Identidade e pertença: para além das dimensões materiais do sofrimento social
Identidade e pertença: para além das dimensões materiais do sofrimento social
Elizabeth Pilar Challinor*
*Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-UM), Universidade do
Minho, Portugal; e.p.challinor@gmail.com
Identity and belonging: beyond the material dimensions of social suffering
ABSTRACT
An anthropological view of social relations in the microcosms of a
neighbourhood and a health centre reveals the limitations of using material
poverty as the sole criterion for understanding processes of social suffering.
In order to explore the ways in which social suffering may be experienced
through identifications and belonging, ethnic and professional identity are
both examined as examples of social identity. The dialectic relationship
between social and personal identity shows how power is not deposited in
people, but rather depends upon their social relations. Since the exercise of
power is not guaranteed by the mere status of a given social category, we need
to focus on the experiences and subjectivities to be found in the cracks
between categories, always on guard to distinguish between categories of
practiceand categories of analysis,in order to widen our horizons regarding the
nature of processes of social suffering.
KEYWORDS: Cape Verde, identity, biomedicine.
No seu livro The Weight of the World: Social Suffering in Contemporary Society,
Bourdieu (1999) argumenta que, se a pobreza material servir, nas ciências
sociais, como o único critério para analisar o sofrimento social, será difícil
descobrir todo o tipo de sofrimento social que existe nas sociedades
contemporâneas.[1] Bourdieu refere-se, mais especificamente, às categorias
sociais ' profissionais que trabalham no âmbito da luta contra a pobreza ' que
ocupam lugares inferiores nos microcosmos onde estão inseridos, que não deixam
de ser contextos privilegiados, em termos materiais, comparados com outros
microcosmos. Se adotarmos o ponto de vista do macrocosmo, o seu sofrimento
torna-se relativo e quase insignificante comparado com o verdadeiro
sofrimento de pobreza material. Porém, segundo Bourdieu, se não houver espaço
para incluir a dimensão subjetiva do sofrimento destas categorias sociais, o
estudo do sofrimento social será incompleto, por deixar de parte aquilo que ele
considera serem vários tipos de sofrimento vulgar que ocorrem no quotidiano
(1999: 4).
A forma como cada categoria social vive e sente o posicionamento que ocupa na
sociedade é afetada pelas interações sociais que ocorrem dentro dos microcosmos
sociais, tais como a família alargada, o trabalho e a vizinhança (Bourdieu
1999: 4). Estas interações sociais poderão ser fonte de sofrimento social
coletivo ou individual, quando, por exemplo, contribuem para o isolamento, para
a exclusão e para o desempoderamento (disempowerment) das pessoas.
Ao adotar esta perspetiva, o objetivo deste artigo é examinar as formas como o
sofrimento social pode ser vivenciado, dentro de microcosmos sociais, através
das identificações e das pertenças. A fundamentação para esta análise provém
dos argumentos de Maalouf (2003) sobre a identidade e as pertenças, da
abordagem cognitiva de Brubaker (2004) na sua análise da etnicidade, e do
realismo crítico das teorias desenvolvidas por Archer (2000, 2003) sobre a
relação dialética entre a identidade social e a identidade pessoal.
Maalouf (2003: 19-20) afirma que cada indivíduo tem, sem exceção, uma
identidade composta de muitas afiliações ou pertenças. Ao isolar uma das suas
pertenças, o indivíduo pode partilhar uma espécie de parentesco com uma grande
quantidade de seres humanos, mas, juntando-as todas, encontra a sua identidade
pessoal e única. As pessoas são levadas a vivenciar a sua identidade como se
tivessem uma única afiliação ou pertença, segundo Maalouf, quando sentem que
essa afiliação está a ser ameaçada (2003: 26). Embora o objetivo de Maalouf
seja o de tentar compreender o que leva as pessoas a cometerem massacres em
nome da identidade, o objetivo da abordagem aqui adotada é outro. Trata-se de
investigar o sofrimento vulgar dos microcosmos em dois casos etnográficos '
um bairro e um centro de saúde ' onde a identidade de uma pessoa é reduzida a
uma única afiliação, através das suas relações sociais.
O primeiro caso etnográfico refere-se a uma mãe cabo-verdiana, imigrante em
Portugal, envolvida em conflitos com os seus vizinhos, que expressava através
das supostas rivalidades intraétnicas entre sampajudus ' cabo-verdianos
originários das ilhas de Barlavento ' ebadius ' cabo-verdianos originários das
ilhas de Sotavento. O segundo caso refere-se a uma médica que atendia a criança
da mãe cabo-verdiana, cuja identidade profissional de pediatra, a trabalhar
rodeada de médicos de família, constituía o foco das tensões à volta do qual se
disputavam competências e pertenças.[2]
Ao escolher estes dois casos, que estão interligados, importa clarificar
algumas questões. Em primeiro lugar, estes dois processos de sofrimento
acontecem com pessoas que se relacionam, mas os processos, aparentemente, terão
pouca relação entre si. Conflitos intraétnicos terão algo a ver com conflitos
profissionais? Como já foi referido, ambos os casos descrevem situações em que
a pessoa é levada a vivenciar a sua identidade social como se uma única
afiliação ' étnica, num caso, e profissional, no outro ' a definisse. Em
segundo lugar, tanto a identidade étnica como a identidade ocupacional devem,
segundo Jenkins (1994), ser teorizadas como exemplos da identidade social em
geral.
A escolha do caso da pediatra também pretende responder ao apelo de Bourdieu
(1999) para criar espaço, na análise, para os pontos de vista das categorias
sociais que ocupam uma posição inferior num mundo relativamente mais
privilegiado, de forma a investigar o sofrimento posicional. No caso da
pediatra, não se trata de uma posição inferior a nível material; trata-se da
falta de reconhecimento do seu trabalho, que, segundo Araújo (2005: 7),
associa, na maioria das vezes, a recusa de autonomia e de poder para os
trabalhadores. O exercício do poder não é automaticamente garantido pelo
simples estatuto de ser médico, depende das interações sociais no microcosmo
social onde o médico está inserido. E, neste caso, o facto de ambas as pessoas
dos estudos de caso se relacionarem nas consultas médicas é significativo. A
falta de poder que a pediatra sentia nas suas relações profissionais com o
pessoal dentro do centro de saúde, que contrasta com o seu exercício de poder
médico durante as consultas observadas com a mãe do bairro (e com outras mães
cabo-verdianas), evidencia a forma como o poder está inscrito (embedded)nas
relações sociais (Jenkins 1994: 199).
A análise que apresento em seguida oferece uma reflexão teórica sobre a
identidade e as pertenças para enquadrar cada estudo de caso.
Quem sou eu, quem é o outro?
