A Dignidade: Konis Santana e a Resistência Timorense
Kelly Silva
(Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília)
Obra recenseada: José Mattoso, A Dignidade: Konis Santana e a Resistência
Timorense, Lisboa, Temas e Debates, 2005, 323 páginas.
Eis-nos diante de uma obra fundadora da história e da sociologia da resistência
leste-timorense à ocupação indonésia, desde suas configurações no interior do
país. Mediante a recomposição e análise da trajetória de Konis Santana '
guerrilheiro responsável pelo comando interno da luta entre, aproximadamente,
abril de 1993 e março de 1998, quando veio a falecer ' A Dignidade apresenta ao
leitor diferentes fases, tensões, disputas, estratégias, valores, atores e
grupos que estruturaram as dinâmicas da resistência em seus 24 anos de atuação.
Autor consagrado na historiografia da Europa Medieval, José Mattoso elabora
importantes insigths ao longo da obra, explorando, por exemplo, o fundamento
simbólico da guerrilha no conjunto da resistência ' apesar de sua fragilidade
material e numérica ' e as bases cosmológicas de suas estratégias de
sobrevivência e reprodução. Escrita de maneira clara e elegante, a narrativa
toca os sentimentos de quem dela se aproxima. É impossível passar ileso pela
narração do cerco das pernas e do massacre de Lakluta, por exemplo. Ao mesmo
tempo, a abordagem da perspicácia e inteligência das respostas das lideranças
da luta às investidas javanesas impõe ao leitor um sentimento de respeito e
admiração por sua capacidade de resiliência, tornando ainda mais inteligível o
fato de o sofrimento figurar como importante mobilizador político entre as
populações do país (cf. Kelly Silva, 2008, Reciprocity, recognition and
suffering: political mobilizers in independent East Timor, Vibrant, 5 (2):
156-178; Elizabeth G. Traube, 2007, Unpaid wages: local narratives and the
imagination of the nation, The Asia Pacific Journal of Anthropology, 8 (1): 9-
5).
A narrativa é estruturada de modo a situar a trajetória de Konis Santana na
resistência e para além dela. A biografia do guerrilheiro é então construída
como representando a de todos os seus companheiros de luta entre 1975 e 1998
(p. 287) e tecida a partir de fundos documentais disponibilizados por Ramos
Horta, Riak Leman, Tutola e Salabae ' todos personagens importantes na
resistência ', além de documentos do próprio Konis Santana, entregues ao autor
por Xanana Gusmão (p. 20), e narrativas orais produzidas ao longo da pesquisa
que deu origem ao livro. Trata-se de uma versão autorizada da história da
resistência, construída a partir do protagonismo atribuído a Xanana Gusmão e à
guerrilha por ele comandada (pp. 188-189). Nesse contexto, o autor lembra que o
acesso aos documentos da resistência é reservado, sendo controlado pelo governo
da República Democrática de Timor-Leste (p. 23).
O livro é composto por 12 capítulos, pelos quais o leitor acompanha a
conformação da trajetória de Konis e de seus companheiros na epopeia da
resistência. Ao contextualizar o percurso de Konis Santana, Mattoso apresenta
ao leitor as diversas fases e estruturas hierárquicas da resistência timorense
em suas várias frentes de atuação ' a saber: militar, clandestina e diplomática
' e as disputas que as constituíam. Dada a natureza da participação de Konis na
mesma como membro das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste
(Falintil), a dinâmica e tensões da frente armada têm precedência na análise.
Entre outras coisas, expõem-se as estratégias utilizadas pelas lideranças
políticas e militares da luta para manterem seu comando dentro de Timor e
assegurarem sua unidade pela subordinação, construída em meio a muitas tensões,
das frentes diplomática e clandestina. Acompanhamos, assim, a configuração das
Falintil em força de guerrilha e o empoderamento da Frente Clandestina, da qual
ela se tornou absolutamente dependente.
Dentre as principais contribuições da obra, destaca-se a indicação do fato de
as Falintil terem atuado, durante quase toda a sua existência, de maneira mais
densa na região leste do país. Pode-se atribuir tal fenômeno a pelo menos dois
eventos: 1) a ocupação indonésia ter-se iniciado pela fronteira terrestre de
Timor com a Indonésia, portanto a oeste da metade da ilha; 2) a presença das
forças militares indonésias ter sido mais efetiva também na região oeste do
então Timor Timur, tornando os terrenos a leste menos vigiados durante longos
períodos e assim mais propícios para a ação da guerrilha. Embora as Falintil
tenham, de modo geral, operado de forma bastante frágil ao longo de todo o seu
período de existência, Mattoso indica como elas foram particularmente voláteis
e débeis na região oeste do país (p. 194). Quando Xanana Gusmão foi preso, em
novembro de 1992, as Falintil, na região da fronteira sul, dispunham somente de
quinze guerrilheiros e seis armas, e o terreno por onde podiam se deslocar
tinha-se reduzido a um terço do que era anteriormente.
