O pescador e o seu duplo: migrações transnacionais no mar europeu
História marítima transnacional
Toda a vida das sociedades, onde reinam as condições atuais de produção, se
anuncia como uma imensa acumulação de proletarizações. A análise das migrações
transnacionais, forma elementar desta riqueza, será portanto o ponto de partida
deste artigo. Os naufrágios das embarcações Luz do Sameiroe Petit Julie,
ocorridos respetivamente a 29 de dezembro de 2006 e a 7 de janeiro de 2008,
encerram a similitude trágica de terem provocado a morte de seis pescadores em
cada barco de pesca. O único sobrevivente da embarcação portuguesa que operava
junto da costa da Nazaré foi Vasyl Huryn, trabalhador ucraniano de 46 anos, que
desempenhava a tarefa de cozinheiro. Na embarcação francesa sobreviveu David
Marques, com 48 anos, pescador profissional que, juntamente com dois
camaradasportugueses, trabalhava nos mares da Bretanha francesa. Estes dois
acontecimentos constituem uma introdução para dar relevo a uma reflexão sobre
as atuais migrações transnacionais. O setor das pescas europeias encontra-se
numa posição original face ao seu passado; transformou-se num setor de
migrações paralelas, resultado da situação política e económica de estar
inserido na União Europeia (UE), que tem como paradigma a livre circulação de
pessoas, bens, serviços e capitais dentro do Espaço Schengen. Em tal contexto,
a análise dos processos migratórios contemporâneos surge enriquecida com a
possibilidade de estudo de um duplo movimento de fluxos de pessoas que decidem,
dentro dos seus recursos disponíveis, ficar na região de origem ou partir para
outros lugares, em busca de oportunidades profissionais e de vida que não estão
a conseguir obter nos seus países. Neste texto procedo à análise do
transnacionalismo europeu no setor primário das pescas com a perspetiva de que
os pescadores migrantes são eminentemente trabalhadores e só depois
estrangeiros. Analiso as principais tendências estruturais do setor da pesca,
observando o fenómeno das migrações dentro do espaço europeu e a sua lógica
socioeconómica específica, considerando que a força de trabalho dos migrantes
transnacionais não se limita a constituir uma força de mão de obra suplementar
numa conjuntura de crescimento económico, mas constitui um elemento fundamental
na estrutura económica do setor das pescas europeu. A atual divisão
internacional do trabalho, que tem vindo a ser desenvolvida desde os anos 70 do
século XX, efetiva uma organização da produção que favorece as deslocações
transnacionais da força de trabalho. Ao longo do artigo insiro diversos
excertos de entrevistas, nos quais pretendo, mais do que isolar o conteúdo,
destacar em diferentes níveis as informações qualitativas obtidas no terreno.
[1]
Seguindo o exemplo do estudo de Simmel (2004), quanto aos nomes das pessoas,
opto pelas possibilidades de leitura criadas na escolha de personagens
conceptuais (Deleuze e Guatari 1992).
Mobilidade do trabalho e do capital no mar
A questão da mobilidade nas pescarias é complexa. Comparativamente com outros
mercados de trabalho, o setor da pesca tem características específicas, pois é
uma atividade extrativa e aleatória de exploração dos recursos haliêuticos.
Quanto à mobilidade espacial dos fatores de produção em causa, nomeadamente o
trabalho, o mar e o capital, é evidente que este último tem a sua mobilidade
condicionada por não poder deslocalizar a produção para outros locais em que os
fatores de produção sejam mais favoráveis. Por outro lado, ao contrário da
terra, que não tem qualquer tipo de mobilidade, o fator da mobilidade dos
recursos piscícolas cria predisposições para uma mobilidade maior do fator
trabalho e para uma mobilidade relativamente reduzida do fator capital, que se
soma ao risco da garantia de retorno do investimento. Os recursos piscícolas
são móveis, criando meios de produção e relações de produção diferentes da
atividade agrícola ou de outras atividades transformadoras. Apesar da relativa
mobilidade dos recursos, tanto o trabalho como o capital são adaptados a essas
condições. Ambos têm de se situar geograficamente. Na impossibilidade de
transferir o capital para fora dos stocks de pesca existentes no espaço
marítimo europeu, armadores e grandes empresas de distribuição alimentar
procedem à deslocalização interna da sua produção através do trabalho migrante.
Nesta perspetiva, é possível pensar em paralelos com outros mundos do trabalho,
criando uma ligação efetiva com o setor agroalimentar europeu (Chesnais 2004),
como foi realizada anteriormente para os setores da restauração e da construção
civildevido aos obstáculos que se colocam à transferência geográfica da
produção (Baganha, Ferrão e Malheiros 1999). Realmente, os recursos dos mares
europeus, como os recursos da terra, têm de ser produzidos internamente, o que
limita fortemente os processos de relocalização produtiva. A transferência
internacional das unidades de produção (Duarte 2002) para locais onde a mão de
obra é abundante e barata é dificultada quando se quer explorar os recursos
alimentares europeus. A solução das empresas multinacionais consistiu, em
diversos casos, em importar pescadores estrangeiros (Souto 2003), que se tornam
mais económicos quando envolvidos em transações e estratégias associadas ao
trabalho clandestino da economia subterrânea ou informal (Cabral 1983; Portes
1994).
Shrinking workers in a shrinking world
O conceito de globalização
[2]
tem sido usado para dar conta da tendência crescente do processo de
desenvolvimento do sistema económico capitalista, em que as diversas atividades
económicas mercantis têm um enquadramento cada vez mais supranacional,
produzindo um incremento dos mercados de bens, serviços e fatores de produção,
que seguem neste processo uma tendência cada vez mais global. Este processo
mundial tem sido grampeado em três dimensões que se encontram interligadas e
interdependentes, e que consistem nos fluxos internacionais de bens e serviços,
nos fluxos internacionais de capitais e nos fluxos internacionais de pessoas
(Silva 2007). A interdependência reforça-se com a intensificação dos circuitos
económicos, políticos, culturais e ecológicos. Se os retratos panorâmicos da
globalização (Roseberry 1988) têm sido caracterizados por um mundo de
mobilidades e interconexões com uma miríade de processos a operar numa escala
global (Ezensberger 1998), a pesquisa antropológica focou também o seu olhar em
áreas remotas (Ardener 1987) e nas dimensões de abjeção e desconexão
(Ferguson 1999) existentes e potenciadas por uma economia mundial (Tsing 2000).
A antropologia da globalização tem dado um enfoque centrado tanto no mapeamento
de fluxos particulares de capitais (Maurer 2000), pessoas (Rouse 1991),
mercadorias (Bestor 2004a [2001]), imagens (Larkin 1997) e ideologias (Abu-
Lughod 1991) que cruzam o globo, como nas experiências que as pessoas têm em
locais específicos, assumindo-se de forma dinâmica que o seu quotidiano é
conectado a processos culturais globais sem ser de modo determinista (Inda e
Rosaldo 2002).
A atual globalização económica e financeira tem diversas vertentes (Amaral
2002), mas ao longo do século XX a importância das multinacionais não cessou de
aumentar (Wolfe 1977). Independentemente da perspetiva de análise adotada e dos
acérrimos debates consequentes (Marcus e Fischer 1999 [1986]), o que esteve
desde o início em discussão decorreu do aumento exponencial da
internacionalização da produção pelas principais empresas multinacionais,
designadas internacionalmente corporações transnacionais não financeiras (TNC).
Segundo os números apresentados na United Nations Conference on Trade and
Development (UNCTAD 2004), existem atualmente cerca de 63.834 empresas
transnacionais, com aproximadamente 866.119 empresas estrangeiras associadas.
Independentemente das considerações sobre o processo de desenvolvimento das
empresas, isto é, se são eminentemente globais, transnacionais ou
internacionais, e do seu peso específico na economia, é apontado que estas
empresas gerem a maioria do comércio mundial, chegando a assumir 80% do
comércio externo e a empregar mais de 53 milhões de pessoas (MacGillivray
2006). As multinacionais são elementos fulcrais dos atuais sistemas globais de
produção e distribuição de mercadorias. A sua expansão, num número cada vez
maior de mercados, definindo e reunindo estratégias concertadas ou concorrentes
à escala global, revela-se tanto na produção e venda de bens e serviços, como
na implementação crescente de estruturas organizadas de redes mundiais.
A partir deste panorama geral calcula-se a situação interna da UE, em que as
multinacionais a operarem no setor primário agroalimentar, não conseguindo
transferir a produção para o estrangeiro, transferiram a mão de obra de outros
países, tanto de países europeus como de outras partes do mundo. Para tal,
passado um período longo de uma relativa conciliação entre capital e trabalho
na Europa, criaram-se medidas excecionais, referentes à concessão ou ausência
de direitos de trabalho, residência e cidadania, tendo como fim agilizar
processos de importação de mão de obra estrangeira, desregulamentando
paralelamente as políticas laborais existentes (Jappe 2006). Esta política
neoliberal merece um desenvolvimento específico do caso francês, tanto pelo
papel pioneiro deste país na flexibilização da conceção de cidadania e
condições de exceção (Meillassoux 1977), como pelo incremento das ações de
concentração das principais multinacionais da indústria alimentar e de
distribuição dentro do espaço europeu ' em determinados países europeus, estas
chegam a controlar cerca de 80% do mercado (Chesnais 2004). Retenham-se as
condições de exceção. Para assentar o conceito da globalização não o
encarando como uma entidade formuladora que impõe um molde fixo e uma grande
teoria mundial, Aihwa Ong, no seu ensaio Neoliberalism as Exception(2007
[2006]), argumenta empiricamente que o neoliberalismo corresponde a um novo
modelo de otimização política reconfigurador das relações de soberania de
governantes e governados. A autora, contrariando a visão unilateral da presença
de uma doutrina económica com uma relação negativa com o poder de Estado, muda
o ângulo de análise procurando novas latitudes, aferindo como em diferentes
blocos económicos regionais se têm rearticulado domínios de governo e de
conhecimento em que a ação dos Estados é reconfigurada em problemas, não
ideológicos nem políticos, mas como problemáticas que necessitam de novas
soluções técnicas. De facto, tem-se assistido a um processo de integração
regional de blocos económicos cujos exemplos mais claros são a América (NAFTA e
Mercosul), a Ásia (ASEAN) e a Europa (UE). Na perspetiva etnográfica da
antropóloga, as questões de soberania, cidadania e racionalidade económica
interagem de forma decisiva na esfera do trabalho e da sobrevivência humana.
Sindicalismo entre o mar e a terra
Os aspetos burocráticos, esse tipo de questões, somos nós que acabamos por
apoiar e ajudar. Não é tanto o papel de um sindicato tradicional. Os sindicatos
tradicionais têm por princípios maiores a contratação coletiva, o apoio
jurídico, a luta por melhores condições de vida. No caso concreto das pescas, e
em particular por esta situação de migração que é específica, nós sentimo-nos
na obrigação de acompanhar o acesso às prestações sociais, seja os abonos, a
assistência médica. Também tentamos a resolução de pequenos problemas, sejam
atrasos ou custos de transferências bancárias para as famílias. Ou seja,
facilitar um bocado, dentro daquilo que está ao nosso alcance. Por exemplo no
naufrágio de Petit Julie, fizemos o contacto com o consulado no sentido de
pedir apoio e de os sobreviventes e os familiares serem acompanhados, porque
estava lá família do moço que morreu da Praia de Mira. Requerer as pensões de
sobrevivência para as famílias. Toda uma espécie de aspetos burocráticos que os
pescadores já cá em Portugal têm alguma dificuldade. Atendendo depois a ser
outra língua, às diferenças de tratamento, até à diferença de direitos que
existem, sentimo-nos na obrigação de apoiar e ajudar a ultrapassar estas
dificuldades [Sindicalista, 45 anos].
A relação entre os processos migratórios e o mercado de trabalho tem tido ampla
investigação científica (Peixoto 2008). Pela especificidade desta pesquisa, que
analisa as migrações contemporâneas num setor particular de um mercado de
trabalho, nomeadamente o setor das pescas, os fluxos transnacionais do
proletariado marítimo ganharam particular destaque. Segundo a teoria do mercado
de trabalho segmentado (Portes 1999), existem dois grupos principais: o do
mercado primário, que tem como principais tendências a estabilidade das
condições de emprego, altos salários, perspetivas de progressão de carreira e
elevado estatuto com proteção social; o do mercado secundário, caracterizado
por empregos com elevada insegurança contratual, baixos salários, reduzidas
oportunidades de progressão nas carreiras, reduzidos estatuto e proteção
sociais. Com o pretexto de recolher testemunhos sobre os dois naufrágios
referidos no início do artigo, desloquei-me ao Norte de Portugal para conversar
com o Sindicalista, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Pesca do Norte
(STPN).[3] No dia em que combinámos o encontro, ele pediu-me desculpa, mas
tinha um conjunto de ações a desenvolver enquanto dirigente e os contactos que
eu queria estabelecer com pescadores que tinham emigrado tiveram de ficar
suspensos. Por motivos da sua agenda pessoal, consegui então acesso a uma
experiência que procurava também conhecer. Refiro-me ao papel de mediador que
um dirigente sindical está sujeito a exercer no contexto específico do setor
das pescas, setor este que desde muito cedo foi permeável aos movimentos
migratórios (Nunes 2005) devido à sua especificidade tecnológica (Souto 2007),
mas também por pressões externas à atividade piscatória (Lobo 1991). Nesse dia
viajámos até à Costa Nova, na Ria de Aveiro, num carro desportivo com valor
comercial de 40.000 euros, símbolo do capital adquirido numa década de pesca
em empresas francesas. O proprietário da viatura era o Pescador Emigrante, de
57 anos. Apesar de ser natural da Costa Nova, e de ter quase toda a sua família
a residir naquela comunidade piscatória, estava desorientado com a localização
pretendida. O motivo era explícito. O devir de construção das habitações
naquela tarde era frenético, o aumento em altura das casas e as obras de
recuperação das fachadas eram as dinâmicas mais salientes no bairro. Os homens
que se viam nas ruas eram operários de construção civil, distribuídos por dois
polos, homens de idade avançada e adolescentes. Dentro das diversas casas que
visitámos, familiares de pescadores discutiam com o dirigente sindical questões
de vida e de morte que perturbavam o seu quotidiano. Numa casa, acercámo-nos de
uma mulher perturbada pela morte recente do seu companheiro num acidente de
trabalho em alto mar. As questões levantadas no meio de uma comoção
generalizada diziam respeito a seguros de saúde, direito à pensão de reforma,
assistência psicológica para enfrentar a morte do marido. Noutra vivenda
encontrámos um pescador convalescente devido a um ataque epilético que sofreu a
bordo de um navio-fábrica
[4]
nos mares da Bretanha, tendo permanecido em coma durante um mês num hospital
francês, e que agora terá de ficar em terra pelo menos um ano. O pescador,
pejado de dúvidas relativamente aos medicamentos que os médicos franceses lhe
tinham prescrito, pediu ao Sindicalista para traduzir as receitas, tendo este
prontamente telefonado a um médico amigo do Hospital de Aveiro para atender o
pescador.[5] Enquanto se trocavam novidades entre o que se passava nos mares da
França e em Portugal, o Sindicalista ia recebendo chamadas internacionais sobre
embarques e desembarques e as necessidades dos armadores franceses e dos
pescadores portugueses.
Deixei a pesca o ano passado. Trabalhei 35 anos em Portugal e oito anos em
França. A 26 junho de 2007 desisti da França também. A primeira vez que
embarquei foi nesses barquinhos pequenos, de boca aberta, tinha eu 13 anos. Já
não andava na escola, fiz só a quarta classe e deixei os estudos. A necessidade
assim o obrigou, éramos muitos, tinha nove irmãos. Aos 17 anos parti para a
pesca longínqua, na pesca do bacalhau à linha. Andei três anos, de 1968 a 1970,
no barco Capitão João Vilarinho, de Aveiro. Embora esse barco usasse um pano
[vela], tinha motor. A tripulação era composta por moços, pescadores,
maquinistas, oficiais e éramos à volta de 110 homens. Neste tipo de pesca
fazia-se viagens de cinco a seis meses de mar. Depois, em 1971, mudei para a
pesca do arrasto, para a embarcação São Gonçalinho, também de pesca longínqua e
do bacalhau, mas a companha era já de 60 homens. Fiz dois anos nesse barco.
Depois desses barcos clássicos, que pescavam de borda, trabalhei no Santa
Cristina, da mesma empresa de pesca. Esse já era um navio-fábrica, de grandes
dimensões, que pescava de popa. Normalmente fazíamos viagens de cinco meses,
era conforme, se o barco carregasse antes vínhamos embora, se não ficávamos até
ao fim. Andei então na costa do Canadá nos pesqueiros de St. John's à Terra
Nova até 1979. Depois deixei e vim para os barcos da nossa costa. Eram barcos
com sete homens, de popa na mesma, só que a qualidade de peixe é que era outra.
Apanhava-se tudo, carapau, faneca, pescada, polvo, lulas, choco, linguado, tudo
o que viesse à rede. Ia mudando de barco quando já não me sentia bem, às vezes
não nos sentimos bem. Mudava também quando subia de categoria. Comecei como
pescador, depois, subi para marinheiro, contramestre, e andei a fazer essa
tarefa até à greve do arrasto de 1999. O que nós reivindicávamos era o que hoje
ainda está. As condições são precárias e o marinheiro continua na mesma
situação. Manteve-se sempre nos últimos 35 anos a percentagem de 1,2% nos
lucros. Depois fez-se a greve de três meses que não deu em nada. Houve quem
fugisse com os barcos para Espanha, outros acabaram por furar a greve. A
maioria das pessoas começou a ficar com falta de capital, havia uns que
conseguiam parar, outros não. Ainda foi muito tempo de greve, havia as rendas
para pagar, o dinheiro deixou de entrar em casa e criou-se problemas nas
famílias. Tudo se manteve na mesma e ninguém deu nada a ninguém. Os barcos
continuaram a ir para os mares, aos fins de semana e tudo. E eu disse: «OK!
Acaba-se a greve mas eu não trabalho aos fins de semana. Nunca!» Passados sete
dias fui-me embora para França, onde andei até 2007. Já lá andava um português.
Parecia-me mal voltar para o mar nas mesmas condições de antes da greve. Estive
três meses parado, sem receber nada e ia para o mar? Achei que não e nunca mais
voltei [Pescador Emigrante, 59 anos].
O trajeto profissional do Pescador Emigranteé ilustrativo das principais linhas
de exploração do setor português da pesca, bem como da mobilidade de um
pescador que trabalha em diversos tipos de pesca, neste caso, a artesanal
local, a costeira, a industrial e a do largo ou longínqua. Na viagem que
efetuei ao Norte de Portugal, em março de 2008, estive com quatro pessoas do
setor das pescas com diferentes percursos de vida: o Pescador Emigrante, de 59
anos, trabalhador na pesca longínqua no Canadá e recém-chegado da Bretanha
francesa; o Sindicalista, com 45 anos, dirigente sindical do STPN; o Imigrante
Suíço, com 35 anos, pescador de cerco de sardinha que desistiu da atividade
marítima no ano passado, viajando para o estrangeiro para trabalhar na
construção civil; e o Arrais de Pesca, de 42 anos ' camarada na embarcação
Pedro André ', que, apesar das dificuldades do setor das pescas em Portugal,
tem apostado em continuar a sua progressão socioprofissional na costa
portuguesa. As suas diferentes biografias representam algumas das situações
profissionais que se vivem atualmente no setor das pescas transnacionais. Como
profundidade de campo surgiu a questão de os pescadores portugueses terem
começado a sair em grande número para o estrangeiro, depois da greve de 77 dias
da pesca do arrasto que ocorreu em 1999.[6]
Pretendia-se a renegociação do contrato coletivo da pesca do arrasto em
Portugal. Há volta de 10 anos que não havia qualquer de negociação. A União
Geral dos Trabalhadores (UGT) ia assinando pequenas coisinhas e evidentemente
deu-se uma situação de revolta por parte dos pescadores. E o STPN parte para a
greve. Aquilo ainda deu mais revolta e a greve inicia-se à meia-noite em
Matosinhos e começou-se a prolongar por todo o país pela revisão do contrato
coletivo do arrasto costeiro, tendo parado a totalidade das 60 embarcações que
havia na altura do arrasto a nível nacional. Aliás, os pescadores da pesca
artesanal recordam-se que esse foi o melhor de sempre na pesca do carapau,
porque assim acabou por o peixe ter mais valor, mas a verdade é que parte do
mercado foi abastecida pelo pescado autotransportado e pelo pescado congelado.
Por outro lado, a oportunidade de os pescadores começarem a trabalhar em
empresas francesas iniciou-se com a proposta de um estagiário que estava no
grupo Intermarché, em Peniche. Em finais de 1997 contactou o Sindicato de
Pescadores do Centro no sentido de estudar a possibilidade de haver gente que
quisesse ir trabalhar para França, para duas empresas do grupo, sediadas em
Lorient, na Bretanha francesa. Depois, dois anos mais tarde, [surgiram]
empresas de outros lugares, nomeadamente a Compagnie de Pêches de Saint Malo,
de pesca industrial, que tem dois navios, um de bacalhau, outro de verdinho,
este último para fazer pasta para as delícias do mar. Através da ida destas
pessoas para lá e com a falta de mão de obra em França, que também tem a ver
com os rendimentos baixos da pesca em França Ou seja, para nós, pescadores
portugueses, interessa ir para lá porque os salários em França são maiores, um
pouco como interessa aos ucranianos virem para a pesca em Portugal. Isto é um
bocado como uma pescadinha de rabo na boca, os ucranianos vêm para Portugal, os
portugueses vão para França. Por outro lado, não conheço casos de pescadores
franceses de irem para outros países, vão é para outros setores de atividade
onde há maiores salários. Começa a haver um reconhecimento da mão de obra
portuguesa, como bons redeiros, tipos com valentia, gajos corajosos e bons
profissionais. Depois é: passa-se a palavra, dão o contacto do STPN, os
próprios pescadores questionam: Eh pá, não tens lá um amigo, conheces lá
alguém?', troca-se o contacto do sindicato e hoje temos um conjunto de
empresas, aliás cada vez mais, que nos contactam e a malta nem sequer consegue
dar vazão à procura. Também começamos a ter algum cuidado com as empresas que
nos procuram e a privilegiar aquelas que dão melhores condições sociais e onde
o pescado tem mais valor. Depois das duas empresas já referidas, trabalhamos
também com a Dhellemes ' pesca industrial ' em Concarneau e com duas ou três
cooperativas em Sables d'Olonne e La Rochelle que dão um bom acompanhamento aos
nossos associados, aos pescadores portugueses que lá estão [Sindicalista, 45
anos].
Tendo em conta as características da Zona Económica Exclusiva (ZEE) portuguesa,
será na plataforma continental que irá atuar a maioria da população, direta e
indiretamente ligada à pesca, e é desta área que é proveniente a maior
quantidade de pescado.[7] A pesca artesanal, segundo dados de 2008 do Instituto
Nacional de Estatística (INE), empregou mais de 4 / 5 dos pescadores
portugueses e contribuiu com 80% dos desembarques ocorridos nesse ano. O
predomínio deste tipo de pesca em Portugal, juntamente com a Grécia e a
Espanha, países estruturalmente delimitados por um tipo de pesca local, fez com
que fosse reconhecida ao setor pesqueiro destes países uma especificidade
própria dentro do contexto comunitário. Independentemente dos objetivos
económicos que estão subjacentes à política comum das pescas, na sua solução de
redução de embarcações com o argumento de se adaptar a frota de pesca aos
recursos, pode constatar-se que o caso português é exemplar. Desde a adesão de
Portugal à UE foram reduzidos em mais de 50% o número de pescadores e de
embarcações. Este quadro decrescente não deve ser lido como um retrato
inequívoco de um setor em crise. Se atentarmos nas Contas Económicas da Pesca
1998-2007 (INE 2008), verificamos que, apesar de o número de efetivos ter
diminuído, refletindo as mudanças estruturais das pescarias nacionais,
nomeadamente o abate de embarcações e a modernização da frota, houve
paralelamente um aumento da produtividade do setor. Tal situação, paradoxal,
pode ser explicada pela diminuição acentuada de pescadores na pesca polivalente
(tradicional), por uma relativa estabilização de trabalhadores na pesca
costeira (semi-industrial) e pelo crescimento significativo de trabalhadores na
pesca do arrasto (industrial).
O enfoque da maioria das medidas comunitárias em Portugal incide diretamente na
atividade económica dos pescadores, através de entraves cada vez maiores para a
carreira profissional de novos trabalhadores, o progressivo impedimento da
renovação de licenças de pesca, e a proibição do uso de diversas artes. O
agravamento dos custos de produção, em grande parte provocado pelos aumentos
dos combustíveis, e o não acompanhamento da variação dos preços do pescado são
fatores não exclusivos da realidade portuguesa mas que adquirem dimensões
exponenciais devido à realidade estrutural do país. Este, em termos de consumo
per capita, apresenta valores na ordem dos 50 kg / ano, sendo assim o terceiro
maior consumidor mundial de pescado, só ultrapassado pelo Japão e pela
Islândia, quando a média da UE ronda os 23 kg / ano. O setor das pescas
nacional sofreu nas últimas décadas uma redução tripla, seja no nível das
capturas de pescado, seja na dimensão da frota, seja ainda na população ativa.
A título de comparação com a Espanha ou a Irlanda, denota-se nestes últimos uma
pujante atividade económica das suas pescarias. Estes países são exemplos
operativos pois, apesar dos constrangimentos jurídicos internacionais e de
estarem igualmente abrangidos pela política comum das pescas da UE, a Espanha
conseguiu não ter perdas e a Irlanda duplicou as suas pescarias (Matias 2006).
Atualmente, mais de 80% do pescado consumido em Portugal é importado de dezenas
de países, comunitários e não comunitários, dos quais a Espanha e a Noruega
assumem um lugar preponderante. A dependência do exterior é muito superior à
atual média da UE e tem vindo a aumentar (Garrido 2006). As consequências desta
situação são múltiplas, além da subordinação crescente que faz pesar sobre o
país relativamente aos países exportadores. Um desequilíbrio surge entre os
recursos internos e as necessidades da população, gerador de uma situação
precária, inteiramente dependente de um aprovisionamento que só depende da boa
vontade das grandes potências europeias. A sujeição conduz assim a uma espécie
de viveiro de reserva de mão de obra (Godinho 2009), cujo volume depende dos
países capitalistas avançados que investem estrategicamente em Portugal. O mais
saliente nas palavras e ações doSindicalista foi a articulação dos problemas da
classe piscatória a um nível local, nacional e transnacional. A perceção da
realidade émica dos pescadores, marcada por uma insegurança decorrente da
flexibilidade e individualização da sua força de trabalho, é respondida com uma
atitude que se estende para além da esfera laboral, pensando os desafios do
setor das pescas no quadro mais vasto da sociedade contemporânea.
O peixe como recurso global e o mercado europeu
Nunca pensei ficar em França. Tive sempre a postura de trabalhar enquanto
desse lá e depois voltar para casa, para Portugal. Contudo nós nem notávamos a
diferença, até na lei nós não somos emigrantes, somos migrantes. Trabalhamos em
França mas temos a residência em Portugal. A empresa não nos dava residência lá
e nós automaticamente aceitámos as condições que eles ofereceram. Dentro da
Europa existe a livre circulação de pessoas. Por outro lado, os pescadores
embarcam diretamente para o mar. Como somos cidadãos da UE, não precisamos de
ter residência em França. Teríamos de ter um espaço físico, de ir à polícia
para nos registarmos, era toda uma série de burocracias que assim não temos de
atravessar. Somos pescadores do espaço europeu. Em termos de assistência
médica, em França também seria muito melhor. Teríamos direito à carta Vitalis,
não pagando a médicos, nem medicação. Poderíamos recorrer ao privado. Com os
portugueses a trabalhar assim, a França paga 400 euros à cabeça à Segurança
Social portuguesa e esta safa-se connosco. Esses são os direitos que os
franceses têm. Os que têm residência em França são trabalhadores portugueses,
mas estão a receber os mesmos salários, pagam os mesmos impostos, fazem os
mesmos descontos para a Segurança Social que um trabalhador francês que exerce
a mesma profissão. Há também [outras] duas diferenças importantes. A primeira é
a do abono de família, que anda à volta de 100 euros por filho. A segunda é que
nós somos descontados de impostos, de IRS, e não recebemos depois. Tem esse
contra [Pescador Emigrante, 59 anos].
Este pescador, no seu percurso profissional transnacional, considera que a
alteração mais significativa que ocorreu na pesca nos mares europeus foi deixar
de se perder tempo com burocracias administrativas para ir operar nas zonas
económicas marítimas de outros países. A UE, através do seu mercado comum,
transformou-se num exemplo claro de uma região globalizada, através de um cada
vez maior entrelaçamento das economias, dos mercados, dos sistemas financeiros,
comerciais e de transportes, bem como de uma articulação nos sistemas de
comunicação e de mão de obra entre os atuais 27 Estados-membros (Reis e Baganha
2002). Os dados relativos à produção e comércio mundial de pescado,
apresentados pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a
Alimentação no seu relatório The State of the World Fisheries and Aquaculture
(FAO 2009), salientam que a questão global da gestão das pescarias é de crucial
importância para os países fora do eixo EUA-UE-Japão. Apesar dos números
dominadores do comércio mundial com estes blocos económicos, o pescado é
atualmente o único produto dos países em desenvolvimento em que as exportações
para outros países em desenvolvimento são mais significativas (58% do total) do
que para os países desenvolvidos.Estes números explicam-se duplamente pela
necessidade crescente de produtos de subsistência e pelo aumento cada vez mais
representativo da produção de aquacultura mundial. Na primeira década do século
XXI, a produção de pescado em aquacultura aumentou 10 milhões de toneladas,
enquanto que as pescarias de wildfish praticamente estagnaram, apesar do
aumento do esforço de pesca. Qualquer análise das pescarias mundiais tem de
tomar em conta que, no presente, 40% da produção mundial de pescado resulta da
indústria da aquacultura, num contexto tanto de crescimento da população
mundial (6,6 mil milhões de pessoas) como de aumento do consumo per capita de
peixe por ano (16,7 kg por ano em 2006) (FAO 2009). A dimensão internacional de
caráter geoeconómico cria desafios cada vez maiores em matéria de
sustentabilidade dos recursos, seja nos países do hemisfério norte seja nos
países do hemisfério sul. A questão assume também uma dimensão transnacional
pela própria natureza das espécies piscícolas enquanto recurso. A propriedade
migrante do peixe, presente na maioria das espécies existentes nos diferentes
lugares marítimos e fluviais do planeta, evidenciada pela sobre-exploração dos
recursos marinhos, está a formular uma interdependência internacional cada vez
maior em termos de exploração económica e de abastecimento (Bestor 2004b),
tornando a comercialização do pescado um dos setores mais globais e disputados
dos produtos alimentares (Kurlansky 2000).
A frota comunitária europeia no seu conjunto é uma das maiores potências
internacionais em termos de captura (Hypercluster 2009). Contudo, nas últimas
duas décadas tem sido conduzido um esforço de redução da sobre-exploração dos
recursos haliêuticos nas zonas económicas marítimas dos Estados-membros da UE.
Este abrandamento, que contém um caráter de preservação dos recursos
piscícolas, fundamenta-se na constatação da vulnerabilidade crescente dos
stocks do Atlântico Norte e do Mar Mediterrâneo. Assim, a UE tem encetado uma
política económica de criação de acordos de pesca com países terceiros,
salientando-se os acordos com os países africanos e asiáticos, o que atualmente
permite à indústria do setor o acesso a 2,5 milhões de toneladas de peixe
adicionais. Este aumento de provimento anual de pescado representa assim cerca
de 40% das capturas das frotas comunitárias, resultado direto das diversas
políticas de concentração das pescas da UE e de interesses económicos diversos,
e resulta atualmente numa situação de importação maciça de bens alimentares,
metamorfoseando os aeroportos europeus nos principais locais de descarga de
pescado da UE, do que o aeroporto de Vitória é o melhor exemplo na península
Ibérica. No caso do setor pesqueiro, é evidente que a UE deixou de conseguir
suprir a procura cada vez maior do mercado interno, tendo assim passado a
importar mais pescado do que aquele que exporta. Esta tendência tem sido
agravada pelos hábitos de alimentação dos europeus. Nos últimos anos o domínio
do comércio retalhista de peixes, moluscos e crustáceos tem sido assumido pelas
grandes superfícies comerciais, investindo na diversificação de produtos,
apostando em força em alimentos transformados, nos quais as refeições pré-
cozinhadas têm grande destaque, preterindo-se cada vez mais o lugar dos
produtos frescos que até então tinham uma posição dominante (Greenpeace 2008).
A oferta e a procura cada vez maior deste tipo de alimentação, por parte dos
consumidores europeus, condiciona as grandes superfícies, através dos seus
fornecedores industriais, a terem garantias da regularidade de abastecimentos
de produtos piscícolas que o setor da pesca europeu deixou de conseguir
fornecer. Esta situação criou um mercado cada vez mais dependente das
importações de países terceiros, que neste momento já ultrapassam os 60% do
consumo total de produtos da pesca nos diferentes países da UE.
Proletários no mar, proletários em terra
Eu sou natural da Praia de Esmoriz. Estudei até à quarta classe, ainda comecei
o ciclo mas não continuei. Somos seis irmãos, três rapazes e três raparigas.
Tenho um irmão que está lá fora, emigrado na Suíça. Ele está lá, há uns 15
anos, e também era pescador. Levou a mulher e os filhos e montou lá casa. Eu
comecei na pesca com 15 anos aqui em Esmoriz, na arte xávega. A nossa companha
tinha muitos camaradas. De mar e terra éramos aí uns vinte, homens e mulheres.
Andei 5-6 anos na xávega. Recebia duas partes, era homem de mar. O barco
chamava-se Mar de Esmoriz. Depois fui para Matosinhos, para a sardinha, com 20
anos. Na altura fui para a traineira Mestre Augusto. Lá fazia tudo, mas passei,
passados dois meses, para a chalandra [barco auxiliar de traineira]. Nesse
barco andei dois anos e tal. Depois fui para o Miguel Alexandre. Pescávamos de
Viana do Castelo a Figueira da Foz. O porto a que pertencíamos era o porto de
Leixões. A hipótese de emigrar surgiu e eu decidi ir para ganhar dinheiro. Fui
ter com uns primos meus que já lá estavam. Já tínhamos contactos aqui em
Esmoriz, mas depois eles ligaram-me. Fui para trolha, para a construção civil,
em outubro de 2007. Falei ao telefone com os meus primos, marcaram a viagem e
acabei por ir. Parti de autocarro com mais pessoal, mas não de Esmoriz, daqui
fui sozinho. Os outros são de longe, mas todos portugueses. Éramos oito, numa
empresa que faz esse serviço que não tem nada a ver com [aquela para] que fomos
trabalhar. Cada um deu uma parte, 150 euros. Lá na Suíça era trabalho mesmo.
Trabalho-casa, trabalho-casa. A ideia era ganhar mais dinheiro que aqui. Ter um
ordenado certo enquanto aqui não é, na pesca trabalha-se à percentagem. Lá fora
ganharia muito mais, pelo menos três vezes mais do que aqui, 2500 euros fixos.
Lá tinha muito mais despesas do que aqui. Aqui não tenho despesas fixas, pagar
casa. Lá éramos só nós os três, amigos também tinha, mas era desviado. Fui para
Bülach, perto de Zurique, que era onde eles estavam, foi o que arranjei. Eu não
escolhi a construção, fui para aquele trabalho por causa do dinheiro, para
ganhar mais. Tanto que nem escolhi, mas as coisas correram mal e vim-me embora
para regressar para a pesca outra vez [Imigrante Suíço, 35 anos].
O caso do Imigrante Suíço, pescador da arte do cerco em Matosinhos, é
ilustrativo de uma tendência geral que leva numerosos pescadores a irem
trabalhar para o estrangeiro, não fazendo valer a sua especialização
profissional. Como me foi relatado por uma mãe e irmã de pescadores que tinham
emigrado para a Alemanha, quando os pescadores viajam, se não for para
trabalhar na pesca, é para o trabalho menos especializado exigido na construção
civil. Muitos partem para os destinos tradicionais europeus da emigração
portuguesa (cf. Serrão 1973) durante a segunda metade do século XX, como a
Alemanha, França, Luxemburgo. Outros têm escolhido destinos diferentes, como é
atestado pelas comunidades portuguesas em Inglaterra, Irlanda ou Suíça (Marques
2009). Paralelamente aos pescadores transnacionais, que partem para trabalhar
na sua atividade profissional auferindo um salário muito superior ao que
recebem em Portugal, outros arriscam o seu futuro pela possibilidade de
poupança do salário que os seus familiares apresentam como realidade. Contudo,
o custo de vida do Imigrante Suíço, com as despesas inerentes à sua estadia
profissional, levou-o a fazer uma série de sacrifícios pessoais, que se
estivesse a bordo de uma embarcação de pesca não seriam necessários. Tal facto
conduziu à redução efetiva da capacidade de poupança monetária por parte do ex-
pescador, tendo a viagem resultado num insucesso, se considerarmos os objetivos
iniciais traçados, acabando ele por regressar a Portugal quando constatou a
impossibilidade de acumulação de rendimentos.
A análise dos atuais fluxos de migrações internacionais em Portugal revela uma
situação complexa. Segundo Peixoto (2004a), as séries estatísticas oficiais
revelam que desde meados dos anos 70 os fluxos da emigração permanente
(entendida como um projeto de residir noutro país por um período superior a um
ano) têm vindo a diminuir, enquanto os fluxos da emigração temporária
(projetos de ausência do país para o exterior por períodos inferiores a um ano)
têm denotado uma vitalidade cada vez maior. Nas suas análises sobre indicadores
de mudança e continuidade nas dinâmicas e regimes migratórios no mercado de
trabalho, Peixoto (2002, 2004b) aponta que a situação portuguesa tem
características anómalas, tanto do ponto de vista teórico como em termos da
história recente na UE. Os casos contemporâneos no processo de adesão à UE
revelaram um acréscimo dos fluxos de entrada, acompanhado por uma diminuição
acelerada dos movimentos de saída. Em Portugal, que acompanhou esta tendência
inicialmente (Rodrigues e Pinto 2002), contrariamente aos restantes casos da
Europa do Sul, tem-se assistido à vitalidade dos movimentos de saída. Através
da comparação entre os fluxos migratórios, Peixoto (2007) alega que existem
razões estruturais para que o mesmo país seja tanto de imigração como de
emigração. Os motivos para a existência permanente de mão de obra emigrante
ficam claros analisando a realidade estrutural de Portugal. Pode considerar-se
um triplo movimento: decomposição de estruturas produtivas atrasadas;
desempenho estrutural deficitário de certos setores da economia nacional;
salários nominais e reais muito inferiores comparativamente com os de
determinados países capitalistas europeus. São estes os fatores intrínsecos que
conduzem atualmente os pescadores portugueses a trabalhar no estrangeiro. Têm
como principais destinos a Galiza, o País Basco e a Bretanha francesa, e aí são
embarcados partindo para zonas de pesca tão díspares como Irlanda, Escócia,
Noruega, Islândia, Canadá, Mauritânia, Guiné, Marrocos, Angola e África do Sul.
Contudo, a análise do desenvolvimento desigual dos diversos países com os
consequentes movimentos migratórios transnacionais envolvendo trabalhadores
portugueses torna-se mais complexa se não for reduzida à necessidade de mão de
obra para suster a economia dos diferentes países. O argumento principal é que
a situação contemporânea nas pescarias é reflexo das crises periódicas
sustentadas, crises essas de cariz eminentemente capitalista (Basch, Schiller
e Blanc 1994). Sendo certo que a situação da oferta de emprego se reflete
imediatamente no aumento ou na diminuição da procura de trabalho, os movimentos
migratórios transnacionais no setor das pescas transformaram-se na última
década num fenómeno conjuntural pouco sensível aos diferentes sinais de crise
que afetam em geral todos os países pesqueiros, tais como a redução
significativa dos recursos piscícolas, a diminuição da frota e do número de
pescadores a operar, ou o aumento exponencial dos preços dos combustíveis.
Se o uso central do capital europeu se baseia no aumento do grau de exploração,
de modo a elevar a percentagem de mais-valia, muitas vezes o método utilizado é
o pagamento de um valor menor pela reprodução da força de trabalho, conjugado
com o incremento da duração e da intensidade do trabalho. No caso dos
pescadores portugueses, estes tornam-se mão de obra migrante transnacional
ambicionada, porque são um conjunto de trabalhadores que recebe salários mais
baixos que os autóctones, devido ao não reconhecimento das suas categorias
profissionais,[8] apresenta boas condições de saúde, e permite a escolha de uma
mão de obra especializada, com profissionais do setor que têm a ambição de
fazer boas pescarias. Esta motivação é fortemente impulsionada pelas
percentagens (caldeiradas) que os pescadores recebem por cima dos ordenados-
base, que variam entre os 2000 e os 4000 euros mensais. Tal como em Portugal,
muitas vezes estas percentagens são números que fogem ao controlo na lota e em
certos casos assumem valores equivalentes ao ordenado oficial.
A mais-valia das empresas francesas em contratar pescadores portugueses é a de
conseguirem suprir a falta que lá têm de mão de obra com gente que é
reconhecidamente bons profissionais. A procura tem-se acentuado, tanto em
Portugal como em França, as dificuldades do setor das pescas acentuam-se. O
aumento do preço dos combustíveis, que sai do monte de pesca, leva a que haja
diretamente uma diminuição das remunerações dos pescadores. Isso leva a que [ ]
os salários em França, que são três a quatro vezes superiores aos de cá, sejam
atraentes para os emigrantes e deixem de o ser para os pescadores franceses.
Aliás, nos dois países há cada vez menos jovens a ingressarem na pesca
[Sindicalista, 45 anos].
A mão de obra migrante transnacional também se sujeita às condições sanitárias
e de segurança oferecidas, proporcionando às empresas e aos armadores uma
possibilidade de poupança na organização do trabalho e nos custos de produção.
O principal efeito desta dinâmica são poupanças significativas no custo de
reprodução social do conjunto da força de trabalho, através de dois mecanismos
fundamentais: primeiro, sendo indivíduos na sua maioria produtivos, poupa-se
nos custos de formação do trabalhador e nos custos no fim da sua vida laboral;
segundo, dadas as medidas restritivas que regem os contratos de trabalho dos
migrantes transnacionais e as condições forçadas do trabalho no mar, a maioria
tem família em Portugal e o capital francês não suporta os custos de reprodução
das famílias, como o ensino ou os cuidados de saúde equivalentes a um cidadão
nacional. Como as condições de reprodução social dos próprios migrantes se
situam abaixo dos níveis médios dos trabalhadores autóctones, os detentores de
capital reduzem aqui também custos. Por outro lado, o transnacionalismo nos
mares europeus é um processo pelo qual os migrantes, através das suas
atividades quotidianas e das suas relações sociais, económicas e políticas,
criam campos sociais que atravessam fronteiras nacionais (Basch, Schiller e
Blanc 1994). É nestas dimensões que o Sindicalistarefere a incisão do seu papel
político na garantia dos direitos laborais dos trabalhadores portugueses a
pescar para empresas europeias. A ação do STPN reflete a consciência de que o
trabalho dos migrantes transnacionais se transformou num elemento fundamental
na estrutura económica do setor das pescas europeu, e não é uma mera fonte
suplementar de mão de obra em condições de crescimento económico rápido. Os
pescadores proletários portugueses, atraídos por necessidade para o setor
capitalista das pescas francesas, constituem uma mão de obra específica em face
da qual é instituído um modo de exploração igualmente específico. A tendência
geral de crise no setor primário é a do aumento da procura de pescadores por
parte das empresas armadoras, procura que as diferentes organizações produtivas
já não conseguem satisfazer, devido principalmente aos salários mais baixos,
quando comparados com outros setores de atividade de cada país.
Arrais de Pesca ' Da pesca do cerco, como ele, já foi muita gente para
Espanha, para França. Ele até é dos poucos pescadores que, desde que foi para
Matosinhos, nunca teve problemas. Está bem que ele é solteiro. Ele nunca passou
por grandes dificuldades. Eu tenho 40 anos e dois filhos. Ele esteve sempre
bem, além de gastar muito dinheiro, ele também conseguia juntar muito. Mas o
que aconteceu com o homem é o comum. Ele pensou em ter mulher e filhos.
Normalmente, quando as pessoas deixam de poder pagar as suas despesas procuram
uma alternativa, mas há muitos que tentam ir e ainda não conseguem. Embora [se
verifique] que, antigamente, era muito mais difícil colocar um trabalhador no
estrangeiro. Agora tem sido mais fácil, talvez por estar mais gente lá fora e
conseguir empregos para os outros. Este mês houve um tipo com filhos, casa e
carro, que com o aumento das taxas de juro não conseguiu suportar o custo de
vida e suicidou-se. Lançou-se ao mar.
Sindicalista ' A malta daqui não vai para a pesca em França, vai para a pesca
clandestina em Espanha ou vai para a construção civil.
Arrais de Pesca ' Sabes quanto ele perdeu nos meses que foi para a França? 3750
euros [ri-se muito]. Foi o que a gente aqui ganhou. Tem sido o melhor ano de
sempre para a pesca da sardinha aqui no Norte. Tem havido semanas de mais de
500 euros aqui no cerco. Este ano tem dado assim, mas para o ano que vem pode
já não dar.
Imigrante Suíço' Aqui já estava a darquando eu fui, mas lá era ordenado certo e
fixo, 2500 euros.
Arrais de Pesca ' Eu também já pensei muitas vezes em ir. Quantas vezes! Quando
a pesca corre mal, nós ficamos sempre pendurados: Vou? Não vou? Pronto, o
patrão também percebeu, como que eu estava sempre a chorar, que as coisas
estavam mal e eu teria de abandonar aqui a pesca e ele percebeu que eu tinha de
ganhar mais alguma coisa. Além de ser arraisda chalandratambém sou o escrivão
da empresa. Sou eu que trato da contabilidade da empresa. E aí a vida começou a
melhorar com mais esse ordenado. Eu desde que comecei a trabalhar naquele barco
já mudou a companhatoda aí umas quatro vezes. É assim, a malta não ganha o
suficiente e vai-se embora, emigra. Eu fiquei porque ganhei sempre um pouco
mais que eles e por isso é que não emigrei. Porque o pescador quando vê que a
coisa está a correr mal, faz pela vida. Porque há anos em que não se pesca. Eu
sou o mais antigo no barco com este mestre. Já ando no mar há 23 anos e neste
barco, o Pedro André,estou lá há 13 anos. Desses houve cinco anos que andava
com ideia de emigrar. Os jovens não aderem à pesca, não querem mais o mar,
querem trabalhar em terra. No ano passado trabalhávamos só com 13 homens e este
ano tem bastante pessoal. Melhorou a pesca e os trabalhadores voltam, mas mesmo
assim os jovens não estão a regressar. Eu quando fui a primeira vez para a
pesca, jovens éramos quatro, e agora não se vê nada disso. Em relação ao
futuro, se calhar no ano passado teria uma versão diferente de que o mesmo
seria negro, mas este ano tem-se ganho muito dinheiro, as fábricas têm comprado
mais peixe e as expectativas são de que as coisas sejam melhores. É uma safra
boa, já é considerada a melhor safra de todos os tempos, mas mesmo assim as
coisas estão a melhorar, tem havido também mais procura de Espanha. Em Espanha
e Marrocos este ano não houve muita sardinha. Havendo esta falha nestes dois
países, o ano corre-nos muito bem.
Imigrante Suíço ' Agora é trabalhar, se puder, voltar ao mar. Voltar para a
sardinha.
Delícias do mar europeu
Encarando a globalização como reflexo direto de uma implosão do espaço e um
acelerar do tempo na vida económica e social, Allan Sekula (2003), nos seus
ensaios seminais sobre pessoas, trabalho e imagens contemporâneos, desenha um
paralelismo entre o quadro Lost in the Grand Banks(1885) ' de Winslow Homer e
comprado por Bill Gates por 30 milhões de dólares, o preço até então mais
elevado que foi pago por uma pintura norte-americana ' e a situação da
precariedade laboral contemporânea. O quadro, inserido num tríptico laboral que
inclui também The Herring NeteThe Fog Warning, faz parte de uma sequência de
imagens sobre a pesca no Atlântico Norte. Sekula remete uma carta ao
informático questionando as razões para que um quadro, com uma cena com dois
pescadores perdidos em risco de naufrágio iminente, tenha tido tal impacte e se
tenha transformado num paradigma iconográfico do mundo laboral. A demanda do
artista enquanto etnógrafo (Foster 1996) leva-o a fazer uma dupla desconstrução
radical da realidade das pessoas e da promoção de determinadas imagens no
capitalismo hodierno, navegando em territórios que são pontos de rotura na
hegemonia neoliberal, como os conflitos na cidade de Seattle em 1999, ou o
naufrágio do navio Prestigena costa da Galiza em 2002. Presencia, documenta e
divulga criativamente outras imagens que não correspondem a uma ascensão
gratuita da precariedade humana. O presente texto intenta examinar a condição
do pescador como uma figura operativa para se pensar o sentido e a condição da
precariedade contemporânea (Nunes 2008). Interpreta a situação dos pescadores
enquanto proletários do mar e migrantes transnacionais (Deleuze e Guatari
1992). Interroga os motivos da promoção imagética da precariedade e reflete
sobre como o atual regime de acumulação flexível acentuou a tendência para a
segmentação laboral (Kovács e Castillo 1998), alterando processos e mercados de
trabalho (Kovács 2005), produtos e padrões de consumo a uma escala global
(Mapril 2008). As lógicas atuais do mercado flexível e do trabalho incerto na
Europa têm particular relevo nos processos migratórios em trabalhos
inamovíveis (não deslocalizáveis) do setor primário e secundário da economia
(Phizacklea 2005). Estes setores, dos quais o da pesca faz parte, subsistem
concorrendo no mercado global através de práticas de precariedade laboral e da
deslocalização interna da mão de obra (Hardt e Negri 2005).
A globalização contemporânea, encarada como mobilidade e circulação, é mais
marcada por uma regionalização dos mercados do que por uma mundialização dos
mesmos.[9] Contrariamente a uma ideia de senso comum, a UE é um mercado
relativamente fechado. É, antes de tudo, um mercado intraeuropeu, onde a quase
totalidade da produção interna corresponde à procura dos países que a
constituem. Assim, as dinâmicas económicas das empresas transnacionais
europeias respondem iminentemente a uma lógica interna de concorrência. Tal
ponto já tinha sido avançado por Bourdieu (1998), quando apelava à resistência
e luta dos trabalhadores europeus, afirmando que as lógicas subjacentes contra
os direitos laborais tinham uma função instrumental erosiva dos sistemas
sociais de cada país. Mesmo sendo problemático interpretar as estatísticas mais
recentes pela abstração numérica dos valores da crise (ILO 2010), constata-se
na UE uma especificidade em matéria de emprego e desemprego. Cruzando estes
dados conjunturais da produção com os dados projetivos do consumo elaborados
pelas próprias multinacionais (Deloitte 2010), assiste-se a uma alteração de
fundo no comportamento das empresas europeias. Neste momento, passou-se a
encarar as despesas do trabalho dentro da UE, não como um fator de produção,
mas como um custo que é preciso reduzir (Héritier 1998).
Neste texto seguiu-se uma perspetiva diferente da que considera que a
globalização é a americanização do mundo e que deita por terra as conquistas
sociais alcançadas ao longo dos últimos 200 anos na Europa. Reconhecendo que o
setor financeiro, os diferentes sistemas monetários vigentes e o comércio
mundial têm as marcas das multinacionais, não constatei nenhum dado que pudesse
aferir uma política diferente por parte das empresas europeias. É neste prisma
que considero especialmente problemática a tendência neoliberal da UE de
orientação do investimento económico para zonas de exceção, isto é, para
locais que já sejam centros produtivos, e de desinvestimento das zonas
economicamente mais débeis, forçando os europeus a deslocarem-se para
conseguirem sobreviver. As novas condições que dominam no mercado mundial dos
produtos alimentares ' tendência para a alta ' e a política atual de
revalorização das subsistências (Roseberry 1996) criam mecanismos na UE de
desenvolvimento e concentração da pesca industrial, e de apropriação
capitalista do espaço marítimo. Paralelamente, assiste-se ao aumento
exponencial da reserva industrial de mão de obra e à precariedade do trabalho.
O aumento das migrações temporárias e a crescente proletarização nos mares
europeus são duas faces da mesma moeda.