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EuPTHUHu0873-65292010000100005

EuPTHUHu0873-65292010000100005

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0873-6529
ano2010
Issue0001
Article number00005

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A Governação dos pacientes adequados no acesso à procriação medicamente assistida em Portugal

Introdução Neste texto pretende-se problematizar os critérios que delimitam a possibilidade de uma mulher e/ou de um homem recorrerem a tecnologias de procriação medicamente assistida (PMA) em Portugal, e reflectir sobre a possibilidade de estes limites potenciarem a (re)produção de múltiplas desigualdades no acesso a cuidados médicos no âmbito da medicina reprodutiva.

[1] Tal discussão tem como base empírica a análise da governação jurídico- política e médica dos pacientes adequados. Estas tecnologias têm sido promovidas como uma resposta terapêutica que visa controlar a essência biológica ou ultrapassar eventuais obstáculos à concepção originados por determinadas entidades passíveis de serem medicamente diagnosticadas a infertilidade, determinadas doenças consideradas graves ou o risco de transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras (art. 4.º da Lei n.º 32/2006). Esta opção é referenciada a um enquadramento político- jurídico e médico que perspectiva a infertilidade como uma doença e que promove uma ideologia da maternidade como o desejo e objectivo de todas as mulheres, com excepção das que não têm uma relação estável com um homem (Augusto, 2009).

A garantia do apoio político, económico e jurídico-legal ao progresso científico e tecnológico assenta na promoção simbólica da eficácia da tecnomedicina, termo associado ao conceito de tecnociência (Latour, 1987) e cuja aplicação pretende dar conta da profunda inter-relação entre a ciência e a tecnologia, reflectindo o facto de os conhecimentos e as práticas médicas serem hoje mediados por tecnologias que se inserem cada vez mais profundamente nas estruturas corporais. A eficácia da tecnomedicina tende a ser ponderada em função da respectiva lealdade para com os objectivos e valores sociais (Infante, 1993: 101 ss.; Garcia, 2006; Machado e Silva, 2008; Silva e Machado, 2009), neste caso norteados pela ponderação dos interesses das crianças que têm o direito de nascer e crescer saudáveis(Silva e Veloso, 2009).

Num contexto sociopolítico em que cada vez mais se enfatizam as preocupações com a quebra do número de nascimentos na sociedade portuguesa (Oliveira, 2007; 2008), o governo português parece depositar na PMA a expectativa de poder atenuar esta tendência. As palavras proferidas no dia 29 de Novembro de 2007 aquando do anúncio público da aprovação pelo Conselho de Ministros do Decreto Regulamentar que regula a utilização de tecnologias de PMA em Portugal ilustram as esperanças que recaem sobre as mesmas: realizar 6250 ciclos de tratamento, dos quais poderão resultar mais 1400 gravidezes e, previsivelmente, mais 1750 recém-nascidos (Conselho de Ministros, 2007).

Em finais de 2007 o governo português anunciou ainda a intenção de expandir o acesso à PMA através de um aumento do respectivo financiamento público, aprovado no Orçamento de Estado para 2008. Os encargos financeiros a serem suportados pelo Estado a partir do ano de 2008, inclusive, deveriam contemplar até três ciclos de inseminações intra-uterinas e um tratamento de fertilização in vitro ou injecção intracitoplasmática de espermatozóides, quer nos hospitais públicos, quer nos centros privados convencionados (Campos, 2008: 194-196), mas tais apoios foram parcialmente concretizados a partir de meados de 2009. A comparticipação do Estado nos medicamentos adquiridos em farmácia pelos casais que se encontravam em processos de PMA era de 37% até finais de Maio de 2009, uma vez que, de acordo com as declarações do ministro da Saúde Correia de Campos ao Jornal de Notícias em Novembro de 2007, estes são medicamentos importantes, mas não de salvação de vida [ ], nem essenciais para um tratamento agudo (Carneiro e Domingues, 2007). Este regime de comparticipação dos medicamentos foi recentemente alterado, tendo sido criado um regime especial que comparticipa em 69% de alguns dos medicamentos usados no âmbito dos tratamentos de infertilidade, com efeitos a partir de 1 de Junho de 2009, com o objectivo de tornar o acesso aos mesmos menos dependente do estatuto sócio- económico dos casais (Despacho n.º 10910/2009).

