Juventudes e contemporaneidade: entre a autonomia e a tutela
Juventudes e contemporaneidade: entre a autonomia e a tutela
Ana Paula Serrata Malfitano*
*Departamento de Terapia Ocupacional, Programa de Pós-Graduação em Terapia
Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos, Brasil; anamalfitano@ufscar.br
Contemporaneity and youth: between autonomy and protection
ABSTRACT
Youth, characterized as a plural and emerging social group, has been
increasingly present in public debates and actions globally. However, young
people from popular classes are predominantly being regarded though a
homogenising perspective as a "political problem", leading to the
development of disciplinary intervention and control. Such interventions
struggle with the legal, cultural and social constitution of youth, questioning
who should be the youngsters under protection and guardianship, and which ones
should have the freedom and autonomy to decide about their lives. Social
services targeted to this population do intend to promote their autonomy. Based
on ethnographic work, done for four years with social institutions and young
people who attended them, the article presents the life story of a young man on
the threshold to adult life, understanding the passage to adulthood as a
critical event of social suffering. We emphasize the access gained, in his
itinerary, to social and economic autonomy, but this case is presented as an
exception, given the actual narrow effects of the actions of social services
regarding young people of lower-class groups.
KEYWORDS: youth, autonomy, guardianship, social institutions.
A temática da juventude vem ganhando o cenário público de debate por diversas
vertentes.[1] Perpassa a discussão acerca dos cursos de vida e seus ritos de
passagem, das mudanças na concepção de juventude como valor sociocultural,
enfatizando que, na contemporaneidade, acompanha-se uma busca contínua pela
permanência no estado juvenil, e não pela sua vivência como etapa de transição,
a partir de uma configuração de dissolução da vida adulta (Featherstone 1994;
Debert 2010).
No arcabouço investigatório sobre quem é o jovem na sociedade contemporânea
insere-se a multiplicidade de juventudes, que pode ser tratada sob as
perspectivas social, cultural, política, econômica e outras (Abramo e León
2005). Porém, há uma demarcação fundamental sempre presente, assinalada aqui
como necessária para a discussão: a classe social a que o indivíduo pertence. A
estrutura socioeconômica capitalista da sociedade ocidental define uma
importante vertente de análise que também cria diferenças nas possibilidades de
vivência das juventudes. O acesso aos direitos sociais ' como educação,
cultura, saúde e outros ', aos bens materiais e à possibilidade de inserção no
mundo do trabalho são elementos relevantes para se refletir sobre quem é o
jovem e quais as perspectivas e possibilidades nesse estágio de liminaridade e
transição para a vida adulta. As diferenças entre as juventudes passam, também,
pelas classes sociais, pela desigualdade socioeconômica, pelo acesso aos
direitos, pela diferenciação cultural de alguns grupos, dentre outros muitos
elementos. Pertencer a uma classe desfavorecida economicamente determina, mesmo
que não totalmente, as possibilidades de inserção dos jovens na sociedade.
Assim, opta-se, no presente trabalho, pelo enfoque nos jovens de grupos
populares urbanos, enfatizando a presença da relacionada discussão entre
sociabilidade, acessos, desigualdades e direitos. Demarca-se o conceito de
sociabilidade enquanto construção do próprio social a partir da interação dos
sujeitos, definindo e redefinindo simbolicamente as diferenças socioculturais
(Frúgoli Jr. 2007).
Entre os espaços de sociabilidade juvenil, discute-se aqui o papel das
instituições sociais e sua intervenção sobre os jovens, na sua proposição de
promoção de ações para o cuidado e a tutela dessa população, visando sua
autonomia para a entrada na vida adulta. Partindo da compreensão da entrada na
vida adulta dos jovens de grupos populares como um evento crítico de sofrimento
social, conforme os conceitos de Kleinman, Das e Lock (1997), problematizam-se
os alcances institucionais para a autonomia de tais jovens.
Para tanto, parte-se de um trabalho de base etnográfica, para o qual lançamos
mão de análises de quatro anos de terreno em serviços sociais direcionados a
adolescentes em situação de rua, em um município brasileiro de grande porte.
Tendo como base nossa convivência com os jovens e com os profissionais da rede
de serviços socais, assim como os registros formais das instituições,
apresentamos parte da trajetória de Lucas, que alcançou sua autonomia
financeira após completar 18 anos, a partir da intervenção das instituições
sociais. Porém, sua trajetória pode ser interpretada como uma exceção, dado o
pouco alcance das ações efetivas promovidas pelas instituições sociais para a
autonomia dessa população, permanecendo, apenas, no escopo da tutela.
Juventude e Problema Político
Os grupos juvenis têm sido caracterizados como plurais e emergentes nas
diferentes definições e concepções teóricas que os cercam (Abramo e León 2005;
IARD 2001). Entretanto, em contraposição ao discurso apresentado, observa-se
uma uniformização da ideia de juventude, considerando-a indistintamente como um
grupo único, para o qual se lança o olhar como problema político necessitando
de intervenção e de controle. Percebe-se tal fato pela crescente preocupação
e investimento internacionais verificados nos últimos quinze anos, os quais
buscam ofertar resposta às demandas sociais expressas sob a forma da
necessidade de intervenções assistenciais junto a essa população, seja para a
promoção de seu cuidado e proteção, seja para a tentativa de controle da
transgressão e da infração.
A construção do imaginário acerca das necessidades juvenis e sua inserção na
agenda política internacional, com ações implementadas pelos Estados e por
organizações não governamentais de âmbitos nacionais e internacional, perpassa
a crise contemporânea, acarretada pelas transformações no mundo do trabalho,
pelas novas formas de pobreza e de marginalidade (Attias-Donfut 1996), assim
como pela associação superficial entre violência e juventude. Contudo, as
discussões acerca das dimensões político-econômica e social que calcam a
demanda juvenil contemporânea ganham pouca visibilidade, prevalecendo o
argumento da intervenção para o controle da violência. Este fato é
influenciado pela expressiva veiculação pela mídia de notícias relacionadas a
comportamentos violentos por parte de adolescentes e jovens (Sposito 2007) '
por exemplo, os episódios de manifestação popular com expressiva participação
da população juvenil ocorridos na periferia (banlieu) francesa, pela discussão
da situação social da nova geração de imigrantes, notadamente na Europa.
No caso francês, os jovens são, a partir dos anos de 1970, compreendidos como
as principais vítimas do desemprego europeu, sendo que as mobilizações e
manifestações são resultados sociais que demonstram a necessidade de
intervenção em tal questão (Dubet 1987). Entretanto, anos depois aparece a
ênfase da discussão pública das mobilizações nos episódios de violência e nas
questões urbanas, articulados aos bairros de moradia de imigrantes, esvaziando
o discurso político acerca das manifestações e do desemprego, e restando o
imaginário e a associação entre a violência e a população jovem (Loncle 2003).
Bourdieu (1986) considera que o problema da juventude se instala quando há a
crise no mundo do trabalho e novas desigualdades estabelecidas. Assim,
constrói-se a visão uniforme e globalizada da juventude como problema
político, instalado na esfera pública e que interfere na dinâmica social (Abad
2003). Porém, é preciso assinalar que se trata de uma visão direcionada aos
jovens de grupos populares, na invisibilidade de sua multiplicidade
sociocultural e na compreensão pasteurizada da necessidade de seu controle para
a ordem.
Portanto, um marco para a discussão da juventude centra-se na crise da
sociedade salarial, descrita por Castel (1998). O autor define-a pela
diminuição gradativa de postos de trabalho assalariados levando a dificuldades,
que perpassam as classes sociais, na entrada e manutenção na esfera do trabalho
para todos, mas, em especial, para os jovens. Com isso, há uma tendência
transversal de prolongamento da juventude para que esses indivíduos tendam a
retardar sua entrada no mercado. Esse processo é percebido, de maneira mais
evidente, nas classes média e alta, nas quais os jovens têm passado por um
processo de escolarização formal aumentado, ampliando, também, o tempo de
dependência econômica de seus pais (IARD 2001). Nos segmentos populares, a
necessidade e o imaginário em torno do trabalho permanecem e fortalecem-se
apesar desses elementos, culminando em uma maior contradição para os jovens na
dificuldade de acesso ao trabalho:
Por um lado, muitos jovens de classes populares gozam de abundante tempo
livre, embora se trate de um tempo de espera, vazio, em virtude da falta de
trabalho, de estudo e de alternativas de um ócio criativo e vitalmente
enriquecedor. [...] o tempo da angústia e da impotência, o tempo da
estigmatização social, um tempo que empurra na direção da marginalidade e da
exclusão, o tempo do ficar marcando bobeira' numa esquina, exposto aos agentes
de limpeza social. [...] por outro lado, nos jovens de classes sociais com
possibilidade de uma postergação legitimada das responsabilidades adultas, o
período de formação tende cada vez mais a alongar-se, seja pela complexidade
dos conhecimentos exigidos para uma inserção profissional de acordo com as
expectativas da classe, seja pela falta de um destino econômico assegurado pela
educação (Abad 2003: 26).
Todavia, partindo desse cenário, no qual a intervenção política é demandada
para criar respostas, observa-se que tais ações podem reproduzir a ideologia
dominante ou, em contraposição, contemplar configurações inovadoras que
compõem o campo de forças e de disputas que constituem o jovem como categoria
social no interior dos espaços públicos da sociedade (Sposito 2007: 6).
Para a compreensão das disputas e dinâmicas estabelecidas, que também passam
pelas instituições sociais e suas práticas implementadas, faz-se necessário
lançar um olhar às múltiplas juventudes e suas formas de apreensão, abordagem e
intervenção. Abramo e León (2005) propõem um olhar acerca das gerações e
classes de idade, dos estilos de vida juvenil, dos ritos de passagem infanto /
adolescente / juvenil, assim como das trajetórias de vida e novas condições
juvenis.
Do ponto de vista cultural, Featherstone (1994: 62) aborda as invenções de
fases e delimitações nos cursos da vida, destacando que nas sociedades modernas
' com base nos processos de industrialização, urbanização e administração
pública das populações [...] ' uma série de idades compulsórias foram
instituídas para começar a deixar a escola, assim como para ingressar no
trabalho, casar, votar, se aposentar, etc., resultando em uma maior
padronização e ordenação do curso da vida. Acrescentam-se aos aspectos
econômicos as mudanças culturais e sua retroalimentação, trazendo, atualmente,
o debate sobre as modificações, diferenciações, prolongamentos e novas demandas
em torno da juventude. Tais fatores ganham complexidade em um contexto
sociocultural contemporâneo de constantes e rápidas mudanças em que a
sociabilidade, valores e modos de vida enquadram-se e diversificam-se em uma
sociedade moderna, liberal, pós-contemporânea ou reflexiva, conforme as
nomenclaturas aplicadas nesse campo por alguns teóricos.
Circunscrevemos nossa vertente de análise nas trajetórias de vida e novas
condições juvenis, as quais são constituídas de forma não linear, criando
percursos diversos que podem ser nomeados, segundo Pais (2005), de trajetórias
ioiô, na medida em que não têm previsibilidade e criam ciclos de idas e
vindas entre as possibilidades de criação de vida pelos meninos e meninas.
Buscamos, no relato etnográfico sobre a trajetória pessoal, possibilidades de
compreensão do cenário macrossocial da juventude e das ações a ela
direcionadas, com destaque para o sofrimento social vivenciado.
Enfocamos a questão na passagem para a vida adulta, por meio da trajetória de
vida de Lucas, tendo como ponto de análise as ações institucionais direcionadas
a ele e as possibilidades de ascensão à autonomia, que envolvem aspectos
socioculturais e também desdobramentos nas especificações normativas, como, por
exemplo, no escopo jurídico.
Princípio jurídico: o aparato para crianças e Adolescentes na sociedade
brasileira
A constituição do aparato jurídico brasileiro contemporâneo de atenção às
crianças e aos adolescentes efetivou-se por ações políticas realizadas pelos
movimentos sociais pelos direitos da infância e da adolescência, aliados aos
movimentos pela democratização do Brasil, na década de 1980, que estavam juntos
na luta pelo fim da ditadura no país. Como uma das consequências desse momento
histórico, a Constituição Brasileira (Brasil 1988) declara a criança e o
adolescente como absoluta prioridade (art.º 227.º), inaugurando o
reconhecimento do princípio jurídico brasileiro na atenção a essa população,
que se apresenta consoante com declarações internacionais, como a Declaração de
Genebra sobre os Direitos da Criança (1924) e a Declaração Universal dos
Direitos da Criança (1959), revista e ampliada na Convenção da Organização das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989).
Em continuidade com esse movimento, em 1990 há a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), o qual busca uma universalidade para os
direitos e intervenções com todas as crianças e adolescentesbrasileiros. O ECA
(Brasil 1990) estabelece os direitos básicos para todos, proteção integral à
criança e ao adolescente (art.º 1.º), definindo criança como a pessoa com até
12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade
(art.º 2.º). A partir deste, delega: É dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art.º 4.º),
reconhecendo uma condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento (art.º 6.º).
A Constituição Brasileira e o ECA determinam, no plano formal, a priorização
desse grupo etário no âmbito da política social nacional, devendo ser garantido
orçamento para a realização de uma série de serviços pela lei estabelecidos,
que visem à promoção do acesso aos direitos básicos, elencados para todos,
assim como uma estrutura de suporte para aqueles que não tenham acesso a alguns
direitos por meio da família ou da sociedade ' como casos de ausência da
família ' e, ainda, um sistema de reeducação para aqueles que entram em
conflito com a lei, por causa de delitos. Em outras palavras, o aparato
legislativo brasileiro reconhece a infância e a adolescência como temática
prioritária de investimento pelas políticas sociais, sob uma perspectiva
universalista, e estabelece a necessidade de criação de serviços, a serem
efetuados pelo Estado e pela sociedade (Brasil 1990), que assegurem a autonomia
desses sujeitos para a vivência da idade adulta, compreendida, juridicamente, a
partir dos 18 anos.
A junção de aspectos econômicos, políticos e culturais consolidou, no plano
teórico, altos ideais para uma sociedade ideal (Fonseca e Cardarello 1999:
84), como aqueles estabelecidos nos princípios jurídicos brasileiros para a
atenção à infância e à adolescência que, todavia, manifestam um grande
distanciamento da realidade vivenciada, considerando que é necessário admitir
que os direitos humanos em sua forma abstrata e descontextualizada pouco
significam (1999: 85).
Vale destacar que os avanços teóricos formais jurídicos, acima apresentados,
concernem ao universo de crianças e adolescentes, mas não alcançam a juventude.
Embora haja referências a esse grupo e também exista uma fase de idade
congruente entre adolescência e juventude, segundo algumas divisões etárias,
trata-se de categorias diferentes, com problemáticas e demandas diferenciadas,
e que, portanto, requerem ações públicas diversas. O ECA caracteriza a criança
e o adolescente segundo a faixa etária, porém não aborda a juventude. Existe,
portanto, um legado de proteção instituído para a infância no Brasil, alguns
apontamentos para a adolescência, porém nenhum aprofundamento jurídico sobre a
juventude. Essa mistura de termos estabelecida cria uma confusão de
interpretações e compreensões, além da invisibilidade da ausência de ações
realizadas com a juventude. Pode-se dizer que, se tomadas exclusivamente pela
idade cronológica e pelos limites da maioridade legal, parte das políticas
acaba por excluir um amplo conjunto de indivíduos que atinge a maioridade, mas
permanecem no campo possível de ações, pois ainda vivem efetivamente a condição
juvenil (Sposito e Carrano 2003: 19).
Nesse debate, em 2004, foi criada pelo governo federal brasileiro uma comissão
interministerial, no poder executivo, que apresentou à Câmara dos Deputados um
projeto de lei que cria o Plano Nacional de Juventude, que aguarda aprovação, o
Estatuto dos Direitos da Juventude e a Proposta de Emenda Constitucional, que
incluiu o termo juventude na Constituição Brasileira, integrando o texto já
existente sobre proteção às crianças e aos adolescentes. Em 2005 foram criados
também a Secretaria Nacional da Juventude e o Conselho Nacional da Juventude
(Novaes et al. 2006). Em 2010 foi acrescida ao art.º 227.º da Constituição
Brasileira a priorização das ações comjovens, além das crianças e adolescentes,
já referidos no texto original. Reconhece-se uma nova categoria jurídica em
debate com a realidade sociocultural (Paula 2010).
Todavia, permanece a definição jurídica de entrada na vida adulta aos 18 anos,
e é ela que conjuga o debate sociocultural sobre a (im)possibilidade de muitas
juventudes alcançarem a autonomia para o exercício de sua vida, tanto na
perspectiva econômica quanto subjetiva. Portanto, apesar da precisa definição
legislativa, permanece o relevante debate entre a autonomia e a tutela e,
especificamente, sobre as possibilidades e impossibilidades de os serviços
sociais realizarem ações que promovam a tutela com a finalidade de facilitar a
autonomia aos 18 anos.
Juventude: o debate entre a autonomia e a tutela
As ações sociais destinadas a crianças e adolescentes têm, no Brasil, um escopo
de proteção e tutela, de acordo com os pressupostos jurídicos acima
apresentados. A juventude inaugura-se então neste cenário, assumindo o lugar
daquele que também precisa ser protegido e ter garantido o acesso a seus
direitos. Entretanto, traz consigo o debate sobre a autonomia e as
possibilidades das ações sociais junto a essa população.
Essa polêmica perpassa a compreensão sobre quem deve estar em proteção, sob
tutela, e quem tem a liberdade e a autonomia de decisão sobre si. Os ser-viços
sociais são direcionados para uma parte da população compreendida como estando
em situação especial de desenvolvimento, e a partir dos 18 anos haveria,
supostamente, outros recursos internos e externos para a autonomia, para a
vida.
Historicamente viveu-se, primordialmente, o modelo compulsório nas ações
públicas voltadas para as crianças e adolescentes populares, pelas quais essa
população seria educada moralmente, de acordo com o projeto de nação da elite
brasileira (Rizzini 2008). Em contraponto, quando se criam intervenções
pautadas na desinstitucionalização, na autonomia e na liberdade de escolha,
modifica-se um legado instaurado e diversificam-se as possibilidades de
intervenção com esse público.
Nessa discussão sobre a maioridade e as vivências sociais dos cursos da vida,
as categorias infância, adolescência e juventude misturam-se e ora se
distinguem totalmente, ora representam o mesmo grupo. Contudo, é necessário
demarcar a diferenciação entre infância e adolescência, assim como as
diferentes etapas no interior da adolescência, pois a homogeneização de
crianças e adolescentes retira a ênfase da necessária proteção das condições
infantis. Quando se trata de adolescentes, é preciso distinguir as
características de um adolescente de 12 e outro de 17 anos na prática de seus
atos, na liberdade sobre si mesmo e na autonomia e responsabilização pelas suas
escolhas. As questões sociais contemporâneas interpõem novos modos de vida que
criam modificações no que é compreendido e exercido como autonomia no contexto
social.
Essas questões não têm um posicionamento único, pela diversidade de vivências
de infância, adolescência e juventude que são socialmente constituídas.
Adorno, Alvarenga e Vasconcellos (2005: 17-18) defendem que o conceito de
adolescência foi introduzido no universo médico para referir um período de
transição, desprovido de identidade e de vida própria, mas considerado como
fase de latência, a exemplo dos processos biológicos de maturação. Argumentam
acerca da crítica às ações normativas dirigidas a essa população e conceituam:
Opondo-se ao conceito de adolescência, a Sociologia trabalha com o conceito de
juventude como representativo do caráter que as novas gerações trazem à
sociedade, não a encarando, assim, como uma fase de transição para uma idade ou
identidade adulta, mas justamente como um campo de inovação, de geração de
novas identidades, de discussão de papéis e questionamento do caráter
conservador das instituições, dos valores e das normas sociais (2005: 18).
A indistinção entre adolescência e juventude, ou ainda a substituição do termo
adolescente por jovem, não contribui para o debate sobre as diferenciações
entre esses cursos e suas necessidades e características singulares que, em
alguns momentos, são congruentes; mas, de maneira geral, eles representam
grupos distintos com compreensões e definições diversas.
No entanto, nenhuma das práticas estremadas, das mais conservadoras às mais
progressistas, enfrentou realmente a questão da autonomia e da proteção.
Permanece a difícil tarefa de mediação e debate em torno desse tema.
Afinal, a que se refere a minoridade? Na esfera pública brasileira, segundo o
referencial jurídico, a minoridade se encerra aos 17 anos e 11 meses, ou seja,
o jovem que completa 18 anos é considerado adulto e exposto às normas
condizentes com esta faixa etária.
Especificamente com relação aos serviços sociais, como aqueles das áreas da
saúde e da assistência social, o atendimento, na maior parte dos casos, refere-
se à população adolescente, até os 18 anos, ou adulta, após os 18 anos, havendo
nessa fase, portanto, uma necessária ruptura de referenciais para aqueles que
estão nos equipamentos sociais.
Os meninos e meninas de grupos populares dialogam sobre essa passagem de fases,
sendo um assunto comum entre os jovens em torno dos 18 anos, abordando a
entrada na vida adulta pela impossibilidade de continuarem como usuários de
determinados serviços sociais que frequentavam, assim como pelo temor do
sistema judiciário comum.[2]
Acompanhamos um jovem que completou 18 anos e havia sido usuário de um serviço
de saúde por três anos. Após seu aniversário, não ultrapassava mais a porta do
local ao qual se dirigia diariamente até então, mesmo que fosse até o serviço
constantemente e ficasse do lado de fora solicitando, a partir da porta, para
falar com pessoas que conhecia. Não havia nenhuma restrição para a sua entrada,
formal ou informalmente estabelecida, e havia mesmo o convite para que
ingressasse no local; contudo, sabia da sua perda de condição de usuário
daquele local e delimitava suas possibilidades de tutela por aquele universo
institucional por meio da porta de entrada, não mais cruzada após sua passagem
à vida adulta.
O outro marco de passagem para a vida adulta dava-se pela possibilidade efetiva
de encaminhamento aos presídios, novo serviço que acessariam caso fossem
apreendidos pela prática de atos infracionais. Esse temor relacionado à
prisão confirmava-se por algumas trajetórias, relatadas por jovens que, com 18
anos recém-completos, eram encaminhados para presídios, quando apreendidos em
flagrante, na maioria dos casos por furtos, uso ou tráfico de drogas.
Vemos, nesses casos, a explicitação da influência do fator externo à vida
cotidiana daqueles meninos, no caso a legislação da área da infância e da
adolescência, como elemento causador de sofrimento social na passagem para a
maioridade, marcada pela posição de classe socioeconômica dessa população.
Passar a fronteira dos 18 anos implica, pelas questões legislativas componentes
do nível macroestrutural, a perda de acessos a serviços sociais que eram até
então referências em suas vidas, bem como o medo de entrada na prisão, espaço
desconhecido e causador de sofrimento pela possibilidade de aproximação e
entrada. Trata-se, conforme descrito por Kleinman, Das e Lock (1997), de um
evento crítico fortemente influente no nível local, na vida daqueles meninos e
meninas que passam a ser adultos, na medida em que ressignifica o cotidiano de
determinado grupo populacional a partir de sua existência jurídica e, com isso,
causando sofrimento social em determinadas histórias de vida.
Exemplo do quadro descrito ocorreu com uma jovem que, quando nas ruas,
levantava a suspeita de apresentar um rebaixamento intelectual, além de fazer
uso intensivo de substâncias psicoativas. Ela foi apreendida, com 18 anos,
participando de um furto e encaminhada para um presídio feminino na região onde
morava. Quando duas técnicas de um serviço que ela frequentava, ainda
adolescente, souberam da ocorrência, foram visitá-la e encontraram-na
extremamente medicada. Os funcionários do presídio informaram que ela havia
sofrido uma crise nervosa, com muita agitação, e que fora encaminhada para o
serviço de psiquiatria que atende os internos, recebendo essa conduta médica.
Observa-se, conforme apontado por Biehl (2008), uma farmaceutização das
questões de saúde mental da população de baixa renda, nesse caso,
especificamente, no contexto prisional. As profissionais, embora não tivessem
responsabilidade técnica pelo caso, procuraram a Justiça e solicitaram,
formalmente, a liberação da jovem, que ainda não havia sido reclamada por
ninguém de sua família. Quando discutiram junto à promotoria a possibilidade de
atestarem seu rebaixamento intelectual e a inadequação da intervenção
medicamentosa recebida no presídio, foram aconselhadas a não tomarem essa
conduta, que abriria a discussão do encaminhamento da jovem para o serviço de
saúde mental judiciário e, assim, a possibilidade de sua liberação seria muito
menor, uma vez que dependeria da avaliação médica e, nas condições em que se
encontrava de ré primária e acusada de crime de baixa periculosidade, a
liberação para responder ao processo em liberdade era quase certa. O
aconselhamento formal jurídico recebido demonstrava o lugar dessa população,
também na condição de adultos, e o uso da loucura, e das doenças que a
tangenciam, como penalidade. Pela solicitação apresentada, a jovem foi liberada
para responder ao processo em liberdade. Não se soube para onde foi nem com que
meios. Outros jovens relataram, tempos depois, que haviam se encontrado com ela
novamente nas ruas e sob o uso de drogas.
Wacquant discute a política dos presídios como um recurso de controle dos
pobres, chamando-os de prisões da miséria, argumentando que para as classes
trabalhadoras não há atualmente proposição efetiva de acesso a bens sociais,
mas sim ações denominadas de políticas sociais que se caracterizam por um
caráter cada vez mais rígido e legalista, enquadrando-se mais em um perfil de
controle e de não distribuição de bens e recursos sociais: Trabalho social e
trabalho policial obedecem assim a uma mesma lógica de controle e reeducação
das condutas dos membros fracos ou incompetentes da classe trabalhadora (2001:
47).
De acordo com os princípios arrolados por Wacquant (2001), a autonomia juvenil
e a sua transição para a vida adulta, vivenciadas por aqueles provenientes de
grupos populares urbanos, fechavam-se na perda da assistência até então
recebida, assim como na aproximação com o universo judiciário dos presídios,
reafirmando sua origem de vida e perspectivas possíveis para a vivência da vida
adulta, ou seja, de sua autonomia.
Esses elementos configuram-se como sendo de extrema relevância, e com impactos
significativos no sofrimento social vivenciado, assinalando a vida daqueles
meninos e meninas e perpassando a discussão acerca da delimitação sociocultural
e contemporânea sobre a passagem para a vida adulta e a vivência autônoma de
projetos de vida. A delimitação sobre a autonomia sobre si e os caminhos
possíveis de trilhar são elementos de difícil debate acerca das juventudes,
especialmente daquelas em situações socioeconômicas desfavoráveis.
Numa arena híbrida, influenciada por fatores de diferentes ordens, o papel das
ações sociais desempenhadas junto a essa população pode reforçar ou combater os
aspectos da autonomia ou da tutela, na dimensão de acesso aos direitos sociais,
implicando em consequências que traçam cursos diversos de vida.
Lucas: entre a tutela diferenciada e a promoção da autonomia possível
Para ilustrar este debate sobre o acesso aos direitos sociais, o papel das
políticas, dos serviços e da sua intermediação entre a tutela e a construção da
autonomia da população atendida, relataremos o caso de Lucas, a partir da ótica
dos serviços que o acompanharam, juntamente com alguns relatos seus, buscando
dar luz às contradições criadas no processo e na dinâmica vivenciados, e ao
sofrimento social produzido.[3]
A história de vida de Lucas era pouco conhecida pelos técnicos da rede de
serviços, quanto à sua vinculação familiar, ao momento e motivos para a sua
saída para as ruas. Ele não falava muito sobre esse tema, dizia: O meu passado
é uma coisa que eu não gosto muito de mexer, porque é uma coisa que, para mim,
dói, por tudo que eu passei. Havia algumas informações em seus prontuários,
provenientes dos serviços que tinha frequentado em seu bairro.
Lucas se iniciou na rede de instituições sociais com quase 17 anos, tendo sido
encaminhado por uma instituição para participação em um grupo de Narcóticos
Anônimos (NA).
[4]
Desde então, essa experiência o acompanhou em sua trajetória institucional e
também em seu discurso verbal sobre a vida nas ruas e o uso de drogas, sempre
enfatizando em seus relatos a opção consciente de cada um para o uso e a
necessidade de um desejo individual para a saída dele, conforme os preceitos
ensinados pelos NA. Após três meses internado na comunidade terapêutica, foi
encaminhado para um abrigo e transferido, posteriormente, para outras
instituições.
Nessas passagens pelos serviços de moradia, foi levado à unidade de saúde para
ser inserido nas atividades locais, com uma queixa, por parte dos técnicos, de
um perfil de crises de violência, momentos nos quais diziam que ele não
controlava seus atos e colocava em risco a si mesmo e a outros, pela força
física de que dispunha, oriunda de sua estrutura corpórea. Por causa desses
argumentos, o serviço de saúde administrou medicação psiquiátrica, por um
período de quatro meses, para o auxílio na contenção desses sintomas.
A necessidade de um local para viver era fortemente manifestada na história de
Lucas em todo o período de sua passagem pela rede de serviços sociais.
Argumentava enfaticamente sobre a impossibilidade de retorno para a casa de sua
família. Esse fato, vinculado à sua idade, próxima aos 18 anos, acarretava o
questionamento sobre qual seria a possibilidade de sua inserção social, sua
manutenção financeira independente e o espaço físico concreto que ele poderia
ocupar para morar.
Os abrigos são opções provisórias de moradia, que não respondem à questão sobre
a continuidade de um local para viver, para aqueles que não têm a possibilidade
de retorno para as suas famílias. Explicita-se uma situação eminente e
concreta: como solicitar a vivência da autonomia da fase adulta sem poder
contar com um espaço físico de moradia?
Coloca-se a discussão em torno da proteção, proporcionada pela tutela, da
liberdade e da autonomia de decisão sobre si. Conforme apresentado, a ideia de
tutela das crianças e dos adolescentes, no âmbito da sociedade brasileira,
associa-se à proteção a ser oferecida pelo Estado, pela sociedade e pela
família. Trata-se da busca de acesso aos bens sociais, visando aos direitos
constitucionais. Entretanto, olhando para os cenários reais da vida cotidiana,
tais direitos são pouco acessíveis, na medida em que o padrão de desigualdade
econômica está estabelecido, esvaziando os sentidos teóricos para a proteção e
a tutela.
Daí o debate diversifica-se em torno da questão de quem tem e pode ter
autonomia de decisão sobre si. O conceito de autonomia, classicamente
apresentado por Kant (1960), descreve a capacidade da vontade humana para se
autodeterminar, segundo a moral estabelecida e pelo sujeito aceita, efetivada
num processo reflexivo. Portanto, a autonomia não se dá numa produção
natural, mas sim na elaboração sociocultural individual e coletiva dos
sujeitos. Nessa direção, Sennett (2004), a partir de Winnicott, aponta como
necessária, para a construção da autonomia, a aceitação no outro daquilo que
não compreendemos, e destaca que conferir autonomia ao outro significa supor
sua participação nas condições de sua própria vida.
Assim, fica a questão de qual é a autonomia que pode ser estabelecida na
realidade dos jovens pobres e qual a tutela que se faz necessária para que
consigam, efetivamente, construir, com liberdade, suas vidas. A temática é
pouco explorada e requer que seja ultrapassado o imaginário social existente
sobre o jovem pobre, para que sejam verdadeiramente discutidas as necessidades
de proteção e as possibilidades de autonomia.
Na realidade que estudamos, fazer 18 anos, ou seja, passar a fronteira da
maioridade, significava perder algum nível de proteção e negociação e ser
totalmente responsável por si. Como consequência, era comum, nos relatos dos
profissionais, a percepção da maior adesão dos jovens, nessa fase, aos
serviços. A baixa adesão dos jovens às proposições institucionais é um tema
recorrente no discurso dos atores institucionais, nos apontamentos acerca do
acúmulo de uma maioria de não adesão. Assim, aqueles que aderem às
proposições e aos encaminhamentos, incorporando-se aos códigos locais, acessam
ganhos secundários (Goffman 1974) no universo institucional, ou seja, para eles
são ofertados alguns benefícios diferenciados, que não chegam para todos, e,
assim, podem desfrutar de circulação, acesso e oportunidades distintos. Esse
era o caso de Lucas, que, desde sua entrada na rede de serviços, foi
progressivamente realizando as atividades e encaminhamentos, conforme lhe eram
propostos, e assim acessava outras atividades e outros lugares sociais
ofertados pelos profissionais de diferentes equipamentos que frequentava.
Lucas permanecia de forma contínua nos serviços, com alguns comportamentos
considerados inadequados, comumente brigas e agressões físicas. Aderiu, também,
aos acompanhamentos médico-psiquiátrico e psicológico propostos pelo serviço de
saúde, havendo uma diminuição de suas crises de violência, características de
sua chegada à rede. Pôde, posteriormente, interromper o uso da medicação. Ele
demonstrava também interesse pela realização de cursos de informática e, por
isso, foi convidado a monitorar a sala de computadores de uma das instituições,
ficando nas máquinas por um tempo superior aos demais usuários, que só poderiam
acessá-las acompanhados de funcionários e por um período limitado. São estes
exemplos de situações nas quais ele ocupava lugares diferenciados e ganhava a
confiança dos profissionais, fato que ele percebia e claramente mencionava:
Todo mundo me conhece, como eu era no começo, que eu não tava nem aí pra nada,
não queria saber de nada, e depois eu fui mudando de comportamento, fui
evoluindo. Comecei a fazer a oficina de informática aqui dentro e depois eu
peguei uma confiança que nem eu pensei que ia pegar, com o pessoal aqui, que é
uma coisa que dura até hoje. Me chamam para fazer as coisas, para ter
participação nas coisas importantes e isso me deixa muito feliz, porque essa
confiança era uma coisa que há muito tempo eu não tinha. As pessoas confiam de
eu poder entrar numa sala sozinho sem ninguém estar vigiando, a bolsa do
pessoal poder ficar nos lugares, sem ninguém desconfiar que eu vou pegar. Então
é isso! [Lucas]
Lucas enfatizou, em seu discurso, um elemento relevante e perceptível na
vivência desses meninos: a falta de confiança neles como sujeitos. Sua menção e
percepção sobre entrar nos locais sem ser vigiado e as pessoas confiarem que
não corriam riscos com a sua presença demonstra, claramente, o lugar social
ocupado pelos jovens de grupos populares. Essa juventude, no imaginário social,
transita entre uma invisibilidade e uma visibilidade pela periculosidade, sendo
submetida, cotidianamente, a processos objetivos e subjetivos de humilhação
social (Soares, MV Bill e Athayde 2005) que causam sofrimentos sociais.
Dentro do universo institucional dessa rede de serviços, Lucas superou essa
posição e passou a ser um ombro de apoio para o funcionamento local, uma via de
acesso ao mundo da rua, uma figura positiva para a apresentação do trabalho
desempenhado pelos equipamentos sociais. Estabeleceu-se, então, uma troca na
qual foi ofertada uma posição diferenciada para Lucas, como usuário da rede de
serviços, com acessos e posicionamento especiais, nos campos objetivos e
subjetivos; e foi solicitada sua representação e relato, para o contexto
externo, do trabalho desenvolvido pelos mesmos serviços. Lucas passou a ser
convidado para participar dos fóruns coletivos da cidade como representante dos
usuários dos serviços para meninos e meninas em situação de rua e, assim, foi
inscrito e, efetivamente, participou de conferências, seminários, debates e
eventos sobre a infância e juventude, naqueles em que estava previsto assento
para os usuários. Com essa prática, ganhou um linguajar próprio desse meio,
apreendeu situações e processos de decisão, e incluiu, na sua fala, a temática
dos direitos e do protagonismo.[5]
É importante participar, porque um adolescente entrando numa palestra é
protagonista, montando o que ele tem para falar, ele acaba adquirindo mais
responsabilidade, acaba conhecendo coisas novas, pessoas, outros tipos de
pessoas, aprende a conviver com a sociedade. Porque um seminário é mais ou
menos a sociedade, tem o prefeito, aparece o prefeito, aparece assistente
social, aparece pedagoga, enfim, aparece todo tipo de pessoa. E eu acho,
também, que o adolescente ser protagonista é uma coisa muito importante, porque
é difícil para o adolescente poder expor suas ideias. Isso é uma coisa que
antigamente não acontecia, de adolescente ir em seminários, fazer apresentação
e realmente falar o que ele pensa e as pessoas ouvindo, entrar para uma mesa de
debate. Eu acho que é, nossa, superinteressante! Principalmente pra mim, pra
mim é interessante porque é uma coisa que eu gosto de fazer. Que é conhecer os
direitos e estar cobrando aquilo que por direito é meu. Eu, então, gosto muito
de mexer com isso, de dar palestra, de ouvir os caras falando, de poder
discordar ou concordar [Lucas].
Lucas também se inseriu na rede formal de ensino. Frequentou-a pelo período de
um ano. Dispunha de um histórico no ambiente escolar mais longo do que o da
maioria dos adolescentes de sua idade e condição social e, embora tivesse sido
expulso da escola de seu bairro, ao contrário da realidade presente do universo
onde estava inserido, tinha um grau de conhecimento escolar diferenciado. Com
essa avaliação, foi matriculado diretamente no ensino médio. Teve problemas de
comportamento na escola em que estava, o qual, segundo seu relato, era
resultado de suas atitudes críticas e contestadoras da metodologia pedagógica
empregada pela professora local. Foi, então, transferido para outra escola a
fim de dar continuidade aos estudos.
Lucas vislumbrava a escolarização como possibilidade de mudança de seu lugar
social e abertura de horizontes para alcançar outro patamar, que poderia ser
acessível a partir de uma formação universitária. Por essa trajetória, via a
possibilidade de tecer sonhos e outros trajetos.
Minha vida daqui pra a frente é continuar, eu já tô quase para completar 18
anos, né? Eu acho que é pegar firme nos estudos, fazer os cursos
profissionalizantes na área de informática, que é o que eu gosto, e se pá,
fazer assistência social, que é uma coisa que eu curto bastante também. Fazer
uma faculdade de direito, não sei, porque eu tenho várias coisas em mente, de
faculdade para eu fazer, e eu acho que, daqui para frente, também, continuar os
projetos que eu tô começando agora, por exemplo, dar aula de informática no
CRAISA, que é uma coisa nova, nunca pensei que eu ia dar aula. E acho que é
isso. E continuar correndo atrás do que eu quero, atrás dos meus sonhos
[Lucas].[6]
Para Lucas, a entrada na rede de serviços, e sua adesão a ela, foi a
possibilidade de trilhar seu percurso, aproveitar benefícios que passou a
acessar e criar novos posicionamentos e funções sociais advindos desse
processo. Com isso, o futuro, e sua visualização, alcançou o discurso, os
planos, os sonhos.
Após completar 18 anos, pelo seu bom comportamento, Lucas começou a trabalhar
em dois projetos sociais, passando, em um deles, da condição de usuário para
educador. Compôs a equipe, em uma organização não governamental, de ações com
meninos e meninas em situação de rua. No outro local, estava ligado a um
projeto de democratização do acesso à informática, com financiamento público,
no qual ministrava aulas de computação.
Com isso, foi possível o pagamento próprio de sua moradia. Morava com um outro
colega, com quem dividia as despesas de uma casa simples. Persistia
desenvolvendo o papel de representação política, por meio da participação ativa
nos eventos na área da infância e da juventude.
Sua autonomia foi viabilizada pela sua inserção no trabalho, por meio dos
serviços de que participou na condição de usuário, onde recebeu importantes
pontos de suporte pessoal e social, traduzindo-se em um amplo fortalecimento de
sua sociabilidade primária e potencialidades perante a vida.
É evidente o significado do trabalho remunerado na vida de Lucas e, a partir
dele, a possibilidade de ascender a um novo papel social, com sua maioridade e
inserção do outro lado da rede, na condição de trabalhador. Juntamente com
isso, continuou a contar com seu lugar diferenciado, entre muitos técnicos, e
apoios contínuos que certamente embasaram e favoreceram seu percurso.
No entanto, essa realidade não é oferecida para a maioria dos jovens ex-
usuários dos serviços para crianças e adolescentes; para muitos, a corda
bamba da sobrevivência e as condições de pobreza permaneceram como elementos
centrais de sua trajetória e são passadas de geração para geração, impressas
nas histórias de pais, filhos e, talvez, dos filhos desses jovens.
Lucas seguiu as proposições a ele sugeridas, tendo deflagrado poucos momentos
de tensão e contestação. Pelos agenciamentos próprios que realizou, conquistou
entre os técnicos uma permissividade e ganhos efetivos que modificaram sua
trajetória. Assim se compõem os momentos de não adesões, pelo seu histórico,
desde sua entrada na rede, junto aos de cooperação e de enquadramento nos
diversos encaminhamentos dos serviços. Com isso, seguiu para um lugar
diferenciado nesse contexto e verbalizava seus ganhos diretos e secundários
conquistados, a partir de sua adaptação à rede, às instituições e aos
trabalhadores.
Os ganhos obtidos por ele são nítidos e exemplificam uma mudança do lugar
social ocupado como usuário da rede de serviços, expressa diretamente na oferta
da participação e representação em seminários, conferências e outros coletivos,
para os quais os usuários dos serviços normalmente não são convidados, assim
como na possibilidade de utilização de recursos locais, de difícil acesso e
interesse dos meninos. Obteve também ganhos indiretos, exemplificados quando
relatou a autorização recebida para circulação por espaços exclusivos dos
funcionários no ambiente institucional e a não mudança de comportamento por
parte dos técnicos locais com a sua presença.
Esses benefícios possibilitaram sonhos de futuro para Lucas e a mobilização dos
agentes institucionais para viabilizá-los. O fato é de extrema relevância e
importância para o processo de trabalho de todos os serviços da rede. Não
obstante, consideramos que não haveria espaço para todos, nesse mesmo grau de
atenção e proteção, caso houvesse maior disponibilidade para essa adesão por
parte dos jovens, ou para agenciamentos próprios que visualizassem esse
caminho. Essa história representa uma concretização da possibilidade efetiva de
ganhos diretos e secundários, mas eles são conquistados mais pela lacuna
existente dos poucos que aderem aos serviços, do que pela oferta universal para
aquele público. Os fatores que levaram Lucas a ocupar esse lugar,
diferenciando-o na aceitação das proposições que lhe foram dirigidas, podem ser
de diversa natureza, pessoal e institucional; contudo, sua situação e
trajetória, influenciadas pelos serviços e profissionais que com ele
trabalharam, parecem ser possíveis apenas na atual estrutura de escassas
adesões contínuas por parte dos usuários.
Considerações Finais
A trajetória de Lucas demonstra sua inserção autônoma na vida como um jovem
adulto, alguém que pôde viabilizar economicamente um lugar para morar e reunir
recursos para a sobrevivência por meio do trabalho, com sonhos que apontam em
seu horizonte como possibilidades para a sua vida.
Entretanto, a positividade de sua passagem pelos 18 anos apresentou-se, em
nossa experiência de terreno, como uma exceção, na medida em que a maior parte
daqueles meninos e meninas vivia a entrada na vida adulta como uma amplificação
de seu sofrimento social, o agravamento das condições efetivas de vida e o
ingresso maciço no universo prisional do mundo adulto.
Assim, optamos pelo relato dessa história para, na contemplação dos ganhos
efetivos naquela trajetória, apresentar a fragilidade de acolhimento do
sofrimento social, mesmo num contexto jurídico de valorização da infância e da
juventude, como no Brasil, junto ao elogiado referencial do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA).
É preciso ampliar a discussão acerca das efetivas possibilidades dos serviços
sociais voltados aos jovens e analisar o que tem se produzido por meio da
tutela dessa população, bem como quais os resultados alcançados para a promoção
de sua autonomia e exercício reflexivo para sua autodeterminação, nos percursos
criativos pessoais de cada jovem.
Não obstante, faz-se necessário afirmar que é ainda por meio das ações sociais
que se garante algum nível de proteção e horizonte de acesso aos direitos para
as crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Colocar o foco em elementos
como aqueles trazidos pela história de Lucas objetiva as dinâmicas em curso,
tendo em vista o conhecimento e a reflexão aprofundados sobre elas, o
aprimoramento da ação voltada para suas potencialidades, para a criação de
espaços que culminem em intervenções que venham a facilitar o acesso aos
direitos por parte daquela população, afastando-se de discursos que não se
viabilizam enquanto proposição, na medida em que envolvem uma gama de questões
para além daquelas superficialmente estabelecidas.
Portanto, discutir as ações institucionais de promoção da tutela com vistas à
autonomia de grupos juvenis requer a consideração conjunta de aspectos
econômicos, de criação de trabalho e emprego, a par dos limites colocados pelas
desigualdades sociais vivenciadas, numa perspectiva que suplanta a visão
homogênea da juventude como problema político.
Para que as ações públicas ajam na sua potencialidade é preciso que abandonem o
paradigma do jovem como problema, referindo-se especificamente àqueles
advindos de segmentos populares, e instituam esforços para a ressignificação
dos objetivos institucionais em uma perspectiva direcionada à vertente
emancipatória e autônoma.
Nossa demarcação nos grupos populares visa ao aprofundamento e à compreensão
dos tipos de respostas que vêm sendo produzidas no cotidiano das políticas
sociais, que são de natureza focal. Voltar-se a esse recorte da população tem o
intuito de dar visibilidade àqueles que menos ocupam o lugar de protagonistas e
de debater processos e ações que realizem, ou possam vir a realizar, a promoção
de direitos e de condições menos injustas e mais solidárias de vida, em
resposta ao sofrimento social vivenciado em função da condição em que se
encontram. Assim, trabalhamos pela circulação de projetos e ideias que assumam
o desafio da tentativa de promover a igualdade de oportunidades, em uma
estrutura previamente desigual e de precariedades.
Portanto, é preciso pautar o debate sobre a vivência do sofrimento social por
jovens de grupos populares, a especificidade da passagem para a vida adulta, e
o evento crítico aí estabelecido, para, então, se discutir as possibilidades e
limites das ações institucionais em torno da autonomia dessa população.