Banglapara: imigração, negócios e (in)formalidades em Lisboa
Banglapara: imigração, negócios e (in)formalidades em Lisboa[1]
José Mapril
CRIA//ISCTE-IUL, Portugal, jmapril@gmail.com
Nos últimos anos, os estudos sobre migrações têm atribuído uma crescente
importância aos negócios e às actividades empresariais. A existência de
oportunidades estruturais e a disponibilidade de capital social são duas
dimensões frequentemente mencionadas para explicar a sua emergência. Uma
terceira dimensão remete para a relação entre imigração e as chamadas economias
subterrâneas, paralelas ou informais. É precisamente este o tema que o presente
artigo pretende abordar. Baseado num estudo de caso sobre as actividades
empresariais desenvolvidas por imigrantes oriundos do Bangladeche, em Lisboa,
este artigo pretende mostrar que o êxito de muitas das suas actividades
depende, directamente, do recurso a estratégias que se encontram entre o formal
e o informal.
PALAVRAS-CHAVE: informalidade, empresários, imigração, Lisboa, bangladechianos,
Europa do Sul.
Banglapara: immigration, businesses and (in)formalities in Lisbon
In recent years, migration studies dedicated part of their interest to
entrepreneurial activities. Opportunity structures and social capital are two
dimensions frequently mentioned to explain the emergence of such initiatives. A
third dimension, though, is the relation between immigration and what has been
frequently described as underground, subterranean, parallel or simply
informal economies. This is precisely the main theme of the present article.
Based on a case study about Bangladeshis in Lisbon, my objective is to show how
the success of small-scale entrepreneurial activities depends on strategies
that are located between the formal and informal sides of the economy.
KEYWORDS: informality, entrepreneurs, immigration, Lisbon, Bangladeshis,
Southern Europe.
Com base num trabalho de campo realizado entre 2003 e 2006, este artigo
pretende descrever os negócios desenvolvidos pelos migrantes oriundos do
Bangladeche em Lisboa. Este exercício etnográfico permite constatar que muitas
destas iniciativas envolvem algumas práticas que, de acordo com os modelos
normativos da economia, se encontram na economia dita subterrânea, paralela
ou informal. Por informalidade refiro-me, inspirado na definição de Keith
Hart (1973), a um continuum de acções sociais que vão desde práticas económicas
não reguladas, num ambiente onde estas o costumam ser, até actividades
frequentemente categorizadas como ilegais.[2] O objectivo central deste artigo
é pois mostrar como muitos dos meus interlocutores desenvolvem as suas
actividades entre a economia formal e a informal e o que isto nos diz acerca da
relação entre imigração e empresarialidade.
Na literatura sobre migrações, estes temas têm sido tratados nas abordagens à
comummente designada empresarialidade imigrante ou étnica. Estes conceitos,
oriundos da economia do desenvolvimento e da sociologia económica e das
migrações, pretendem mostrar que a participação das populações imigrantes nos
mercados de trabalho está muito para além do binómio assimilação / exclusão. Os
imigrantes não tendem a diluir-se na sociedade de acolhimento através de um
processo de mobilidade social crescente e assimilação, mas também não se
encontram inevitavelmente numa situação permanente de exploração e de
inferioridade no mercado de trabalho. Usando termos como integração, inserção,
modos de incorporação e inclusão, vários autores têm mostrado que existem modos
alternativos de participação nos mercados de trabalho, e a corroborá-lo estão
os exemplos dos coreanos em Los Angeles, dos cubanos em Miami, dos chineses em
Nova Iorque, dos paquistaneses em Manchester, ou mesmo dos indianos em Londres.
Em Portugal, nos últimos anos, surgiu um crescente número de contributos que,
influenciados por estas perspectivas teóricas, se propõem interpretar a
inserção laboral dos migrantes. Abordando casos entre os cabo-verdianos, os
chineses e os indianos (hindus e muçulmanos), autores como Marques, Santos e
Araújo (2001), Marques e Dias (2005), Grassi (2003), Oliveira (2005), Malheiros
(2001), Góis (2006), entre outros, procuram mostrar como a participação dos
migrantes nos mercados de trabalho em Portugal não se caracteriza apenas por
uma persistente situação de exclusão e marginalidade visível na ocupação de
posições desprivilegiadas nos sectores laborais (Baganha, Malheiros e Ferrão
1999; Machado 2002). Existem casos que revelam estratégias alternativas que
passam pelo empreendedorismo e pela inovação.
Nos discursos políticos, tais casos são frequentemente celebrados como exemplos
do bom e exemplar imigrante que, depois de muito esforço e empenho, conseguiu
montar um negócio e ser hoje o seu próprio patrão. Criou a sua própria
oportunidade e ajudou outros no processo. Mais, eles são vistos como os bons
imigrantes, pois vão ao encontro dos modelos hegemónicos da economia, em que o
empreendedor é o motor de todo o sistema económico.
No entanto, importa perceber que estas iniciativas têm um lado menos visível,
mais nocturno. Segundo Bonacich (1993), este lado está relacionado com
processos de marginalização social, que são frequentemente silenciados nos
discursos normativos. Desde logo, não é de todo raro muitas destas iniciativas
empresariais resultarem de processos de discriminação racial, étnico-nacional,
de género, entre outras. Não conseguindo aceder ao mercado de trabalho nas
condições desejadas, a única possibilidade é desenvolver negócios por conta
própria (vd., entre outros, Bonacich 1987, 1993; Oliveira e Rath 2008). Para
muitos, estes negócios são vistos como a única oportunidade de mobilidade
social ascendente num contexto marcado por vários bloqueamentos estruturais.