Estas medidas estão associadas ao reforço de um modelo público de contrato na saúde e de um programa político de privatização deste sistema (Garcia, 2006; Nunes, 2006), o que pode contribuir para escamotear as incapacidades do próprio sistema público de saúde em dar resposta às necessidades no âmbito da PMA. Este é um dos casos que melhor ilustram a limitação da universalidade e parcial gratuitidade do sistema de saúde português, nomeadamente pela relativa escassez de financiamentos públicos e ausência de cobertura pelos seguros de saúde privados, pela descontinuidade da oferta de recursos e pela tendencial privatização destes cuidados de saúde. A selectividade das respostas do Estado às solicitações no domínio da PMA desvenda as suas próprias prioridades no que concerne, entre outros, às políticas de promoção e/ou restrição da população e à racionalização dos gastos com a saúde (Stanworth, 1987). Daqui podem emergir novos riscos sociais, centrados na vivência de múltiplas formas de desigualdade social, como o risco de não cumprimento dos direitos sexuais e reprodutivos, ao não ser garantido um acesso mais barato e universal a todas as tecnologias de PMA (Carapinheiro, 2006). A própria tradução jurídica formal da garantia de protecção dos direitos dos cidadãos-beneficiários destas tecnologias é omissa quanto à questão da equidade e visa sobretudo definir, monitorizar e gerir as responsabilidades eventualmente associadas a estas tecnologias por intermédio da consagração de quatro direitos fundamentais, a saber: (i)o direito à eficácia e eficiência; (ii) o direito à segurança; (iii) o direito à informação; e (iv) o direito a consentir ou recusar submeter-se a determinados procedimentos (art. 5.º, art. 12.º, art. 14.º e art. 30.º da Lei n.º 32/2006).

Ao longo deste texto procura-se mostrar como os principais argumentos usados para justificar as restrições no acesso às tecnologias de PMA por parte de juristas e médicos estão associados a uma construção hierárquica das prioridades políticas e sociais que reflecte as mundividências ideológicas dominantes, nomeadamente nos seguintes aspectos: privatização e individualização da saúde reprodutiva; imposição cultural da heterossexualidade; e celebrização da eficácia da tecnomedicina. Num primeiro momento, mostra-se como a exigência de um diagnóstico médico para poder aceder às tecnologias de PMA em Portugal é apropriada pelas instituições políticas e sociais dominantes com o objectivo de classificar e disciplinar os corpos generizados (Ussher, 1997; Ploeg, 2001; Silva e Machado, 2008), solidificando a imposição cultural da heterossexualidade e contribuindo para esboçar o perfil social e genético de quem deve ser reproduzido. Num segundo momento, traça-se um panorama possível das principais modalidades de oferta de tecnologias de PMA em Portugal, reflectindo-se, em particular, sobre as implicações que a sua descontinuidade e tendencial privatização podem ter na (re)produção das desigualdades de acesso a estas tecnologias, assim como na ambivalência dos critérios usados para seleccionar os pacientes adequados.

Em termos empíricos, adopta-se uma perspectiva multidimensional, de tipo qualitativo e interpretativo, apoiada em dois tipos de fontes de informação: (i) o actual enquadramento legal da PMA existente em Portugal; e (ii) os discursos orais de juristas e médicos, obtidos através da realização de entrevistas semiestruturadas. No caso dos médicos, enviou-se uma carta de apresentação do projecto de investigação aos dezanove responsáveis clínicos de centros de medicina da reprodução existentes em Portugal em Outubro de 2005; dirigiram-se ainda treze cartas a juristas seleccionados por três especialistas em direito da saúde e direito da família em Portugal a partir da enumeração de todos os juristas que tinham publicações na área da PMA neste país. Realizaram- se nove entrevistas a médicos especialistas em medicina da reprodução entre os meses de Novembro de 2005 e Fevereiro de 2006; e nove entrevistas a juristas entre Janeiro e Março de 2007.[2] A representatividade sociológica dos casos analisados reside nas respectivas qualidades teórico-metodológicas e na sua exemplaridade (Hamel e outros, 1993: 30-44; Yin, 1994: 9-31; Guest e outros, 2006).

