Globalização e soberania dos Estados
Nuclear weapons can wipe out life on Earth, if used properly. Talking Heads,
Stop Making Sense.
Vários acontecimentos na política internacional têm vindo a colocar o princípio
da soberania dos estados e a sua legitimidade como um assunto de crescente
relevância e discussão nos últimos anos. Basta pensarmos em matérias como a
intervenção da NATO na Jugoslávia, em 1999, alegadamente para defender os
direitos humanos dos kosovares albaneses; a prisão e o conturbado processo
judicial por que passou o general Pinochet; o problema da ratificação do
Tribunal Penal Internacional; e ainda, numa perspectiva um pouco diferente, em
todas as discussões acerca do conceito de globalização e da possibilidade
efectiva de os povos se governarem a si próprios segundo as regras democráticas
que instituíram. Em todas estas questões, é a soberania quer como princípio a
limitar em função de outros valores, quer como objectivo que se persegue que
tem estado no centro da agenda.
O problema da soberania tem também vindo a ser particularmente discutido por um
conjunto de autores comprometidos com uma visão normativa sobre a política
internacional, no campo do direito internacional, da teoria política e das
relações internacionais. Autores como o americano Richard Falk, o italiano
Antonio Cassese ou o inglês David Held têm recorrido a uma discussão da ordem
jurídica internacional em função de dois modelos contrastantes: o modelo de
Vestefália, onde se encontraria o fundamento histórico da soberania como
princípio de legitimidade fundamental da ordem internacional, e o modelo da
Carta das Nações Unidas que, impondo restrições à centralidade da soberania na
ordem internacional, configuraria sobretudo a promessa de uma ordem
internacional renovada com base em princípios e valores humanitários.
Ao longo deste texto proponho uma enunciação sumária das características
principais desses dois modelos para, por fim, tentar tirar algumas conclusões
sobre o assunto.
O princípio da soberania
Embora alguns autores reportem os princípios fundamentais do direito
internacional moderno a origens históricas diferentes, os tratados de
Vestefália, que em 1648 puseram fim à guerra dos trinta anos entre as
principais potências da Europa, representam um marco histórico na consagração
do princípio da soberania: ao retirarem legitimidade à ideia de uma comunidade
política universal, eles reconheceram o estado como detentor da autoridade
última sobre o respectivo território.
Na verdade, os pilares do que veio a chamar-se o modelo de Vestefália não
surgiram pela primeira vez, nem ficaram inteiramente definidos, em 1648.
Algumas das normas do modelo de Vestefália estavam já em uso no direito
internacional antes dessa data, e o próprio conceito de soberania embora
sobretudo como princípio de regulação dos conflitos internos tinha-se tornado
corrente desde o fim do séc. XVI, através dos escritos de Jean Bodin. Por outro
lado, certas disposições dos tratados de Vestefália nunca chegaram a ser
efectivamente aplicadas, e é controverso se não serão mesmo contraditórias com
os princípios fundamentais do modelo. Entre estas, o caso mais interessante é o
das restrições ao uso da força nas relações internacionais, e sobre ele
debruçar-me-ei mais à frente.
Como se sabe, a regra fundamental de Vestefália consiste na atribuição ao
estado da autoridade exclusiva sobre o respectivo território, espaço aéreo e
três milhas de costa marítima.
A ideia de um mundo dividido em diferentes comunidades políticas representou, à
época, uma inovação revolucionária. Os diversos impérios do primeiro milénio
não formavam uma comunidade internacional dividida de forma similar ao sistema
interestatal do séc. XVII, na medida em que eles eram, cada um, um universo
auto-contido, um sistema único e global' (Miller, 1993: 21). Para os súbditos
de cada um dos impérios, a autoridade política não estava ligada a uma
comunidade cultural específica, mas era universal: as fronteiras do império
coincidiam com as fronteiras do seu mundo, e o que estava para lá dessas
fronteiras não eram comunidades políticas, de forma alguma, semelhantes e
equivalentes à sua. Os contactos entre impérios não eram tão intensos que esta
ideia de vários mundos fechados se tornasse inverosímil.
