A leitura pública no Portugal contemporâneo (1926-1987)
DANIEL MELO
A LEITURA PÚBLICA NO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO (1926-1987)
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004.
É talvez pelo problema da leitura, ou melhor, pelo problema da alfabetização,
que passam os maiores desafios hoje colocados a todos os tipos de estudos
culturais contemporâneos, e nomeadamente à história cultural clássica
propriamente dita. Esta referência específica à história cultural não se deve a
qualquer tipo de privilégio que lhe seja devido: pelo contrário, a disciplina
que mais contribuiu para a definição do que seja a cultura portuguesa
contemporânea acabou por se transformar no maior obstáculo ao conhecimento
cultural do Portugal contemporâneo. O caso é bem conhecido: de Garrett ao neo-
realismo, ou de Herculano a Eduardo Lourenço, a cultura portuguesa foi fixada
como cultura letrada e, nesse sentido, reduzida a uma apertada oligarquia
cultural.
Não se trata apenas de um problema quantitativo, embora seja verdade que, por
si só, o facto de a história cultural deixar de fora, à partida, a maior parte
da população, levanta dificuldades epistemológicas insuperáveis. A maior dessas
dificuldades, porém, tem que ver com as relações que, no contexto do
analfabetismo endémico da contemporaneidade portuguesa, se estabeleceram entre
uma civilização que se quis da escrita e a realidade circundante que não sabia
ler. Ou para falar com mais clareza: trata-se da dificuldade de não conseguir
pensar a escrita como instrumento de poder na medida em que quem escreve e quem
lê coincidem. A oligarquia cultural correspondeu à oligarquia política, o que
arrasta atrás de si a própria história política contemporânea: tal como a
história cultural, é uma história de Portugal reduzida a uma percentagem
residual dos portugueses. Mas que, precisamente nesse sentido, exerce sobre o
país quase todo que fica de fora um poder asfixiante.
Assim, a historiografia parece repercutir uma estrutura social de poder
sobretudo marcada por uma muito desigual distribuição de bens. Neste caso, de
bens culturais. A palavra, por não ser escrita, é retirada aos mesmos que
também não tiveram, até muito tarde, direitos políticos, que coincidiram,
naturalmente, com a esmagadora maioria dos subordinados a um regime económico
onde provavelmente começaram todos estes desequilíbrios da estrutura social.
Por aqui se compreende como a questão da leitura, mais especificamente da
leitura pública, isto é, das iniciativas políticas estatais no sentido de criar
espaços e equipamentos para leitores, tema central de A Leitura Pública no
Portugal Contemporâneo (1926-1987), de Daniel Melo, ao abrirem, quase
naturalmente, a reflexão sobre os que nela não participam, pode desafiar o
olhar sobre o universo cultural tradicional às suas implicações políticas e
económicas.
Em primeiro lugar, porque a leitura é correlata da participação política. Neste
aspecto, as respostas republicana e salazarista ao problema do analfabetismo
são dois modos antagónicos de lidar com o mesmo problema, mas que têm em comum,
precisamente, o facto de o reconhecerem como um problema maior de uma sociedade
moderna a caminho da, ainda que lenta, massificação. A chegada ao universo da
leitura de percentagens cada vez mais significativas de portugueses foi
enquadrada (para não dizer controlada) tanto pelo patriotismo positivista
republicano como pelo nacionalismo ruralista e católico do Estado Novo.
Em segundo lugar, porque, logo desde o final da I Guerra Mundial, a emergência
das várias indústrias culturais, que constituíram os consumos do gosto e do
senso comum do século XX, entraram em competição com as formas da cultura
letrada. Ou seja, a evolução da sociedade pôs em campo uma série de fenómenos
simultâneos: a urbanização implicou a massificação que foi alargando as
expectativas da participação política mas também a entrada para o consumo do
mercado capitalista, e tudo isto pressionou e foi pressionado pelo processo de
alfabetização, por sua vez concorrente dos novos regimes de imagens e sons com
que a rádio e a canção, o cinema e, mais tarde, a televisão foram contribuindo
para moldar a cultura dos portugueses.
Confuso? Muito confuso. Mas também, convenhamos, muito mais promissor do que as
séries de movimentos intelectuais, correntes estéticas, dos seus génios e das
suas constantes rupturas, que compõem a cronologia cultural portuguesa do
século XX. Confuso, ou antes, problemático, desde logo por uma questão,
precisamente, cronológica: ao contrário do que se passa nas culturas centrais
de referência à sociedade portuguesa, aqui a alfabetização não estava resolvida
quando emergiu a cultura de massas. Enquanto o cinema, a rádio e a televisão se
acomodaram ali a sociedades cuja cultura se baseava no livro e na leitura — e
que portanto entraram num jogo explicitamente político e de mercado —, já em
Portugal, sob a alçada do estado autoritário, as imagens e sons inscreveram-se
sem mediação crítica num terreno em boa parte virgem de qualquer contacto com
culturas urbanas.
É este o contexto das formas de propaganda salazarista. Formas urbanas, de
produção e de consumo urbano, que assim puderam, com muito pouco atrito, fazer-
se passar pelo imenso mundo rural onde vivia ainda a maior parte dos
portugueses e cuja vida os seus hábitos culturais, os seus conflitos políticos
e as suas estruturas económicas foi virtualmente inventada pela oligarquia
citadina. E é por isso também que A Leitura Pública no Portugal Contemporâneo
não podia deixar de se basear na convergência entre o seu objecto explícito,
por um lado, e a questão da alfabetização e da natureza dos regimes políticos,
por outro — a que se poderia ter acrescentado com proveito uma maior atenção às
dinâmicas da leitura pública em relação com o crescimento das indústrias
culturais.
Daniel Melo estabelece o período entre 1930 e 1970, no que diz respeito à
alfabetização da sociedade portuguesa, como aquele em que se passou “de uma
minoria significativa [38%] para uma maioria consolidada [76%]” (p. 70). Ora é
precisamente no interior deste arco cronológico que nasce o cinema sonoro e se
institucionalizam e popularizam a rádio e a televisão. Aliás, e ainda segundo o
autor, é só a partir da década de 50 que a oferta pública de leitura acompanha
decididamente o processo de alfabetização: ou seja, na mesma década em que, com
a criação da RTP, se começam a reunir as condições para o domínio audiovisual
do espaço público.
Os elementos que o autor nos dá, sobretudo nos capítulos que analisam o perfil
dos leitores e das suas leituras, abrem a porta — se estabelecidas as múltiplas
relações a que convidam — a inúmeras reflexões sobre as implicações políticas e
culturais da evolução da leitura pública no século XX em Portugal. Um exemplo,
talvez o mais significativo: a tendência para uma leitura mais evasiva,
sobretudo através dos clássicos românticos do século XIX, nas mulheres, nos
jovens e nos estratos sociais mais desfavorecidos, em contraste com a
preferência por uma literatura mais crítica e cosmopolita daqueles que, por
motivos sociais e etários, se encontravam mais próximos do poder. No contexto
português do salazarismo, talvez se possa começar a fazer, a partir deste
estudo, uma sociologia do neo-realismo, possivelmente para vir a chegar à
conclusão de que o Estado Novo caiu, pelo menos, tanto aos pés da oposição
política e cultural como da televisão.
Parece fácil de imaginar como muito do que a cultura portuguesa e os consumos
culturais dos portugueses são, hoje, ficará mais perceptível se conseguirmos
desenvolver com rigor alguns destes problemas que, a partir de A Leitura
Pública no Portugal Contemporâneo, parecemos agora em condições de colocar.
Luís Trindade
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa