The Moralization of Tourism. Sun, Sand and Saving the World
Jim Butcher
The Moralization of Tourism.
Sun, Sand and Saving the World
Londres e Nova Iorque, Routledge, Coll. Contemporary Geographies of Leisure,
Tourism and Mobility, 2003.
Este é um livro virulento contra a alegada moralização contemporânea do
turismo. (Do autor é apenas dito que lecciona no University College da
Canterbury Christ Church em Kent, ficamos sem saber que disciplina, mas, pelo
que se segue, não é decididamente antropologia). Na introdução escamoteia-se o
facto de a argumentação não ser sustentada pelo being there»com a clássica
citação nothing human is foreign to me. É fácil esperar que se siga o desfiar
do velho rosário contra o relativismo cultural que, como aqui se sustenta, está
na base do novo turismo moral que impede os turistas de gozarem
descontraidamente o seu tempo de lazer sem experimentarem sentimentos de culpa
induzidos, em grande parte, pelos antropólogos. Na verdade, a antropologia
aparece aqui como fazendo parte desse complot ou agenda empenhada em estragar o
gozo dos turistas de massa ' transformando-o numa missão ' e impedir o
desenvolvimento das populações visitadas (Butcher problematiza a noção de
desenvolvimento sustentado, mas não a de desenvolvimento). Esta é a leitura
irritada que se pode fazer da obra. Mas esqueçamos, por um momento, as críticas
a que já nos vimos habituando e a visão fragmentada e distorcida da
antropologia para reter algumas questões que, apesar de tudo, merecem atenção.
Do ponto de vista formal a obra é eficaz, com capítulos emoldurados por uma
introdução e uma conclusão que explicitam e retomam argumentos que se reforçam
e demasiadas vezes se repetem, criando a ilusão de que são óbvios. No primeiro
define--se o que é o novo turismo moral (NTM) e resume-se a argumentação
transversal dos seguintes. Logo aqui se evidencia a fragilidade do livro que
adere, ingenuamente, à própria categorização que critica: o NTM assume aqui a
reificação e essencialização de todas as formas críticas ao turismo de massa
(contra o qual se define), sem ter em conta as formas e motivações
diversificadas que lhes possam presidir. O maniqueísmo cria as suas próprias
armadilhas. No segundo capítulo, a principal alegação é a de que, embora a
massificação do turismo tenha sido desde sempre sujeita a críticas ' a resenha
histórica é breve mas interessante, repescando-se as críticas a Thomas Cook e
reforçando-se os argumentos das suas respostas, enfatizando-se a justiça social
da democratização progressiva do lazer ' hoje ele é sujeito a uma moralização
que o desvirtua, colocando todas as suas formas (mesmo as mais insuspeitas como
o ecoturismo, ou o turismo de gap year) sob escrutínio. Logo aqui Butcher
fornece uma pista importante para a multiplicação das novas formas de turismo:
de facto, as franjas alternativas e críticas ao turismo de massas sempre
existiram, mas só agora elas são comercializadas. Na verdade, muito se explica
pela segmentação dos mercados à qual responde, também, a lógica contemporânea
do mercado turístico. Esse ponto é, no entanto, negligenciado por Butcher em
favor do argumento de um princípio quase conspirativo ' de correcção política '
do NTM.
No terceiro capítulo, talvez o mais interessante, explora-se a ideia de
fragilidade, e sua capacidade atractiva, dos destinos turísticos preferenciais
do NTM. No quarto critica-se o pressuposto da liberdade pessoal associada às
formas contemporâneas de turismo moral. No quinto desconstrói-se a noção de
cultura que lhe é, alegadamente, inerente. No sexto denuncia-se a camuflagem
das diferenças sociais e económicas pela obcessão pelas diferenças culturais;
e no sétimo responsabiliza-se o cinismo de um altruísmo de classe média pelo
bloqueio à economia transformativa.
Ao apresentar-se o novo turismo moral como categoria reificada e essencialista
é fácil comparar o discurso e postura dos seus paladinos elitistas à antipatia
ecuménica pelo turismo propalada pela Igreja ou por Franco (e, embora Salazar
não venha mencionado, o desconcerto britânico snob face ao avassalamento
turístico do Algarve é registado na página 25). Daí à associação das noções
preservacionistas da cultura (como culturas) que se acusam no NTM com o
Romantismo, e mais acutilantemente com o doutrinas racistas de Gobineau e Knox
(p. 91), vai um passo, e todas as preocupações ecológicas, ambientalistas e com
o respeito pela diferença cultural podem, então, impunemente passar a ter-se
como reaccionárias. Butcher decididamente desconhece toda a discussão
antropológica referente à cultura apesar do aparato que assumiu a partir dos
anos 80.
É verdade que muitas das abordagens críticas ao turismo de massa ' logo, para
Butcher, automaticamente do NTM ' tomam a mudança como uma variável exógena em
relação à cultura, mas já muitos antropólogos o denunciaram (como Eriksen '
para citar apenas um ' ao referir-se à concepção de cultura da UNESCO).[1]
É também verdade que essa prevalência tem afectado a linguagem sociológica do
turismo e os indicadores maltusianos de capacidade de carga acentuam, como
diz o autor, a ideia de fragilidade e o impulso de salvação inerentes às novas
formas e retóricas do turismo mas, definitivamente, não implícitas à
antropologia que, ao contrário do que Butcher aqui faz, se preocupa em dar a
voz todos os intervenientes nos processos culturais e, consequentemente,
também, às populações visitadas. Se Butcher ouvisse essas vozes de certo
entenderia que, embora, como ele diz (seguindo muitos antropólogos) as
diferenças culturais e a fragilidade ambiental sirvam frequentemente para
camuflar outras diferenças (económicas, sociais e políticas), elas não devem,
nem podem, ser violadas e desbaratadas sobretudo quando são tidas, pelas
próprias populações envolvidas, como um recurso (muitas vezes um dos poucos
recursos) que permite mitigar essas diferenças.
Na realidade, a argumentação de Butcher repete, em muitos pontos, alguns textos
da antropologia do turismo, mesmo quando se dedica a criticar as posições de
alguns cientistas sociais que vêem no turismo uma forma de neocolonialismo
(Nash, Ash e Turner, aos quais podíamos ainda somar, sem medo, outros como
Young, de Kadt, Mathieson e Wall, e Cazes). A essas e outras críticas (como as
que Butcher faz também a Graburn e a MacCannell), Malcom Crick, por exemplo, já
respondeu de forma bem mais eloquente, num texto célebre de 1989
[2]
(que, sintomaticamente, Butcher não cita), deixando, para mim, fechada a
discussão: resumindo Crick, o turismo não pode ser visto como um bode
expiatório por parte dos cientistas sociais e isso implica: a) abandonar as
visões românticas de preservação cultural como valor absoluto e imperialista de
emocionalismo rousseauniano; b) entender a mudança provocada pelo turismo no
quadro das mudanças sociais, culturais e económicas mais vastas; c) entender as
mudanças e impactos em termos locais e contextualizados, fazendo interferir
outros factores de dependência para além do turismo; d) atentar na focagem de
outras relações potenciais de conflito e dependência internas, atomizando a
dicotomia ocidente / terceiro mundo; e) reconhecer as participações locais
nos processos turísticos; f) atentar nas mudanças culturais decorrentes dos
processos turísticos nos dois sentidos; g) inserindo as análises relativas ao
turismo internacional no quadro global do turismo (local e regional); h)
comparando diferentes formas de turismo ao longo do tempo e em diferentes
contextos; i) relativizando as críticas à autenticidade encenada porque, em
última análise toda a cultura pode ser encenada; j) relativizando, também as
críticas ao caracter predatório e destruidor do turismo por forma a não
negligenciar o seu potencial concomitante na preservação natural e cultural,
viabilização económica e activação social. Tudo isto, se não era já óbvio para
os antropólogos, ficou claro e escrito por Crick nos finais de 80.
O livro de Butcher tem, pelo menos, esse efeito positivo (embora, para sermos
justos, lhe reconheçamos mais alguns, como o de enunciar traços distintivos de
alguns turistas e cooperantes que outros textos, ainda mais cáusticos, se
limitam a designar como Third World groupies): o de devolver aos antropólogos a
distorção da sua própria imagem, que talvez tenhamos que nos empenhar, de forma
mais veemente, em contrariar. Não por brio ou corporativismo, mas para
contribuir de forma mais efectiva para um debate mais sustentado relativo aos
processos turísticos contemporâneos. Para isso, e respondendo a mais algumas
críticas de Butcher, talvez seja importante que a Antropologia do Turismo se
empenhe mais na divulgação das densas etnografias que tem vindo a produzir, não
apenas em sítios de turismo alternativo, mas também em contextos de turismo de
massa; talvez seja igualmente importante alargar ao máximo a vocação
cosmopolita da Antropologia para contrariar uma certa miopia residual que
continua a privilegiar muitas vezes a lupa mais culturalista para os destinos
turísticos exóticos do «terceiro mundo», guardando lente mais sociológica para
os destinos ocidentais. A sobreposição de lentes permite, em todos os
contextos, uma melhor focagem.
Em todo o caso, algumas emanações da obra de Butcher merecem, decididamente,
ser controladas: nem os antropólogos podem ser confundidos com Sheldrake ' o
personagem literário de David Lodge em Férias no Paraíso; nem todos os turistas
preocupados com a diferença cultural ou com o meio ambiente são cínicos e
egoístas; nem, infelizmente, o turismo de massa pode alargar a todos
(visitantes e visitados) o direito de fazer turismo, que mais não fosse porque
' e isso, sim, é cinismo ignorar ' muitas rotas turísticas continuam a ser
politicamente transitáveis apenas num dos seus sentidos.
Maria Cardeira da Silva
Antropóloga, Departamento de Antropologia, FCSH-UNL.
[1]
ERIKSEN, T. H., 2001. Between universalism and relativism: a critique of the
UNESCO concept of culture, in COWAN, J. K., M.-B. Dembour, e R. A. Wilson
(eds.), Culture [continua] and Rights. Anthropological Perspectives. Cambridge,
Cambridge University Press, pp. 127-149.
[2]
CRICK, Malcolm, 1989, Representations of international tourism in the social
sciences: sun, sex, sights, savings, and servility. Ann. Rev. Anthropology,
18, pp. 307-44.