Maalouf (2003: 31) afirma que, quando encaramos a identidade como algo composto
por várias pertenças e, ao refletir, constatamos que algumas destas pertenças
até são incompatíveis entre si, deixa de ter sentido falar das nossas relações
sociais em termos de nós e eles. Ao reconhecer a multiplicidade e
incompatibilidade de todas as suas pertenças, um indivíduo que vai à guerra em
nome da religião ou da etnia, por exemplo, vai descobrir que existem pessoas no
seu lado com quem tem pouco em comum e pessoas do outro lado com quem
poderá ter muitas mais afinidades. Mas quando uma pertença parece estar
ameaçada, a necessidade de a defender pode ocultar essas outras afinidades.
Ser alvo de uma definição externa que entra em contradição com a definição
interna que uma pessoa detém da sua própria identidade (Jenkins 1994) pode
criar sofrimento social, quando o indivíduo se sente impossibilitado de
influenciar a perceção que os outros têm de si. Antes de discutirmos como esta
vivência pode afetar o self, a primeira questão a abordar é a de como teorizar
esse self.[3]
Excluindo a dimensão transcendental da sua abordagem sociológica, Archer (2000:
228) alega que a realidade é feita de três dimensões com as quais nós, seres
humanos, lidamos: a natural, que corresponde ao bem-estar físico, a da prática,
que corresponde à competência performativa, e a social, que corresponde ao
valor próprio na ordem social. A identidade social ' o resultado das nossas
relações com a sociedade ' deve ser distinguida da nossa identidade pessoal,
que é mais abrangente, dado que emerge das nossas relações com as três
dimensões da realidade. Ambas as identidades estão entrelaçadas e o seu
aparecimento é um processo dialético, mas a identidade pessoal é o árbitro que
tem de regular as relações do self com toda a realidade. As três dimensões
podem estar em conflito: atendendo ao bem-estar físico, o professor, por
exemplo, ao fugir de um cão que está a ladrar, e ao fazê-lo à frente dos
alunos, pode estar a comprometer a sua competência performativa. É preciso
fazer escolhas, separar as preocupações principais das preocupações
secundárias, o que acontece através de um constante diálogo interno, testando
os compromissos contra os diferentes comentários emocionais. Somos quem somos,
alega Archer, por causa daquilo que nos preocupa. Ao estabelecermos as nossas
preocupações principais e ao acomodarmos as preocupações secundárias, definimo-
nos a nós próprios (Archer 2000: 10). Esta capacidade para a reflexividade não
pode ser relegada para a disciplina da psicologia, porque faz parte da prática,
interagindo com a socialidade (2000: 194). No entanto, somos mais do que a
sociedade faz de nós, devido à nossa capacidade de refletir sobre ela.
Além da distinção entre identidade pessoal e identidade social, Archer (2000,
2003) também separa o agente do ator, o eu do mim. O agente refere-se à
nossa posição involuntária face à distribuição dos escassos recursos da
sociedade: podemos ser desfavorecidos ou mais privilegiados. Trata-se de uma
identidade coletiva. Não escolhemos o meio onde nascemos, que condiciona, mas
não determina, os papéis que ocupamos como atores. O ator existe no singular.
Nem todas as pessoas conseguem ser ator, no sentido em que nem todas conseguem
encontrar um papel no qual sentem que podem investir a sua pessoa, de forma que
a identidade social correspondente exprima a sua identidade pessoal (Archer
2003: 118). O eu pode sofrer ao descobrir que se considera que o seu mim
fala com uma pronúncia errada ou é desprezado pela sua cor ou género e que o
seu eu não pode fazer nada, nesse momento, para mudar a situação (Archer
2000: 264). Para voltarmos aos argumentos de Maalouf (2003), o eu é reduzido
a uma ou poucas pertenças e, muitas vezes, é a forma como olhamos para o
outro que o torna prisioneiro. E mesmo que se saiba que as afirmações que
produzem generalizações e julgamentos sobre povos inteiros ocultam a sua
verdadeira diversidade, tal não deixa de ser uma prática comum. Os estereótipos
oferecem o caminho da menor resistência, que pode acabar, nalguns contextos
extremos, em derramamentos de sangue. As nossas palavras afirma Maalouf, não
são inocentes, nem sem consequência (2003: 21-22, tradução minha).
Porque é que se continua por este caminho da menor resistência? No que diz
respeito aos estereótipos étnicos e raciais, Brubaker (2004) oferece uma
explicação para a sua persistência. Na sua abordagem cognitiva, sugere que, em
vez de analisar os estereótipos como deficiências cognitivas, como crenças
falsas ou exageradas que revelam a natureza preconceituosa de quem os utiliza,
os estereótipos devem ser examinados de uma forma mais neutra, como estruturas
cognitivas que contêm conhecimento, crenças e expectativas sobre grupos
sociais (Hamilton e Sherman 1994, em Brubaker 2004: 72). Brubaker afirma que
tratar os estereótipos e categorias sociais como representações mentais de
objetos sociais elucida a relação entre o indivíduo e o social nos processos de
produção e utilização de moldes (templates) estandardizados para tirar
sentido dos objetos sociais (2004: 73). No caso mais específico das
classificações étnicas, os indivíduos são despersonalizados de forma que a
pessoa singular seja transformada num exemplar de um grupo qualificado (Levine
1999, em Brubaker 2004: 73). Na terminologia de Archer (2000, 2003), o eu vê-
se transformado num mim ' membro de uma coletividade com a qual pode, ou não,
identificar-se. No entanto, este mesmo eu também não deixa de transformar o
eu de outras pessoas em membros representativos de coletividades ' eles. É
neste sentido que Brubaker argumenta que uma abordagem cognitiva não equivale a
uma abordagem individualista: trata-se de um conhecimento partilhado
socialmente sobre objetos sociais (2004: 86, tradução minha). Trata-se de
examinar fenómenos sócio-mentais (Zerubavel 1997, em Brubaker 2004: 86) onde
se cruzam a cognição e a cultura. Para este efeito, é preciso estudar os
contextos de interação ou microcosmos sociais (Bourdieu 1999) onde os
estereótipos e categorizações sociais são ativados (Brubaker 2004: 76). E, como
afirma Jenkins, também é preciso articular a identidade social com a identidade
pessoal:
[ ] social identity must be constructed as a proper subject for theorization
in such a way as to allow for the inclusion of individual and collective
identities within a unified analytical framework. Even the most private of
identities is not imaginable as anything other than the product of a socialised
consciousness and a social situation. Even the most collective of identities
must in some sense exist in the awareness of individual actors (Jenkins 1994:
218).
O primeiro caso etnográfico evidencia o entrelaçamento entre a identidade
social e pessoal na forma como a etnicidade é ativada e vivenciada.
Etnicidade, género e pertenças
Depois de ter sido abandonada pelo pai das suas filhas, no bairro espontâneo de
cabo-verdianos onde Sara vivia, a relação com os vizinhos mudou drasticamente.