O diagnóstico médico, heterossexualidade e qualidade dos gâmetas Em Portugal, as tecnologias de PMA são perspectivadas como métodos subsidiários de tratamento de doenças medicamente diagnosticadas e poderão ser usadas por casais heterossexuais casados e/ou estáveis, ou seja, com pelo menos dois anos de vivência em condições análogas às dos cônjuges (art. 4.º e art.º 6.º da Lei n.º 32/2006), cujos mecanismos fisiológicos da reprodução não permitam obter a concepção de um ser humano saudável pelos meios naturais. A doação de óvulos e de sémen, por exemplo, exige a confirmação da impossibilidade de obter uma gravidez através da utilização dos gâmetas do casal face aos conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis e a garantia da qualidade dos gâmetas (art. 10.º, n.º 1; art. 19.º, n.º 1; art. 27.º; e art. 47.º da Lei n.º 32/2006). A avaliação da qualidade dos gâmetas parece não depender apenas de elementos de cariz biogenético (como a exclusão das mulheres e dos homens com doenças genéticas ou hereditárias), mas também de algumas características sociais, culturais e morais dos dadores (por exemplo, níveis de escolaridade elevados, uma profissão socialmente reconhecida, voluntariedade, altruísmo e estilos de vida saudáveis), o que promove uma distinção implícita entre quem deve serreproduzido os corpos saudáveis e quem não deve serreproduzido os corpos doentes (Ettorre, 2000; Silva e Machado, 2009). Estas restrições no acesso às tecnologias de PMA podem equacionar dois dos direitos contemplados na Carta dos Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Internacional de Planeamento da Família, nomeadamente: o direito à igualdade e o direito a estar livre de todas as formas de discriminação no âmbito da vida sexual e reprodutiva (art. 3.º); e o direito de escolher casar ou não e de constituir e planear família (art. 7.º) (Federação Internacional de Planeamento da Família, 2000).

Se as ciências sociais tendiam a perspectivar a ausência involuntária de filhos como um problema social nas décadas de 60 e 70 do século XX, esta foi sendo reconfigurada como um problema médico ao longo dos anos 80, reflectindo a crescente dominação do discurso biomédico em torno da infertilidade, num período em que aumentou o número de médicos especializados na área da reprodução humana e se expandiu a investigação científica e tecnológica no âmbito da PMA (Becker e Nachtigall, 1992). Os estudos sociais da medicina têm realçado a importância da análise sociológica do diagnóstico médico, uma vez que a construção social de uma determinada condição começa a partir do momento em que os profissionais médicos determinam a existência e legitimidade dessa mesma condição, atribuindo-lhe um nome e um significado (Brown, 1995; Silva e Machado, 2008). Um dos exemplos que ilustra a importância da construção discursiva do diagnóstico médico no âmbito da PMA em Portugal consiste no facto de esta promover a ideia de que o desenvolvimento científico e tecnológico neste domínio resulta sobretudo de uma resposta médica à infertilidade conjugal, eclipsando, por exemplo, as referências às suas mais recentes utilizações por razões genéticas ou outras.

