Dinâmicas do mundo rural: etnografias da mudança
Dinâmicas do mundo rural:etnografias da mudança
Colette Callier-Boisvert
Soajo, entre Migrações e Memórias
Lisboa-Paris, FCG/Centre Culturel Calouste
Gulbenkian, 1999, 317 páginas.
Manuela Raminhos
Fronteiras da Identidade.O Outro na Construção de um LugarnaSerra de Grândola
Oeiras, Celta Editora, 2004, 135 páginas.
Clara Saraiva
Luz e Água.Etnografia de um Processo de Mudança
EDIA, 2005, 356 páginas.
Hoje aceita-se pacificamente a ideia de que a sociedade portuguesa se
transformou de uma forma substancial e inequívoca no espaço de poucas décadas,
mas esta ideia, tida por clara e evidente, nem sempre é discutida de forma a
perceber de um modo consistente esse processo de mudança. Tratando-se de uma
questão transversal, passível de ser olhada a partir da economia, da história
ou da ciência política, ela oferece também à antropologia um prometedor, mas
pouco visitado, campo de trabalho. Um tema tão central como o da relação entre
tradição e mudança e, numa perspectiva mais ampla, tudo o que decorre daquilo a
que podemos chamar dinâmica social, encontra aqui um amplo espaço de debate e
análise. Três obras publicadas há relativamente pouco tempo podem ser lidas
neste quadro, constituindo formas diferentes, e até certo ponto complementares,
de abordar processos de mudança social a partir da antropologia. Trata-se dos
trabalhos de Collete Callier-Boisvert (2004), Soajo, entre Migrações e
Memórias, de Manuela Raminhos (2004), Fronteiras da Identidade. O Outro na
Construção de um Lugar na Serra de Grândola e de Clara Saraiva (2005), Luz e
Água. Etnografia de um Processo de Mudança. A intenção por detrás de cada uma
destas obras é bem distinta, como distintas são também as estratégias de
construção narrativa. O que têm em comum e permite pensá-las em conjunto é o
traçar de diferentes retratos de um processo complexo, sublinhando alguns
tópicos tão relevantes como a desagregação de um certo mundo rural, a afirmação
e a resistência a formas de modernidade tardia, o impacto dos fluxos
migratórios ou a consolidação de novas representações sobre o património.
De facto, ainda que o façam de forma diferente, qualquer destas obras se
confronta com processos de mudança, introduzindo no discurso um fio temporal
que se pauta, para simplificar, num contraponto entre o antes e o agora. São
diferentes, porém, as formas de construção desse registo. O livro de Callier-
Boisvert é, na verdade, uma colectânea de artigos que dão conta da longa
relação da investigadora com um terreno concreto, o Soajo. Tendo chegado pela
primeira vez à aldeia no começo dos anos 60, Callier-Boisvert voltou ali no
final dos anos 80, regressando depois todos os anos até 1998. Este longo
contacto com a realidade soajeira, mesmo tendo em conta o longo hiato de 23
anos em que se manteve distante, permitem-lhe dar conta e explicar, de forma
sustentada, importantes mudanças estruturais. São três os temas que atravessam
o livro: a emigração, entendida como uma constante estrutural com que há que
lidar de forma a atenuar o seu impacto na comunidade; os modos de articulação
entre o público/privado e individual/colectivo e os processos identitários, que
a autora convoca para discutir as formas de resistência e adaptação face a um
contexto de mudança (p. 18).
Com a publicação da sua tese de mestrado em Antropologia, Patrimónios e
Identidades, Manuela Raminhos oferece-nos um outro olhar sobre a mudança num
contexto rural. Também neste caso a migração ocupa um lugar central, mas do que
se trata aqui é de mostrar o impacto da chegada de estrangeiros, sobretudo do
Norte da Europa, a uma aldeia alentejana. Enquadrada por aquilo que pode
designar-se por vaga neo-rural, a presença destes imigrantes permite à autora
construir também aqui uma narrativa acerca da dinâmica social, nomeadamente
quando mostra o modo como a comunidade confronta antigo e moderno e demarca
sinais de pertença e de exclusão. Também nesta obra a argumentação se constrói
na centralidade dos processos identitários, procurando mostrar de que forma as
representações sociais dominantes se adequam e interagem com uma nova realidade
social. A mudança, induzida pela chegada de novos segmentos populacionais que
transportam consigo representações do mundo bem diversas das que dominam
localmente, acaba por ser controlada socialmente, através de um reajustamento
da mundivisão e do discurso da identidade que permite conservar o essencial.
