Dança Teatral - Ideias, Experiências, Acções
Maria José Fazenda
Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções
Oeiras, Celta, 2007, 202 páginas.
O Livro de Maria José Fazenda, Dança Teatral ' Ideias, Experiências, Acções,
resulta de um trabalho de investigação desenvolvido no âmbito da sua
dissertação de doutoramento, o que constitui um primeiro atributo positivo
desta obra. Sabemos que, muitas vezes, é com suspeita que se recebem este tipo
de livros. Tal se deve, com certeza, à pouca expectativa que entre nós geram as
teses de doutoramento e outras, seja porque os temas da academia ' nas ciências
sociais ' pouca pertinência costumam ter em relação à realidade da criação e
produção artísticas contemporâneas, seja pelo jargão académico, mais conforme
às penumbras das salas sombrias das universidades, seja ainda pela menos-valia
do seu conteúdo supostamente investigativo. Esta tese que agora aparece com o
título Dança Teatral ' Ideias, Experiências, Acções é a negação de tudo isto: a
sua linguagem é clara e precisa, a escrita é solar e o trabalho resulta de
facto de uma investigação com resultados.
Foquemo-nos um pouco mais nesta última característica para realçarmos a
importância que esta obra terá para a antropologia e para a dança. Na verdade,
a sua importância decorre do facto de estarmos perante uma prova, no sentido
filosófico e epistemológico que o termo encerra. Citemos, a este propósito,
uma obra de Fernando Gil, cujo título é Provas,eque, coincidentemente, resulta
de uma lição de filosofia onde sobre a natureza da prova. Diz o filósofo que
esta comporta uma vertente objectiva (os procedimentos de facto, por exemplo
os dispositivos experimentais) e uma vertente subjectiva (o grau do
assentimento, a crença' que aqueles procedimentos são susceptíveis de
provocar), a qual se desdobra em problemas próprios.[1] Ora, ao confrontarmos
o trabalho da Maria José Fazenda ao longo destas 202 páginas, é este guião da
prova que surge como um índice substantivo. A verdade objectiva está presente
no trabalho de investigação, experimentação de hipóteses e confronto com outras
teses, e a vertente subjectiva está presente na crença na dança teatral como
uma dança que é uma actividade, em que os principais intervenientes '
bailarinos e coreógrafos ' usam o corpo para estabelecer modelos de interacção
(domínio das vivências sociais) e dar visibilidade a ideias, a valores e a
símbolos (domínio das experiências culturais).[2]
Como acontece com qualquer prova, o seu enunciado final tem tendência a
constituir-se em enunciado com vista à conversão pela argumentação do maior
número de receptores, até atingir um auditório universal conforme as teses de
Chaïm Pereleman sobre retórica e argumentação. Simultâneamente, constitui-se
como um corpus cuja estabilidade o eleva à categoria de compêndio.
Dança Teatral ' Ideias, Experiências, Acções estabilizará para os próximos
tempos um conjunto de valores e de prerrogativas das quais eu gostaria de
destacar três. A primeira é a estabilização de um conjunto de conceitos
operatórios para o universo dos falantes da língua portuguesa, realizada a
partir do cruzamento da antropolgia com a terminologia e com a coreografia. Com
ela, podemos agora usar, sem inibição, conceitos como dança teatral, dança
social, dança ritual, peça, coreografia, projecto, ballet, performance,
dramaturgia, vocabulário e alguns outros mais. A estabilização epocal destes
conceitos é essencial para o ensino da dança, para a coreografia e para a
crítica e constitui-se como um dos grandes contributos desta obra. Um segundo
aspecto que destaco é o esclarecimento sem reservas da distinção entre a dança
teatral e a dança social, em que a primeira é um universo de representações
culturais explícitas e de auto--reflexividade e, a segunda, a dança social, é o
lugar em que as emoções, as identidades e os valores se actualizam e o sentido
da comunicação e de grupo se experienciam. Para quem distingue as práticas
culturais entre as que são de entretenimento e as que ' supostamente ' o não
são, Maria José Fazenda sustenta, a meu ver, que ambas podem entreter,
existindo uma inversão de hierarquia desta prioridade.
O terceiro aspecto, que decorre do privilégio de a autora conseguir reunir duas
dimensões da prática de dança ' foi professora de técnica de dança clássica,
bailarina e crítica e é há muito antropóloga ', tem a ver com a demonstração da
necessidade de recusar apenas a dimensão impressionista na recepção de um
qualquer espectáculo de dança teatral, porque esta é, enquanto prática
cultural, complexa, com códigos com práticas de incorporação, muito mais do que
um acto de um corpo ou corpos espontâneos ou agindo naturalmente.
A análise do percurso criativo de três coreógrafos exemplificativos da dança
teatral contemporânea ' Merce Cunningham, Bill T. Jones e Francisco Camacho '
ocupa uma parte substancial desta obra. Nela, a autora ousou sair do campo da
antropolgia para o da história da dança e o dos estudos culturais, resultando
numa avaliação multidisciplinar particularmente rica da explicitação das obras
destes coreógrafos. Num universo de centenas de nomes passíveis de serem
estudados e explicitados, a escolha destes três era um risco. Mas, exactamente
por causa da abordagem multidisciplinar, o resultado é uma história de três
coreógrafos de ruptura, fundamentais para se entender a relação da história da
dança com a história cultural ocidental do século XX. Porque não foi por
acaso, devemos enunciar brevemente os critérios que a autora escolheu para
seleccionar estes três coreógrafos: por serem criadores de gerações diferentes,
permitindo assim entender as rupturas, as influências, as transposições ' se as
havia ' de linguagens e de técnicas de uns para os outros; por terem concepções
diferentes da dança e dos processos criativos; e, finalmente, porque pelas suas
diferenças, estes três coreógrafos permitem à autora abordagens metodológicas
diversas, cada uma das quais adaptável ao objecto de estudo.
Sumarizando o estudo de Maria José Fazenda sobre estes três coreógrafos, na
leitura que deles faço, permito-me afirmar que o entendimento que fica para a
história da dança é o seguinte: Merce Cunningham actualiza a democracia formal
da dança, bem como as suas funções, ao desieraquizar os estatutos dos
bailarinos no interior da companhia, ao descentrar os lugares de representação
no palco, seguindo o preceito de Einstein de Não há pontos fixos no espaço,
ao utlizar para muitas obras a metodologia da escolha e da composição
aleatória, ou decorrente da interpretação dos hexagramas Hi Ching e,
finalmente, ao recorrer, de forma inovadora como metodologia, à parceria e à
ligação com outras artes ' música, vídeo, artes plásticas ' e outros criadores,
sobretudo, John Cage, Charles Atlas e Robert Rauchenberg. Na história da dança
que a autora realiza nesta obra, Merce Cunnigham aparece como o clássico
fundador, a rectaguarda da dança contemporânea ocidental do século XX. É justo
e prova-o.
Bill T. Jones, por sua vez, aparece nesta narrativa como o coreógrafo portador
da utopia social, provavelmente o último. Para estudar a obra deste criador
Maria José Fazenda envereda ' à boa maneira dos estudos culturais ' pelo
estudo da sua biografia. Uma biografia política e social, de um afro--americano
portador de HIV, abordando a sua relação com os textos da literatura negra, com
a história da escravatura e do movimento anti-esclavagista, sublinhando a
importância da emoção e do domínio do afectivo, explícitos nas suas criações.
Por último, estuda os textos de Jones, curtas narrativas, espécie de aforismos
que constituem a moldura deste investimento utópico para o mundo ' como ele
gostaria que fosse ' através da arte e, em particular, da dança. Vale, a este
propósito, citar um dos mais belos e pertinentes textos alguma vez escrito por
um coréografo sobre a utopia: Uma das coisas que agora mais me interessa é a
noção de nós'. O que é que significa ser uma pessoa que foi rebelde, que
algumas vezes também se sentiu insegura e zangada com a sociedade e que agora
tenta encontrar uma forma de afirmar um nós' que não é sentimental, que não é
fascista, mas que possa cruzar-se com aquilo que fazemos: poesia, beleza e,
também tristeza. [...] Talvez seja apenas nas artes que consigo realmente
encontrar a política que procuro: uma visão de poesia, mas que não é ligeira, é
tenaz, forte. É a isto que me refiro quando falo do nós'. Quase desisti de
pensar no mundo, mas agora voltei a agarrá-lo e procuro reflecti-lo tal como
gostaria de o ver.
[3]
Temos assim uma clara assunção política da arte da dança teatral, que permitiu
à autora convocar para os capítulos relacionados com este coreógrafo a moldura
social e artística da década de 1960, em Nova Iorque, e o trabalho pioneiro dos
bailarinos, coreógrafos e artistas relacionados com a Judson Church. Desta
maneira, a moldura ou, para ser antropolgicamente preciso, o contexto, permite
compreender a expressão de Maria José Fazenda quando afirma que, para Bill T.
Jones, a experiência da vida é o coração da própria arte e entendê-la na
sequência de uma explicitação do percurso criador do coreógrafo, afirmação
contrária a qualquer opinião sem argumentação a priori.
A investigação sobre o contexto reforça--se também no caso de estudo ' assim o
devemos chamar ' do coreógrafo português Francisco Camacho, o último
coreógrafo seleccionado pela autora de entre um conjunto de coreógrafos do
movimento criado no final da década de 80, a que se convencionou chamar nova
dança portuguesa. A sua escolha é justificada porque este coreógrafo
representa, por um lado, aquelas que são as características deste movimento '
ruptura com o Ballet Gulbenkian, ruptura com os modos de produção das
companhias de reportório, ruptura de linguagens, ruptura de técnicas de
formação ' e, por outro lado, é um coreógrafo-bailarino que descontrói, de um
modo mais intuitivo que programático, uma certa mitologia nacionalista
personificada em figuras da história de Portugal descritas geralmente através
de narrativas míticas. Para tratar e explicitar a origem da especificidade de
Francisco Camacho, a diferença das diferenças, para citar Boaventura de Sousa
Santos, a autora convoca todo o contexto da produção da dança em Portugal, os
agentes ' o ACARTE, o Expresso, o pioneirismo da Paula Massano ' e a sua
própria experiência como bailarina. Fá-lo utlizando duas das obras de
referência deste criador ' O Rei no Exílio (1991) e Nossa Senhora das Flores
(1992) ', concluindo que esta especificidade se traduz na forma de combinação e
recombinação como este autor cria o património legado de acordo com as suas
decisões e interesses, a sua história pessoal, a sua experiência e a
especificidade do contexto em que desenvolve o seu trabalho.
E assim se conclui esta prova com mérito e com credibilidade, por força da
inteligibilidade da demonstração feita. É desejável que o mesmo tipo de
investigação e demonstração se faça para a dança depois destes artistas.
António Pinto Ribeiro
[1]
Cf. Gil, Fernando ' Provas. Lisboa, INCM, 1986, p. 11.
[2]
Cf. Fazenda, Maria José ' Dança Teatral ' Ideias, Experiências, Acções.
Lisboa, Celta, 2007, p. 1.
[3]
Idem, p. 148.