Etnografia e Produção de Conhecimento: Reflexões Críticas a partir de Uma
Investigação com Ciganos Portugueses
Claire Auzias (Socius-UTL)
Obra recenseada: Maria José Casa-Nova, Etnografia e Produção de Conhecimento:
Reflexões Críticas a partir de Uma Investigação com Ciganos Portugueses,
Lisboa, ACIDI, 2009, 224 páginas.
Esta obra de Maria José Casa-Nova representa a primeira parte da sua tese de
doutoramento em antropologia social, onde a autora cruza uma sociologia e uma
antropologia da educação e da cultura.
A autora é professora de sociologia da educação e de imigração, minorias e
interculturalidade no Departamento de Ciências Sociais da Educação do Instituto
de Educação da Universidade do Minho, tendo já vários trabalhos publicados
(livros, capítulos de livro, artigos) nos domínios da etnicidade, género,
educação intercultural e políticas sociais.
Este livro repousa sobre uma investigação de terreno desenvolvida durante dois
anos junto de uma comunidade cigana residente num bairro social inserido na
periferia da cidade do Porto, mas as reflexões que realiza são também elas
devedoras de quase vinte anos de investigação com o grupo sociocultural
cigano, expressão que a autora usa para designar a população com quem trabalha.
Esta obra é constituída por duas partes ou por duas grandes temáticas. A
primeira parte constitui-se num manual pedagógico e académico de sociologia e
de antropologia, onde a autora desenvolve uma reflexão aprofundada sobre a
metodologia da prática de terreno, a sua deontologia e teorização na matéria, a
saber, a relação entre o autor e o seu terreno ' em ciências humanas,
precisamente os humanos.
É para aqui que aponta o subtítulo do seu livro, quando refere investigação
com ciganos portugueses: com e não sobre. Isto indica a direção da
investigação sobre a articulação e a relação com os interessados, considerados
como parceiros do trabalho, como participantes e atores da sua existência, em
oposição a toda a instrumentalização: em que medida a difusão dos resultados
pode prejudicar ou beneficiar a comunidade estudada é uma das interrogações
que a investigadora submete à nossa apreciação (p. 86). Preocupada com o uso
não controlado pelo investigador do conhecimento produzido, nas palavras da
autora, procurei filtrar a investigação no que concerne a determinados
contextos e processos de reprodução e produção cultural ciganos, mesmo com o
risco inerente de ocultação de dados que permitiriam uma maior compreensão
desses mesmos contextos e processos (p. 87).
A dialética sujeito-investigador / sujeito-investigado é um tema clássico na
antropologia, sobre o qual uma grande parte dos grandes autores se pronunciou,
e é agora mais utilizado em sociologia, durante muito tempo presa à objetivação
e distanciação em relação aos seus objetos de estudo.
Duas grandes referências sociológicas da autora são Daniel Bertaux, que
consagrou o seu contributo à sociologia através das histórias de vida e a
Escola de Chicago, em França; mas é igualmente Pierre Bourdieu, que nasceu para
a sociologia participante e subjetiva (cf. La Misère du Monde) demasiado tarde
na sua carreira, depois de defender durante décadas a arte da objetivação (cf.
Le Métier de Sociologue), da distância e da exterioridade em relação às suas
observações.
Maria José Casa-Nova utiliza com muita destreza a sociologia de Pierre
Bourdieu, criando mesmo os seus próprios conceitos: de habitusétnico, por
referência ao habitussocial de Bourdieu, e de lugares de etnia, este último
para evidenciar as diferenciações intraétnicas, dentro do que designa por
habituscomposto. Como refere a autora: Estes dois tipos de habitus (simples e
composto) condicionam tanto as relações interétnicas como as relações
intraétnicas, apresentando-se o que se denomina de lugares de etnia como
capazes de representar a grande heterogeneidade do habitusétnico. [ ] Assim
sendo, o habitusétnico não se apresenta como inalterável de práticas e
representações, mas antes como condições socioculturais individual e / ou
grupalmente reconfiguradas (lugares de etnia) dentro dos quais se dá uma grande
variabilidade de configurações inter e intragrupais [ ] (p. 192). Podemos
discutir a necessidade de criação destes conceitos, a juntar aos já existentes
na sociologia e na etnologia, mas é uma escolha da autora, uma escolha que é
explicitada e fundamentada e sobre a qual a investigadora dá os seus próprios
contributos.
