Da arte popular às culturas populares híbridas
Da arte popular às culturas populares híbridas
[1]
João Leal
FCSH-UNL, CRIA
Gostaria e apresentar dois argumentos principais em defesa do Museu de Arte
Popular (MAP), que o presente governo, mal-avisado, decidiu encerrar. O
primeiro diz que, num quadro ' como o que caracteriza a contemporaneidade ' em
que tudo se tornou susceptível de patrimonialização, faz todo o sentido encarar
o MAP como um património que deve ser defendido ou, para ser mais específico,
como um museu que deve ser musealizado. O segundo argumento diz que, num quadro
' como o que caracteriza a contemporaneidade ' em que as culturas populares têm
vindo a ser reformatadas a partir de ideias como a hibridez e a criatividade,
faz todo o sentido dinamizar o MAP, fazendo dele uma plataforma de diálogo com
essas novas formas da cultura popular. O primeiro argumento extrapola para o
caso do MAP ideias sobre o património defendidas por historiadores como Pierre
Nora (1984) e David Lowenthal (1998). O segundo tira consequências de debates
sobre as culturas populares pós-modernas, protagonizados por antropólogos como
Nestor García Canclini (1998) ou David Guss (2000).
De acordo com o primeiro argumento, tudo hoje é património. A prova de que é
assim é dada justamente pela ideia em nome da qual se quer destruir o MAP: a
constituição de um Museu da Língua (e do Mar ). A ideia, como se sabe, não é
original. É importada do Brasil e faz parte das guerras culturais em curso
acerca da propriedade da língua portuguesa. Mas não é esse o ponto que eu
queria sublinhar. A simples ideia da criação de um Museu da Língua seria
impensável há duas décadas. E se hoje é aceite com naturalidade, é porque
aquilo que contemporaneamente se entende por património ganhou uma amplitude e
um eclectismo que possibilitam que tudo ' ou quase tudo ' seja visto como
património, ou para citar Pierre Nora (1984), que tudo ' ou quase tudo ' seja
visto como um lugar de memória. Segundo Marc Augé (2006), o mundo pós-moderno e
globalizado em que vivemos é um mundo assente na multiplicação de não-lugares.
Exactamente por isso ' em reacção a isso ', é também um mundo assente na
multiplicação de lugares de memória, de património, de kastom (como se diz no
pidgin English da Melanésia), de heritage (como se diz em inglês), de tradições
(inventadas ou não).
O MAP é, no caso português, um desses lugares de memória. Ele é, antes do mais,
o lugar de cristalização de uma tradi-ção de estudos, de coleccionismo e de
intervenção sobre a arte popular que nasce no final do século XIX com Joaquim
de -Vasconcelos, que se prolonga na I República com Vergílio -Correia, Luís
Chaves ou Leite de -Vasconcelos, e que culmina ' mas não termina ' no Estado
Novo com a actividade de António Ferro no SPN/SNI. Crítica, a esquerda
posicionou-se também nesta área, propondo ' por exemplo com Ernesto de Sousa '
uma arte popular alternativa, apoiada na chamada outsider art. Esta importância
-atribuída à arte popular não é especificamente portuguesa e nada tem de
provinciano: em toda a Europa, no mesmo período, era esse o espírito do tempo;
à direita e à esquerda. As artes populares eram vistas ' a par de elementos
mais prosai-cos como a bandeira e o hino ou de elementos mais sofisticados como
mitos de origem ou ideias de um passado comum ' como um dos aspectos
fundamentais do kit faça você mesmo que, segundo Orvar Löfgren (1989), é
requerido pelas identidades nacionais modernas. Ter uma arte popular ' mesmo
que tivesse de ser inventada ' era fundamental para que um país fosse admitido
no concerto das nações, como de resto mostram as Exposições Universais e o
relevo nelas concedido à arte popular. O MAP é um produto idiossincrático desse
estado de espírito, onde ser-se tradicional era uma pré-condição para se ser
moderno, como mostrou a pesquisa de Vera Alves (2007) sobre o SPN/SNI.