A imposição institucional da norma da heterossexualidade é justificada pela esmagadora maioria dos médicos entrevistados com base numa evocação restritiva da definição médica de infertilidade enquanto uma doença que afecta casais heterossexuais, o que implica a ausência de reconhecimento implícito da infertilidade de uma mulher ou de um homem solteiro como um problema passível de intervenção médica (Augusto, 2009). O discurso de um dos médicos entrevistados mostra como a classificação pretensamente objectiva da infertilidade como uma questão de ordem médica pode ser apropriada pelas instituições sociais com o objectivo de classificar e disciplinar os corpos das mulheres e de solidificar as definições de género, sexualidade e família legítima ao proceder a uma avaliação moral implícita negativa das mulheres sós que desejam ter um filho; ao pressupor que todas as mulheres-mães devem gostar de homens e aturá-los; e ao veicular a importância da presença do elemento masculino na constituição de uma família:

Uma senhora , mais ou menos jovem, porque não gosta de homens ou porque não está para os aturar ou por qualquer outro motivo quer ter um filho , não é, no plano objectivo, uma questão de ordem médica.

Portanto, não é uma infertilidade. Daí perturba-me a ideia de o fazer [possibilitar o acesso de mulheres sós a técnicas de PMA], até porque me perturba a ideia de ajudar a nascer uma criança que, à partida, não tem pai. [Entrevista a médico]

Num contexto em que a concepção humana está subordinada à intervenção médica, a maioria dos médicos entrevistados entende que tem legitimidade para restringir alguns dos direitos do casal com o objectivo declarado de assegurar o direito da criança a ter um pai e uma mãe, o que parece assegurar a utilização responsável das tecnologias de PMA (Mitcham, 2006):

Eu acho que nós temos que fazer uma distinção clara entre o direito de um casal a ter um filho e os direitos da criança. E não podemos ser nós [médicos] a contribuir para gerar uma criança que vai ser órfã à partida. Não me parece que seja o melhor contexto para educar uma criança, sobretudo se somos nós a produzir, a contribuir para que isso aconteça. [Entrevista a médica]

Apenas uma médica admitiu que a imposição da heterossexualidade no acesso às tecnologias de PMA reflecte uma norma cultural que parece ir ao encontro dos valores e das expectativas da sociedade em que estas são aplicadas, reconhecendo a profunda imbricação entre sociedade e tecnologia:

Pessoalmente, por exemplo, não tenho nada contra a homossexualidade e não teria nada contra o facto de inseminar uma mulher homossexual ou qualquer coisa assim do género. Mas não o faço porque não é do consenso geral no país não estamos na Holanda ou na Suécia; se estivéssemos, tudo bem, mas não estamos. [Entrevista a médica]

Os médicos entrevistados entendem ainda que as mulheres e os homens que acedem a tecnologias de PMA devem manifestar uma estabilidade conjugal, muitas vezes eleita como o elemento que simbolicamente atesta a respectiva capacidade para serem mães e pais e que pode ser reconfigurado como um instrumento que garante os direitos e os interesses da criança que vier a nascer. O seguinte extracto de entrevista a uma médica ilustra ainda outros processos. Por um lado, a construção dos casais e das crianças como os pacientes da PMA (e não as mulheres e os homens). Ao reflectir sobre a emergência de um novo tipo de paciente hermafrodita no âmbito da PMA o casal , Irma van der Ploeg (1995) mostra como esta entidade híbrida produzida através das práticas tecnológicas é perspectivada como um ponto de partida não problemático a partir do qual se sucedem as intervenções médicas e técnicas sobre os corpos das mulheres, as quais são reconceptualizadas como intervenções que recaem sobre os casais e não sobre as mulheres. Por outro lado, este extracto salienta a importância do envolvimento de personagens extramédicas na avaliação das eventuais competências para a parentalidade dos casais que pretendem conceber por intermédio destas tecnologias, sobretudo nos hospitais públicos portugueses, a qual é justificada pelo facto de os médicos pretenderem assegurar acima de tudo os direitos das crianças:

Os nossos casais são sempre avaliados pela psicóloga. Se nós acharmos que eles não têm condições para serem pais, nós não fazemos técnicas, estão excluídos. Nós acabamos por ter dois pacientes: temos o casal e temos a criança que ainda não nasceu; e sentimo-nos responsáveis pelas condições que vamos dar a essa criança quando ela nascer.