Mas a relação entre estes negócios e dinâmicas de marginalização ocorre mesmo
no desenvolvimento da própria prática empresarial. Muitos empresários apenas
conseguem desenvolver actividades nas margens da economia, e como tal enfrentam
frequentemente enormes dificuldades económicas. Num tal cenário, recorrem a
estratégias de natureza informal, sem as quais tais iniciativas estariam
inevitavelmente destinadas ao fracasso (Rath 2000). Para clarificar este
argumento, sugiro que pensemos na proposta teórica do chamado encastramento
misto (Kloosterman, Van der Leun e Rath 1999; Kloosterman e Rath 2001). Para
explicar a emergência do empreendedorismo imigrante, estes autores mencionam o
duplo encastramento de muitas destas iniciativas. Por um lado, refere-se a
relação entre a emergência e o tipo de negócios desenvolvidos e as
oportunidades estruturais existentes nos vários países. Por oportunidades
estruturais entende-se o contexto político institucional (programas de
incentivo, regulação, etc.) e os mercados (abandonados, desejados, em
crescimento, etc.), a nível local, regional e mesmo nacional, que determinam,
até certo ponto, as actividades empresariais desenvolvidas. Por outro lado,
alude-se ao encastramento destas iniciativas nas redes sociais, muitas vezes
referidas como étnicas,[3] e ao capital social a que estas permitem aceder e
que é indispensável para os investimentos a realizar. Seria através deste
encastramento misto que se poderia explicar não apenas a emergência de muitas
destas iniciativas, mas também, e ao mesmo tempo, as muitas diferenças
existentes entre países, regiões e mesmo cidades.
Ora, é precisamente o lado da estrutura de oportunidades desenvolvido neste
modelo que nos permite perceber a relação com a informalidade. Muitos
empresários imigrantes apenas conseguem desenvolver as suas actividades através
da apropriação e ocupação dos espaços mais desvalorizados da estrutura de
oportunidades, ou seja, em mercados pouco exigentes em termos de capital
económico e educacional. O lado positivo destes mercados é permitirem uma fácil
instalação, o que é contrabalançado por uma enorme competição, que reduz
drasticamente os rendimentos. Em face disto, muitos destes pequenos empresários
são forçados a desenvolver actividades que frequentemente se encontram nos
interstícios da formalidade e sem as quais muitas destas iniciativas não
conseguiriam sobreviver. Assim, poder-se-ia argumentar que o recurso a
estratégias económicas descritas como informais, nas visões normativas da
economia, resulta da própria marginalização, que empurra determinadas
populações para certos lugares no mercado de trabalho. Assim, e em linha com o
argumento de Bonacich (1987), temos de ser cautelosos na forma como
interpretamos muitas destas iniciativas empresariais, já que a sua celebração
pode ter como efeito indesejado silenciar formas de exclusão e marginalização.
O caso dos bangladechianos em Lisboa é um bom exemplo para explorar
etnograficamente muitas destas ambiguidades. Para tal, começarei por descrever
a Praça Martim Moniz, em Lisboa, onde muitos dos meus interlocutores se têm
estabelecido comercialmente nas últimas duas décadas. Seguidamente, mostrarei a
interligação entre os aspectos formais e informais nas suas práticas comerciais
e, finalmente, nas conclusões, voltarei a questões mais gerais sobre a relação
entre informalidade e imigração, recorrendo a algum material comparativo.
Uma banglapara em Lisboa
Os bangladechianos que chegaram entre o final dos anos 80 do século XX e 1996
começaram por trabalhar nos sectores mais desprivilegiados da economia
portuguesa, principalmente como varredores, pintores de construção civil,
pedreiros, capatazes, cozinheiros e vendedores ambulantes.[4] Hoje são os
proprietários de vários negócios em Lisboa, no Porto e no Algarve.[5]
Por detrás de tais estratégias encontramos um conjunto alargado de motivações e
factores que importa sublinhar. Em primeiro lugar, e de acordo com alguns dos
meus interlocutores, um dos principais factores que os levaram a investir num
negócio por conta própria estava relacionado com os reduzidos salários;
trabalhando para outrem (conterrâneos ou não), os ordenados eram excessivamente
baixos para conseguir pagar as despesas fixas, as despesas diárias e poupar
para enviar para o Bangladeche. A acumulação de capital, a fazer-se, implicava
longos períodos de tempo, que muitos não queriam ou não podiam despender. Como
veremos à frente, a solução para este bloqueio laboral foi recorrer ao capital
social para assim criar negócios por conta própria, estratégia frequentemente
equacionada, pelos próprios, com uma maior e mais rápida acumulação de capital
(vd. também Salway 2008).
Em segundo lugar, para muitos, a chegada à Europa foi acompanhada por uma
mobilidade profissional descendente, que se traduziu na aceitação de trabalhos
em áreas do mercado de trabalho consideradas muito desprestigiantes. Com um
perfil educacional relativamente elevado, finalistas do ensino secundário,
licenciados e mesmo pós-graduados (vd. Mapril 2008), os empregos a que tiveram
acesso na Europa comportaram estigmas aos quais poucos se queriam ver
associados. Alguns ainda tentaram ter acesso a posições no mercado de trabalho
que correspondessem à sua formação académica, mas poucos, para não dizer
nenhuns, foram bem sucedidos. As barreiras mencionadas pelos meus
interlocutores incluem o desconhecimento da língua, o não reconhecimento dos
diplomas ou a simples impossibilidade de acesso aos canais de divulgação.
Em terceiro lugar, muitos dos meus interlocutores têm parentes e amigos, tanto
no Bangladeche como em Portugal, envolvidos em actividades empresariais e que
servem de modelo e inspiração. Tornar-se um patrão é um indicador de êxito e
de estatuto e, nessa medida, revela as percepções e ideologias face ao trabalho
e ao emprego. Ser-se o próprio patrão é, pois, algo procurado activamente. Esta
é uma aspiração que, apesar de estar já presente no Bangladeche, como mostrei
noutro lugar (Mapril 2008), acaba por ser reforçada na migração perante a
constatação de que os primeiros bangladechianos a chegar a Portugal são hoje
proprietários de várias lojas e apresentam elevados níveis de riqueza. Estes
exemplos revelam que prosperar não é continuar a trabalhar para outros, mas sim
fazer um negócio e tornar-se um patrão, um boss. É neste âmbito que circula e
se reproduz uma percepção do trabalho e da participação na economia na qual os
valores dominantes, para não dizer hegemónicos, remetem para uma ideia de
êxito, cujo sinónimo é ter uma actividade por conta própria. Muitos acreditam
que a acumulação de capital será tão rápida quanto mais depressa se investir
num negócio por conta própria, o que, como veremos, nem sempre corresponde à
realidade.
Perante tal condição, muitos têm procurado investir na constituição de
negócios, ainda que de pequena dimensão, o que está bem patente nas imediações
da Praça Martim Moniz, no centro de Lisboa. É aqui que têm arrendado e comprado
várias lojas e residências. De acordo com alguns relatos, será possível
encontrar ali perto de mil bangladechianos, naquilo a que alguns dos meus
interlocutores chamam uma banglapara. Para é uma expressão que remete para uma
ideia de local de identificação, e bangla é o termo usado para o bengali;
portanto, o Martim Moniz seria a zona do bengali ou a zona para os
bengaleses (a designação é, aliás, usada para Lavapiés, em Madrid, onde se
encontram muitos negócios bangladechianos).
Esta é uma área que poderia ser delimitada, ainda que com contornos imprecisos,
a norte pelos Anjos, na Avenida Almirante Reis, a sul pelo Poço do Borratém e
Rua da Betesga, a este pelo topo da Rua de São Lázaro e a oeste pelo final da
Calçada dos Cavaleiros (em direcção à Graça). Aqui convivem fenómenos como
procissões, imigração, comércio de revenda, toxicodependência, prostituição,
casas de produtos mágicos e feitiços de origem cultural múltipla (Bastos
2001: 303), uma mesquita, um gurdwara (um templo sikh) e igrejas católicas e
protestantes (evangélicos chineses).
O Martim Moniz, propriamente dito, é uma praça localizada nas imediações da
baixa lisboeta, uma das principais zonas do centro histórico da capital, e o
seu nome remete para a história da cidade, mais concretamente para o sacrifício
de um capitão de D. Afonso Henriques, de nome Martim Moniz, aquando da tomada
de Lisboa aos mouros, no século XII (Menezes 2004).[6]
A praça Martim Moniz em Lisboa
No panorama da capital, a Praça Martim Moniz faz a ligação entre a Avenida
Almirante Reis e a Praça da Figueira e, como tal, é uma alternativa viária à
Avenida da Liberdade, a principal artéria de acesso ao centro da cidade.
A área está, sobretudo, relacionada com o comércio grossista,[7] e as lojas que
se estendem nas artérias contíguas realçam esta relação. Nos dois lados da
praça existem três centros comerciais ' o Centro Comercial Martim Moniz, o
Centro Comercial Grossista, também conhecido por Chinatown, e finalmente, o
Centro Comercial Mouraria. Estas galerias vivem essencialmente da revenda de
pronto-a-vestir, bricabraque e bijutaria, embora se encontrem também serviços
tão variados como lojas de brinquedos, serviços de fotografia, sapateiros,
ervanárias, vendas de objectos religiosos, agências de viagens, restaurantes,
supermercados, lojas de coleccionismo, lojas de acessórios de telemóveis,
papelarias, serviços de aluguer de DVD, vendas de cosméticos e lojas de
mobiliário, actividades estas que mantêm evidentes continuidades nas principais
vias adjacentes (ruas do Benformoso, de São Lázaro, João das Regras, da
Mouraria, Calçada dos Cavaleiros, Poço do Borratém, expandindo-se mesmo para
norte, em direcção à Praça do Chile, e a sul, para a baixa pombalina).
Muitas lojas têm sido desenvolvidas não apenas por bangladechianos, mas também
por indo-portugueses, guineenses, senegaleses, chineses e, mais recentemente,
paquistaneses. Em 2003, durante o meu primeiro período de trabalho de campo, o
panorama na zona era o seguinte:
Os indo-portugueses, hindus e muçulmanos, começaram a instalar-se na zona em
meados dos anos 70, a seguir à descolonização, substituindo, na sua maioria,
lojas de ramos de comércio tradicionais (alimentação, vestuário, casas de
penhores, cafés / restaurantes), ou dedicando-se ao comércio de brinquedos,
bijutarias, quinquilharias, mobiliário e à importação-exportação, sendo durante
muito tempo os principais dinamizadores da área ' em 1992, por exemplo,
ocupavam um quarto das lojas do referido Centro Comercial Mouraria (Malheiros
1996; Marques e Ribeiro 1989; Vieira 1994; Ávila 1994).[8]
Quadro 1
Presença comercial no Martim Moniz e zonas envolventes, 2003.