A divisão política da Europa feudal, por outro lado, também não é comparável ao
sistema de estados moderno, uma vez que ela assentava na coexistência de vários
poderes sobre um mesmo espaço, tendo no topo a autoridade espiritual da igreja.
Por muito ilusório (Miller, 1993: 23) que fosse o ideal da cristandade unida,
a legitimidade religiosa que sustentava esta organização do poder só seria
superada pela invenção de um princípio de legitimidade completamente diferente,
assente na autoridade política do estado, na autonomia e unidade cultural da
nação e no ideal da soberania. Ao consagrar estes valores no plano
internacional, Vestefália marcou a ruptura com a autoridade política do papa.
De forma algo paradoxal, esta transformação só pôde acontecer após a revolução
coperniciana, isto é, só depois de se ter tido consciência de que o mundo era
um só. Até lá e às viagens europeias da expansão , os habitantes dos
diversos continentes viviam praticamente em desconhecimento recíproco. Quando
as concepções de espaço e de tempo foram reformuladas, identificando-se o
planeta como uma entidade delimitada, descontínua em relação ao conjunto do
cosmos, tornou-se possível mapear o território. O surgimento do estado, como
uma autoridade política, administrativa e cultural territorializada, é
indissociável desta delimitação de fronteiras.
A nação é concebida como limitada porque mesmo a maior delas, ainda que abarque
um bilião de seres humanos, tem fronteiras finitas, embora elásticas, para além
das quais se situam outras nações. Nenhuma nação se imagina a si própria como
coincidente com o conjunto da Humanidade. Nem os mais messiânicos dos
nacionalistas sonham com o dia em que todos os membros da raça humana hão-de
juntar-se à sua nação, da forma que, em certas épocas, foi possível aos
Cristãos, por exemplo, sonharem com um planeta inteiramente cristão (Anderson,
1991: 7).
O sistema interestatal surgido na Europa na sequência da guerra dos trinta anos
é portanto radicalmente novo: aspira a unir cada comunidade territorial
progressivamente, cada comunidade nacional sob uma autoridade política,
diferenciada de outros territórios, outras comunidades, outras autoridades. O
mundo assim dividido é um mundo de estados, que são as únicas entidades do
direito internacional. Mas Vestefália era um sistema falsamente universal, na
medida em que a integração das áreas não-europeias no sistema interestatal se
fez de forma subordinada, e não através do reconhecimento de outros estados em
condições de igualdade formal.
Dentro do sistema de Vestefália, como cada estado é a única autoridade legítima
sobre o respectivo território, os estados são todos iguais no plano
internacional. Assim sendo, o direito internacional de Vestefália assenta numa
reciprocidade entre os estados, ou melhor, ele não pode ser nada senão esta
reciprocidade, visto que não existe qualquer outra fonte para a sua produção. O
direito internacional consiste nas normas que o conjunto dos estados
individuais conceberam para regular as relações entre si; é universalista na
medida em que assenta neste princípio de reciprocidade, e não porque emane de
uma autoridade única superior.
A existência desta forma de direito internacional torna porém notório que a
separação política dos estados não deve ser levada à letra. Hans Kelsen, por
exemplo, defendeu:
a própria ideia da igualdade de todos os estados só pode ser mantida se
basearmos a nossa interpretação dos fenómenos jurídicos na primazia do direito
internacional, chegando a afirmar que os estados, enquanto ordens jurídicas,
só podem ser considerados iguais se abdicarmos do pressuposto da soberania, uma
vez que eles só são iguais na medida em que estão igualmente sujeitos a uma
ordem jurídica internacional única. (Kelsen, 1967, Principles of International
Law, citado por Zolo, 1997: 123).
Mais recentemente, Andrew Hurrell (1995: 139) colocou esta ideia em termos
particularmente clarificadores; diz ele:
a soberania sempre foi um direito socialmente construído: não apenas algo que
podia ser reivindicado simplesmente na base do poder, mas uma qualidade assente
num conjunto de entendimentos comuns, e em evolução, entre um grupo de estados.
Vestefália tem por isso esta paradoxal qualidade de conciliar a intensificação
das relações internacionais com a autonomia política de cada uma das suas
unidades.
