramírez e Ventresca, 1992; Meyer, Ramírez e Soysal, 1992). Nesta perspectiva, a influência da referida comunidade internacional, veiculada nomeadamente através de organizações internacionais (OCDE, UNESCO, Banco Mundial, etc.), é vista como mais determinante no desenvolvimento dos respectivos sistemas educativos e na disseminação de orientações e categorias organizacionais e curriculares do que os factores internos a cada um dos diferentes estados-nações (cf., por exemplo, Meyer, 2000; Azevedo, 2000; Teodoro, 2001). Aliás, o argumento central destes institucionalistas é que as instituições nacionais, incluindo o próprio estado, não se desenvolvem autonomamente, sendo, antes, essencialmente modeladas no contexto supranacional pelo efeito de uma ideologia mundial (ocidental) dominante.

Uma segunda perspectiva, ao contrário da anterior, defende que as políticas educativas encontram uma explicação mais consistente na hipótese da existência de uma agenda globalmente estruturada para a educação. Esta perspectiva, entre outros pressupostos, enfatiza a centralidade da economia capitalista no processo de globalização, entende o global como o conjunto de forças económicas que operam ao nível supranacional e transnacional, e discute os processos que levam à imposição de prioridades por parte de alguns estados sobre outros.

Apesar de defenderem pressupostos muito diferentes, estas duas perspectivas partilham a ênfase no papel de factores supranacionais na configuração das políticas de educação ao nível nacional. No entanto, enquanto para a perspectiva institucionalista os valores e a ideologia que enformam a cultura educacional mundial comum são tão determinantes que se sobrepõem aos factores nacionais, assim desvalorizando a especificidade destes e o seu contributo, para a perspectiva da agenda globalmente estruturada para a educação o que está em causa é a manutenção e reprodução do sistema económico capitalista e a posição hegemónica que nele detêm os estados mais poderosos o que, no entanto, não impede que se analisem as especificidades dos processos nacionais na procura das suas articulações com as dinâmicas transnacionais e globais.

Nesta última perspectiva, a discussão da educação, enquanto variável dependente, remete para uma série de questões que vão muito além da identificação do mandato, ou seja, daquilo que é considerado desejável que os sistemas educativos realizem. Neste sentido, procura-se dar resposta às seguintes questões: - quem é ensinado, o que é ensinado, como é ensinado, por quem e em que circunstâncias? - como, por quem e através de que estruturas, instituições e processos são as dimensões anteriores definidas, governadas, organizadas e geridas? - quais são as consequências sociais e individuais destas estruturas e processos? Em suma, numa análise sociológica mais complexa, trata-se, acima de tudo, de verificar como é que a natureza mutável da economia capitalista, que constitui a força principal da globalização, afecta os sistemas educativos, tendo em conta, no entanto, que efeitos de mediação que se produzem ao nível nacional e que não são completamente independentes do lugar e situação de cada país relativamente a essa mesma economia global (cf. Dale, 2000a).

Tomando em consideração estes e outros factores, alguns trabalhos recentes, tendo como exemplo as especificidades portuguesas, agora em contexto europeu, têm vindo a propor a designação de globalização de baixa intensidade para sinalizar a mediação dos estados nacionais na formulação das respectivas políticas educativas, chamando ao mesmo tempo a atenção para o facto de a educação, comparativamente com outras áreas, parecer estar a resistir mais ao impacto da globalização, isto é, de os efeitos neste campo não parecerem ser tão directos e profundos como em outros sectores (cf., por exemplo, Teodoro, 2001).

Mesmo quando a reconfiguração do papel do estado passa pelas condicionantes inerentes à cedência voluntária de parcelas de soberania nacional através da integração em instâncias supranacionais de carácter regional, como acontece, por exemplo, com Portugal relativamente à União Europeia, isso não implica (ou não tem implicado até ao momento) homogeneização ou uniformização de políticas e orientações educativas. Trabalhos na área da sociologia das políticas educativas, que têm privilegiado o período imediatamente posterior à integração europeia, têm mostrado isso mesmo, ao procurar dar conta da permanência de especificidades nacionais, apesar das novas condicionantes em vigor. A este propósito, por exemplo, os trabalhos que têm incidido no período que vai aproximadamente de 1985 a 1995 apontam para a existência de decisões extremamente ambíguas e heterogéneas. Se, por um lado, na política económica desse período, foram adoptadas orientações inequivocamente neoliberais (de desregulação, de privatização, de desmantelamento do sector empresarial estatal, de abertura ao mercado, de vulnerabilização dos direitos ligados ao trabalho), por outro, na política educativa, foi possível tomar decisões em relativo contraciclo com a ideologia neoliberal e, em alguns casos, como o do ensino básico, chegaram a ser mesmo decisões congruentes com a expansão de direitos (ainda) referenciáveis ao modelo de estado-providência (cf. Afonso, 1997, 1999b, 2000).

Apesar da preocupação sociológica com a demonstração das especificidades nacionais atitude que, como comecei por observar nas páginas iniciais deste texto, pelo facto de decorrer do compromisso com a objectividade na investigação, não deixa, também por isso, de permitir a descoberta de espaços de ambiguidade e até de estratégias de resistência na configuração das políticas nacionais, que podem vir a ser aproveitados para contrariar os efeitos da retórica ideológica neoliberal , obviamente, aqueles arautos da globalização, na versão homogeneização cultural ou macdonaldização da sociedade, a que se juntam os pessimistas ou descrentes em relação às possibilidades da globalização contra-hegemónica, que não se cansam de anunciar, também aqui, a inevitável convergência global de todos os sistemas educativos. Aos seus argumentos, que é necessário conhecer em profundidade e confrontar criticamente, não prestarei atenção neste texto.

Procurarei, antes, dar mais algumas indicações relativamente aos caminhos de investigação seguidos em alguns trabalhos recentes de autores portugueses que se têm preocupado em aprofundar algumas políticas sectoriais, discutindo-as, quer por referência aos processos de globalização (económica, política e cultural), quer por referência à emergência de novas formas de actuação do estado.

As novas designações e formas de actuação do estado e as políticas educativas relativas ao ensino profissional e superior Com a aceleração da globalização económica e com as mudanças no papel do estado, têm-se verificado também alterações nas prioridades relativamente ao que se espera que seja a contribuição da educação. Durante a vigência do estado-providência, o contributo da educação visava sobretudo o processo de legitimação; na fase actual, a prioridade é direccionada para o processo de acumulação. O estado actua agora tendo como principal objectivo a competitividade económica e, em função disso, alguns autores começam a designá-lo por estado-competidor ou de competição (competition state) (Cerny, 1997).3 Referindo-se a esta nova forma de actuação do estado, este autor mostra que o que está em causa é essencialmente uma redefinição de prioridades relativamente a cada um dos três problemas centrais que têm caracterizado o mandato para a educação nas sociedades capitalistas democráticas, aparecendo agora, em primeiro lugar, o apoio ao processo de acumulação; em segundo lugar, a garantia da ordem e controlo sociais; em terceiro lugar, a legitimação do sistema.

Entretanto, o modo como a educação apoia o processo de acumulação pode variar em função das dominâncias que configurarem, de uma forma mais precisa, a actuação do estado-competidor. Assim, ainda segundo Dale, esta actuação pode passar por uma forte intervenção do estado na promoção da investigação e da inovação para atender às necessidades do tecido produtivo; pode passar pela adopção de lógicas e mecanismos de mercado na educação; ou pode passar ainda pela contribuição da educação para a reprodução de mão-de-obra especializada (skilled workers).

