Museu de Arte Popular: oportunidades perdidas, novas oportunidades
Museu de Arte Popular: oportunidades perdidas, novas oportunidades
Paulo Ferreira da Costa
CRIA
História e memória
O debate em curso (2006-2009) sobre o Museu de Arte Popular constitui-se
actualmente como um dos mais férteis terrenos para a reflexão sobre o
património etnológico, em particular para as áreas disciplinares nele mais
directamente implicadas ' a museologia e a antropologia. Não obstante as
diversas variantes até agora enunciadas, uma estratégia apresenta-se como
predominante, assim sintetizada no último boletim do ICOM: a da Reabertura do
MAP no seu lugar próprio, devidamente modernizado, mas respeitando a colecção e
o conceito original (n.º 5, Jun/Ago de 2009, p. 13).
Trata-se de uma estratégia de (re)valorização patrimonial assumidamente de
vocação historicista (fundada na história da arte, da arquitectura, do design,
da antropologia e do Estado Novo) e que privilegia o facto de o MAP ter
permanecido praticamente inalterado, desde a sua fundação, no que respeita ao
seu imóvel, ao seu património integrado e móvel, ao seu discurso e equipamento
museográfico primitivos, como reflexo de políticas e medidas de um determinado
período (histórico, político, cultural e científico). Sendo lugar de memória
bom para pensar e ensinar muitas coisas sobre aquele período e alguns dos seus
protagonistas e ideias, o MAP revela-se, pois, para utilizar a expressão de
João Leal, com vocação para museu de si próprio.
Sendo patrimonialmente válidos os argumentos que configuram esta estratégia, o
que considero particularmente interessante, para a reflexão suscitada por
aquele debate, é o plano secundário a que as colecções do MAP nele têm sido
remetidas, designadamente quando considerado que as colecções constituem a
razão primacial da existência de um museu e, como tal, o factor primordial em
função do qual se definem a sua missão e as estratégias de gestão daquelas.
Ora, neste debate, (quase) tudo se passa como se a restituição do MAP à sua
condição física original (ainda que paralelamente a outras componentes de
actuação) devesse ser feita apesar das colecções com que se articulou a missão
de que foi originalmente investido e que, até à criação do Museu Nacional de
Etnologia (MNE), em 1965, o afirmaram certamente como o mais proeminente museu
etnográfico em Portugal.
Precisamente por se tratar de um museu etnográfico, parecem-me constituir
particular matéria de reflexão muitos dos discursos sobre as suas colecções,
entre os quais os que persistem em classificá-las como arte popular, não
obstante a grande diversidade de tipologias materiais ali representadas, e
recorrendo a esse polissémico ainda fortemente eivado dos sentidos que lhe
imprimiu a etnografia ao tempo do SPN, como conceito genericamente aceite e
plenamente operatório no actual contexto científico. Paralelamente, é matéria
para reflexão o conjunto de dúvidas e certezas que desde há muito circulam
sobre a autenticidade dessas 13.000 peças e que, a par da escassa documentação
que as acompanha, por vezes se constituem como premissas para o seu
entendimento como objectos etnográficos menores e, acima de tudo, reforçam a
concepção de que no MAP tudo era discurso e ideologia do SPN. Parece-me que
esta perspectiva deverá ser interrogada sob um duplo prisma: por um lado,
considerando que o actual quadro de exigência ética, técnica e científica para
a constituição e documentação de colecções não poderá ser aplicado
retroactivamente no contexto do MAP, como aliás também não o pode no caso de
quaisquer outras colecções; por outro lado, tomando como pressuposto evidente
que, independentemente da sua maior ou menor polissemia, os bens patrimoniais
são invariavelmente objecto de um discurso específico e decorrente de um
determinado contexto de intenções e contingências.
Na ausência de quaisquer contributos por parte dos anteriores responsáveis
directos das colecções do MAP sobre esta questão, apenas o MNE poderá
esclarecer em definitivo este universo discursivo, na qualidade de seu
depositário e no âmbito do trabalho de conservação e documentação em curso. De
qualquer modo, até que se verifique esse esclarecimento, o que parece evidente
é que tais argumentos não podem constituir-se como premissas para a reposição
total ou parcial do discurso museográfico original do MAP, ignorando a
relevância patrimonial das suas colecções no seu âmbito disciplinar evidente.
História e estratégia
Num âmbito especificamente museológico, de procura de uma alternativa para o
destino anunciado para o MAP desde 17/5/2006, articulando as suas componentes
de maior perenidade e valia patrimonial, i.e., o seu edifício e colecções, a
própria história do museu encerra uma das soluções possíveis para a sua
revalorização, provavelmente a mais avisada e a de maior relevância não apenas
para aquelas componentes, mas também para as mais importantes colecções
etnográficas nacionais consideradas globalmente. A lição que a história do MAP
encerra é, aliás, dupla.
Em primeiro lugar, tal como frequentemente referido no debate em curso, o MAP
permaneceu como tal até recentemente (i.e., às obras de fundo iniciadas como
etapa indispensável do seu processo de requalificação) pela ausência de
projecto alternativo ao projecto original, com excepção do esboçado em dois
momentos recentes da sua história (1993-1997 e 1999-2006), em ambos os casos a
partir do exterior do MAP, mas cuja concretização foi impossibilitada por
constrangimentos de ordem diversa. O museu não permaneceu como museografia de
época por mérito próprio, mas sim pela ausência de um projecto sustentado para
ele.