É desta articulação contraditória entre tradição, nacionalidade e modernidade
que nasce o MAP. Nele, o moderno e o tradicional misturam-se. O desenho do
edifício e os murais das diferentes salas são estilizações modernistas de
elementos populares. E, se os objectos que povoam as diferentes salas são
tradicionais ' embora não forçosamente autênticos ', o contexto em que eles são
reapresentados é moderno. Quanto ao objectivo último do todo que era o MAP ' a
nacionalização do gosto das classes médias ', não podia ser mais moderno, com
também mostrou a pesquisa de Vera Alves (2007).
Em condições normais, o MAP ' tal como existia antes de ser encerrado ' não
teria chegado até nós como chegou. Mas, por uma mistura ironicamente feliz de
incúria e de inércia, sobreviveu ao seu tempo e é hoje um testemunho ' raro na
Europa ' de um estado de espírito que, quer se goste quer não, participou da
formatação do gosto moderno pelo popular.
Nesse sentido ' regressando ao meu primeiro argumento ', o MAP é um lugar de
memória. Num tempo em que tudo é património, o MAP é património e deve ser
preservado. O que estou a sugerir é que o MAP deve continuar, mas como uma
espécie de metamuseu, ou, se se quiser, como um museu de si próprio. Isso
exigiria escolhas estratégicas ao nível museográfico. Talvez nem todas as salas
sejam para conservar, dada até a sua desigual valia: a sala do Minho é única no
seu valor decorativo e documental; já as salas sobre o Sul são menos
conseguidas. Sobre o que lá está teria de ser construído um percurso expositivo
que propusesse um olhar crítico sobre o museu, que o mostrasse como o resultado
cenográfico de um determinado olhar sobre as culturas populares. Mas,
independentemente dessas escolhas museográficas, o MAP deve continuar.
Ele é de resto uma peça essencial ao equilíbrio cénico desse outro lugar de
memória que é a Praça do Império, um lugar único em Portugal pela sua
capacidade para, num mesmo espaço, juntar tantas camadas contraditórias da
história e da cultura portuguesa: guerreiros lusitanos e um planetário; o
estilo manuelino e os Távoras; um jardim tropical e um museu de marinha; sonhos
desfeitos de grandeza imperial e paradas da Guarda Nacional Republicana;
turistas, famílias com crianças, arrumadores de carros e pescadores de domingo;
a adesão à União Europeia e a arte moderna; pastéis de nata e McDonald's. E o
Tejo. Sobretudo o Tejo.
Os modernos ' entre os quais os modernos do MAP ' concebiam os seus projectos
de emblematização das culturas populares a partir da categoria da
autenticidade: o povo era aquilo, aquilo era autêntico. Claro que o povo não
era necessariamente aquilo e claro que aquilo não era necessariamente
autêntico. Nesse sentido, o MAP é um híbrido: um lugar onde se misturavam
diversos tempos ' o tempo supostamente imóvel dos camponeses e o tempo moderno
da construção autoritária das nações ', diversos objectos ' objectos populares
genuínos, objectos populares encomendados, miniaturas, ampliações, murais de
artistas modernistas ', diversos grupos sociais ' o povo, etnógrafos estetas,
as classes médias.
Esta hibridez constitutiva do MAP funcionou durante muito tempo como um -
handicap para o museu, acusado de privilegiar a cenografia em detrimento da
exactidão etnográfica. Não deixa de ser verdade. Mas hoje sabemos que a
hibridez é a característica fundadora de qualquer discurso sobre o popular. O
popular é ' literalmente ' o produto do encontro de duas culturas: a cultura
que lá estava e que não sabia que era popular e a cultura de quem chega lá e a
nomeia como popular. No preciso momento em que qualquer objecto é -discursado
como popular ' no preciso momento em que alguém diz dele isto é popular ',
esse objecto viu serem somados novos significados aos seus significados
originais, tornou-se um objecto literalmente híbrido ao qual foi acres-centada,
para citar Barbara Kirshenblatt--Gimblett (1998), uma segunda vida, uma nova
carreira, novos públicos, novas funções, novas potencialidades.