A convocação deste quadro teórico na interpretação do projecto das escolas profissionais em Portugal, mostra que este sector do sistema de ensino é extremamente relevante para ter uma compreensão mais ampla da forma como se está a processar a europeização das políticas educativas e como estão a ser concretizados os novos papéis do estado. Tratando-se, em última instância, de dinâmicas igualmente referenciáveis a processos de globalização, encontramos, também aqui, algumas nuances específicas da situação portuguesa. Neste sentido, e tal como se afirma no recente trabalho de Fátima Antunes, as escolas profissionais parecem atender em primeiro lugar ao problema político (a questão do controlo e da ordem social) que, neste caso, passa por proporcionar respostas para o desemprego dos jovens e para a escolarização prolongada de novos públicos , enquanto, apenas num plano secundário, se visa igualmente garantir a formação de mão-de-obra adequadamente qualificada, mobilizada e disponível para diferentes sectores da economia e do mercado (apoio ao processo de acumulação) (Antunes, 2001, no prelo). Sugere ainda a autora que: a legitimação da acção do estado e a conquista de lealdade aparecem crescentemente associadas ao esforço de constituir uma oferta diversificada de serviços educativos, tendo em vista uma população escolar cada vez mais heterogénea e a missão de capacitar todos e cada um para lidar e reagir, de modo adequado, às novas e intensamente diferenciadas condições do mercado de emprego e de trabalho. (Neste sentido conclui esta autora): a criação das escolas profissionais evidencia o modo como a tendência global para uma nova forma de actuação do estado o estado de competição foi articulada ( ) na área da educação face a uma situação que impunha que a crise da escola de massas fosse confrontada em simultâneo com a sua expansão e consolidação, assumindo como prioritária a contribuição da educação para a coesão e controlo sociais (Antunes, 2001, no prelo).4 Afastando-se da regra da universalização de direitos enquanto característica do modelo social-democrata de estado-providência e, mais especificamente, rompendo com algumas conquistas relativas aos direitos culturais que tiveram a sua própria tradução ao nível das políticas educativas, nomeadamente com a expansão da escola de massas (a escola para todos, oficial, obrigatória e laica) e com a valorização do princípio da igualdade de oportunidades, o que parece estar a configurar a tendência actual, como a análise das escolas profissionais em Portugal sugere, é a emergência de políticas sociais particularísticas, que têm uma tradução específica ao nível da educação, ao privilegiarem a individualização (das opções e dos projectos) e a dualização do sistema educativo, em qualquer dos casos vectores de uma estratégia mais abrangente de redefinição da cidadania educativa (Antunes, 2001, no prelo).5 Do meu ponto de vista, esta particularização, na qual assentam agora as políticas de diversificação e de hierarquização da oferta educativa pública, não deixa, de algum modo, de poder contribuir para escamotear velhas fórmulas de indução discriminatória e classista, que parecem estar de novo a ser introduzidas no sistema educativo português, atribuindo exclusivamente à responsabilidade individual dos sujeitos as supostas escolhas e opções relativas aos seus percursos de escolarização e formação. Como refere Boaventura de Sousa Santos: Os indivíduos são convocados a serem responsáveis pelo seu destino, pela sua sobrevivência e pela sua segurança, gestores individuais das suas trajectórias sociais sem dependências nem planos pré-determinados. No entanto, esta responsabilização ocorre de par com a eliminação das condições que a poderiam transformar em energia de realização pessoal. O indivíduo é chamado a ser o senhor do seu destino quando tudo parece estar fora do seu controlo. A sua responsabilização é a sua alienação; alienação que, ao contrário da alienação marxista, não resulta da exploração do trabalho assalariado mas da ausência dela (Santos, 1995).

Tomando agora como objecto de estudo as mudanças no ensino superior, sobretudo aquelas que estão em curso na Europa ocidental, verifica-se que os trabalhos mais recentes, na esteira, nomeadamente, de Guy Neave e Frans van Vught, procuram defender a ideia de que neste sector está igualmente a ocorrer uma mudança no modo de regulação que se traduz, neste caso, pela transição de um modelo de controlo estatal para um modelo de supervisão estatal.

O modelo de controlo é um modelo de regulação burocrático e centralizado em que o estado mantém sob sua alçada todos os aspectos do ensino superior (acesso, currículos, nomeação de pessoal, normas para concessão de graus, etc.). Entre este modelo e o seu oposto, isto é, um modelo de controlo totalmente baseado no mercado, a tendência nos últimos anos em termos de ensino superior na Europa ocidental e também em Portugal tem sido a adopção de um modelo híbrido que conjuga o controlo pelo estado com estratégias de autonomia ou de auto- regulação institucional. É este modelo que tem sido designado como modelo de supervisão pelo estado. Neste sentido, a vigência deste modelo tem conduzido à aprovação de leis de autonomia que têm transferido para as instituições os detalhes da aplicação das políticas de ensino superior, bem como a gestão corrente. Ao mesmo tempo, os governos: passaram a controlar apenas algumas variáveis do sistema consideradas importantes, como os custos por aluno, o número de alunos admitidos, as taxas de retenção, o número de licenciados produzidos (e) às instituições passou a competir auto-regular-se, por forma a que os parâmetros do seu funcionamento se situem dentro dos valores aceitáveis para o governo ( ) (cf. Correia, Amaral e Magalhães, 2000: p. 28).

Neste contexto, surge uma nova forma de actuação do estado que, alguns anos, foi designada por Guy Neave (1988 e 1998) como a emergência do estado- avaliador (the rise of the evaluative state). Com a visibilidade social e a importância política crescentes que foi adquirindo ao longo dos anos 80, a avaliação transformou-se num dos eixos estruturantes das políticas educativas (cf. Afonso, 1998a, 1998b). Através dela procura-se compatibilizar exigências relativamente contraditórias: as que têm a ver, até certo ponto, com um relativo aumento do poder de regulação do estado e aquelas que decorrem de uma lógica mais voltada para o mercado ou para a auto-regulação institucional.

A este propósito, Ana Maria Seixas, que tem trabalhado as questões relativas ao ensino superior, escreve: A transformação do papel do estado não implica, no entanto, uma diminuição do seu poder ( ). A principal contradição do estado avaliador reside exactamente na ênfase simultânea, por um lado, na desregulação e na autonomia institucional, e, por outro, no desenvolvimento de um corpo regulatório condicionando a acção institucional (Seixas, 2001, no prelo).

Em síntese, como procurei referir brevemente nas páginas deste texto, estão hoje em curso estratégias diferenciadas para a redefinição do papel do estado que é preciso analisar em profundidade de modo a perceber as suas implicações específicas no campo das políticas educativas. também caminhos que estão a ser construídos e soluções que estão a ser propostas que contêm tensões e dilemas difíceis de resolver, sobretudo quando a lógica da regulação se sobrepõe à lógica da emancipação.

Entretanto, fora das velhas e das novas ortodoxias, também experiências em curso que continuam a dar sentido a lutas sociais e a políticas públicas em torno de projectos emancipatórios. Sendo assim, e sem esquecer que dimensões da globalização que podem possibilitar e potenciar acções contra-hegemónicas, não poderemos aproveitar melhor o facto de a educação estar sujeita ainda a uma globalização de baixa intensidade para não desistirmos de lutar por políticas educativas mais justas e democráticas?

Notas 1 Ver, a este propósito, por exemplo, o número temático do Journal of Education Policy, 15 (4), 2000, subordinado ao tema Education policy and philosophy.

2 Boaventura de Sousa Santos, referindo-se ao trabalho de Bob Jessop, escreve: Tendo em mente a situação na Europa e na América do Norte, Bob Jessop identifica três tendências gerais na transformação do poder do estado. Em primeiro lugar, a des-nacionalização do estado, um certo esvaziamento do aparelho do estado nacional que decorre do facto de as velhas e novas capacidades do estado estarem a ser reorganizadas, tanto territorial como funcionalmente, aos níveis subnacional e supranacional. Em segundo lugar, a de- estatização dos regimes políticos reflectida na transição do conceito de governo (government) para o de governação (governance), ou seja, de um modelo de regulação social e económica assente no papel central do estado para um outro assente em parcerias e outras formas de associação entre organizações governamentais, para-governamentais e não-governamentais, nas quais o aparelho de estado tem apenas tarefas de coordenação enquanto primus inter pares. E, finalmente, uma tendência para a internacionalização do estado nacional expressa no aumento do impacto estratégico do contexto internacional na actuação do estado, o que pode envolver a expansão do campo de acção do estado nacional sempre que for necessário adequar as condições internas às exigências extra-territoriais ou transnacionais (Santos, 2001, no prelo).

3 Roger Dale, transcrevendo e comentando uma passagem da obra de Cerny, escreve: Argumenta ele que mais do que tentar retirar certas actividades económicas do mercado, ‘desmercantilizar' essas actividades como o estado de bem-estar fazia, o estado-competidor tem procurado incrementar a mercantilização com o objectivo de alocar as actividades económicas ou no contexto do território nacional, ou de outra maneira contribuir de forma mais competitiva tanto ao nível internacional como transnacional para a riqueza nacional. E continua a enumerar quatro mudanças políticas específicas que estão a ser importantes na agenda política. São elas: uma mudança do intervencionismo macro-económico para um intervencionismo micro-económico; uma mudança no sentido de prosseguir vantagens comparativas em vez de vantagens competitivas; o controlo da inflação, como uma questão central na gestão económica do estado; e a mudança no foco das políticas nacionais de uma maximização genérica do bem-estar social para uma promoção da inovação empresarial e uma maior rentabilidade tanto na esfera pública como privada (Cerny, 1997: 259-60, citado por Dale, 2000b:101).

4 Sobre a emergência das escolas profissionais como um dos eixos das políticas educativas dos últimos anos em Portugal ver ainda Fátima Antunes (1998).

5 Uma outra característica, que se poderá cruzar com a anterior, e que parece acentuar-se nos últimos anos em Portugal com os governos apoiados pelo Partido Socialista, é sugerida por Licínio C. Lima, quando se refere à hipótese de sectorialização intencional das políticas educativas, enquanto estratégia aparentemente pós-reformista de introdução de mudanças políticas de tipo incrementalista, sector a sector. Desta forma, acrescenta, vai-se Negociando em cada caso com os parceiros sociais especificamente envolvidos e, por essa via (de pendor neocorporativo), reforçando poderes, conferindo protagonismo e delegando funções de regulação ( ). Em suma, adoptando políticas de largo alcance, embora sob uma lógica frequentemente fragmentadora ou desintegradora ( ) (Cf. Lima, 2000: 42-43).


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