Homens em fundo azul marinho. Ensaio de observação sociológica sobre uma
coorporação nos meados do século XX: A armada portuguesa
HOMENS EM FUNDO AZUL MARINHO. ENSAIO DE OBSERVAÇÃO SOCIOLÓGICA SOBRE UMA
CORPORAÇÃO NOS MEADOS DO SÉCULO XX
A armada portuguesa
[João Freire (2003), Oeiras, Celta Editora, ISBN: 972-774-164-9]
António Firmino da Costa*
Um livro inesperado? João Freire é, como se sabe, uma das mais destacadas e
consideradas figuras das ciências sociais em Portugal. Mas é conhecido,
sobretudo, pela sua obra na área da sociologia do trabalho, na qual investigou
e ensinou longamente, fez discípulos e publicou livros de referência. Por isso,
poderá constituir alguma surpresa, para quem não sabia ter o autor sido, nos
anos 60, jovem oficial da Marinha de Guerra portuguesa, ou para quem se tinha
habituado a ler as suas análises baseadas predominante em metodologias
extensivas e documentais, deparar-se agora com esta monografia histórico-
etnográfica sobre uma instituição militar.
O livro, porém, não só vale bem a pena em si mesmo, como, além disso, usufrui
de maiores continuidades analíticas com o conjunto da obra do autor do que pode
parecer à primeira vista. Com efeito, a par de novas explorações metodológicas
e temáticas, João Freire não deixa de convocar vertentes da investigação
sociológica por ele anteriormente desenvolvidas. Também aqui, neste novo
estudo, pratica uma análise atenta aos processos históricos e aos contextos
societais, às configurações institucionais e aos sistemas organizacionais, às
diferenciações e hierarquias profissionais, aos quadros valorativo-ideológicos
e às desigualdades sociais.
Mas, com estas considerações, convém não perder de vista o carácter fundamental
deste estudo enquanto, como é assinalado no subtítulo, ensaio de observação
sociológica, baseado de maneira central na vivência em primeira mão de uma
realidade muito especial, de difícil acesso a quem não seja dela participante,
universo em que se desenvolve uma fortíssima identidade colectiva, construída,
como diz o autor, em torno de duas principais referências identitárias,
militar e marinheira (p. 203). Em sentido forte, este trabalho apresenta-se
como fruto de um percurso: da vivência pessoal à análise sociológica de um
microcosmo social.
Homens em Fundo Azul Marinho. Ensaio de Observação Sociológica sobre uma
Corporação nos Meados do Século XX: a Armada Portuguesa é um contributo muito
interessante para as ciências sociais, em dois planos. Em primeiro plano, claro
está, é um contributo para o conhecimento de uma realidade social concreta,
neste caso particular do meio social específico, e até agora praticamente
ausente das análises sociológicas, que é a Marinha de Guerra portuguesa, com
ênfase num determinado período, os anos 50 e 60 do século XX. E é, ainda, um
contributo para o conhecimento das relações entre ele e esferas sociais
envolventes, mais amplas, relações que o ajudam a compreender e explicar, e
que, por sua vez, ele ajuda igualmente a entender melhor. Num segundo plano,
como acontece com as boas obras científicas, é também um contributo valioso
para o avanço dos instrumentos cognitivos; em concreto, para o avanço das
ferramentas teóricas e metodológicas com que as ciências sociais operam
analiticamente.
O livro tem uma estrutura muito clara. Depois de uma breve introdução, sobre a
perspectiva analítica e a sequência expositiva adoptadas, segue-se um conjunto
de capítulos em que se sucedem vários aspectos observados e diferentes ângulos
de análise. No primeiro capítulo, mergulha-se logo no meio social em estudo,
através do registo e análise dos processos de admissão e formação que nele
vigoravam, dos símbolos e rituais nele prevalecentes, das linguagens e estilos
de comportamento aí praticados, ou sinteticamente, das suas formas de
socialização e construção identitária. No segundo capítulo, em sentido
aparentemente contrário, mas de facto complementar, o autor estuda, já não
tanto as unificações simbólicas, mas, sobretudo, as segmentações categoriais.
São passadas em revista segmentações como as de carácter hierárquico,
funcional, profissional, honorífico, reputacional, grupal e de origem social.
O terceiro capítulo é o centro do livro. Não só formalmente, por ficar a meio
caminho da exposição, mas, mais ainda, substantivamente, porque incide, nas
próprias palavras do autor, sobre o cerne da organização da marinha, isto é,
o navio, no mar e no porto, na paz e na guerra (p. 101). Em sequência, no
capítulo quatro, surge de novo o contraste complementar: do microcosmo do navio
passa-se à análise das envolventes pertinentes, no caso orçamentais e
estratégicas, tecnológicas e organizacionais, políticas e socioculturais. Já
perto do fecho do livro, o capítulo cinco oferece-nos uma síntese
interpretativa das traves mestras socioculturais da corporação, enquanto
orientações de valor, nomeadamente aos níveis institucional e profissional, mas
também aos níveis ético e estético. E, já num outro registo, por assim dizer
meta-analítico, a conclusão explicita, sintetiza e comenta reflexivamente o
modelo de análise utilizado.
Mas impõe-se deixar registadas ainda algumas considerações sobre o método,
entendido em sentido abrangente, isto é, como conjunto organizado de
procedimentos de observação, instrumentos conceptuais e regimes de
interpretação-explicação utilizados na análise. O ponto principal é aqui,
creio, o de este livro assentar decisivamente numa análise intensiva, por
observação directa e participante, do universo social em estudo com a
particularidade de, em grande medida, se concretizar através do singular
exercício, digamos assim, de uma etnografia retrospectiva.
Tendo partilhado a condição social de oficial da Armada, durante um período de
tempo bastante significativo, e vivido o quotidiano deste meio social de
pertença e referência, em toda a sua densidade e nas suas múltiplas dimensões,
o autor consegue proceder a uma descrição interpretativamente densa, ou a uma
análise observacionalmente intensa, muito difícil, senão mesmo impossível, de
se alcançar com qualquer outro tipo de aproximação investigativa.
João Freire consegue fazê-lo de maneira cientificamente elaborada, com a
aquisição cognitiva que tal implica, na medida em que mobiliza, para o exame
crítico e o aguçamento interpretativo das observações, para a organização dos
temas tratados e a extracção de significados analíticos, na medida em que
mobiliza para tudo isto um sólido conjunto de perspectivas teóricas,
articuladas num modelo de análise consistente. E na medida em que recorre,
igualmente, a um conjunto de elementos informativos complementares, carreados
por outros procedimentos metodológicos, em que se destaca a análise documental
alargada e minuciosa.
A pesquisa de terreno realizada por meio da presença prolongada nos contextos
sociais em estudo, e pelo contacto directo com as pessoas e as situações, tem
sido utilizada principalmente pela investigação sociológica ou antropológica
que, aliás, quando a praticam, tendem a aproximar-se bastante entre si.
É certo que, sobretudo na sociologia, são também usados outros métodos
fundamentais, como o inquérito extensivo, a entrevista em profundidade e a
análise documental. Mas são vários os investigadores reputados que atribuem um
primado epistemológico ao método da observação directa e participante, pelo
seu carácter pormenorizado, integrador e flexível, pela menor imposição de
formatos externos à informação observacional, pela capacidade que tem de
confrontar e articular os dados culturais com os dados estruturais, os
processos de interacção com as configurações sistémicas.
Pondo a questão de outra maneira, a estratégia metodológica da pesquisa de
terreno observacional e participante destaca-se pelas virtualidades que possui
de interligar em profundidade a compreensão interpretativa das formas de pensar
e agir das pessoas, tanto quanto possível nos próprios termos que elas
utilizam, com a caracterização das suas circunstâncias, de acordo com os
parâmetros analíticos do observador teoricamente preparado para descortinar
padrões e encontrar factores explicativos.
Não me parece muito útil procurar estabelecer hierarquias de métodos. O que
importa é usá-los, cada um deles, de maneira adequada, rigorosa e
cognitivamente produtiva. É o que faz João Freire, utilizando a observação
directa e participante retrospectivamente analisada, a que recorre sobretudo
nos capítulos 1, 3 e 5, e, muito em especial, nesse capítulo verdadeiramente
nuclear, o 3, intitulado O pequeno universo total: o navio e o mar. Trata-se
de uma peça notável de observação e análise sociológica, dificilmente
realizável sem ser através de um modo de investigação em que o principal
instrumento de pesquisa é o próprio investigador, e os principais procedimentos
são a presença prolongada e participante no quadro social em estudo e o
contacto directo, em primeira mão, com as pessoas e as situações, os
acontecimentos e os sentimentos.
No entanto, por outro lado, sociólogo que é, e com larga experiência de outros
temas e outras técnicas, o autor não se deixa encerrar analiticamente no
interior do microcosmo que pretende analisar, nem circunscrever ao presente
aparentemente intemporal do quotidiano, nem, ainda, se deixa reduzir às
dimensões de partilha vivencial e simbólica. Por conseguinte, dá também lugar
destacado à análise dos enquadramentos históricos e dos contextos envolventes,
das relações assimétricas e das segmentações sociais. Isso perpassa toda a
obra, embora, como já foi referido, os capítulos 2 e 4 sejam especialmente
importantes destes pontos de vista.
Como assinalam alguns dos principais especialistas no estudo das sociedades
contemporâneas, uma relação próxima, de familiaridade, com qualquer dos seus
aspectos ou elementos não significa, por si só, conhecimento analítico deles.
Mas, sublinham igualmente, uma relação distante, de exotismo, também não
garante, em si mesma, esse conhecimento analítico. Para chegar a este último é
necessário praticar tanto a familiarização compreensiva como o distanciamento
objectivante, de modo interligadamente reflexivo, com apoio nos instrumentos
teóricos e metodológicos mais elaborados possível. O livro que João Freire
agora nos oferece é, sem dúvida, uma excelente ilustração desta prática e dos
resultados cognitivos a que ela permite chegar.
* António Firmino da Costa. Professor do Departamento de Sociologia e
investigador do CIES, ISCTE. E-mail: antonio.costa@iscte.pt