A trasladação da aldeia da Luz, provocada pela construção da barragem de
Alqueva, permite, também ela, e a seu modo, pensar os processos de mudança.
Trata-se de uma abordagem bastante diferente das que acabámos de referir, desde
logo pela singularidade do processo analisado, mas também porque a forma de
construção do texto etnográfico obedece a uma lógica distinta das anteriores.
Preocupada, fundamentalmente, com a descrição do processo, Clara Saraiva
oferece-nos um trabalho de grande riqueza etnográfica, surgindo os debates
antes/agora e antigo/moderno sob uma forma mais impressiva que analítica.
De alguma forma é o leitor quem tem que partir de uma descrição etnográfica
densa para a problematização do tema e mesmo para a procura das sínteses que o
transportem do particular para o geral. Este exercício de distanciamento face
ao texto impresso, para o qual o leitor é conduzido, é também aquele que torna
mais rico um olhar cruzado sobre os três trabalhos que vimos referindo.
Na Conclusão do seu livro, Callier-Boisvert coloca a questão da mudança de
forma algo inesperada, pois inverte o ponto de focagem do olhar. Fá-lo quando
recorda que em 1962, no primeiro contacto com a comunidade, as mulheres do
Soajo a olhavam com uma mescla de comiseração e de curiosidade perplexa,
parecendo-lhes inacreditável que alguém se pudesse interessar por aquela aldeia
e seu modo de vida: Vossemecê gosta disso? É muito feio, era o que então lhe
diziam. Porém, trinta anos depois, quando retorna à povoação, depara com outro
tom e outras certezas: Gosta do Soajo? É muito bonito (p. 273). Nas três
décadas que medeiam estas duas representações da comunidade pelos seus nativos,
sucederam mudanças de diferente natureza, mas se procurarmos o factor
fundamental dessa mudança podemos seguramente dizer que ele se encontra nas
relações da aldeia com o exterior. No seu texto, a autora enfatiza a
importância da emigração, que surge como consequência da transformação social,
mas também como agente polarizador dessa mudança. A mobilidade da população é
pois o factor central do processo. É essa mobilidade que altera o padrão
demográfico, do mesmo modo que põe em causa a estratificação social e que
transporta novas ideias e valores que permitem ver o mundo com outros olhos.
O panorama de Santa Margarida da Serra, aldeia estudada por Manuela Raminhos,
não é substancialmente diferente. Também aqui a emigração fez o seu percurso,
muito embora a ausência de uma relação de posse com a terra tenha, em muitos
casos, desincentivado o regresso. O que torna mais estimulante o confronto
deste contexto com o Soajo é, todavia, o modo específico como cada uma das
comunidades reencontrou um novo ponto de equilíbrio. Importa notar que não se
fala aqui de equilíbrio num sentido homeostático, mas apenas enquanto
conciliação entre o (re)conhecido e o novo. No caso estudado por Manuela
Raminhos, essa conciliação passa pela atribuição de um lugar social definido
para os imigrantes que nas últimas décadas procuraram a aldeia. A um primeiro
olhar é justamente a ausência de lugar social aquilo que mais releva, até
porque os neo-rurais, provenientes de países distantes, são vistos como os
outros que não são dos nossos (p. 79). Porém, um olhar mais atento revela um
jogo de equilíbrios que refunda a ordem social: os estrangeiros ocuparam,
simbolicamente, na estrutura social, o lugar deixado vago pelos assalariados
rurais (p. 85). Os recém-chegados, ao tomar conta dos montes que outrora foram
ocupados pelos assalariados rurais, permitem recriar a relação tradicional
entre os que cedem terras e casas e os que as tomam de empréstimo (p. 91). Se a
chegada de estrangeiros, vindos de países ricos, transportando consigo
concepções do mundo consideradas localmente como estranhas, poderia constituir
uma ameaça à visão do mundo local, o que acaba por se verificar é a ductilidade
de um padrão que se revela capaz de se reajustar a uma nova realidade. Muito
embora provenham de países ricos e desenvolvidos, é de subalternidade o lugar
que lhe é reservado: distantes da alma portuguesa, é fácil acusarem-nos de
serem uns mal encarados, de não terem certos cuidados com o corpo, e de terem
comportamentos feios (p. 93). Voltando à questão do reequilíbrio, é importante
sublinhar como se recorre ao passado, isto é, a uma representação e a uma
memória colectiva do antigamente', para se recompor o presente.