[Entrevista a médica]

Os argumentos que legitimam os poderes dos médicos e dos juristas nos processos de definição dos critérios de acesso às tecnologias de PMA em Portugal entroncam, em termos globais, numa proposta autorizada de articulação entre um conjunto de direitos considerados fundamentais e a consequente ponderação relativa da respectiva valorização simbólica e social (Silva e Veloso, 2009).

Esta proposta associa o direito a procriar com o direito a constituir família, disseminando a ideia de que família e procriação são conceitos afins. Mas a consagração destes direitos subordina-se a outros valores fundamentais, nomeadamente: a maternidade e paternidade conscientes e o direito das crianças ao seu desenvolvimento integral (Duarte, 2003: 37 e 80); e, sobretudo, os interesses das crianças, pretensamente salvaguardados pelo direito à vida, pelo direito a conhecer a história pessoal, genética e biológica (Barbas, 1998), pelo direito a não herdar defeitos genéticos detectados e elimináveis cientificamente (Ascensão, 2003: 37) e pelo direito ao seu desenvolvimento integral, o que passará pela garantia de biparentalidade (Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, 2003; Assembleia da República, 2005a: 2643-2648). No decurso de um debate parlamentar, a deputada Maria de Belém Roseira (Partido Socialista) acrescentou ainda um outro argumento para justificar a consagração da norma da heterossexualidade conjugal como uma das principais restrições do acesso a tecnologias de PMA a necessidade de o Estado fazer opções no âmbito dos investimentos no Serviço Nacional de Saúde, sobretudo quando está em causa uma tecnologia que tem sucesso insuficiente ou baixo e é extraordinariamente cara e onde a oferta pública de centros de PMA não satisfaz as necessidades da procura em tempo útil (Assembleia da República, 2005b: 5757). Neste contexto, a orientação sexual esboça-se como um critério preferencial na hierarquização dos potenciais beneficiários destas tecnologias (Donovan, 2008).

De acordo com o jurista Jorge Duarte Pinheiro (2005: 766), a tendencial biparentalidade que anima o direito da filiação em Portugal insere-se na lógica do interesse superior da criança, o qual, na perspectiva do legislador, exige que a criança tenha, em termos ideais, um pai e uma mãe. A ideologia de maternidade subjacente não reforça a crença de que as melhores mães vivem numa união heterossexual estável, como também exclui as mulheres solteiras e as mulheres lésbicas do acesso à maternidade no interesse da criança (Stanworth, 1987: 15). Um dos juristas entrevistados entende que a maternidade autónoma indicia um certo egoísmo por parte da mulher e que a ausência de um elemento masculino na família pode constituir um problema, espelhando a tendencial antipatia jurídico-legal pela monoparentalidade (Machado, 2007):

Parece-me que no caso das mães solteiras haverá um certo egoísmo por parte da mãe. Não é das mães solteiras, é das mães solteiras com um dador anónimo. [ ] Portanto, o ónus da argumentação está em quem quer mudar a lei e vejo isso como muito difícil de superar. Por parte de um casal de lésbicas, temos o mesmo problema, porque não a figura paterna. [Entrevista a um jurista]

O extracto de entrevista acima transcrito espelha a importância atribuída à figura paterna, que caracteriza a generalidade dos enquadramentos jurídico- legais sobre tecnologias reprodutivas, a qual está sobretudo associada à protecção simbólica da ideia do pai como um elemento fundamental que completa a família nuclear, mais do que às considerações práticas que visam assegurar o sustento financeiro da criança ou os cuidados a prestar à mesma (Sheldon, 2005). Esta visão é aliás reafirmada pelo direito português, ao possibilitar que uma mulher tenha acesso a tecnologias de PMA desde que haja embriões in vitro criopreservados como resultado de um projecto parental partilhado entre esta mulher e o marido e/ou companheiro falecido e este o tenha consentido (art. 22.º da Lei n.º 32/2006). A legitimação jurídico-política desta excepção ao princípio da biparentalidade tende a ser referenciada a um contexto onde prevalece a retórica da protecção e dignificação do embrião humano (Pinheiro, 2005: 780), a qual parece ser assegurada pelo enquadramento jurídico-legal ao privilegiar os destinos que envolvem um projecto parental, neste caso simbolicamente representado pelo consentimento do elemento masculino falecido, que emerge como o garante da boa reputação da mulher-viúva que desempenhou o seu papel convencional de esposa fiel e pretende dar continuidade à sua pretensão de ser mãe (Lees, 1997).