Assim, as relações internacionais no modelo de Vestefália, geralmente
caracterizadas como anárquicas, podem talvez mais precisamente ser descritas
como obedecendo a um sistema de ordem descentralizada. Tendo por base a
reciprocidade, criaram-se no direito internacional princípios bastante
desenvolvidos de regulação do relacionamento entre os estados. Mesmo a guerra
foi progressivamente submetida a um conjunto mínimo de normas, designadamente
relativas ao tratamento de feridos e prisioneiros.
O modelo da Carta
A evolução no sentido da constituição de uma autoridade centralizada no plano
internacional, pondo em causa princípios básicos do modelo de Vestefália,
conheceu duas grandes etapas a constituição da Sociedade das Nações e a da
ONU , que correspondem também a dois momentos históricos do declínio da
hegemonia europeia sobre a ordem internacional. O modelo de Vestefália tinha
assentado num conjunto de países que não eram apenas estados, mas também o
centro de um império. Os estados da Europa constituíam entre si uma espécie de
família do ponto de vista cultural e ideológico, com grandes similitudes na
forma de organização social e política. Esta família de nações era aliás, até
ao séc. XIX, em parte, uma família em sentido próprio, dados os laços que
ligavam várias casas reais europeias. Não deixa de ser curioso que, neste
quadro, a soberania vá sendo conquistada por cada vez mais povos do mesmo passo
em que se vai desvalorizando, por via da emergência de princípios
alternativos na ordem jurídica internacional.
A Sociedade das Nações
A Sociedade das Nações traz consigo duas novidades no sentido de contrariar o
modelo de ordem jurídica descentralizada de Vestefália: impõe restrições ao uso
da força pelos estados e procede a um esforço de codificação das normas do
direito internacional.
Quanto à utilização da força, o Convénio da Sociedade das Nações estipula que
os estados-membros passam a ser obrigados a submeter as respectivas disputas à
apreciação do Conselho da Sociedade das Nações. No caso de o conselho chegar a
uma deliberação unânime, as partes devem acatá-la. Se, por outro lado, aquele
não fosse capaz de produzir um veredicto unânime e, portanto, não fosse capaz
de decidir qual das partes tinha razão , os estados em disputa passavam a só
estar autorizados a entrar em guerra depois de decorrido um período de três
meses. Durante esse período, a Sociedade das Nações procuraria esgotar os meios
diplomáticos ao seu alcance para obter uma solução pacífica. Fazer guerra fora
das circunstâncias previstas acarretaria sanções económicas e mesmo militares
(no caso de o conselho assim recomendar), aplicadas pelos estados membros da
organização contra o país agressor.
Quanto à codificação normativa: foi criado, também no âmbito da Sociedade das
Nações, um Tribunal Internacional de Justiça, destinado a arbitrar disputas
entre estados. A aceitação pelas partes das opiniões do tribunal era em última
análise voluntária, mas a simples intervenção do tribunal num número alargado
de casos permitiu a formalização de normas do direito internacional, bem como a
elaboração de doutrina. O direito internacional daí resultante tornou-se mais
coerente enquanto sistema e portanto mais autónomo face às circunstâncias
particulares de cada caso.
No plano especificamente político, a Assembleia Geral da Sociedade das Nações
adquiriu o poder de emitir declarações e recomendações, embora sem carácter
imperativo sobre o comportamento dos estados. Ainda assim, estas ajudaram a
criar um corpo doutrinário em relação ao qual as atitudes dos estados tinham,
pelo menos, de ser justificadas. Em consequência, uma referência explícita aos
princípios do direito internacional teve acolhimento nas constituições de
diversos países. A remoralização da esfera internacional foi ao ponto de a
Sociedade das Nações condenar o imperador da Alemanha pelas suas
responsabilidades no desencadear da guerra, bem como aprovar resoluções
proibindo a escravatura ou reconhecendo direitos às minorias étnicas
sobrepondo-se assim, teoricamente, à relação, até então exclusiva, estabelecida
entre indivíduos e estado.
Deste modo, a sociedade internacional passa a ser uma entidade corporizada de
forma autónoma no direito internacional e numa organização que é
simultaneamente fonte de direito e seu intérprete legítimo. O direito
internacional já não se resume a um princípio de reciprocidade entre os estados
como forma de regular as relações entre eles. Em circunstâncias particulares, a
organização internacional pode impor a sua vontade à de estados individuais.