O seu eu começou a sofrer ao descobrir como o seu mim passou a ser tratado
em função das rivalidades intraétnicas entre sampajudusebadius.
Realizei uma entrevista num banco de um jardim porque Sara não queria levar-me
à sua casa, dizendo que, se me levasse, os vizinhos iriam tornar a sua vida
ainda mais miserável, acusando-a de estar a pedir ajuda. Nem dentro de casa
estava à vontade; uma vez os vizinhos mandaram calar a sua filha quando
cantava. Explicou que os vizinhos não gostavam dela por ser sampajudu 'Eles
são como os portugueses com os pretos: racistas.
Sara emigrou para Portugal para trabalhar como doméstica na casa de uma senhora
portuguesa. Em Cabo Verde, tinha abandonado a escola para ajudar a mãe a
sustentar a família. E era a própria mãe quem ia levantar o seu salário, que
não podia ser entregue a uma menor. Vir para Portugal fazia parte do imaginário
cabo-verdiano do stranjer como um paraíso (Carling e Åkesson 2009: 136) onde
iria melhorar as suas condições de vida. Quase todo o dinheiro que ganhava
enviava para a mãe em Cabo Verde, mas comia mal na casa da senhora, onde havia
outra empregada, portuguesa, que se aproveitava dela para a sobrecarregar de
trabalho. Depois conheceu um cabo-verdiano, Carlos. Apaixonou-se por ele e
deixou a casa da senhora para viverem juntos numa barraca na cidade. Carlos era
muito ciumento e não a deixava estar com os amigos, nem falar ao telemóvel com
eles. No entanto, Sara interpretava a sua atitude como prova de amor. Aos
poucos, foi perdendo as amizades e teve a sua primeira filha, que tinha quatro
anos na altura em que a conheci. Quando realizámos a entrevista, já era mãe de
novo, de um bebé de seis meses. Contou-me como o pai da sua filha tentou
indiretamente provocar um aborto porque não queria que tivesse outro bebé. Ele
tinha uma relação com outra mulher, que também tinha engravidado:
Queria que eu tirasse o bebé. Chateava-me muito, chamava-me nomes. Eu ficava
nervosa, a pressão subia. Tudo aquilo para ver se eu abortava porque [com] toda
aquela pressão, aquele nervosismo, a pessoa aborta mesmo. Só que eu sou forte,
senão perdia o bebé.
Sara usou em casa um tratamento da terra para travar um possível início de
aborto espontâneo, não ousando ir sozinha ao hospital e sabendo que Carlos não
iria acompanhá-la. Depois de ter nascido a segunda filha, Carlos deixou Sara
para ficar com a outra mulher. Ficou desempregada, a viver na barraca, num
bairro ilegal entre o rio e uma linha férrea, que era preciso atravessar com
cuidado, dado que o lugar de travessia era entre dois túneis dos quais poderia
surgir a qualquer momento um comboio. A barraca deixava entrar a chuva em
certos lugares e a eletricidade era fornecida através de uma ligação
clandestina. Os seus pedidos junto da Câmara Municipal para que lhe fosse
atribuído um alojamento social foram negados por habitar numa barraca ilegal e
por ter um visto temporário. Sara contou como passou uma noite em branco depois
de a filha se ter soltado repentinamente da sua mão à beira da linha férrea e
ter atravessado no momento em que se aproximava um comboio.
As condições de vida desta mãe cabo-verdiana, partilhadas pelos outros
residentes do bairro, constituem um sofrimento social coletivo, definido em
função da pobreza material e que deve ser analisado no contexto estrutural da
história da emigração de Cabo Verde. De acordo com a teoria de Archer (2000,
2003), os residentes são agentes posicionados desfavoravelmente na
distribuição escassa dos recursos na sociedade. Porém, sem querer desvalorizar
esta dimensão material do sofrimento social, o objetivo desta análise é o de
focar o sofrimento social individual, criado através das interações sociais.
A principal razão que Sara apontava para querer sair do bairro não se referia
tanto às más condições materiais de vida, como ao seu isolamento social dentro
do bairro. Cada vez que saía de casa, os vizinhos insultavam-na. Acordava bem-
disposta de manhã, a conviver com as suas filhas, mas, mal punha os pés fora de
casa, os vizinhos começavam a chamar-lhe nomes. E, como explicou, não sendo uma
mulher para permanecer calada, retribuía, desencadeando uma discussão que lhe
tirava toda a boa disposição para o resto do dia. Estava a ser medicada para a
depressão e disse-me, várias vezes, que as suas filhas eram a única fonte de
alegria na sua vida e que, por elas, tinha de ultrapassar os problemas, pois,
se ela se deixasse ir abaixo, se adoecesse, se morresse, quem iria tratar das
filhas?
Entendia o seu isolamento social dentro do próprio bairro como fruto de racismo
entre os cabo-verdianos. Afirmou que, como eu já vivi em Cabo Verde, não
precisava de me explicar a rivalidade que existia entre badius e sampajudus, e
acrescentou: Sampajuduebadiunão dá: é sempre rival. Esta rivalidade
corresponde a uma divisão regional dentro do arquipélago que facilmente ganha
dimensões raciais, dado que os badiuscostumam ser mais escuros, se não negros,
e os sampajudus mais claros, ou até brancos (Batalha 2004: 74).
Embora Batalha (2004) afirme que, na diáspora, estas rivalidades geralmente
desaparecem, tal não aconteceu nas vivências de Sara no microcosmo social da
sua vizinhança. Queixava-se de ser mal tratada por todos os vizinhos desde que
o pai das suas filhas, que é badiu, se foi embora. As relações entre Sara e os
seus vizinhos badius, que tinham sido cordiais antes da saída de Carlos, foram
piorando, de tal maneira que evitava sair de casa. Sendo ela filha de
sampadjudu e de badiu, afirmou que os seus vizinhos tinham inveja porque o
sampadjudu é mais bonito, olho azul, verde, cabelo mais fino. O badiu tem o
cabelo mais grosso, sabia? Como afirma Brubaker, os que são categorizados são
eles próprios categorizadores crónicos (2004: 68, tradução minha).
Um posicionamento antropológico perante a rivalidade entre badius e sampadjudus
obriga-nos a olhar em duas direções ao mesmo tempo. Esta rivalidade, também
documentada por outros antropólogos (Meintel 1984), tem de ser analisada como
um fenómeno social que é simultaneamente verdadeiro e falso. É verdadeiro como
categoria de prática em certos contextos, no sentido em que Brubaker (2004)
fala da hiperacessibilidade das categorizações e estereótipos raciais para dar
sentido aos acontecimentos. Esta hiperacessibilidade de categorias raciais e
étnicas nas representações culturais coletivas faz com que as pessoas
interpretem mais rapidamente os eventos em termos étnicos ou raciais do que em
outros termos (2004: 79). Porém, esta rivalidade também tem de ser encarada
como falsa, no sentido em que é insuficiente como categoria de análise. Em vez
de encarar os grupos raciais, étnicos e nacionais como entidades substanciais,
eles devem ser vistos como representações coletivas: formas de ver o mundo e de
interpretar a experiência social. Cabe ao investigador, não somente analisar
como as pessoas são classificadas, mas também como é que palavras, situações,
ações e gestos são classificados, interpretados e vivenciados (Brubaker 2004:
77). Este alargamento do horizonte analítico ajuda a ver além das
categorizações étnicas.
No caso de Sara, a deterioração das relações sociais com os vizinhos na
sequência da saída de Carlos constitui uma situação significativa para o
alargamento da análise. Vivendo em proximidade com os seus vizinhos badius,
Sara não partilhou com eles a notícia da saída de casa do seu marido, quebrando
desta forma as expectativas sociais de reciprocidade que se desenvolvem entre
vizinhos que partilham as mesmas condições precárias de vida. Segundo Sara, os
seus vizinhos terão interpretado o seu silêncio como sinal de superioridade de
sampadjudu. Analisada na perspetiva de Brubaker (2004), podemos afirmar que
esta interpretação era a forma mais fácil de dar sentido ao seu comportamento.
Do ponto de vista de Sara, recorrer à rivalidade entre badius esampadjudus era
a forma mais fácil e acessível de dar sentido ao seu sofrimento social,
enquadrando-o numa lógica de pertença coletiva. E a sua subjetividade é
verdadeira. No entanto, esta rivalidade também tem de ser encarada como falsa,
uma vez que é insuficiente como enquadramento da análise do seu sofrimento
social. Os dados apontam ainda para a necessidade de se enquadrar o seu
testemunho pessoal numa análise, não somente sobre os efeitos materiais da
emigração cabo-verdiana de mão de obra pouco qualificada, mas também sobre as
relações de género. Várias mães entrevistadas contam como os pais dos seus
filhos não quiseram assumir a paternidade.
[4]
Os meus contactos com mulheres cabo-verdianas também revelaram que Carlos era
pai de mais crianças com uma terceira mulher: uma situação que Sara
desconhecia.
No seu estudo de relações conjugais na ilha de São Vicente, Åkesson (2004: 102)
afirma que o comportamento polígamo é visto como sinal de que se é um
verdadeiro homem e é consequentemente encarado como algo natural. Todavia,
este comportamento não deixa de ser criticado, como demonstra o conteúdo da
seguinte conversa entre duas mulheres cabo-verdianas residentes em Portugal,
reproduzida a partir das notas de campo:
' É aquela coisa, às vezes namora com outra. Por isso eu quero um português '
comenta uma rapariga ansiosa porque desconfia que está grávida do seu namorado
cabo-verdiano em quem pouco confia.
' Será que não são todos iguais? ' responde a amiga, que está à espera de um
bebé cujo pai também é cabo-verdiano.
' Não, não forçam. Tu dizes não quero', e eles aceitam. Cabo-verdiano, não.
Dizem que já esperaram muito e querem prova de amor'. Se não, vão para outra
mulher.
Olhando agora para trás, Sara também lamenta a forma como perdeu as amigas por
ter acreditado no discurso de Carlos sobre a sua prova de amor. Ao refletir
sobre o assunto, vemos o árbitro da sua identidade pessoal (Archer 2000) em
ação.
Eu sou uma pessoa às vezes, dá-me raiva de mim mesmo, eu quando me apaixono
por uma pessoa entrego tudo, a cabeça, esqueço tudo à volta E isto é que faz
mal Elas ficaram todas magoadas. Chegaram a me dizer, disseram: Sara, isso
não se faz, homem não é certo, mas amigas é sempre certo, porque as amigas, se
tu estás em situação grave, elas podem tentar ajudar e tu nos trocaste todas
pelo Carlos' Agora estou arrependida, também a gente aprende com os erros,
agora não faço isso com ninguém.
Estas palavras (gravadas numa entrevista) não podem, no entanto, ser analisadas
meramente como uma forma individual de raciocínio, dado que a disposição
natural que Sara afirma ter, de ser incapaz de resistir à sedução, corresponde
às observações de Åkesson de como as mulheres em São Vicente constroem a
fraqueza feminina como algo inerente e inevitável na sua sexualidade, que
predispõe as mulheres a serem incapazes de resistir a serem conquistadas
(2004: 108, tradução livre).No entanto, se olharmos para as circunstâncias em
que Sara foi viver com Carlos, vemos que também se tratava de uma estratégia de
sobrevivência. Dado que não se sentia bem no seu trabalho de empregada
doméstica interna, numa casa onde achava que estava a ser explorada, juntar-se
a Carlos foi uma forma de sair dessa situação. Trocou a sua precária
independência económica para desempenhar o papel tradicional cabo-verdiano de
mulher dependente do marido (embora não fossem casados). Sujeitou-se à sua
autoridade, perdendo, no processo, as amigas. Seguiu as regras do contrato,
segundo o qual o seu corpo lhe pertencia, mas era responsabilidade do homem
mantê-lo (Massart 2005: 252). Tiveram filhos, o que, segundo Massart,
transforma a namorada em mulher com mais direitos para reivindicar a
responsabilidade do homem (2005: 252). Terá sido por isto que Carlos não a
apoiou durante a segunda gravidez, quando estava em situação de ameaça de
aborto espontâneo? Estaria também já sujeito às reivindicações da outra mulher
grávida com quem tinha relações? Durante a entrevista, Sara afirmou que os seus
vizinhos badiusacriticavam por não ter conseguido impedir que o seu marido a
deixasse:
Deitam piada, que eu penso que sou melhor que eles mas que não passo de uma
coitada porque, quer dizer, o meu marido fez-me aquilo. Não consegui apresar o
meu marido dentro de casa. Porque ninguém não vai apresar ninguém porque
ninguém é dono de ninguém. Eles acham que eu não tive pulso, força, para ter o
meu marido dentro de casa.
A falta de pulso não correspondia ao novo modelo emergente da feminilidade
que, acompanhando as transformações económicas e sociais de Cabo Verde nas
últimas décadas, não se submete tão facilmente à dominação masculina,
negociando os termos da sua relação (Massart 2005). Vejamos, a título de
exemplo deste novo modelo, a afirmação de uma estudante cabo-verdiana que
cortou as relações com o pai do seu filho, residente em Cabo Verde, quando ele
recusou assinar o termo de responsabilidade para que ela pudesse enviar o
filho, nascido em Portugal, para a avó materna em Cabo Verde, de forma a poder
continuar com os estudos em Portugal: Ele não pode mandar em tudo na minha
vida. Isso não é vida para mim. Em Cabo Verde, homens mandam nas mulheres, as
mulheres não têm voz.
Durante a entrevista que fiz e em todas as ocasiões em que acompanhei Sara nas
consultas de pediatria das filhas, o mau relacionamento com os vizinhos parecia
constituir a sua maior preocupação. Ciente do desfasamento entre o seu eu,
com o qual se identificava, e um mim que lhe era imposto pelos vizinhos '
convencida, coitada, sem pulso ', a sua identidade pessoal velava pela sua
identidade social, pelo seu valor próprio (self-worth) na ordem social.
Acreditava que, livrando-se dos vizinhos, iria ultrapassar os seus problemas:
Eu tenho certeza que se eu sair de lá vou vencer. Porque eu tenho muita força
e as minhas filhas dão-me muita força. Muita! Porque lá é toda uma pressão. Eu
saio para a rua e deitam piada porque eu já não falo com ninguém lá
Mesmo sem ter acesso aos pontos de vista dos vizinhos badius de Sara e deixando
alguma margem de tolerância para as possíveis distorções no seu relato, não
deixa de ser evidente como as interações sociais dentro do bairro ativaram
estereótipos de etnicidade e de género (Brubaker 2004: 76). O papel dos
insultos verbais e da má-língua na ativação de categorizações étnicas é
salientado por Jenkins:
Verbal abuse and violence, in particular, are connected with the beating of
ethnic boundaries through the enforcement of definitions of what the ethnic
other' is, or may or must do. Issues of power and control are at the heart of
the matter.
Power and control are also central to sexual relationships Gossip is one of
the most effective ways of policing inter-ethnic sex and friendship
relationships (Jenkins 1994: 211-212).
Será que as piadas sobre a incapacidade de manter o marido dentro de casa, ao
ativar estereótipos de etnicidade, segundo os quais os sampajudus se consideram
superiores, serviram para insinuar que Carlos não devia ter relações com uma
mulhersampajudu e para afirmar a superioridade e maior poder da mulher badiu?
Do ponto de vista de Sara, estas piadascontribuíram para o seu isolamento e
sofrimento social. Passava os dias fechada em casa a ver televisão. A vontade e
a capacidade de alterar a sua posição involuntária face à distribuição dos
escassos recursos da sociedade (Archer 2000), procurando, por exemplo, um novo
trabalho, também foram afetadas por estas relações sociais, visto que tinha a
certeza de vencer se saísse do microcosmo do seu bairro. Falava de arranjar
uma creche para a bebé e de procurar trabalho, mas o primeiro passo a dar era,
sempre, sair do bairro.
O caso analisado em seguida elucida de uma forma patente o argumento de
Bourdieu sobre como a experiência do posicionamento na sociedade é afetada
pelos efeitos das interações sociais dentro dos microcosmos sociais (1999: 4-
5). Neste caso, passamos da vizinhança para o trabalho.
O sofrimento posicional
Articular o sofrimento social com questões de identidade foi uma abordagem que
surgiu no contexto de uma investigação em curso sobre as vivências de
maternidade e de paternidade de imigrantes cabo-verdianos residentes no Norte
de Portugal.[5] O objetivo principal da pesquisa é procurar compreender de que
forma estas vivências ' transmitidas em narrativas, através de entrevistas e
conversas informais, e observadas no dia a dia em consultas médicas ' podem
contribuir para uma teorização do self.
O trabalho de campo anterior foi orientado por uma perspetiva teórica sobre a
hegemonia do poder médico.[6] Existem muitos estudos sobre como a experiência
de gravidez e de parto, em contexto hospitalar, pode alienar a mulher do seu
próprio corpo, que é transformado num objeto sobre o qual perde o controlo
(Marck 1994; Davis-Floyd e Sargent 1997). Este sentido de alienação, provocado
pela hegemonia do conhecimento biomédico, será provavelmente mais forte para a
mulher imigrante, dado que as suas vivências culturais não coincidem com a
cultura dominante. No seu caso, não somente a experiência de parto, mas também
divergências culturais nos cuidados, na forma de tratar o bebé, podem criar
sentimentos de alienação que resultam num questionamento do self (Moro, Neuman
e Réal 2008). Nesta ótica, os profissionais de saúde podem ser vistos como
instrumentos de uma ciência biomédica que disciplina os corpos (Foucault
1979) e, nalguns casos, sujeita o corpo-ser (Van Wolputte 2004) a uma
violência simbólica (Bourdieu 1977).
Porém, a identidade profissional ou ocupacional também constitui uma das mais
importantes identidades sociais; além de servir de base para garantir o
sustento, também está intimamente ligada ao estatuto social (Jenkins 1994: 205)
que é criado através do relacionamento com o outro:
[ ] a psicodinâmica do trabalho salienta quanto a construção da identidade
assenta no campo social, em referência ao necessário olhar do outro: o
indivíduo inscreve-se nas relações sociais de trabalho onde são operantes as
regras, os códigos próprios e as ideias e o julgamento do outro [ ] (Araújo
2005: 7).
A falta de reconhecimento no trabalho pode ser fonte de sofrimento mental
(Araújo 2005) e social. Sara deixou o trabalho, onde sentia que estava a ser
explorada, para viver no bairro com Carlos. No estudo de caso que apresento em
seguida, vemos como as relações sociais de trabalho podem contribuir para o
sofrimento posicional (Bourdieu 1999: 4).
Conheci a pediatra Inês quando acompanhei várias mães cabo-verdianas que
levavam os seus bebés às consultas no centro de saúde onde ela trabalhava. A
pediatra mostrou um interesse ativo pelo meu trabalho e quando conheceu Sara,
numa consulta, pediu-lhe autorização para me dar o seu contacto, e foi assim
que comecei a acompanhar Sara às suas consultas. Inês também quis ajudar-me a
conseguir autorização para desenvolver a pesquisa num hospital e por isso
apresentou-me aos seus antigos colegas e, à medida que fomos convivendo e
conversando, comecei a ter acesso aos seus pontos de vista.
Habituada a trabalhar no hospital, resolveu mudar de local de trabalho, por
razões familiares. A fazer urgências dois fins de semana por mês, e tendo o
marido exigências profissionais que também requeriam frequentes ausências de
casa, Inês resolveu concorrer a vagas abertas para pediatras nos centros de
saúde, de forma a ter mais tempo livre para acompanhar os seus filhos. Quando
foi selecionada, pôde escolher entre vários centros de saúde e gostou muito da
entrevista que teve com o diretor do centro onde resolveu ficar. No entanto,
passado algum tempo, Inês queixava-se agora de que não era bem-vinda. Passava
alguns dias inteiros sem ver uma única criança, porque somente um dos médicos
de família do centro encaminhava os bebés e as crianças doentes para ela.
Explicou-me que a Administração Regional de Saúde colocou pediatras nalguns
centros de saúde para descongestionar os hospitais de crianças doentes, mas
ela quase nunca via crianças. No início, o diretor do centro tinha sugerido
algumas alterações ao seu programa de trabalho, às quais, na altura, não deu
importância: dar prioridade aos bebés sem médico de família, ver os bebés dos
médicos que estavam de baixa e ver os bebés do diretor, porque, como diretor,
não podia ter consultório. Agora, apercebia-se de que a queriam para tapar
buracos, porque não via outros bebés a não ser estes. Inês sentia-se de mãos
atadas: Eles com três meses e eu com cinco anos de especialização! Só faço
consultas de rotina! Para quê estar no centro de saúde?
Contou como o único médico no centro com quem falava um pouco veio pedir-lhe
para atualizar o plano alimentar para crianças que estava a ser usado no centro
de saúde. Depois de ter feito o plano, o médico, com poder de decisão sobre os
programas de atividades a realizar no centro de saúde, recusou aceitar as
alterações propostas, alegando que os médicos de família sabiam muito bem o que
faziam. Mas, segundo a pediatra, os médicos de família não estavam a par das
novas recomendações, porque, por exemplo, não assistiam, como ela, às
conferências sobre pediatria.
Tendo notado, durante o meu trabalho de campo, que outros médicos de família,
noutros centros de saúde, recomendavam comida sólida aos bebés de quatro meses,
perguntei-lhe sobre esta prática e Inês respondeu-me que correspondia às
recomendações de há vinte anos e que, agora, se recomendava a amamentação
exclusiva até aos seis meses. Esta orientação também está de acordo com as
recomendações da Organização Mundial de Saúde, que vi expostas em cartazes com
fotografias de mães a amamentarem os seus bebés nos serviços de obstetrícia e
pediatria dos hospitais.
A pediatra sentia-se isolada. Não convivia com os outros médicos nem com outras
pessoas no centro de saúde. Contou-me que, um dia, convidou uma auxiliar de
ação médica para tomar café com ela no centro e pagou-lhe o café. Soube depois
que a superior hierárquica da auxiliar de ação médica reprovou a auxiliar,
dizendo que, nessa instituição, o pessoal de limpeza falava com o pessoal de
limpeza, os enfermeiros com os enfermeiros e os médicos com os médicos. Até
chegou a ameaçá-la com mudança de local de trabalho. Sem ter acesso aos pontos
de vista da superior hierárquica da auxiliar de ação médica, não é possível
saber o que ativou esta interdição de sociabilidade, no centro de saúde, entre
as categorias profissionais; mas, seja o que for, elucida bem a maneira como
uma pessoa pode ser reduzida, num determinado microcosmo social, a uma única
pertença. De todas as formas, os efeitos do poder institucional nas relações
entre médicos, enfermeiros e auxiliares (Seixas e Pereira 2005; Carapinheiro
1998) oferecem, certamente, um enquadramento contextual significativo para
compreender a reação da superior hierárquica.
No seu estudo sobre os serviços hospitalares portugueses, Carapinheiro (1998:
104-105, 79) descreve como a segregação física entre médicos, enfermeiros e
doentes impõe hierarquias. As regras de circulação no serviço, a definição dos
lugares onde cada um deve estar são permanentemente acionadas, servindo como
uma forma de controlo social, na qual o saber dos enfermeiros é periférico e o
seu poder delimitado pelo poder médico. A afirmação feita pela superior
hierárquica da auxiliar de ação médica que tomou café com a Inês, de que o
pessoal de limpeza falava com o pessoal de limpeza e os médicos com os médicos,
sugere que a mesma cultura de segregação funcionava no centro de saúde. Será
que, ao tomar café com a pediatra, a auxiliar de ação médica estava a gozar de
um privilégio reservado aos seus superiores? Carapinheiro constatou que só os
enfermeiros-chefes entravam, ocasionalmente, na sala dos médicos para resolver
certos problemas:
Ao penetrar neste lugar reforça a sua posição de prestígio hierárquico,
fazendo desta possibilidade de convívio direto e informal com os médicos um
capital cultural para investir oportunamente noutros domínios da sua ação
profissional (1998: 104).
Mas o poder, como Foucault (1980) salienta, não é depositado nas pessoas. No
centro de saúde, onde estava tão isolada, pouco valia à pediatra a sua posição
hospitalar de prestígio hierárquico. Se uma criança sujava o chão do seu
consultório, ninguém atendia o telefone quando a pediatra ligava a pedir que o
fossem limpar. Também veio a descobrir que, no balcão de atendimento do centro,
mães e filhos eram mandados embora com o pretexto de que ela estava ausente, ou
não estava disponível, quando, na realidade, estava sentada no seu consultório
sem fazer nada. Começou a aconselhar as mães a irem diretamente ao seu
consultório sem passar pela receção.
Também estava a tratar uma depressão que a obrigava a estar de baixa, de vez em
quando; no entanto, pedia sempre ao centro de saúde para avisar os seus
pacientes, mas veio a descobrir que o pessoal na receção não os avisava e os
pacientes chegavam ao centro para ter uma consulta, em vão. Quando voltava
para o trabalho, o pessoal administrativo também não avisava as pessoas de que
ela já estava de regresso. Às vezes, o pessoal administrativo marcava-lhe as
consultas de forma muito inconveniente. Por exemplo, após um período de baixa
verificou que o pessoal administrativo tinha marcado um dia inteiro com quinze
consultas, seguido de outro dia com uma consulta no início da manhã e outra no
fim da tarde, e dias a seguir sem nada. Mesmo sem consultas, era obrigada a
ficar o tempo todo no centro de saúde. Inês queixou-se ao colega do centro ' o
único que lhe encaminhava os bebés ' e este respondeu-lhe:
' Já ouviste falar de um médico queixar-se por falta de trabalho? Escuta,
Inês: pagam-te, não pagam?
' Sim, pagam ' respondeu a Inês.
' Então estás-te a queixar de quê?
Esta reação do colega corresponde às atitudes comuns descritas por Bourdieu
face ao sofrimento posicional dos indivíduos que ocupam uma posição inferior
dentro de um universo relativamente privilegiado:
[ ] how painfully the social world may be experienced by people who [ ] occupy
an inferior, obscure position in a prestigious and privileged universe. The
experience is no doubt all the more painful when the universe in which they
participate just enough to feel their relatively low standing is higher in
social space overall. This positional suffering,experienced from inside the
microcosm, will appear, as the saying goes entirely relative', meaning
completely unreal, if we take the point of view of the macrocosm and compare it
to the real suffering' of material poverty. This is invariably the point of
reference for criticism (You really don't have anything to complain about'),
as for consolation (You could be worse of, you know') (Bourdieu 1999: 4).
O argumento do salário não consolava Inês, cuja frustração seria ainda agravada
por saber que, se voltasse a trabalhar num hospital, deixaria de ocupar uma
posição subalterna.
Tive oportunidade de efetuar alguma triangulação que, ao surgir naturalmente
no decorrer do meu trabalho de campo, corroborou as queixas da médica. Enviei
uma mensagem de telemóvel à Lisandra ' outra mãe que eu acompanhava nas
consultas pediátricas de Inês ' para saber quando era a próxima consulta do seu
bebé. Ela respondeu-me que a médica estava doente. Passada meia hora,
telefonou-me a dizer que já tinha marcado uma consulta, e que, afinal, a médica
já tinha voltado para o trabalho há muito tempo, mas, contrariamente ao
prometido, os administrativos não a tinham avisado, nem por carta, nem por
telefone. Também conheci uma jovem mãe angolana, à espera de uma consulta de
recurso noutro centro de saúde, que, ao conversar com a mãe cabo-verdiana que
eu acompanhava, descobriu que ambas conheciam a pediatra Inês e declarou ter
desistido das suas consultas. Afirmou que, quando a sua filha tinha à volta de
três ou quatro meses, a pediatra adoeceu e o pessoal administrativo do centro
ficou de enviar uma carta para casa quando a Dr.ª Inês voltasse ao trabalho; no
entanto, a carta nunca foi enviada: Cheguei a ir lá duas vezes com o meu
marido mas ela ainda não estava. Depois, não disseram mais nada Volta e meia
tem depressões, esgotamento. Depois resolvi ir ao privado porque não posso
estar à espera.
Também observei, no próprio centro de saúde onde a pediatra trabalhava, que
havia algum mal-estar nas relações entre Inês e as enfermeiras. Quando
acompanhava as mães nas consultas com a pediatra, reparava que, algumas vezes,
as enfermeiras pareciam pesar os bebés de má vontade, e ouvi uma vez uma
enfermeira comentar à outra: É a tal situação. Não foi possível conquistar a
confiança das enfermeiras para compreender o conteúdo deste comentário, que
deixa entender, no entanto, que existia algum descontentamento.
Ao desabafar comigo, Inês afirmou que a cultura do centro de saúde era
diferente da cultura dos hospitais e sentia que os médicos de família achavam
que o lugar dela era no hospital. Segundo Carapinheiro, a medicina interna '
uma prática de medicina que preserva a perspetiva global e sistémica (1998:
219) ' é desvalorizada nos hospitais face às especializações médicas que ganham
mais terreno, prestígio e poder. Colocada num centro de saúde, a Inês estava
rodeada de médicos de medicina geral. Poderia a presença de uma pediatra
ameaçar a identidade profissional dos médicos de família? Observações de uma
consulta de desenvolvimento da criança, noutro centro de saúde, sugerem que
poderia ser o caso. Nesta consulta, o pediatra recusou-se a responder às
perguntas dos pais porque dizia ser uma questão de ética profissional não
interferir com o médico de família.
Se os médicos terão sentido a presença da pediatra como ameaçadora, como
compreender a atitude do pessoal administrativo? Conflitos entre o poder médico
e o poder administrativo também ocorrem nos hospitais, onde, segundo
Carapinheiro, a tentativa de conciliar o exercício da medicina com uma gestão
racionalizada dos recursos, de forma a não interferir demasiado com o exercício
da profissão médica, é sempre tensa (1998: 134-148). Um caso de exercício de
poder administrativo, contado pela Inês, poderá ter contribuído para a
desvalorização do papel da pediatra no centro de saúde.
A pediatra conta que, nos primeiros tempos, recebeu no consultório um pai que
ia pedir uma declaração médica sobre a deficiência da filha para poder pedir
subsídios à Segurança Social. Como foi sem a criança, a pediatra pediu que
marcasse outra consulta e que levasse a criança para ser observada. O pai
respondeu: Para quê? É só uma deficiente, coitada! Mas marcou a consulta para
o dia seguinte. No entanto, não apareceu, e quando, no fim do dia, a pediatra
saiu do centro de saúde, viu o pai também a sair, sozinho, de outra consulta
médica. Descobriu que o pai tinha conseguido marcar uma consulta com outro
médico através da receção e foi queixar-se ao diretor do centro. Achava que o
pessoal administrativo e o médico de família tinham respondido aos interesses
monetários do pai, em detrimento das necessidades médicas da criança. Já tinha
constatado, através do sistema informático, que o pai não levara a criança a
nenhuma consulta no hospital. No entanto, o diretor afirmou que não havia
problema porque este médico tinha sido nomeado como médico de família do pai,
antes da consulta. A funcionária da receção nomeou o médico, sem o consultar,
para poder justificar a marcação da consulta sem ter que passar pela pediatra.
Inês estava furiosa, por se tratar de um caso grave de interferência no seu
trabalho como médica, e por pôr em risco a saúde de uma criança. A partir deste
momento, a funcionária na receção deixou de colaborar com ela. De acordo com os
relatos da pediatra, este acontecimento específico terá contribuído para o
processo do seu isolamento no centro de saúde, reforçando ou ativando
rivalidades profissionais, e foi seguido de mais casos de interferência no seu
trabalho como médica.
Durante uma consulta na qual participei com a Lisandra e com a sua filha, Inês
contou que, quando voltou ao trabalho depois de ter estado doente, várias mães
se queixaram de terem sido mandadas embora pelas administrativas sem conseguir
ter uma consulta de rotina, porque estas afirmavam que, se o bebé não estava
doente, não precisava de consulta. Os bebés ficaram três meses sem serem
vistos. Inês afirmou que o desenvolvimento dos bebés jovens precisa sempre de
ser monitorizado. Lisandra também se queixou nesta consulta de que, durante a
baixa da pediatra, tinha levado a filha ao centro de saúde para que fosse vista
por um médico, pois estava com uma tosse muito forte, e que a consulta lhe foi
negada por uma enfermeira ao constatar que a criança não tinha febre. Durante a
consulta que acompanhei, a pediatra observou a bebé e, embora não tivesse
febre, verificou que tinha uma infeção no ouvido. Disse que isto era um bom
exemplo de como o pessoal administrativo não devia interferir com o seu
trabalho, por não ter conhecimentos adequados.
As interações sociais dentro do microcosmo social do trabalho, onde o pessoal
do centro desvalorizava o papel e os conhecimentos da pediatra, contrastam com
as interações sociais durante as consultas, entre a médica e os seus pacientes,
através das quais o conhecimento autoritativo (Jordan 1997) foi construído.
[7]
Conhecimento, poder e sofrimento social
As mães cabo-verdianas levavam os seus filhos às consultas da pediatra Inês
porque não tinham médico de família no centro de saúde onde estavam inscritas e
existia um acordo, neste sentido, entre os dois centros. Como as consultas da
pediatra ficavam mais afastadas do centro da cidade, às vezes, algumas mães
optavam pelas consultas de recurso com médicos não especialistas do outro
centro de saúde.
Numa das consultas com Lisandra, a pediatra estranhou estar a faltar uma dose
na vacina para a bebé, que agora já não poderia ser administrada por ser
demasiado tarde, e perguntou quem a tinha receitado. A mãe respondeu que a
vacina tinha sido receitada pela médica de recurso: Mas a médica disse que com
um ano é só uma dose. E a pediatra discordou: Se a médica não explica, a mãe
não tem culpa. A mãe não sabe, a enfermeira que lhe dá a injeção também não
sabe. A médica tinha que explicar.
Depois da consulta, Lisandra mencionou duas amigas que também só tinham
comprado uma dose de vacina para os seus filhos e acrescentou: Por isso, não
gosto de ir àquele centro de saúde. Um médico diz uma coisa, outro médico diz
outra coisa. Antes eu ia às consultas dos dois lados, agora só vou aqui. Ela é
que é a pediatra.
Jordan (1997: 56) afirma que, em muitas situações, coexistem diferentes
sistemas de conhecimento, igualmente legítimos, e as pessoas servem-se de
todos, segundo o contexto e as suas necessidades. O conhecimento autoritativo
surge quando um tipo de conhecimento ganha mais legitimidade, porque explica
melhor o estado do mundo para os objetivos em questão (eficácia) ou porque está
associado a uma base de poder mais forte (superioridade estrutural) e,
normalmente, por estas duas razões juntas. Uma das consequências disto é que os
outros tipos de conhecimento são desvalorizados ou postos de parte.
A forma como os pacientes contribuem para a reprodução do conhecimento
autoritativo, no contexto da consulta, evidencia-se no caso de Sara quando a
pediatra, ao constatar que a barriga da sua filha estava dura, recomendou muita
água, sopa, legumes e salada e Sara perguntou: E arroz e carne, não? A
pediatra olhou para ela e, com um ligeiro ar de irritação, respondeu que estava
a falar dos intestinos. Pareceu-me, que, ao fazer esta pergunta, Sara estava à
procura de uma aprovação da dieta alimentar quotidiana da filha, em termos
gerais. Se nas interações sociais da consulta o conhecimento da pediatra era
solicitado, nas suas relações sociais, com os médicos não especialistas, era
posto de parte, por exemplo, quando a sua proposta de atualização do plano
alimentar para bebés foi rejeitada por um colega.
Será esta desautorização por parte dos colegas que explica o aparente excesso
de zelo ou autoridade médica de Inês, em alguns momentos durante as consultas,
onde parecia transformar o mais simples saber à volta dos cuidados de bebé num
conhecimento exclusivo da profissão médica? Quando Lisandra comentou, por
exemplo, que a filha gostava muito de lavar os dentes, a pediatra olhou-
a fixamente e perguntou com ar muito sério como é que estava a fazer. A mãe,
apanhada de surpresa com a intensidade da pergunta, hesitou, e depois respondeu
que estava a usar uma escova de dentes pequena e uma pequena quantidade de
pasta de dentes. Inês interrompeu-a, dizendo, num tom intenso e imperativo, que
devia pegar na criança, encostá-la com as costas coladas contra ela e a cara
virada para frente, que podia usar um banco, porque era pesada, mas para ter
cuidado para que não caísse, e depois escovar para cima e para baixo com uma
escova pequena e qualquer pasta de dentes. A expressão na cara de Lisandra
parecia revelar um sentimento de surpresa misturado com um ligeiro
divertimento.
A forma como o conhecimento da pediatra era valorizado nas consultas e posto de
parte pelo pessoal do centro corrobora o argumento de Jordan (1997: 59) de que
são as interações sociais que determinam, em cada contexto, que tipo de
conhecimento pode ser produzido e manifestado e que outro não é permitido.
Os conflitos com o pessoal administrativo e médico no centro de saúde começaram
a afetar a vida pessoal da pediatra. Ela manifestou o desejo de proteger a sua
família, ao afirmar que não podia deixar a sua situação profissional afetá-la
demasiado, porque esta tinha contribuído para a sua depressão e quem sofria as
consequências eram os seus filhos e marido. Sara tinha feito uma afirmação
parecida quando disse que tinha de tentar ignorar os vizinhosbadius porque, se
ela adoecesse ou morresse, não sabia quem tomaria conta das suas filhas.
Os casos de sofrimento social analisados aqui não são mediáticos; não se trata
de situações extremas de violência ou brutalidade. Trata-se do sofrimento
vulgar (Bourdieu 1999) que ocorre no quotidiano, trata-se da faca mole '
soft knife ' (Kleinman, Das e Lock 1996) de processos rotineiros de opressão,
onde as palavras não são inocentes (Maalouf 2003: 22) e ferem subjetividades.
O enfoque do argumento de Brubaker (2004: 77-78), sobre como a etnicidade é
ativada quase automaticamente, de forma não consciente ou deliberada, chama a
nossa atenção sobre como os atores veem e interpretam o mundo social. A
afirmação da superior hierárquica da auxiliar de ação médica de que os
auxiliares só falam com os auxiliares e os médicos só falam com os médicos
equipara-se à afirmação de Sara de que Sampajuduebadiu,não dá: é sempre
rival. Neste caso, pouco interessa ao investigador tentar classificar os
atores sociais. Vimos como, em ambos os casos, foi a partir de circunstâncias
particulares que as categorizações sociais foram ativadas, criando crispações
nas relações sociais.
Ambos os casos discutidos aqui abrem fissuras nas categorias que habitualmente
condicionam o nosso olhar sobre os processos de sofrimento social (Kleinman,
Das e Lock1996). Não se trata da opressão do imigrante africano pelo nativo
europeu e também não se trata unicamente da hegemonia do poder médico face ao
paciente. É a partir destas fissuras que vemos como o poder é implicado na
construção social de identidades (Jenkins 1994: 219) e reconhecemos a
necessidade de olharmos simultaneamente em duas direções opostas, atentos à
diferença entre uma categoria de prática e uma categoria de análise (Bourdieu
1977; Brubaker 2004). E é também a partir destas fissuras que reconhecemos a
utilidade de se fazer análise comparativa. O sofrimento social de duas mulheres
com estatutos sociais diferentes e com posicionamentos desiguais face à
distribuição dos recursos da sociedade foi, contudo, vivenciado e expresso, em
cada caso, através das pertenças, revelando processos sociais e vivências
semelhantes que apontam para a nossa humanidade comum (Archer 2000). Se a noção
de uma humanidade comum não for posta em causa pelo investigador, o seu
reconhecimento nem sempre está presente nas categorias daprática dos atores
sociais que criam barreiras insuperáveis entre o eu e o outro que acabam,
em alguns casos, por gerar situações extremas de violência. Explorar como o
sofrimento social pode ser vivenciado através das identificações e das
pertenças constitui um excelente ponto de partida para responder ao desafio de
Bourdieu (1999) de alargar os nossos horizontes de forma a que a pobreza
material não seja o único critério utilizado para reconhecer e compreender a
natureza do sofrimento social nas sociedades contemporâneas.