Um terreno de observação é composto por sujeitos com os quais o outro sujeito
dialoga e que modifica, sem por isso se inibir a concetualização, a explicação,
mesmo a crítica e a sua própria dissonância: a relação de sujeito a sujeito não
implica mais em etnologia uma submissão a esta produção de subjetividades,
para recuperar o conceito caro a Deleuze e Guattari.
A introdução e esta primeira parte são, portanto, consagradas às questões
metodológicas e teóricas.
A segunda parte desta obra, ou melhor, o segundo objeto desta obra é a
restituição analisada do terreno em si: a perspetiva de Maria José Casa-Nova
está imbuída dos conhecimentos anteriormente produzidos sobre a questão
cigana, mas a sua fineza intelectual sobre certos aspetos aprofunda bastante
algumas das dimensões habitualmente tratadas mais grosseiramente.
A autora estudou 55 agregados familiares nucleares, totalizando cerca de 190
indivíduos entre os 4 meses e os 86 anos, dos quais apenas 11 têm mais de 50
anos. Todo o restante grupo é maciçamente jovem, com uma média de filhos por
casal que varia em função da faixa etária: 7 filhos nos casais nas faixas
etárias dos 55-65 e 66-70; 5 nos casais na faixa etária 45-54; e 2,6 nos casais
entre os 35 e os 44 anos (p. 37).
A estrutura das famílias ciganas deu lugar a vastas discussões entre os
especialistas. Aqui, a autora escolheu, como a antropóloga americana pioneira
neste domínio, Anne Sutherland, o desenho do gráfico demográfico de cada
família, o que oferece um quadro visível desta configuração particular.
Uma parte notável da obra debruça-se sobre dimensões usuais em ciganologia da
família, com uma descrição precisa das famílias estudadas. Os casamentos
endogâmicos, os casamentos exogâmicos, a parentela, os casamentos mistos, a
adoção de uma criança não cigana, as condições para uma entrada plena de novos
membros não ciganos na comunidade (por absorção completa), a regra do casamento
ideal (com primos em primeiro grau) ' todos este pontos são minuciosamente
tratados (a partir da p. 125).
No cerne das estratégias familiares encontra-se a virgindade da prometida, uma
obsessão sobre a qual repousa a honra da comunidade inteira e que determina o
grau de firmeza da cultura do grupo. Sobre esta dimensão, Maria José Casa-Nova
faz prova de uma dialética interessante entre as formas e a circulação da
dominação das mulheres pelos homens e, por outro lado, uma modalidade de
resistência das mulheres expressa de forma oculta. Trata-se de uma análise
largamente utilizada no que diz respeito, entre outras, às sociedades
magrebinas, mas à qual a autora acrescenta uma análise de dialética pessoal
mais subtil e complexa do que as habituais apresentações desta repartição de
poderes: a autora considera que de modo algum um poder doméstico (feminino)
significa a ausência de poder público entre homens e mulheres (p. 152 e segs.),
criando dois novos conceitos, particularmente interessantes para explicitar e
compreender a complexidade e dialeticidade de poder existente entre os homens e
as mulheres ciganas ' os conceitos de dominação subordinada e de subordinação
subordinante, eles próprios, como refere a autora, aplicáveis a outros
domínios, a outras esferas da vida social.
Entre os contributos inovadores da investigação de Maria José Casa-Nova, é de
assinalar a sua atenção às reconfigurações dentro da cultura cigana, quer
dizer, a historicidade dos processos em jogo, debaixo da tradição que cobre o
rosto do seu véu identitário.