O fracasso da Sociedade das Nações é bem conhecido. A organização não chegou
sequer a integrar grande parte dos estados, designadamente não integrou uma
parte importante das principais potências da altura. De resto, a SN nunca
dispôs de meios próprios para fazer cumprir as suas decisões e estava, por
isso, dependente da colaboração dos estados individuais para aplicar sanções
militares (que tinha apenas o poder de recomendar, e não de impor). A
aplicação do direito internacional permaneceu irregular e inconsistente. No
decorrer dos anos 30, o contraste entre as normas formalmente inscritas no
direito internacional e a realidade das relações de poder tornou-se demasiado
evidente.
A Carta das Nações Unidas
Com poderes muito mais vastos do que os da sua predecessora, a Carta das Nações
Unidas, assinada em 1945 por 51 países, proíbe o uso da força pelos estados no
plano internacional, salvo no estritamente necessário para se defenderem de uma
agressão externa até que a ONU intervenha, com forças militares próprias. Cria-
se assim uma espécie de monopólio da violência legítima no plano internacional.
As decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas podem ser aplicadas
mesmo contra a vontade de estados individuais, reservando-se a ONU o direito de
agir sempre e por toda a parte incluindo em países que não sejam membros da
organização onde considere existirem ameaças à paz e à segurança
internacionais.
A legitimidade desta intervenção remete para um conceito de direitos mínimos de
todos os seres humanos. Sendo os indivíduos os sujeitos últimos do direito
internacional, eles estabelecem uma relação directa com a comunidade humana,
tendo direitos e deveres independentes dos estados. Esta ideia teve a sua
primeira consagração jurídica no tribunal internacional que, por iniciativa das
potências vencedoras da II Guerra Mundial, julgou, em Nuremberga e em Tóquio,
os crimes praticados pelas potências do Eixo. O tribunal, constituído por
juízes dos quatro países que o instituem, não se limita a julgar crimes de
guerra, mas também o que chama crimes contra a paz e crimes contra a
humanidade. Tais figuras jurídicas são particularmente inovadoras por dois
motivos: por um lado, criam uma lei penal retroactiva (ex post facto),
permitindo julgar indivíduos por acções que, à data em que foram praticadas,
não estavam previstas como crime; por outro lado, o tribunal recusa o argumento
de que os réus, na prática de tais actos, só estavam a cumprir ordens
superiores, consagrando assim o princípio de que, entre a obediência ao estado
e a obediência a normas fundamentais do direito internacional, os indivíduos
estão obrigados a optar pelas últimas. Houve assim, pela primeira vez,
indivíduos condenados por actos praticados no exercício das suas prerrogativas
soberanas, enquanto agentes de um estado. Ao integrar os princípios consagrados
em Nuremberga e Tóquio na sua carta fundadora, a ONU está a impor limites novos
à soberania dos estados.
Na prática, a capacidade decisória do Conselho de Segurança da ONU viu-se
bloqueada pelo chamado direito de veto: nenhuma resolução podia ser aprovada
no conselho com o voto contrário de qualquer dos seus membros permanentes. Ao
contrário do que acontecia na Sociedade das Nações, nada impedia agora os
membros permanentes de votarem em questões em que eles próprios estivessem
directamente envolvidos. A ONU ficou assim impedida de aplicar o direito
internacional contra os interesses de qualquer dos membros permanentes e,
portanto, de resolver qualquer disputa emergente entre as principais potências
do sistema.
Embora a ONU disponha de forças militares próprias, a possibilidade de elas
serem usadas de acordo com os princípios da carta acabou por cair em desuso,
não sendo retomada nem mesmo depois de, com o fim da guerra fria, ter passado a
ser possível estabelecer consensos entre os membros permanentes do Conselho de
Segurança. É geralmente reconhecido que a ONU não adquiriu a legitimidade
necessária para poder desempenhar directamente o papel de polícia do direito
internacional. Desde 1964 (Chipre), as forças militares das Nações Unidas foram
reconvertidas em funções consensualmente aceites pelas partes, de pacificação
e mediação de conflitos no terreno, incluindo o policiamento de declarações de
cessar-fogo, a criação de condições para a provisão de auxílio humanitário ou a
supervisão de processos eleitorais.