A jurista Vera Lúcia Raposo alerta para as fragilidades dos argumentos jurídicos normalmente usados para justificar a restrição do acesso a tecnologias de PMA a casais heterossexuais, atendendo, entre outros aspectos, à fragmentação das famílias actuais, a qual parece residir fundamentalmente na fragmentação da paternidade (Sheldon, 2005); no entanto, esta jurista não deixa de concluir que as crianças necessitam de estar rodeadas de modelos masculinos e femininos (Raposo, 2007: 49), revelando implicitamente a ideia de complementaridade dos géneros e uma visão essencialista da estruturação da personalidade e da educação de uma criança face ao binómio masculino-feminino (Amâncio, 2003), o que enuncia a centralidade da oposição homem/mulher no sistema jurídico português (Machado, 2007; Silva e Veloso, 2009). A idealização normativa da heterossexualidade revela assim uma ordem social assente na diferença e na complementaridade entre mulheres e homens, cujos fundamentos parecem encontrar-se na natureza (Hird, 2004: 26-28).

A oferta de tecnologias de PMA em Portugal: descontinuidades, privatização e incertezas Se em 1999 existiam em Portugal treze centros que aplicavam técnicas de PMA (European Society of Human Reproduction and Embryology, 2002: 3261), dez anos depois (em 2009) este número mais do que duplicou, cifrando-se em trinta e um.

Este esforço de ampliação da oferta de recursos e cuidados de saúde resultou sobretudo do investimento do sector privado, em detrimento da expansão de infra-estruturas, instalações e equipamentos de cariz público. De acordo com os dados disponibilizados pela Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução e pela Associação Portuguesa de Fertilidade, a maioria dos centros que disponibilizavam tecnologias de PMA em Portugal no final de 2009 eram privados (dez unidades públicas e vinte e uma unidades privadas) e concentravam-se nos maiores centros urbanos do país (doze em Lisboa, seis no Porto e cinco em Coimbra) (quadro 1). O coordenador da Comissão Nacional de Saúde Materna e Neonatal Jorge Branco anunciou em Outubro de 2008 a criação de mais quatro unidades públicas que aplicarão tecnologias de PMA a partir de 2009 no Hospital da Covilhã, no Centro Hospitalar de Coimbra, no Hospital Garcia de Orta, em Almada, e no Hospital de Faro. Este esperado investimento público é acompanhado pelo investimento privado. Os Hospitais Privados de Portugal e o grupo Espírito Santo Saúde anunciaram em Maio de 2008 a intenção de abrir três ou quatro unidades de PMA até final de 2008, uma delas no Porto e as restantes em Lisboa.

Quadro 1 Número, tipo e localização das unidades que aplicam tecnologias de PMA em Portugal

A distribuição geográfica assimétrica dos estabelecimentos, equipamentos e recursos humanos especializados no âmbito da PMA em Portugal penaliza as populações que residem em zonas distantes dos locais onde se situam as unidades de medicina da reprodução, quer em termos económicos, quer em termos de distância/tempo (Remoaldo e Machado, 2008: 126). Os estudos desenvolvidos no que concerne às desigualdades no sistema de saúde português têm provado que a procura e utilização de cuidados de saúde decrescem à medida que aumenta a distância/tempo entre o local de residência dos cidadãos e a localização dos estabelecimentos, equipamentos e recursos humanos de saúde (Cabral, 2002; Santana, 2005). A percepção desta distância/tempo pode agravar-se em domínios que implicam tratamentos prolongados, cansativos, dolorosos e caros, como é o caso da PMA, o que contribui para reforçar a tese do local de residência como um obstáculo efectivo no acesso a estas tecnologias, que se agudiza em Portugal pela concentração da oferta de unidades de PMA em Lisboa, Porto e Coimbra.

