Stultifera Navis: La locura, el poder y la ciudad
Josep Maria Comelles
Stultifera Navis - La locura, el poder y la ciudad
Lleida, Editorial Milenio, 2006, 407 páginas.
Josep Maria Comelles, um autor de referência da antropologia médica, licenciou-
se em medicina, na especialidade de psiquiatria, e foi médico residente no
Instituto Mental de Santa Creu de Barcelona entre 1973 e 1976. Durante esse
período descobriu a Antropologia social, encantou-se com o exotismo das
narrativas dos antropólogos clássicos e meteu-se a caminho dessa disciplina,
enquanto exercia psiquiatria, tendo concluído a licenciatura na Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Barcelona e o doutoramento na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, em 1979 (a tese era sobre o manicómio
barcelonês). De regresso à Catalunha, em Barcelona, em 1981, defendeu outra
tese sobre políticas públicas de saúde mental em Espanha.
O trabalho de campo da investigação de que resulta a obra em referência
decorreu entre 1973 e 1980, combinando observação participante, entrevistas a
trabalhadores do Hospital e recurso ao arquivo histórico da instituição. A
investigação foi retomada em 2001, intensificando o trabalho de arquivo e
recorrendo, de forma mais moderada, aos outros dois instrumentos de pesquisa.
O resultado é este livro, onde a história de uma instituição ' desde a sua
fundação como hospital em 1401 e como manicómio em 28 de Dezembro de 1889 (o
dia dos santos inocentes, como é designado pela tradição católica, ou dos
loucos, segundo a designação popular) até ao seu encerramento (em 1986) ' se
cruza com as histórias de Barcelona, da Catalunha, de Espanha e do mundo
europeu do século XX, que afectam e determinam a lógica organizativa dessa
instituição. O autor toma Barcelona como um bom exemplo da glocalização e faz
a experimentação de uma história total (p. 381). Comelles segue o caminho
aberto pela arqueologia foucaultiana (Histoire de la Folie à L'Âge Classique,
1961; Naissance de la Clinique. Une Archéologie du Regard Médical, 1963; Les
Mots et les Choses.Une Archéologie des Sciences Humaines, 1966) e o seu texto
remete para a encenação de uma ópera, estilizando acontecimentos e elementos
cenográficos, na esteira de Taussig (Shamanism, Colonialism and the Wild Man,
1987) e Scheper-Hughes (Death Without Weeping.The Violence of Everiday Life in
Brazil, 1992). No entanto, nem a situação política da Catalunha remetia para o
Estado centralizado de que fala Foucault, nem a encenação de Taussig e de
Scheper--Hughes implica o envolvimento afectivo e a descrição intimista e
cúmplice que usa Comelles quando examina as várias fases pelas quais passou o
manicómio, convoca a memória do seu tempo de trabalho na instituição e avalia o
seu envolvimento com a profissão e as expectativas que desenvolveu em relação a
ela.
Desde o início da obra que o leitor é instado a compreender a singularidade do
confronto de culturas políticas distintas, a da Catalunha e a do Estado
espanhol, em múltiplas lutas que se desenrolaram em diferentes momentos
históricos. As relações de hegemonia e subalternidade entre classes e estratos
tornam-se mais complexas pela determinação do mercantilismo e do capitalismo,
os quais vão complicar ainda mais a construção de uma sociabilidade colectiva,
segundo o autor (p. 50), que considera igualmente indispensável, para entender
a loucura e a sua relação com a cidade, perceber como se vai tecendo a teia que
liga a Igreja, a classe dirigente, a instituição e a cidadania (p. 57).
Na obra, Comelles revela as regras de funcionamento do sistema de saúde e o
modo como orientam a prática assistencial, desfia a história de Barcelona e dos
choques entre os desideratos políticos da Catalunha e a lógica centralista e
autoritária do conservadorismo nacionalista, e faz o enquadramento destes
conflitos no concerto europeu de forças e violências abrangentes que fazem da
vida dos indivíduos envolvidos na instituição em estudo um grão de areia ínfimo
numa imensa praia de interesses económicos e políticos, nacionais e
internacionais.