Sem a constituição de uma autoridade efectiva para interpretar e aplicar
legitimamente o direito internacional, a disponibilidade dos estados para
cumprir as normas internacionais continua a depender essencialmente de
considerações políticas. Como constata Cassese (1986: 17):
Muitos estados permanecem especialmente relutantes em aplicar tratados
multilaterais que não se baseiem na reciprocidade, como os relativos aos
direitos humanos, assim como ( ) deveres que na prática incidam apenas sobre
certas categorias de estados.
O modelo cosmopolita da Santa Aliança
Será que a Carta das Nações Unidas representa na verdade um desenvolvimento
face ao Convénio da Sociedade das Nações? Será que ambas podem ser agrupadas
dentro de um mesmo modelo da Carta, como propõe, entre outros, Cassese? Será,
em suma, que convénio e carta representam aproximações a um novo modelo de
ordem jurídica internacional, capaz de fazer respeitar alguns princípios
básicos por todo o planeta?
A estas várias perguntas o politólogo, de origem croata, Danilo Zolo responde
claramente que não, sustentando que a proibição do uso da força, inscrita no
modelo da Carta, representa uma transformação drástica e mesmo subversiva em
relação às limitadas restrições impostas pelo Convénio da Sociedade das Nações
(Zolo, 1997: 111). Impor apenas restrições aos meios utilizáveis significa
partir do princípio de que a guerra nunca poderá ser abolida; corresponde a
estabelecer um consenso entre as partes sobre os procedimentos; implica ignorar
o problema das razões de cada estado. De forma aparentemente paradoxal, é o
reconhecimento do direito dos estados a fazerem guerra que possibilita o
estabelecimento de normas que limitam os danos causados pela guerra.
Deste ponto de vista, o Convénio da Sociedade das Nações está em continuidade
com o modelo de Vestefália. Foi o facto de, neste modelo, ter sido abolida
qualquer autoridade moral única e superior no plano internacional que obrigou a
prescindir da ideia de que uma guerra podia ser universalmente declarada como
justa (e a outra parte injusta), e que assim permitiu a elaboração entre os
estados de um conjunto de regras, estritamente procedimentais, destinadas a
evitar as consequências mais danosas.
De facto, as restrições criadas pela Sociedade das Nações inspiram-se em
disposições já previstas nos tratados de Vestefália. Estes previam um período
de três anos entre o início de um conflito e o desencadear legítimo de uma
guerra, sendo que, no caso de esta norma ser infringida, todos os estados
teriam o dever de auxiliar aquele que fosse agredido. No Convénio da SN, a
regra é a mesma, mas apenas de três meses.
Outras restrições ao uso da força distinção entre alvos militares e civis,
condições de tratamento de feridos e prisioneiros, etc. foram objecto de
consagração consuetudinária progressiva; não tiveram de esperar pelo Convénio
da Sociedade das Nações para entrarem em vigor.
Portanto, para Zolo, a Carta das Nações Unidas não representa qualquer doutrina
mais avançada de paz. Pelo contrário: a Carta está exclusivamente empenhada em
elaborar um mecanismo de concentração do poder militar nas mãos do Conselho de
Segurança (Zolo, 1997: 111). Proibir a guerra significa atribuir o direito
exclusivo a fazê-la a um organismo com poder absoluto ilimitado,
discricionário e incontrolável (idem: 112).
Zolo sustenta também que a pretensa criação, pela Carta das Nações Unidas, de
direitos e deveres universais deve ser encarada com desconfiança (idem: 120). O
conceito de direitos fundamentais, na tradição política ocidental, onde nasceu,
está estreitamente ligado a uma estrutura institucional assente na divisão de
poderes: os direitos fundamentais são protegidos pela separação entre o
judiciário e o executivo. Ora, o que caracteriza a ONU é exactamente a
concentração de poderes. Na ausência de uma estrutura institucional que submeta
as principais potências ao mesmo escrutínio a que são submetidos os restantes
países, os direitos humanos são um mero pretexto para a intervenção
indiscriminada dos membros permanentes do conselho na política dos outros
estados. A lógica de Nuremberga e Tóquio alastra a todo o sistema jurídico
internacional: são os vencedores' e, em qualquer caso, as grandes potências
que organizam estes tribunais (Zolo, 1997: 111).