Logo, se a rede de transportes públicos não for suficientemente completa e regular pode comprometer a ligação entre o local de residência e o de consultas e tratamentos, limitando a procura por parte de casais com um estatuto socioeconómico mais baixo e sem viatura própria.

Os constrangimentos dos espaços e dos lugares de implementação destas tecnologias dificultam ainda o acesso a técnicas de PMA por parte de cidadãos com determinadas doenças infecto-contagiosas, devido à inexistência de meios materiais e de laboratórios adequados, e parecem exigir a restrição do número de tratamentos que cada casal pode realizar, sobretudo nos serviços públicos de saúde, agravada pela existência de listas de espera. No entanto, os contornos que definem a admissibilidade destes critérios variam em função da unidade de medicina da reprodução em causa, sendo que a distinção entre o carácter público ou privado da mesma se afigura como um dos factores determinantes nesse processo (Augusto, 2009).

A não capacidade de resposta dos serviços de saúde face à procura de tecnologias de PMA também é usada como um argumento para justificar a imposição médica de limites apenas à idade máxima da mulher que pode aceder a estas tecnologias, aspecto que não é objecto de regulação na actual lei portuguesa.

De acordo com os médicos entrevistados, tais limites oscilam entre os 38 e os 40 anos nos serviços de saúde públicos e entre os 42 e os 45 anos nas unidades de medicina da reprodução privadas. Um dos médicos entrevistados reconhece que na prática clínica quotidiana se procura conjugar uma heterogeneidade de argumentos técnicos, médicos, económicos, biológicos, éticos, sociais e organizacionais para determinar os limites aceitáveis da idade em que uma mulher pode e deve ser mãe (por exemplo, a diminuição das taxas de êxito, a capacidade de resposta dos serviços de saúde, as práticas transnacionais dominantes, os constrangimentos económicos e/ou a ética e deontologia médicas):

As instituições oficiais [ ] têm uma procura que excede de tal forma a sua capacidade de resposta, que utilizam os 38 anos do cônjuge feminino como limite para fazer as técnicas. Não tem nada de pessoal, os 39 anos podem ser biologicamente, enfim, jovens, mas este é um número que advém de experiência internacional [ ]. Isto porque se as taxas de êxito até essa idade andam à volta dos trinta, trinta e qualquer coisa por cento, a partir daí começam a descer de forma abrupta e, portanto, não parece fazer lógica, até de justiça social, que estejamos a gastar custos com pessoas que têm, infelizmente, uma probabilidade muito baixa de resolver o assunto e a deixar, enfim, seria perder probabilidades nas que estão em lista de espera. [ ] Se estamos em regime privado [ ] eu não ultrapasso os 42 anos, porque acho que a partir daí mesmo a chama da esperança me parece utópica e não me parece ético eu estar a colaborar nessa, enfim, ilusão.

[Entrevista a médico]

No extracto de entrevista acima apresentado é-se confrontado, por um lado, com a possibilidade de recentramento da intervenção médica e técnica nas mulheres mais jovens, sob a pretensão de uma maior garantia de sucesso das tecnologias de PMA e, por outro lado, com o reforço da imagem do insucesso das mesmas como directamente dependente da idade da mulher. Este discurso em torno da idade da mulher permite ilustrar a recente ênfase colocada no uso de critérios biológicos na governação da paciente adequada para as tecnologias de PMA, uma vez que a idade da mulher é subtilmente perspectivada como uma medida de resposta biológica capaz de prever o sucesso destas tecnologias. Como mostra Charis Thompson (2005: 89-91), a estandardização e democratização parcial dos procedimentos técnicos e médicos neste domínio a partir de finais da década de 1990 contribuiu para o estabelecimento de uma hierarquia de pacientes sobretudo baseada em critérios biológicos e menos em critérios socioeconómicos, como sejam a exigência de um diagnóstico médico, a idade da mulher e a selecção dos pacientes com maior probabilidade de sucesso, a qual se tornou possível a partir do desenvolvimento da investigação médica com o objectivo de isolar os factores preditivos do sucesso das tecnologias de PMA.

Conclusão Com base numa investigação de carácter qualitativo e interpretativo, conclui-se que as principais modalidades de acesso às tecnologias de PMA em Portugal são mediadas pelo poder social do direito e da tecnomedicina e pelas imagens dominantes acerca dos corpos, dos lugares e dos papéis das mulheres e dos homens na sociedade. A admissibilidade legal do acesso às tecnologias de PMA depende genericamente da existência de um casal heterossexual estável com um diagnóstico médico; no caso da doação de gâmetas, exige-se ainda a garantia da qualidade destes e a certificação da impossibilidade de obter uma gravidez através do recurso aos gâmetas dos respectivos beneficiários. O direito (re)produz uma ideologia de patriarcado, ao reafirmar através da biparentalidade a complementaridade natural dos géneros e uma visão da estruturação da educação de uma criança a partir do binómio feminino/masculino; e ao realçar a importância simbólica da figura masculina e paterna como um elemento fundamental que completa a família nuclear. Os médicos especialistas em medicina da reprodução afiguram-se como gatekeepers secundários neste processo, uma vez que detêm o conhecimento técnico e científico que permite estabelecer um diagnóstico médico e propor uma metodologia de intervenção, cujos testes e procedimentos recaem quase exclusivamente na mulher; e que permite hierarquizar a qualidade dos gâmetas e definir os critérios que parecem garantir uma maior probabilidade de sucesso dos usos das tecnologias de PMA.

Apesar de a estruturação das dinâmicas familiares ter sofrido diversas metamorfoses ao longo dos últimos trinta anos em Portugal, o recurso ao casamento, enquanto instituição reconhecida e legitimada que enquadra a conjugalidade, marca uma presença estável e significativa nas representações dos portugueses neste domínio (Almeida, 2003; Wall, 2005; Donati, 2007). O laço legal e social construído pelo casamento ainda representa um ritual na sociedade portuguesa que marca a transição estatutária para a condição de adulto (Lalanda, 2005: 389) e é usado como um instrumento que simboliza a união biológica entre os membros do casal e as respectivas redes de parentesco (Smart, 1987). O reforço da idealização de um modelo de família com dois progenitores heterossexuais e uma ou duas crianças saudáveis que estão biologicamente relacionadas com pelo menos um deles dificulta o estabelecimento de uma família para certas categorias de pessoas, como as mulheres e os homens classificados como inférteis e/ou catalogados como socialmente indesejáveis, o que se perspectiva como discriminatório e inconsistente.

Num contexto em que os tratamentos associados às tecnologias de PMA são excluídos das situações cobertas por seguros privados de saúde e em que a maioria da oferta dos mesmos acontece em unidades localizadas nas imediações dos grandes centros urbanos e pela medicina privada, predominantemente orientada para o lucro e para a rentabilização do tipo custo-efectividade dos recursos existentes, praticando preços inacessíveis para muitos portugueses, e em que a probabilidade de nascer uma criança é relativamente baixa, as actuais medidas políticas de apoio à PMA podem não contribuir para atenuar as desigualdades socioeconómicas e geográficas no acesso a estas tecnologias, dificultando a concretização de um dos objectivos da Organização Mundial de Saúde para este milénio a acessibilidade como o principal desafio a enfrentar por quem está envolvido em tecnologias de PMA (Vayena e outros, 2002). Defende- se aqui a necessidade de conceber formas de intervenção solidária que perspectivem a saúde como um direito humano fundamental que não pode ser comercializado (Nunes, 2006), o que, no caso da PMA em Portugal, significa sobretudo garantir uma maior equidade no acesso a estas tecnologias, promover a resistência à sua privatização e assegurar a qualidade e eficiência na prestação de cuidados de saúde públicos e privados.


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