Em segundo e mais importante lugar, em dois momentos da história do MAP e do
Portugal moderno, aquele foi objecto específico de políticas culturais
ambiciosas, não lhe dirigidas em exclusivo, mas reconhecendo a sua importância
patrimonial e convocando a sua participação num quadro mais amplo e sistémico
de valorização do património etnológico.
Em 1979, pouco antes da implementação do IPPC, o Decreto-Lei n.º 535/79 cria o
Instituto-Museu Nacional de Etnologia (I-MNE), como entidade que agrega o Museu
de Etnologia (ME), os Centros de Investigação que lhe estão directamente na
origem ' Centro de Estudos de Etnologia (CEE) e Centro de Antropologia Cultural
e Social ', o MAP e as colecções etnográficas do Museu Nacional de Arqueologia
(MNA), na perspectiva da institucionalização das longas relações de facto entre
o ME e aqueles Centros e, entre outras virtualidades, na assunção do papel que
o I-MNE poderia desempenhar como núcleo de apoio aos emergentes museus
etnográficos locais, papel que, não obstante aquele diploma não ter entrado em
vigor, efectivamente cumpriu a partir da década seguinte.
Resultando de um projecto do próprio ME, à data dirigido por Ernesto Veiga de
Oliveira, a criação do I-MNE visava assim dar corpo a uma estratégia de
reorganização das mais relevantes colecções etnográficas públicas nacionais,
com vista a completar lacunas (tipológicas e cronológicas) mútuas. Na
perspectiva da procura de uma alternativa para o destino traçado desde 2006
para as colecções do MAP, a estratégia de 1979 parece consistir num forte
indicador qualitativo sobre estas, sobretudo quando considerado o papel
desempenhado pela equipa fundadora do MNE na valorização da cultura material
tradicional portuguesa, de cujo conhecimento e documentação, através de
pesquisas no terreno, cartografia sistemática, constituição de arquivos
públicos e divulgação editorial e expositiva foi o principal agente.
Frustrado o esforço de que resultou o Decreto-Lei n.º 535/79, em 1989 este é
parcialmente tomado como inspiração no âmbito de nova medida. Corresponde esta
ao enunciado no Decreto-Lei n.º 248/89, que novamente reúne sob a coordenação
do MNE as colecções etnográficas do MNA e o MAP, desta feita individualizado
como Núcleo de Arte Popular, mas que sastrosamente retira ao MNE um dos seus
Centros de Investigação, decretando um divórcio sob a forma de uma união de
facto. De qualquer modo, independentemente dos vários erros que dela derivaram,
esta estratégia parece-nos assentar sobre uma intenção de valorização do
património etnológico, no âmbito da qual o IPPC acolheu simultaneamente sob sua
tutela não apenas o próprio MNE mas também, culminando insistentes pedidos da
Assembleia Distrital do Porto, o Museu de Etnografia e História do Douro
Litoral, então renomeado Museu de Etnologia do Porto, na perspectiva da sua
requalificação futura. Paralelamente, a colocação sob a tutela do MNE das
colecções etnográficas do MNA visou circunscrever a actuação deste à sua área
disciplinar de enquadramento, em consonância absoluta com a sua missão e
prática exclusiva desde há décadas.
Ao invés de outros olhares, não me parece que ambos os projectos/medidas
traduzam um qualquer incómodo face às origens do MAP, sobretudo no caso do
primeiro, o único verdadeiramente concertado pelo contexto institucional de
então e resultante de uma visão solidamente documentada sobre as suas
colecções. Antes parecem ' apesar dos contraciclos de falta de vontades e/ou de
meios que impediram a sua concretização ' enunciar um desejo genuíno de impedir
uma tragédia já então anunciada para o MAP, reinventando-o para assegurar a sua
sobrevivência, adaptando-o a novos enquadramentos disciplinares, a novas
exigências técnicas, e não encarando a sua integração na instituição
museológica de referência nacional no âmbito do património etnológico senão
como oportunidade para a valorização das suas 13.000 peças, representativas de
tipologias muito diversas, e não apenas de carácter artístico ou de valor
predominantemente estético. Esta seria a oportunidade também, já subjacente ao
projecto inicial expresso no Decreto-Lei n.º 535/79, de dotar o MNE de um pólo
dedicado à cultura tradicional portuguesa na frente ribeirinha de maior
afluência de públicos da cultura, eixo do qual persiste em não beneficiar desde
a sua inauguração em 1976, apesar da relativa proximidade.
É este, pois, um outro possível contexto histórico para a definição de
estratégias para o MAP, não a partir da ideologia e estéticas do SPN e do
Estado Novo, mas a partir da visão, dos princípios metodológicos e boas
práticas que caracterizaram a actuação da equipa fundadora do MNE. Esta é
inegavelmente merecedora de lugar de relevo na memória da antropologia, do
património e da museologia: pelo modo como reinventou a primeira, precisamente
no contexto de predominância da etnografia do SNI (note-se que o CEE é criado
no ano anterior à inauguração do MAP); pelo modo como contribuiu para o
conhecimento do património etnológico e a dignificação do seu estatuto; enfim,
pelo modo como se assumiu, através do inovador e qualificado projecto do Museu
Nacional de Etnologia, como referência na actividade museológica, e não apenas
em Portugal.