Para este autor, conceber a Carta das Nações Unidas como o embrião de um modelo
constitucional global é um erro à luz do modelo histórico em que ela se
inspira. Na sequência das várias guerras mundiais (entre as quais Zolo inclui
também as guerras napoleónicas), as potências vencedoras têm invariavelmente
aspirado à centralização da força, procurando manter a paz através do
congelamento das relações de poder obtidas pela guerra.
De resto, qualquer centralização dos meios de violência no plano internacional
só pode envolver, necessariamente, uma dependência face às principais
potências, uma vez que não pode ser organizada contra a vontade dos estados
mais fortes e é irrealista acreditar que o possa ser através do seu
desarmamento voluntário. Assim, a organização internacional que formalmente
centraliza os meios de violência é por definição uma entidade com poderes
delegados pelas potências que, ao mesmo tempo, se colocam fora da sua
jurisdição. O direito de veto de que gozam os membros permanentes do Conselho
de Segurança não é um acidente histórico que seja reformável.1
Todas as versões do modelo cosmopolita acabaram, além do mais, por fracassar
historicamente, e esse fracasso não se deve, no entender de Zolo (1997: 14), à
incapacidade para estabelecer um monopólio suficiente do uso da força no plano
internacional, mas à deficiência do próprio objectivo. A assimilação da paz à
cristalização das relações de poder entre os estados impede a acomodação de
qualquer transformação social e política relevante.
Ao mesmo tempo, como o modelo, por definição, não prevê quaisquer mecanismos
para a resolução de conflitos entre as potências que partilham a gestão do
sistema, a rivalidade entre os estados mais fortes tende a desembocar na
preparação para a guerra. A existência de organizações internacionais
formalmente destinadas a preservar a paz tem sido assim compatível com a
proliferação maciça de armamento (cf. Zolo, 1997: 11), e as guerras que marcam
a substituição de uma ordem hegemónica por outra tendem a ser cada vez mais
destrutivas.
Conclusões
Neste texto comecei por traçar sumariamente a evolução do sistema interestatal
desde a consagração do princípio da soberania. O princípio da soberania
configura-se, a partir da assinatura dos tratados de Vestefália, como o
elemento fulcral da ordem jurídica internacional: cada estado detém a
autoridade última sobre o respectivo território e não existe qualquer entidade
acima dos estados no plano internacional. Mas isto significa que o princípio da
soberania não tem um conteúdo substantivo relativo à capacidade de cada estado
para determinar autonomamente o seu próprio destino; a maioria dos estados não
são aquilo a que habitualmente chamamos soberanos. A igualdade formal dos
estados, no quadro do princípio da soberania, consubstancia uma desigualdade
real entre eles: mesmo no plano estritamente militar, a soberania da maioria
dos estados esteve sempre ameaçada pela possibilidade de uma intervenção dos
estados mais fortes. Esta vulnerabilidade da maioria dos estados aos mais
fortes tornou-se particularmente patente no séc. XX, com a invenção de meios de
destruição total e, designadamente, da bomba atómica. O intervalo de tempo em
que, em última análise, têm de ser tomadas decisões relativas a um conflito
nuclear torna inviáveis quaisquer procedimentos clássicos de diplomacia entre
estados; a diplomacia é substituída pela gestão de crises e pela comunicação
directa entre as lideranças políticas das superpotências e seus aliados
(McGrew, 1992: 113). Por outro lado, visto que as consequências destrutivas da
bomba atómica ultrapassam fronteiras e podem comprometer a sobrevivência de
toda a humanidade, a distinção entre beligerantes, aliados e estados neutrais
tende a esbater-se: potencialmente ninguém fica à margem. Assim, a concentração
do poder na ordem internacional ocorre independentemente do quadro jurídico e
mesmo dentro do respeito formal do princípio da soberania.