O autor demonstra (através da análise de um conjunto impressionante de
documentos que coligiu) como não faz parte dos objectivos dos dirigentes da
instituição e do pessoal que assistia os doentes (constituído, inicialmente,
por elementos integrantes de ordens religiosas e, posteriormente, por agentes
de saúde legitimados pela biomedicina) a intenção de curar os internados na
instituição. Segundo Comelles, a conduta dos doentes fundamentava o
encerramento e a psicopatologia justificava-o e racionalizava-o, atribuindo
autoridade ao psiquiatra e ao psicólogo e permitindo a justificação médica de
formas de violência e de arbitrariedade terapêutica (p. 278; esta e as
seguintes traduções são minhas). A lógica capitalista formata a
profissionalização da função assistencial e a organização institucional: a
rentabilidade torna-se fundamental no modo como os directores encaram a
instituição e os seus valores patrimoniais, imóveis e outros. A especulação
imobiliária e a rentabilização dos terrenos institucionais tomam a dianteira
nas preocupações dos dirigentes da instituição e, como diz Comelles, torna-se
claro que o louco serve para justificar decisões políticas e resolver
conflitos de interesses (p. 366).
A individualidade dos internados é, por sua vez, limitada pelo estatuto de
doente, o indivíduo internado reduz-se aos olhos dos que o cuidam, à doença que
o acomete e, se o seu estado de saúde o permite, às funções que lhe estão
atribuídas na instituição. Trabalhadores e internados estão presos por uma
lógica organizacional que os confina dentro dos limites das paredes da
instituição, intransponíveis desde dentro para fora, mas extremamente
permeáveis às mudanças que se vão verificando na sociedade alargada. A
filosofia, a organização e os quadros directivos da instituição vão mudando de
acordo com os interesses económicos de uma cidade que vai crescendo e com a
valorização imobiliária dos terrenos do hospital.
A história total tecida por Comelles é ilustrada por 135 fotografias. Esses
documentos transportam-nos a outras épocas e a lugares inesperados, introduzem-
nos em salas e corredores, pátios e arcadas, campos e caminhos, apresentam-nos
gravuras, mapas e esboços, confrontam-nos com olhares perturbadores, situam-nos
em cenários da guerra civil espanhola, levam-nos, pela mão do olhar do autor, a
cheirar e a sentir os húmidos ambientes onde a luz e a penumbra jogam às
escondidas com o nosso olhar, ocultando e revelando seres, intenções, recantos,
destapando a carne e a alma do humano tornado próximo pela câmara. Lançados
para cenários desoladores, somos obrigados a ser mais do que meros e protegidos
observadores.
A escrita de Comelles faz isso e mais, porque, quando não revela, sugere,
questiona e provoca. Os sonhos de mudança do autor, em plena ditadura
franquista, fundamentavam-se em actividades libertadoras (entre as quais se
destacam a dedicação ao cinema e à literatura, referências constantes ao longo
do texto) e o confronto com a realidade de pedra do manicómio (menos dura no
contacto do que as mentalidades da maioria dos directores e dos médicos do
hospital), só poderia produzir dor e desilusão. Vão neste sentido as afirmações
do autor de que toda a revolução necessita um projecto que encante, não só uma
reivindicação burocratizada (p. 289) e que o discurso é um instrumento que
permite viver de outro modo a realidade (p. 290).
A força e a originalidade da obra de Comelles residem no facto de ela cruzar
métodos e temas da antropologia e da história, constituir, simultaneamente, um
acerto de contas com a realidade e as expectativas de mudança e um exercício de
memória compartilhado com o leitor, e, finalmente, revelar uma sólida reflexão
sobre o poder, a loucura e, sobretudo, a loucura do poder.
Luís Silva Pereira
Antropólogo, prof. associado no Instituto Superior de Psicologia Aplicada