No Soajo a recomposição simbólica da comunidade faz-se de uma forma diferente.
É necessário começar por perceber o diferente peso do vector património
relativamente a cada um dos contextos. Diferença que se manifesta a dois
níveis. Por um lado, pela forte relação da população soajeira com a terra, que
não só favorece o regresso, como, durante muito tempo, quase excluiu as
mulheres da emigração, já que a elas competia garantir a continuidade da
comunidade. Mas a noção de património revela-se também importante a um outro
nível. Trata-se do modo como o forte sentido identitário dos soajeiros, assente
numa convicção de singularidade (p. 16), se revitaliza através de algo que
podemos designar por invenção do património: uma ideia nova começa a abrir
caminho entre os soajeiros, largamente orquestrada pela Junta e a Assembleia de
Freguesia: a da existência de um património local a preservar, se se quer
aplicar numa política de desenvolvimento do turismo rural (p. 217). Segundo a
autora, esta consciência do património decorre da elevação do nível de vida, da
circulação de homens e ideias, da entrada de Portugal na Comunidade Europeia,
da deminuição do isolamento da aldeia e ainda do desenvolvimento do turismo
rural (p. 247). O que importa aqui sublinhar, para dessa forma traçar um
paralelismo com o que foi referido a propósito de Santa Margarida da Serra, é
que, no caso do Soajo, é a consciencialização do património que constitui o
instrumento que permitiu recompor a identidade soajeira num momento em que ela
parecia diluir-se. A conclusão de Callier-Boisvert é, neste aspecto, bem
elucidativa: o estudo da sociedade soajeira durante um longo período permitiu
pôr em evidência a sua resiliência, quer dizer a sua capacidade de manter a sua
coesão através da mudança (p. 279).
A situação da aldeia da Luz é muito particular. Não estamos aqui perante um
tempo longo, aquele que parece afinar-se com a dinâmica quase invisível da
memória colectiva, mas perante uma mudança brusca e induzida de fora para
dentro da comunidade. Vejamos como Clara Saraiva coloca a questão: Neste
período conturbado, a memória colectiva da Luz foi sendo construída aliando as
noções de um tempo e espaço suspensos: a partir daí, esses elementos foram
medidos através do marco que constitui a mudança da aldeia ' o tempo e o espaço
na velha aldeia e o seu contraponto, o tempo na nova aldeia. O tempo na velha
aldeia passou após a sua destruição a corporizar um tempo mítico (p. 157). O
binómio antes/agora encontra, neste caso concreto, uma baliza singular, cuja
proximidade ao presente é reveladora da dimensão mitificadora que o estrutura.
De facto, diz-nos a autora, o tempo anterior à construção da barragem começa a
ser visto como um período mítico em que todos se davam bem, por contraponto ao
tempo de discórdia que o processo de construção teria gerado (p. 324). Apesar
do diferente ritmo da mudança que viveu a aldeia da Luz face aos outros
contextos que referimos, também em relação a ela os sinais de modernidade vêm
acompanhados da ameaça de diluição da própria ideia de comunidade. À semelhança
de Santa Margarida da Serra, também na Luz é clara a demarcação entre os que
pertencem à comunidade e os que lhe são estranhos. Esta sinalização inequívoca
permitiu, até um certo momento, a união das pessoas frente a um inimigo comum
(p. 213), mas com o decorrer do processo de construção da nova aldeia as
fracturas internas, decorrentes da estratificação social, acabaram por marcar
as relações entre os luzenses. O reencontro de um ponto de equilíbrio é, neste
caso, mais ambíguo, sendo necessária, provavelmente, uma avaliação a mais longo
prazo. Todavia, vale a pena referir dois aspectos, que, apesar de terem
natureza diferente, parecem convergir enquanto factores de recomposição
comunitária. Desde logo a inauguração do Museu da Luz que, nas palavras de
Benjamim Pereira, pode ajudar as pessoas a reencontrarem a sua identidade
perdida nas águas do Alqueva, não apenas como memória do passado recente, mas
também como instituição virada para o futuro (p. 314). O outro aspecto é de
natureza diferente, mas vai no mesmo sentido da procura de um denominador comum
que possa conciliar a comunidade no pós-Alqueva. Trata-se da afirmação e
promoção da ideia de que a aldeia se sacrificou para bem do país, dessa forma
se congregando os seus habitantes em torno de um duplo estatuto, o de vítimas e
o de heróis (p. 319).