Terminada a guerra fria, as zonas periféricas do sistema foram alvo de um
relativo desinteresse por parte das grandes potências, o que veio pôr a nu a
enorme dependência de muitos estados face aos apoios externos e a sua
fragilidade interna propiciando designadamente a emergência de um número
crescente de guerras civis, hoje muito mais numerosas do que os conflitos entre
estados. Mas a distinção entre desordens internas e ordem no plano
internacional não deve ser exagerada. Na medida em que os estados mais fracos
se revelam incapazes para gerir de forma eficiente recursos de alcance global
(como o petróleo ou a água), as grandes potências mostram um interesse renovado
em intervir na ordem interna destes estados. Estamos hoje perante a emergência
de novas formas de intervenção designadamente militar dirigidas não tanto
contra as capacidades militares dos estados mais fortes, mas sobretudo contra a
fraqueza dos estados fracos. Como os problemas que lhe estão na origem são
socialmente amplos, esta intervenção tende a ser extensiva.
A intervenção dos estados mais poderosos assenta sistematicamente em duplos
padrões na aplicação das regras. Falk (1995: 75; 139) fornece vários exemplos:
descarregamento de detritos tóxicos e realização de testes nucleares em locais
supostamente remotos do sul do planeta; criminalização do tráfico de droga
(cujas fontes de fornecimento se situam em países do sul), ao passo que o
tráfico de armas (predominantemente produzidas no norte) permanece legítimo;
etc. Na opinião deste autor, o que se antevê é uma série de esforços no
sentido de passar responsabilidades pelo ajustamento ambiental para o sul, e o
avanço progressivo no sentido da aplicação coerciva no sul de medidas
destinadas a evitar certas formas de colapso ecológico (Idem: 75). Uma relação
desigual deste tipo não poderá ser mantida sem o exercício frequente da força.
Uma forma de regulação da ordem internacional, exclusivamente assente no
princípio da soberania, tem vindo a ser progressivamente substituída ou, pelo
menos, contraditada pela emergência de princípios alternativos no direito
internacional, que apontam para a constituição de uma autoridade comum, capaz
de impor o respeito por princípios universais. O surgimento de entidades supra-
estatais deste tipo pareceria permitir uma gestão global das relações sociais,
particularmente consentânea com uma era em que as interconexões à escala do
planeta atingem grande intensidade. Na perspectiva de alguns autores, o
surgimento de entidades supra-estatais poderia também ter consequências muito
positivas no sentido da democratização na medida em que a influência
exercida, sem legitimidade democrática, por uns estados sobre outros passaria a
ser controlada por uma autoridade universal passível de ser legitimada
directamente por todos os cidadãos do planeta.
Penso que há razões para ser céptico face a esta interpretação. Por um lado,
porque todos os modelos que apontam no sentido da constituição de uma
autoridade supra-estatal no plano internacional, ainda que promovidos em nome
do interesse universal, têm sido, não apenas, conduzidos pelos estados mais
poderosos, como tendem à institucionalização formal do seu predomínio. Assim,
não apontam para a criação de uma estrutura de poder com a capacidade para
criar, interpretar e aplicar legitimamente a lei de forma imparcial, tratando
de forma igual todos os sujeitos (estados). Pelo contrário: resultando de
relações de força muito desiguais, a estrutura institucional emergente tende a
legitimar a desigualdade.
Por outro lado, não parece correcto associar a possibilidade de gerir relações
sociais transnacionais com a criação de formas políticas supra-estatais. De
facto, o princípio da soberania, criando uma ordem internacional assente na
separação política do território por estados, emergiu num momento histórico
em que as relações sociais estavam a globalizar-se já numa escala sem
precedentes. O modelo de Vestefália configura uma forma específica de gerir as
relações sociais à escala mundial; é uma resposta específica a esse problema. E
em abstracto não parece ser nem mais nem menos eficaz, nem mais nem menos
democrática, do que a criação de entidades supra-estatais.
Na verdade, mais do que uma ruptura, parece haver fortes continuidades entre a
organização das relações de poder à escala mundial sustentada no princípio da
soberania e a actual, em parte sustentada na superação do princípio da
soberania. A superação da soberania não constitui um processo natural, a
acomodação mais ou menos inevitável das formas políticas à globalização das
relações sociais. A questão da soberania não pode ser vista fora do contexto
específico em que é colocada. Quer as relações sociais, quer as relações
físicas sempre atravessaram as fronteiras entre os estados do planeta.