Levantamento feito pelo autor entre 1 e 9 de Janeiro de 2003 no âmbito do
projecto Imigrantes no Martim Moniz, Instituto de Ciências Sociais,
coordenação de Cristiana Bastos.
É em 1992 que guineenses, cabo-verdianos e, mais recentemente, senegaleses e
zairenses abrem alguns negócios na zona, principalmente nas áreas da cosmética,
música, produtos alimentares e restauração. No mesmo ano, a cave do Centro
Comercial Mouraria estava quase totalmente ocupada por estes negócios e lojas
(Malheiros 1996). Em 1993 surgiu a primeira loja de um comerciante chinês e
três anos depois este mesmo centro comercial estava já maioritariamente ocupado
por comerciantes chineses ' principalmente provenientes da província de
Zhejiang. Em 1996-97, aquele pioneiro chega a acordo com a administração do
Centro Comercial Martim Moniz para explorar a respectiva cave, criando mais
espaços comerciais grossistas. Como se pode ver pelo quadro acima, os chineses
estavam, e ainda hoje estão, sobrerrepresentados na zona, sendo o grupo mais
importante nas dinâmicas locais (Mapril 2001; Bastos 2004).
A acompanhar este estabelecimento comercial de chineses, começaram também a
instalar-se paquistaneses e bangladechianos. Os primeiros dedicaram-se a
negócios relativamente distintos dos anteriores, como é patente no quadro
anterior. Os segundos, que mais interessam para o presente artigo, apostaram
num tipo de negócios muito semelhante, ainda que com pequenas alterações,
àquele desenvolvido pelos chineses.[9]
Segundo os meus interlocutores, foi em 1993 que o primeiro bangladechiano,
natural da região de Sylhet, no noroeste do país, aqui se instalou, e foi por
seu intermédio que a presença de bangladechianos se multiplicou. Em 2001,
muitos começaram a arrendar algumas lojas na cave do Centro Comercial Martim
Moniz, então explorada pela associação comercial Chinatown, e desde essa altura
a sua presença tem aumentado de forma significativa.
Durante o primeiro período de trabalho de campo havia 60 lojas de
bangladechianos nesta zona de Lisboa. Em 2006 eram já 80 ao longo da Avenida
Almirante Reis, Rua da Palma, Calçada dos Cavaleiros, Rua do Benformoso, Largo
do Intendente, Rua de São Lázaro e nos centros comerciais Mouraria e Martim
Moniz.[10] Em 2008, ocupavam já mais de 150 lojas, entre a Praça Martim Moniz e
imediações, os Anjos e a baixa lisboeta (onde, só no último ano, abriram mais
de 30 lojas). Actualmente, esta continua a ser vista como uma zona ideal para
fazer negócios, embora comecem a aparecer várias tentativas de diversificação e
dispersão, devido à grande competição ali presente.
Segundo uma estimativa elaborada com base na observação das dinâmicas
comerciais diárias, não parece ser incorrecto afirmar que, ao todo, estas lojas
devem empregar perto de 300 pessoas, excluindo os proprietários.[11] Estes são
na maioria pioneiros, ou seja, aqueles que chegaram a Portugal no final dos
anos 80 e inícios de 90, ou em 1996, aquando do primeiro e do segundo processos
de regularização extraordinária, enquanto os empregados são quase sempre recém-
chegados. É verdade que alguns negócios foram já constituídos por aqueles que
chegaram durante o processo de regularização de 2001, mas estes representam uma
pequena parcela do total e normalmente apenas têm uma loja, o que contrasta com
muitos pioneiros que são proprietários de vários estabelecimentos. Um quarto
das lojas existentes na zona do Martim Moniz pertencem a cinco dos mais antigos
bangladechianos em Lisboa.
Os tipos de actividade económica desenvolvida estão intimamente ligados aos já
praticados na zona, ao mesmo tempo que começam a surgir negócios
especificamente direccionados para os bangladechianos e outros sul-asiáticos.
Estes são de cinco diferentes tipos, de acordo com os produtos vendidos: (i)
lojas de pronto-a-vestir; (ii) lojas de brinquedos e bricabraque; (iii)
mercearias e supermercados; (iv) restaurantes; (v) diversos, incluindo
papelarias, quiosques, etc.
As lojas de pronto-a-vestir, assim como os brinquedos e o bricabraque,
encontram-se um pouco por todas as artérias e espaços comerciais da zona, mais
concretamente nos centros comerciais Mouraria e Martim Moniz, na Rua do
Benformoso, na Calçada dos Cavaleiros, na Rua de São Lázaro, na Rua da Palma,
etc., e incluem roupas de homem, mulher e criança, frequentemente de marcas
desconhecidas como Bou Bou, Ling, etc. As marcas das várias peças têm
frequentemente nomes chineses e isso está ligado às próprias rotas de
abastecimento usadas por muitos dos meus interlocutores (vd. infra). Os
principais clientes destas lojas são os revendedores que se dirigem
semanalmente a esta zona para comprarem o que irão vender em mercados por todo
o país, entre os quais se encontram populações ciganas. As compras são feitas
por grosso e raramente são declaradas, o que, aliás, segundo alguns
comerciantes, é precisamente o que torna estes negócios rentáveis.
Durante o último ano de trabalho de campo havia quatro supermercados /
mercearias cujos proprietários eram bangladechianos. Três encontravam-se no
exterior ' dois na Rua do Benformoso e um na Calçada Cidadão João Gonçalves ',
o quarto localiza-se na cave do Centro Comercial Mouraria. Parte dos produtos
disponíveis são comuns às várias lojas do género, incluindo os restantes
supermercados indianos nos centros comerciais Mouraria e Martim Moniz; no
entanto, os quatro supermercados bangladechianos apresentam algumas
especificidades (que desde logo os diferenciam da concorrência): dois estão
vocacionados para um público mais generalista e, portanto, vendem de tudo, como
qualquer mercearia, mas com alguns produtos regionais; um terceiro vende carne
halal,[12] enquanto outro se especializou na venda de peixe congelado com
origem no Golfo de Bengala, onde é congelado e exportado para empresas
especializadas no Reino Unido, para ser depois redistribuído.[13]
Em 2006 existiam nove restaurantes / cafetarias de bangladechianos na área
metropolitana de Lisboa: dois na Costa da Caparica e sete no centro da cidade
(quatro dos quais no Martim Moniz). Sete servem aquilo que convencionalmente se
designaria por comida indiana e apenas ocasionalmente é possível encontrar
alguns pratos, extramenu, mais próximos da cozinha do Bangladeche, tais como
chawtpohtee (salada de grão com malaguetas, cebola, ovo e molho de tamarindo)
ou mama-alim(sopa de grão com borrego). O facto de alguns dos restaurantes de
cozinha indiana em Lisboa serem, na realidade, propriedade de bangladechianos,
como aliás acontece no Reino Unido, está relacionado com a opinião generalizada
de que um restaurante de cozinha indiana é um melhor negócio do que um
restaurante bangladechiano, que seria um malogro (ainda assim, em dois casos
existem referências evidentes à origem nacional do proprietário, através do uso
de elementos decorativos associados ao Bangladeche). Um outro tipo de pronto-a-
comer, o doner kebab, passou a ser também uma opção e, em 2006, dois dos meus
interlocutores decidiram investir neste negócio depois de verem o sucesso de
outras iniciativas similares desenvolvidas por paquistaneses. Tudo aquilo que
se vende é halal, excepto as bebidas alcoólicas, e durante algumas festas do
calendário anual preparam-se pratos normalmente associados a essas ocasiões. A
clientela é maioritariamente não bangladechiana, ainda que alguns dos meus
interlocutores, dada a proximidade física das suas lojas, recorram a estes
estabelecimentos nos intervalos para almoço ou para beber um chá a meio da
tarde.
Finalmente, há também uma papelaria e dois quiosques. É aqui que se enviam
faxes para os países de origem, que se pede ajuda para traduzir e preencher
formulários, que se fotocopia a documentação necessária para os processos de
legalização, que se imprime e vende uma edição do Daily Jugantor(uma versão
impressa da edição online de um diário bangladechiano) e, por fim, que circulam
novidades e informações acerca das oportunidades existentes (de empregos,
legalização, entre outras). Neste caso, a venda de jornais, de tabaco, de
postais e de algum material de papelaria tem clientes indiferenciados, à
excepção dos cartões de telefone, que têm nos estrangeiros a clientela
primordial. A papelaria tem como clientes principais bangladechianos e outros
sul-asiáticos.
Depois desta breve descrição da configuração da banglapara, é indispensável
perceber que o êxito destas iniciativas depende de um delicado equilíbrio entre
actividades económicas formais e informais; isto é visível tanto nas
estratégias para angariar o capital inicial quanto nas próprias estruturas dos
negócios.
Entre o formal e o informal
Como acontece noutros exemplos descritos na literatura, também aqui podemos
verificar que todas estas actividades dependem largamente das redes sociais e
relações de confiança para se desenvolverem e serem bem sucedidas. É graças a
várias sociabilidades, assentes no parentesco, na amizade, na comunidade e
mesmo fora dela, que muitos bangladechianos acedem a recursos económicos, know-
how, recursos humanos, informações, etc., indispensáveis à apropriação das
oportunidades existentes (Waldinger, Aldrich e Ward 1990; Waldinger 1989 e
1996; Granovetter 1995; Portes 1999; Yanagisako 2002; Lima 2002; Narotzky e
Smith 2006). Como no caso de outros sul-asiáticos (Werbner 1990; Anwar 1995;
Goody 2000), também entre os bangladechianos em Lisboa estas redes e
sociabilidades incluem parentes paternos (membros da unidade doméstica e da
patrilinhagem), parentes maternos e descendentes. Mesmo amizades desenvolvidas
ainda no Bangladeche (ao nível da vizinhança, da frequência de uma mesma
escola) ou relações já estabelecidas no estrangeiro são indispensáveis em todo
este processo.[14] Revelador desta importância é o facto de frequentemente as
pessoas se tratarem por designações de parentesco como bhai (irmão), chacha
(tio paterno) ou mama (tio materno), mesmo quando não são aparentadas entre si
por laços de consanguinidade ou de aliança (o que formalmente implica, desde
logo, obrigações e deveres recíprocos).
No entanto, nalguns contextos estas sociabilidades incluem não bangladechianos.
No contexto comercial, as relações com chineses, paquistaneses, portugueses,
ucranianos, entre outros, são mantidas e mesmo fomentadas (noutras arenas da
vida social, tais laços e contactos são diminutos e por vezes mesmo evitados).
Todas estas sociabilidades são indispensáveis, pois, como já foi aflorado,
permitem angariar capital económico, obter informações acerca dos mercados a
explorar, de fornecedores, de empregados, treino na actividade, etc. Além
disto, e como veremos à frente, os próprios parentes (atyio) são capital humano
para o apoio às actividades comerciais.
No que diz respeito ao capital inicial, foi possível constatar que uma parte é
constituída por poupanças individuais resultantes do trabalho por conta de
outrem; no entanto, e como vimos anteriormente, para aqueles que permanecem em
Portugal, é extremamente difícil realizar estas poupanças, devido aos baixos
salários e às despesas diárias.[15] Uma das soluções passa por trabalhar
algumas temporadas noutros países, onde os salários são mais elevados, e
posteriormente regressar a Portugal para investir num negócio. Outra estratégia
é, como veremos à frente, a venda ambulante em feiras, nacionais e regionais,
ou mesmo nas zonas turísticas das cidades.
Para além destas iniciativas de acumulação de capital, muitos dos meus
interlocutores contraíram empréstimos, tanto no âmbito da unidade doméstica
como entre amigos e conhecidos. No primeiro caso, é frequente ver alguns destes
negócios serem parcialmente financiados com a ajuda dos pais e dos irmãos que
se encontram no Bangladeche e noutros locais. Na ausência de capital económico
disponível, uma das estratégias é vender propriedades no Bangladeche e depois
transferir a respectiva verba para Lisboa através de amigos e conhecidos. Esta
conversão de capital é no entanto problemática e para que seja realizada são
necessárias negociações sensíveis com os membros da família. A terra é um
recurso valioso e, como tal, apenas em última instância e na ausência de
alternativas deve ser vendida, como muitos dos meus interlocutores tantas vezes
me relataram. Se não houver retorno, tal conversão pode levar uma unidade
doméstica à ruína.
Outra alternativa de financiamento é contrair empréstimos junto de amigos e
conhecidos em Portugal e no Bangladeche, ou então recorrer a associações
regionais de natureza informal que, entre outras actividades, facilitam o
crédito com a garantia de que os reembolsos serão realizados atempadamente (a
proximidade geográfica no país de origem é o garante da seriedade no
cumprimento das obrigações).
Uma outra solução para a obtenção de financiamento consiste em recorrer a um
intermediário português que circula diariamente pela zona. Estes empréstimos
são contraídos tanto por bangladechianos como por chineses e os pagamentos são
normalmente realizados semanalmente, em pequenas parcelas recolhidas pelo
próprio. A garantia de pagamento reside no facto de quase todos já terem
usufruído destes serviços e, portanto, protegerem a continuação deste sistema
através da condenação social dos faltosos. A coacção é socialmente imposta e
assim os custos associados à falta de pagamento de dívidas são demasiado
elevados para o infractor.
Finalmente, uma outra forma de obter os necessários financiamentos é através de
empréstimos bancários. No caso dos bangladechianos com cidadania portuguesa, os
trâmites seguidos são iguais aos aplicáveis aos restantes cidadãos nacionais,
mas no caso de portadores de autorizações de permanência a única possibilidade
é apresentar um fiador, que terá de ser, necessariamente, um cidadão português.
Nestes casos, os pioneiros são, por vezes, solicitados para esse fim, mas
evidentemente nem sempre com sucesso. A aceitação acarreta evidentes riscos e
apenas em circunstâncias de grande proximidade e confiança é comum que aceitem.
Ao longo do trabalho de campo verifiquei que o recurso aos serviços bancários
era mais frequente entre os pioneiros, precisamente porque tinham os documentos
necessários e apresentavam recursos ' lojas, casas, carros ' que funcionavam
como garantias para as entidades bancárias. Com estes empréstimos procuravam
injectar capital nos negócios que já possuíam, criar novos, ou então fazer
viagens de prospecção comercial em busca de novos fornecedores.
Ao nível da estrutura, muitos destes negócios e lojas estão normalmente
registados por empresas em nome individual e não é de todo incaracterístico
estas terem mais de uma loja a elas associada. Estas podem ser todas exploradas
pela pessoa no nome da qual a empresa está registada, ou então por outros que,
por questões várias, nomeadamente a ausência dos documentos necessários, não
podem registar uma empresa em seu nome mas que conseguem reunir os recursos
necessários para ter um estabelecimento. Nestes casos, os interessados pedem a
quem já tem empresas para registar a loja e posteriormente, quando já podem
constituir uma empresa, transferem então o registo.
Existem igualmente sociedades informais, no âmbito das quais as lojas são
registadas apenas no nome de um dos sócios. Num dos casos estudados, uma das
partes pagava a renda enquanto a outra dava o trabalho e comprava as
mercadorias. No entanto, como estas situações ocorrem apenas quando existe
algum grau de proximidade entre as partes, não são muito frequentes. A
desconfiança é grande e muitos consideram as sociedades uma iniciativa
arriscada. Nos casos em que as sociedades se efectivam, surgem por vezes
conflitos entre as partes, que levam à dissolução das mesmas. Estas negociações
são mediadas por um terceiro elemento, tal como acordado previamente entre os
sócios, normalmente alguém respeitado e com mais experiência. Quer seja na
divisão dos lucros quer nas compensações a pagar, é frequente o recurso a tais
intermediações. Este processo é comummente designado pelo termo samaj,[16] cujo
significado literal é sociedade, e que tem como intuito impedir, o mais
possível, a intervenção externa.
