Os Operários e as Suas Máquinas: Usos Sociais da Técnica no Trabalho Vidreiro
Luísa Veloso (ISCTE ' Instituto Universitário de Lisboa, CIES-IUL)
Obra recenseada: Emília Margarida Marques, Os Operários e as Suas Máquinas:
Usos Sociais da Técnica no Trabalho Vidreiro, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2009, 452 páginas.
Com este livro, Emília Margarida Marques publica a sua dissertação de
doutoramento em Antropologia. Como é referido por Jorge Crespo no prefácio à
obra, este livro decorre de um longo trabalho de terreno da autora sobre a
indústria do vidro na Marinha Grande e enquadra-se na temática dos usos
sociais das técnicas, que é problematizada convocando saberes teóricos e
procedimentais de várias ciências sociais. Constitui, desde logo, um contributo
fundamental, por abordar um assunto escassamente estudado em Portugal. Mais
pertinente ainda se torna por se debruçar sobre o desempenho profissional de
trabalhadores que exercem as suas funções com dispositivos técnicos
automatizados, discutindo a sua apropriação.
A obra estrutura-se em sete capítulos. No primeiro a autora apresenta as
motivações para a investigação que realizou, enquadrando-as no seu percurso
pessoal e profissional na Marinha Grande. Avança ainda com a discussão em torno
dos escassos estudos existentes no domínio da antropologia das técnicas e do
trabalho industrial. Trata-se, contudo, de uma abordagem sumária, parcialmente
retomada no capítulo 2. Tal opção de apresentação em dois capítulos distintos
exige ao leitor o trabalho de articulação dos vários contributos. Mas o cerne
da questão, sublinhado pela autora, é a introdução do objeto máquina: as
utilizações da matéria na construção do social (p. 51).
O capítulo 2 condensa uma análise acerca do lugar ocupado pela matéria e pelas
técnicas na antropologia. A autora propõe um percurso histórico que remonta ao
século XIX, evidenciando a valorização dos objetos como elementos de
demonstração de especificidades culturais. No entanto, e como é referido, tal
não deu desde logo origem a uma antropologia das técnicas: o objeto contava
enquanto dado, na sua substância material de coisa acabada, não enquanto
processo (p. 55). Este capítulo é ainda estruturante desta obra por
estabelecer as primeiras pontes com a antropologia do consumo (p. 77) dos
objetos, isto é, a sua apropriação social. Embora da produção ao consumo vá uma
distância considerável, impossível de encerrar neste livro, a autora lança
algumas pistas nesse sentido. Assim, ganha destaque, de uma forma mais ampla, a
dinâmica social de apropriação dos objetos.
O capítulo 3 é centrado nas abordagens (não exclusivamente antropológicas) das
técnicas e dos seus usos sociais. E, neste domínio, é incontornável o trabalho
de Latour e a nobilitação dos objetos como integrantes das redes constituídas
por humanos e não-humanos. A autora problematiza, ainda, a matéria, a técnica
como fonte de poder e de dominação. Também este eixo será estruturante na
análise da indústria automatizada do vidro.
Estes três capítulos (em particular os capítulos 2 e 3) condensam os grandes
eixos de reflexão que a autora procura mobilizar na análise. Note-se, aqui, a
necessidade, para o leitor, de um trabalho de síntese e de articulação com o
objeto de estudo apenas de uma forma parcial.
O capítulo 4 é dedicado às opções metodológicas de entrada na fábrica. Trata-se
de uma reflexão muito rica e essencial na obra, na medida em que permite
compreender a inscrição da investigação no espaço e no tempo, os instrumentos
de análise acionados e os procedimentos de sistematização da informação, na
medida em que a pesquisa se faz tanto de impressionismo, sensorialidade e
relação interpessoal, como de reflexão e abstração (p. 141). Com este capítulo
se faz a ponte para os dois capítulos que se seguem e que são o eixo central
deste livro.
No capítulo 5 é apresentada a evolução histórica da indústria do vidro de
embalagem na Marinha Grande. Este tem um anexo interessante de fotografias que
permitem ficar com uma panorâmica do que é descrito ao longo do capítulo, com
destaque para as transformações que marcam o espaço da fábrica entre o fabrico
manual e o fabrico automatizado de garrafas e o enquadramento da evolução da
indústria vidreira no percurso histórico da política industrial portuguesa.
Destaca-se, neste capítulo, o facto de se assistir à estruturação de um grupo
de profissionais ' os vidreiros ' marcado por uma estrutura hierárquica de
trabalho de ofício e às transformações que foram tendo lugar, ao longo do
século XX, em particular, com a introdução de máquinas. A técnica materializada
teve consequências nas formas de identificação e de vivência da profissão de
vidreiro, mas não retirou poder aos detentores de tal título profissional. Já
nas décadas de 40 e 50, assiste-se à adesão ao sistema semiautomático de
fabricação por parte dos ajudantes em início de carreira e não dos oficiais nem
dos ajudantes altamente qualificados (p. 191). Verifica-se, deste modo, uma
rotura com a hierarquia profissional passada (mas que não é total), a
constituição de um grupo qualificado, coeso e relativamente autónomo (p. 193)
e uma apropriação da máquina. O fim da Segunda Grande Guerra é marcado por um
forte crescimento do desemprego e a introdução de máquinas automatizadas na
indústria do vidro da Marinha Grande. No entanto, este processo é pleno de
avanços e recuos de que autora dá conta e que marcam a história da indústria
portuguesa.
É extremamente interessante o contributo desta obra para a construção social
das profissões e das respetivas classificações profissionais, nomeadamente ao
evidenciar a emergência dos condutores de máquinas (p. 223). A introdução de
equipamento automatizado nesta indústria teve consequências visíveis ao nível
da estrutura técnica, produtiva e organizacional das fábricas, da composição
dos profissionais e das respetivas práticas de gestão (em domínios como o das
remunerações e das carreiras), do conteúdo do trabalho, da formação e das
identidades.
E é assim que a autora procede à transição para o capítulo 6, centrado nas
alterações ocorridas com a introdução dos mecanismos automatizados. O texto é
longo e rico do ponto de vista da análise, e persiste aqui a preocupação com a
explicitação do trabalho etnográfico realizado. Neste capítulo, profícuo em
detalhes sobre o processo produtivo, é notória a preocupação em dar conta da
complexidade do real. Destacam-se aqui três eixos. O primeiro radica no facto
de a matéria-prima em causa, o vidro, não ser estável. Sofre variações com
consequências no produto final e constitui-se como um não-humano que exige uma
intervenção humana; logo, persiste, com os mecanismos automatizados, um
processo social de apropriação / manipulação da técnica. O segundo eixo é a
relação entre os usos da técnica e os objetivos de rentabilização económica das
empresas. O terceiro assenta nas margens de autonomia dos trabalhadores na
gestão e divisão do trabalho, associadas à estruturação de hierarquias internas
num processo que, numa leitura de senso comum, por ser automatizado, apontaria
para uma forte rigidez e determinismo tecnológicos. Não se trata apenas de uma
construção dos trabalhadores, decorre também das exigências do processo
produtivo. Assim, por razões associadas às caraterísticas da matéria-prima, às
exigências na condução das máquinas e da história da indústria do vidro na
Marinha Grande, para referir apenas estes aspetos, soma-se à análise o
processo, não apenas de uso social, mas de construção social do uso da técnica.
Este livro termina com um (talvez demasiado) breve texto em que se enfatiza a
relevância da análise sobre os usos sociais das técnicas e se encerra o ciclo
sugerindo, como já foi aqui referido, a prossecução da reflexão no âmbito da
antropologia dos consumos e da cultura material (p. 359).
Esta constitui uma obra importante para a análise do trabalho nas ciências
sociais, expondo uma pesquisa que se debruça sobre o desempenho do trabalho
humano em relação com as técnicas, acompanhando o processo de automatização da
indústria do vidro de embalagem.
Uma nota final para destacar a relevância e utilidade documentais dos anexos da
obra, em particular para os dois primeiros: uma cronologia da evolução da
indústria do vidro de embalagem em Portugal e um glossário da terminologia
vidreira.