Durante muito tempo essa capacidade de criar ' sem saber ' objectos híbridos a
partir das culturas populares foi um privilégio das elites letradas. Eram elas
que decidiam que objectos de arte popular ' um galo de Barcelos ou uma
escultura do Franklin ' mereciam figurar como objectos de colecção ou, pelo
contrário, como bibelôs de gosto duvidoso. Elas é que decidiam se a dança X era
verdadeiro folclore ou se pelo contrário a dança Y era um falso.
Mas a história da parte final do século XX é também a história da
democratização do popular. Essa história foi contada para a América Latina por
autores como García Canclini (1998) ou David Guss (2000). E é inseparável da
assunção ' pelos criadores populares ' da hibridez constitutiva do popular nos
termos em que García Canclini fala dela. Um popular vivido não já como
complacência melancólica para com as tradições, mas como um projecto criativo
em que os recursos tradicionais se misturam deliberadamente com novos formatos;
um popular em que a experimentação e a procura de novas soluções se tornou a
norma; um popular onde as velhas distinções entre tradicional e moderno,
popular e erudito ou arte e artesanato são postas de parte. Redefinidas desta
forma, as culturas populares passaram a integrar tanto projectos de
experimentação artística individual como propostas alternativas articuladas por
activistas comunitários que ' quando correm bem (e nem sempre correm bem ) '
operam como fonte de orgulho identitário e de prosperidade material para as
comunidades.
O espaço do MAP ' nascido ele próprio de uma concepção malgré soi híbrida da
cultura popular ' é também o espaço ideal para essas novas culturas populares.
Este é o meu segundo argumento: museu de si próprio, o MAP pode também tornar-
se uma plataforma contemporânea de diálogo com essas novas formas da cultura
popular. Sendo um lugar de memória, o MAP pode ser simultaneamente um lugar de
futuro. Não se trata só de musealizar parte do que lá está, trata-se de pôr fim
à total ausência de projecto que caracterizou este museu nas últimas décadas e
abri-lo aos novos discursos sobre o popular que caracterizam a
contemporaneidade. Através de exposições temporárias, da consolidação de
programas de trabalho com museus etnográficos locais e com outros activistas
culturais, através do lançamento de oficinas e iniciativas abertas à
experimentação com a matéria do popular, o MAP poderia tornar-se um lugar de
convergência e confronto entre discursos sobre e a partir das culturas
populares. A sua exposição de reabertura tanto poderia ser uma exposição de
cartazes, websites e tee-shirts de festas de padroeiro, como um best of do
novo artesanato criado à sombra dos programas do Instituto do Emprego e
Formação Profissional. Poder-se-ia pensar em montar uma exposição em torno dos
graffitiurbanos, que juntasse artistas portugueses e experiências
internacionais. E porque não pôr lado a lado António DaCosta ' e os seus
quadros sobre as Festas do Espírito Santo nos Açores ' e os vestidos
exuberantes das queens dos Holy Ghost Festivals da Califórnia? Porque não
propor a artistas e a artesãos instalações a partir de tal ou tal tema da
cultura popular? Porque não pensar num estado da art brut em Portugal e dos
seus diálogos com o imaginário popular?
A missão deste MAP visto como lugar de futuro seria em todo o caso libertar as
novas formas da cultura popular de visões assentes no preconceito, afirmando-as
como lugares de criatividade. Há ainda em Portugal uma solenidade na abordagem
do popular que tem dificultado a inovação e a experimentação. Mas isso só torna
mais necessária esta reorientação do MAP.
O Ministério da Cultura está já convertido ' UNESCO oblige ' aos méritos do
património imaterial. É pena que o Ministro da Cultura tenha ainda dificuldades
em entender que o património imaterial é tão-só a nova expressão '
politicamente correcta ' para designar algumas das múltiplas formas daquilo a
que costumamos chamar cultura popular. Quando o entender, voltará certamente
atrás na decisão de acabar com um museu ' o MAP ' que pode ser um ponto
nevrálgico na articulação das acções a desenvolver em Portugal em torno da
salvaguarda e da dinamização do património ' imaterial e material ' das
culturas populares.