Mesmo no caso do recrutamento dos empregados, o encastramento das actividades
económicas nos laços sociais é evidente. A maior parte das lojas de pronto-a-
vestir têm pelo menos um empregado a quem é atribuída a responsabilidade por
todas as tarefas ' as vendas, o descarregamento das mercadorias, o
acondicionamento das mesmas, etc. A escolha dos empregados é feita com base nas
redes de relações sociais do patrão. Quase todos os trabalhadores alcançaram
estes empregos porque foram recomendados. É raro encontrar não bangladechianos
a trabalhar em lojas bangladechianas, o que indica que os laços de vizinhança,
de pertença a uma mesma unidade doméstica, regionais, nacionais, etc. são
instrumentalizados para manter estes postos de trabalho encerrados ao exterior.
O caso dos restaurantes, porém, apresenta algumas especificidades, pois é comum
os empregados serem não só bangladechianos, mas também paquistaneses e indianos
' quem serve às mesas são quase sempre os primeiros, e quem cozinha são quase
sempre os segundos e os terceiros.
Noutros casos, o empregado é parente do patrão, opção que tem assumido uma
crescente importância apenas nos últimos anos, devido aos processos de
reunificação familiar. Nalgumas lojas é frequente encontrar um irmão do
proprietário ou da esposa e os filhos, mais concretamente durante as férias
escolares e as horas livres. É também comum encontrar as esposas a trabalhar
nas lojas pertencentes à unidade doméstica, em substituição do marido, a ajudar
na gestão de mais do que um negócio ou simplesmente a trabalhar a partir de
casa (vd. Kabeer 2000).
No caso dos familiares, não é frequente receberem um salário, uma vez que se
assume que se está a trabalhar para a mesma unidade doméstica. Isto é muitas
vezes contrabalançado com a ideia de que o familiar não recebe agora para
receber o apoio financeiro do parente mais tarde, quando quiser fazer algum
investimento. No caso dos empregados não familiares, os salários nem sempre
incluem os pagamentos à Segurança Social e são muitas vezes os empregados que
devem fazê-lo, retirando a percentagem do respectivo ordenado. Estes oscilam
entre os 350 euros e o máximo de 800 euros. O mais frequente, porém, é o
salário mensal (do qual tem de se retirar a percentagem da contribuição para a
Segurança Social) situar-se entre os 500 e os 600 euros mensais.[17] Como
complemento a estes rendimentos, muitos empregados recorrem à venda ambulante,
mais concretamente ao fim-de-semana, em feiras, pequenos mercados ou nas ruas
das principais cidades (especialmente em zonas turísticas). Aqui vendem-se
produtos comprados aos próprios patrões e entre as mercadorias encontram-se
bens contrafeitos, flores, pequena bijutaria e mesmo decorações de Natal.
Também ao nível dos abastecedores se fica ciente de que é no âmbito de diversas
relações sociais que se tem acesso às várias mercadorias. Nas lojas de roupa,
por exemplo, quando os primeiros bangladechianos se instalaram e como não
tinham acesso a fornecedores, recorreu-se a comerciantes chineses para a compra
de mercadorias. Actualmente, estas redes continuam a ser mantidas e muitos
socorrem-se destes contactos com chineses para se abastecer.
Devido a esta relação entre bangladechianos e chineses, ainda se nota um outro
pormenor no tipo de mercadorias vendidas. Comparando com as lojas chinesas, não
é incorrecto afirmar que as lojas bangladechianas vendem mais gangas e roupa
para criança, o que se deve, segundo dados recolhidos no terreno, a um acordo
informal para diminuir a competição entre bangladechianos e chineses. Isto tem
permitido a muitos dos meus interlocutores manterem os seus negócios, já que,
como muitos dizem, é impossível competir com os chineses. Outra das
estratégias passa pela diversificação dos fornecedores e produtos. A venda de
roupa como fátuas e punjabis, que, segundo os meus interlocutores, são
essencialmente usadas por sul-asiáticos, bem como o recurso a bens contrafeitos
(pronto-a-vestir, DVD ou CD) são alguns exemplos emblemáticos.
Finalmente, o abastecimento dos quiosques inclui soluções diferenciadas
consoante os produtos em causa. À excepção dos cartões telefónicos, os produtos
são todos abastecidos por portugueses, o que implica estratégias formais e
informais de distribuição. Por exemplo, o arrendatário de um dos quiosques
encomenda os jornais para em seguida os redistribuir junto daqueles que não têm
capital suficiente para pagar a caução exigida pelos distribuidores de jornais
e revistas.
Através desta descrição ficamos cientes de que estas práticas empresariais
dependem das redes de relações sociais, redes essas que estão inscritas em
várias escalas ' a unidade doméstica, a patrilinhagem, a região, a co-
nacionalidade, e mesmo a transnacionalidade. Sem estas práticas, seria
impossível realizar tais empreendimentos. Mais, muitas estratégias referidas
encontram-se, obviamente, e de acordo com os modelos normativos da economia, no
âmbito da informalidade. No entanto, sem elas, muito dificilmente os negócios
conseguiriam prosperar.
Reflexões finais
Ao longo deste artigo mostrei que, desde a chegada a Portugal, muitos
bangladechianos desenvolvem actividades económicas que se encontram entre o
formal e o informal. Inicialmente, apenas conseguem aceder a posições
socioeconómicas marginais, onde começam por trabalhar nos sectores mais
desprivilegiados, em actividades que jamais executariam no Bangladeche. Estas
são marcadas por uma enorme informalidade, onde os trabalhadores não têm
contratos de trabalho e os rendimentos não são declarados. Por vezes, trabalhar
para um conterrâneo também não é o garante de mobilidade social, bem pelo
contrário. Um primeiro passo para sair desta marginalidade é procurar investir
num negócio e, para o conseguir, recorre-se ao próprio capital social, com o
objectivo de desenvolver pequenas actividades comerciais, muitas vezes marcadas
por baixos valores de entrada. Nestes mercados, tem de se fazer face a uma
enorme competição, o que direcciona muitos a manterem-se na intersticialidade
entre as economias formal e informal, sem a qual não é possível realizar a
desejada acumulação de capital.
Mas será este um cenário exclusivo dos bangladechianos? E apenas de Portugal?
Em ambos os casos, a resposta é evidentemente negativa, já que o recurso a
estratégias informais parece ser bem mais generalizado e simultaneamente
presente em muitos e diferentes contextos nacionais. Em relação à primeira
questão, basta um olhar histórico sobre o Martim Moniz e zonas envolventes para
perceber como muitas destas dinâmicas são levadas a cabo por muitos, tanto
imigrantes como autóctones. Esta zona da cidade de Lisboa parece falar de
algo muito mais vasto e complexo: a importância da informalidade na economia
nacional. Em Portugal, calcula-se que as actividades informais representem
(dados de 2006) entre 22% e 25% do Produto Interno Bruto (Antunes e Cavalcanti
2006). Os sectores de trabalho onde aparecem mais frequentemente são a
construção civil e as actividades comerciais ligadas à hotelaria e aos serviços
domésticos, o que já ocorria muito antes dos fluxos migratórios dos últimos
trinta anos (Cabral 1983). Ora, de acordo com os dados apresentados por Baganha
(1998, 2000), é precisamente para estes sectores que os imigrantes vão ser
canalizados e o caso dos serviços, mais concretamente do pequeno comércio a
retalho e grossista, é exemplificativo. Estes espaços do mercado de trabalho
têm vindo a ser apropriados por várias vagas de (i)migrantes desde meados dos
anos 70, uma vez que estes negócios de pequena dimensão se constituem, por
vezes, como o único espaço a que conseguem aceder no mercado de trabalho.
Mas esta relação entre sectores desvalorizados do mercado de trabalho,
actividades informais e imigração é comum a outros contextos e, embora não
disponha de dados a nível global, vários estudos indiciam esta estreita
relação. Tanto na Europa do Sul como em Nova Iorque, Londres ou Paris, muitos
dos fluxos globais de migrantes laborais contemporâneos estão de alguma forma
ligados a espaços do mercado de trabalho onde a informalidade apresenta uma
importância central (Mingione e Quassoli 2000; King, Lazaridis e Tsardanidis
2000; Baganha, Malheiros e Ferrão 1999; Marques, Santos e Araújo2001; Grassi
2003; Sassen-Koob 1989; Sassen 1998). Stepick (1989), por exemplo, explora o
papel que a economia informal desempenha junto de haitianos em Miami, onde a
reparação de automóveis e os restaurantes não licenciados são algumas das
actividades desenvolvidas para escapar à pobreza. MacGafey e Bazenguissa-Ganga
(2000) mostram como os imigrantes, os estudantes e os ex-funcionários do
governo congolês participam numa economia paralela que se espraia entre Paris e
o Congo. Mais recentemente, Stoller (2002) revelou como comerciantes oriundos
da África Ocidental em Nova Iorque entraram no chamado sector informal como
vendedores ambulantes, não registados, de bens contrafeitos e pirateados.
Poderia mencionar outros exemplos, mas o que importa aqui realçar é o facto de
encontrarmos cenários semelhantes ao descrito anteriormente em locais tão
diferentes como Nova Iorque, Miami ou Paris, o que obviamente levanta a
hipótese de que a informalidade está, de alguma forma, relacionada com uma
condição estrutural (Portes e Sassen-Koob 1987). Tal constatação leva-me a
concordar com Sassen (1991) quando argumenta que a economia informal é o
resultado, antes de mais, de factores sistémicos. Os reajustamentos económicos
globais, baseados na descentralização da produção, no trabalho flexível e na
subcontratação afectaram vários países através da crescente informalização das
economias (Portes e Sassen-Koob 1987; Coombe e Stoller 1994). A sua presença,
crescimento e importância em cidades tão diferentes como Nova Iorque, Lisboa ou
Acra indiciam a relação entre a informalização do trabalho e as condições
criadas pelo capitalismo tardio a nível global (Sassen 1991). Isto parece ser
verdade, não apenas para os sectores mais desprivilegiados do mercado de
trabalho, mas também para os potenciais negócios desenvolvidos por imigrantes.
O que tal fenómeno implica é que este crescimento da informalidade foi
evidentemente acompanhado pelo recrutamento de determinados segmentos sociais,
entre os quais se incluem populações ditas autóctones, tais como jovens,
mulheres, idosos e filhos de imigrantes, mas também migrantes internacionais.
Antes de terminar, gostaria de salientar que, obviamente, as iniciativas
empresariais protagonizadas por imigrantes podem ser de facto sinais de êxitos
e sucesso na integração no mercado de trabalho. Existem muitos casos que
corroboram tais interpretações. No entanto, este fenómeno apresenta uma outra
face, por vezes silenciada, que se relaciona com o facto de estas iniciativas
resultarem de ' e / ou produzirem ' processos de marginalização. Escamotear
este último elemento é reproduzir de forma acrítica os modelos económicos
dominantes globais, mas, mais importante ainda, é colocar na penumbra os
processos de marginalização que empurram alguns segmentos da população,
imigrantes e autóctones, para actividades económicas que apenas podem ser
bem sucedidas recorrendo a práticas ditas informais.