Evidentemente que uma questão tão vasta como a mudança social tem vários pontos
de abordagem, que permitem criar pontes e espaços de diálogo entre os três
textos aqui abordados. Esta não é a ocasião para um itinerário exaustivo, mas
há um aspecto que tem uma centralidade muito particular nestas obras e, por
extensão, no país que elas retratam. Trata-se das modificações sofridas no
mundo rural e que, pese embora a diferença de contextos e também de intenções
de cada obra, se expressa em todas elas. Em Soajo, entre Migrações e Memória,
são essas modificações que estruturam todo o confronto entre o antes e o agora.
A autora fá-lo tanto de uma forma subtil, convocando temas aparentemente tão
laterais como a transformação do calendário matrimonial (pp. 103 e seguintes)
ou a evolução da taxa de ilegitimidade (pp. 79 e seguintes), como de uma forma
mais incisiva, revelando a estrutura social e suas modificações e
consequências. Para Callier-Boisvert a emigração colocou nas mãos das mulheres
o encargo de manter a organização da comunidade (p. 23). Este foi, de resto, um
aspecto que desde logo a impressionou no primeiro contacto: no dia-a-dia
daquelas mulheres pouco lugar havia para as tarefas tipicamente femininas,
sendo as actividades principais as de substituição (p. 42). A ausência dos
homens, além das inevitáveis consequências demográficas, repercutiu-se também
ao nível dos mecanismos de reprodução social: uma grande parte dos
conhecimentos adquiridos na infância, nomeadamente o saber topográfico e
toponímico, não se transmite directamente de uma geração a outra (...) o mesmo
não acontece com a transmissão de conhecimentos por via feminina, pois que não
existe a mesma ruptura entre as gerações provocada pela emigração (p. 224). O
que a autora constata, já em finais dos anos 80, é que a agricultura se
encontrava nas mãos de mulheres que tinham entre 40 e 70 anos, por vezes mais,
não estando assegurada a substituição geracional (p. 68). Sendo o Soajo uma
dessas aldeias comunitárias-modelos (p. 21) com que a etnologia tantas vezes
se fascinou e iludiu, é relevante para a autora mostrar como o modelo de
entreajuda reagiu à mudança: para uma população envelhecida, menos resistente
à fadiga, a entreajuda torna-se um constrangimento cada vez mais pesado (p.
202). A única solução, afirma, é cessar a actividade e sair do sistema, mas
isso significa uma espécie de morte social. Esta sensibilidade aos factores de
mudança e suas consequências permite uma panorâmica geral e muito profunda do
processo, que vai da percepção das transformações na paisagem, decorrentes do
abandono dos campos ou da modificação da relação casa/terras (p. 68), até à
consideração do modo como os factores de estratificação social, por exemplo a
alfabetização, se alteram com a emigração e consequente falta de mão-de-obra
disponível (p. 43).
Nas outras duas obras a modificação do mundo rural está igualmente presente,
mesmo não tendo um papel tão fortemente estruturador no trabalho. O sentido dos
fluxos migratórios surge, em Fronteiras da Identidade, como o indicador mais
evidente das dinâmicas sociais. Se nos anos 50 Santa Margarida da Serra recebia
assalariados rurais que ali procuravam trabalho, nos anos 60 a corrente
inverte-se, assistindo-se a uma forte saída de margaridos. São vários os
factores que explicam esta inversão, mas, para o que aqui nos ocupa, importa
atender, fundamentalmente, às consequências. Na verdade, é o abandono das
terras menos produtivas, aquelas que exigiam uma mão-de-obra mais intensiva,
bem como uma forte quebra demográfica, que explica uma nova inversão dos fluxos
migratórios nos anos 80: Há 50 anos chegavam portugueses para trabalhar, agora
chega gente de todo o lado para descansar e o pior é que têm dinheiro para
comprar tudo' (p. 3). Diz-nos Manuela Raminhos que a estrutura social local
era marcada, há 50 anos atrás, por viver no monte ou na vila e que essa
diferença, decorrente da relação com a propriedade, se foi esbatendo em
consequência da emigração. São esses montes abandonados, e estigmatizados pela
memória da forte dicotomia social, que se tornam atractivos para os neo-rurais,
abrindo à comunidade um novo campo de leitura simbólica da estrutura social: É
a presença deste grupo, que não trabalha, que irá permitir à comunidade
anfitriã a construção da diferença: nós, os margaridos; eles, os estrangeiros
(p. 91).
Em Luz e Água a questão das modificações do mundo rural é revelada a partir de
uma espécie de reconstituição do passado a partir da memória colectiva (e.g.
pp. 53 e seguintes). A preocupação da autora vai, naturalmente, para essa
mudança mais contida no tempo, que é a da transferência da aldeia. Em todo o
caso, a demografia é suficiente para perceber que a aldeia da Luz passa por um
processo evidente de desagregação ' os 704 habitantes de 1960 ficam reduzidos a
cerca de metade em 2001. Mas talvez mais importante que reiterar aqui os
factores e as consequências deste êxodo, seja convocar um aspecto muito
específico, mas que nos parece relevante na compreensão do modo como a
modernidade se manifesta e interage com a vontade de conservação. Trata-se da
procura de um difícil equilíbrio, questão que tem enorme importância no
processo que Clara Saraiva analisa: As pessoas da aldeia viram-se apanhadas
num mundo de globalização e profunda mudança em que se cruzaram perspectivas e
sentimentos diferentes. Por um lado eles recusavam o tempo antigo e todos os
símbolos que remetiam para esse tempo ( ). No entanto as pessoas queriam the
best of two worlds e invocam o seu modo de vida rural para reivindicarem
cozinhas de lume com áreas maiores que lhes permitissem continuar a tradição da
matança do porco, da preparação das carnes e do fumeiro (p. 217). Existe,
pois, uma leitura específica da modernidade que sugere a sua incompatibilidade
com um conjunto de práticas vistas como arcaicas e de algum modo poluentes,
como é o caso da matança do porco. Esta questão é tão mais relevante quanto
nela se manifestam as diferenças sociais da comunidade. De facto, as pessoas
mais abastadas, muito embora preferissem também a modernidade, manipulavam-na
de forma a conservar o seu estatuto social (p. 217). O caso muito particular da
aldeia da Luz parece conduzir a uma polarização de indicadores de mudança, que
num contexto diferente, de mudança contida e não tão acelerada, se revelariam,
provavelmente, mais discretos. Um desses sinais é a revitalização da tradição,
expressa, por exemplo, na recuperação do jogo do cântaro (p. 128). Outro sinal
é o protagonismo assumido pelas mulheres luzenses no quadro das negociações
para a construção da nova aldeia. Para Clara Saraiva esse protagonismo não
ficou a dever-se apenas ao facto de as mulheres estarem mais presentes na
povoação, pois, para lá disso, as mulheres conseguiram também alterar a sua
condição num mundo marcado pela hegemonia masculina e fazer valer o seu papel
na família e no todo social (p. 198). Na Luz, do mesmo modo que no Soajo,
assiste-se a uma divergência entre o discurso, que vinca a manutenção dos
lugares sociais, e a prática quotidiana, que abre espaços de participação
feminina num processo mais amplo de mudança social. Mais importante que
classificarmos esse processo, tal como outros de que aqui procurámos dar conta,
na modernidade, é perceber as dinâmicas complexas que o atravessam. Nelas,
conservação e mudança não são simples antónimos, mas termos que interagem na
definição do quotidiano, demarcando um território fecundo de reflexão
etnográfica.
Luís Cunha
Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho