Experiência de consumo: Estudos de caso no interior da classe média
Filomena Silvano
(CRIA / FCSH-UNL)
Obra recenseada: Alice Duarte, Experiência de consumo: Estudos de caso no
interior da classe média, Porto, U. Porto Editorial, 2009, 226 páginas.
Experiências de Consumo: Estudos de Caso no Interior da Classe Média foi
publicado em 2009 e corresponde a uma parte da tese de doutoramento defendida
pela autora, Alice Duarte, em janeiro de 2008. O trabalho de terreno que deu
origem ao estudo decorreu entre 2002 e 2004. Em 2002 Alice Duarte publicou,
nesta mesma revista, um texto intitulado Daniel Miller e a antropologia do
consumo e, em junho de 2010, um outro, também correspondente a uma parte da
tese, intitulado A antropologia e o estudo do consumo: revisão crítica das
suas relações e possibilidades. Este mapeamento temporal serve a tarefa de
colocar a obra aqui recenseada no interior da produção antropológica nacional e
internacional: no início da década de 2000 a autora faz uma aproximação teórica
aos então recentes (mas já em clara fase de expansão para as academias de
países periféricos) estudos do consumo em antropologia e inicia uma
investigação que será publicada em livro no fim da mesma década (o segundo
volume ' O Consumo para os Outros ' foi publicado já em maio de 2011, também
pela U. Porto Editorial). Este foi, grosso modo, o arco de tempo necessário
para que o novo campo de estudo ' investido por vários investigadores ' tomasse
forma em Portugal. A produção académica é hoje muito veloz, mas não prescinde
dos tempos necessários à sua boa realização e estes parecem ser mais longos que
aqueles que presidem ao funcionamento do real: neste caso, estamos face a uma
obra indispensável para compreender a realidade portuguesa contemporânea, mas
que já nos fala de um passado (que, dadas as circunstâncias, se transformou em
algo dramaticamente longínquo).
Alice Duarte coloca-se de forma clara (e explícita) no interior de uma
perspetiva analítica que, no seguimento da proposta de Daniel Miller, opta por
deslocar os estudos sobre cultura material do polo da produção para o polo do
consumo: eleger o consumo como campo de pesquisa efetivo tem subjacente a
rejeição de o olhar como mero resultado da produção ou, mais especificamente,
do modo de produção capitalista, deslocando para o próprio consumo o foco e
interesse da análise (p. 7). No interior desse posicionamento mais geral, opta
por concentrar-se nas dimensões mais micro da observação etnográfica '
indivíduos e respetivas famílias ', de forma a trabalhar os mecanismos de
produção / negociação das identidades pessoais e familiares: [ ] a análise
compartimentou a realidade empírica e elegeu o papel do consumo em termos da
produção de identidades particulares e em termos da criação e manutenção de
redes de sociabilidades como alvos da sua atenção, fazendo emergir a tríade
analítica consumo-identidade-sociabilidade (p. 8). No que diz respeito às
etapas do ciclo de consumo, a investigação centra-se nos mecanismos que, após a
compra, integram os objetos no trabalho de construção de si levado a cabo pelas
pessoas a quem passam a pertencer: [ ] a intenção central do atual texto é
tornar manifestos e dar a conhecer processos de apropriação e respetivas
atribuições de significado efetivos pelas pessoas concretas que são os
consumidores-informantes (p. 10).
Para responder às opções conceptuais mencionadas, o estudo empírico foi
desenhado a partir de dois critérios: o primeiro prende-se com questões de
estrutura social e o segundo diz respeito às etapas do ciclo do consumo. As
pessoas escolhidas integram o setor médio da sociedade portuguesa ' são,
segundo os parâmetros sociológicos, membros da classe média ' e são
visitantes do Norteshopping, um centro comercial situado na zona do Grande
Porto. O primeiro critério visava criar um universo de estudo sociologicamente
homogéneo, de forma a poder centrar a interpretação nas dimensões mais
pessoais, fugindo assim, deliberadamente, ao estudo dos efeitos de estrutura:
[ ] ou seja, em vez de se procurar uma assimilação estrita entre categorias de
consumidores e categorias sociais de classe ou status, o consumo é aqui
analisado enquanto meio útil ' e utilizado ' de expressão e comunicação de
construções de valores e do sentido do que cada um é: um jovem, uma mãe de
família, um amigo do peito, uma pessoa cosmopolita (p. 8). Já o segundo
homogeneizou o terreno em que se desenrola a etapa das compras, para centrar
a interpretação nas dinâmicas da etapa seguinte, a das apropriações. Na
prática, foram trabalhados 24 agregados familiares.
No meu entender, o desenho da pesquisa integra, de forma inteligente e eficaz,
as dimensões empíricas e as dimensões conceptuais. A opção conceptual dependia,
neste caso, do trabalho sobre as esferas mais delicadas de uma etnografia do
consumo ' aquelas que por implicarem as vidas domésticas das pessoas as colocam
mais a nu. Sem penetrar nessas dimensões não é possível entender as relações
que estabelecemos com os objetos, ou as razões pelas quais eles constroem as
nossas existências mais profundas. A obra de Alice Duarte consegue chegar a
esse território delicado ' e consequentemente consegue provar cabalmente a
pertinência do seu estudo ' sem nunca romper a película ténue que protege a
dignidade das pessoas que aceitaram trabalhar com ela. O seu livro permite-nos
assim perceber o quanto são ' quando vistos a partir de escalas de análise
micro ' delicados e frágeis os mecanismos de construção identitária de uma
classe média recentemente chegada a parâmetros de consumo já solidificados em
outros países. No entanto, prescindir, na interpretação dos dados, da inserção
dos efeitos de estrutura ' O objetivo de ilustrar o processo de consumo como
atividade prática, moral e contextual específica beneficia, portanto, deste
recurso a uma noção de estilo de vida que, mais do que entendido como
instrumento de diferenciação social, procura remeter para tendências familiares
fornecedoras de consistência interna às apropriações concretizadas pelos
informantes (p. 119) ' enfraquece, no meu entender, as possibilidades de
elucidação do real. A classe média portuguesa não é, sobretudo no que diz
respeito às suas origens, homogénea, e por isso os mecanismos que decorrem das
posições que as pessoas ocupam na estrutura social, nomeadamente os de
distinção social, estão nela presentes. Mas, apesar deste reparo, o trabalho
consegue esclarecer questões que se prendem com as dinâmicas familiares
específicas e questões de caráter mais estrutural. Fica claro que naquele
tempo, o início do século XXI, a classe média portuguesa pensava que tinha
chegado, finalmente ' com euforia, esforço e por vezes sofrimento ' à
sociedade de consumo. Para um cientista social conhecedor dos estilos de vida
de outras classes médias, era evidente que não era bem assim: a ausência dos
consumos culturais ' colocados no pacote das coisas dispensáveis, senão mesmo
das inúteis ' era o sintoma mais óbvio da falta de consistência temporal dessa
nova classe média (estavam lá as mesmas coisas ' carros, aparelhagens, relógios
' mas não estavam lá os mesmos conteúdos ' construídos nas universidades, nos
museus e nos teatros). Agora que tudo foi posto em causa, a evidência da
distância que nos separa dos parâmetros do consumo médio europeu obriga-nos,
seguindo mais uma vez as tendências reveladas pelos trabalhos recentemente
produzidos nas academias com maior visibilidade internacional, a reequacionar
as relações complexas que se estabelecem, no interior de novos quadros
macroeconómicos, entre as esferas da produção e as esferas do consumo.