A superação do princípio da soberania é defendida, para alguns aspectos, pelos
mesmos grupos sociais que se lhe opõem noutros. De facto, não podemos
compreender o carácter selectivo que a superação do princípio da soberania
sempre tem se não tivermos consciência dos conflitos de interesses que lhe
subjazem. Na verdade, tudo é globalizável. Mas, como diz Boaventura de Sousa
Santos (1997: 14), sempre que algo se globaliza há outra coisa qualquer que é
localizada, definida como não-global: assim, a globalização não é mais que o
processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua
influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar
como local outra condição social ou entidade rival. Não se pode compreender a
globalização que efectivamente ocorre sem uma consciência dos interesses
específicos que a promovem e dos que se lhe opõem. Dir-se-ia que a preservação
do princípio da soberania parece hoje, sobretudo, servir o estabelecimento de
fronteiras físicas entre ricos e pobres, tendo perdido qualquer conotação com
uma capacidade substantiva das comunidades nacionais para gerirem o seu próprio
destino.
Uma perspectiva de conjunto sobre a ordem internacional emergente dá-nos um
quadro que pode ser adequadamente comparado ao apartheid. É o que sustenta, por
exemplo, Thomas Schelling:
Se pensássemos numa nova ordem mundial que desse início ao desenvolvimento
progressivo de um enquadramento constitucional dentro do qual todos os povos do
planeta viessem a partilhar responsabilidades colectivas e obrigações
recíprocas, de alguma forma análogas às que em geral caracterizam um estado-
nação tradicional ( ), que entidade política conhecida poderia servir-nos como
base de comparação? A minha resposta é para mim próprio chocante e deprimente:
a África do Sul. ( ) Vivemos num mundo com um quinto de ricos e quatro quintos
de pobres; os ricos estão segregados nos países ricos e os pobres nos países
pobres; os ricos têm na sua maioria pele clara, ao passo que os pobres têm pele
escura; os pobres habitam territórios fisicamente remotos, separados muitas
vezes por oceanos, a enormes distâncias dos ricos. A migração em qualquer
escala assinalável não é permitida e não existe qualquer forma sistemática de
redistribuição do rendimento. (Schelling, 1992: 200, citado por Falk, 1995: 51-
52).2
Nota
1 Mesmo a forma mais liberal e democrática de constitucionalismo mundial'
permanecerá uma pura ficção institucional na medida em que os órgãos de
aplicação coerciva da ordem internacional coincidam com o aparelho militar de
um pequeno número de potências, formalmente isentas de qualquer controlo
jurisdicional graças ao seu poder esmagador nos planos económico e militar
(Zolo 1997: 121).
2 Sublinhados meus.
3 A investigação feita para este texto decorreu praticamente toda durante o ano
de 1997. Há obras importantes nesta área entretanto publicadas que merecem, a
meu ver, especial atenção. Apesar da epidemia de livros sobre globalização
dados à estampa no mercado português no final dos anos 90, nenhuma das obras
que aqui assinalo conheceu edição entre nós. O estudo mais completo, do ponto
de vista teórico e empírico, sobre o processo de globalização em diversas áreas
é David Held, Anthony McGrew, David Goldblatt e Jonathan Perraton (1999),
Global Transformations: Politics, Economics and Culture, Cambridge, Polity
Press. Um ensaio particularmente lúcido sobre o tema é: Zygmunt Bauman (1998),
Globalization: The Human Consequences, Cambridge, Polity Press. Para uma
crítica bastante arrasadora sobre as teorias da globalização, veja-se Justin
Rosenberg (2000), The Follies of Globalization Theory: Polemical Essays,
Londres, Verso. Embora não me refira a ele neste artigo, penso que também é
altamente recomendável Steven Yearley (1996), Sociology, Environmentalism,
Globalization: Reinventing the Globe, Londres, Sage. Do campo da teoria das
relações internacionais, E. H. Carr (1946) (2.ª edição), The Twenty Years'
Crisis: An Introduction to International Relations, Londres, Macmillan e Hedley
Bull (1977), The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics,
Londres, Macmillan, continuam a ser referências muito úteis na discussão de
alguns dos temas aqui focados.