Não obstante, apesar de toda fragilidade, Mattoso sugere que a manutenção da
guerrilha foi fundamental, na medida em que ela objetivava a resistência que
alimentava a promessa de independência para os leste-timorenses que estavam
dentro e fora do território. Eis um dos mais brilhantes trechos da obra: Em
suma, se, no plano simbólico, a guerrilha representava o núcleo duro da
resistência, no plano prático ela não poderia subsistir sem a luta clandestina,
e dificilmente atingiria seus objetivos sem a frente diplomática; era nesta que
se travava a batalha decisiva. Mas se a guerrilha acabasse, quem acreditaria na
independência? A população das montanhas, verdadeira alma da Resistência,
considerava os aswain como os representantes do seu combate. Por isso, a luta
pela independência de Timor foi verdadeiramente uma questão de resistência. Os
guerrilheiros não podiam ganhar a guerra. Mas tinham que continuar a combater
até à morte, porque esse era o sinal de que, enquanto resistissem, não havia
solução possível para o caso de Timor. Assim, o símbolo tornou-se fundamento da
realidade, e não o contrário (p. 194).
As bases socioculturais das estratégias de sobrevivência, organização e
reprodução das Falintil são também tematizadas pelo autor. Mattoso as apresenta
como condicionantes importantes para o apoio popular à guerrilha e demais
frentes da resistência (p. 61). Apesar da retórica revolucionária da Fretilin,
inspirada em preceitos socialistas e comunistas, o autor indica que a guerrilha
respeitava as hierarquias de saber e poder locais, atuando de modo solidário a
elas, na maioria dos casos. O apelo a obrigações de parentesco por parte de
Konis, em momentos de grande agonia, é tematizado no texto como exemplar quanto
à relação de dependência da guerrilha em relação aos preceitos locais de
sociabilidade, em consonância com o argumento proposto por McWilliam em Houses
of resistance in East Timor: structuring sociality in the New Nation
(Anthropological Forum, 15 (1): 27-44, 2003) ' para este antropólogo, parte do
sucesso da resistência timorense à ocupação indonésia no espaço das aldeias se
deve às aliança entre casas, conectadas por relações de parentesco. Mattoso
identifica também a existência de uma diarquia na dinâmica da resistência já em
1976, quando o Comitê Central da Fretilin realizou sua Reunião Plenária em
Soibada (p. 63). Para cada nível de organização da luta havia uma autoridade
militar e outra política.
Mas nem todos os fenômenos culturais característicos das populações do
território facilitavam a atuação da guerrilha. Ao narrar o deslocamento de
Konis para a região Haksolok, depois chamada de Região 4, em 1986, Mattoso
relata as dificuldades na construção de relações de solidariedade e apoio junto
da população em razão da diversidade linguística existente (p. 125).
O autor arrisca-se ainda em uma narrativa sedutora, ao sugerir que o
engajamento de grande parte da população timorense no apoio ou ação direta na
resistência foi produzido em razão de os ocupantes terem humilhado os leste-
timorenses, indo de encontro ao seu sentido de dignidade e respeito. No
entanto, não há fatos históricos sustentando tal interpretação. Por sedutora
que seja a sugestão ' figurando quase que como uma metanarrativa ', ela esbarra
primeiramente na extensão do valor da defesa da dignidade a todos que habitam
as fronteiras sociopolíticas do que hoje chamamos de Timor-Leste. Mas como
explicar os esforços que foram necessários para conquistar o apoio da população
por parte das frentes armada e clandestina e, apesar disso, o apoio à ocupação
de muitos leste-timorenses? Talvez a questão seja justamente a validade
analítica de categorias como timorenses ou leste-timorenses. De um ponto de
vista antropológico, elas nos dizem muito pouco. Em minhas investidas de
pesquisa entre a elite política moderna leste-timorense, a ideia de dignidade
aparece como importante mobilizador político. Seu sentido, contudo, é inverso
àquele que lhe atribuímos no senso comum ocidental. Ele é muito mais próximo
daquilo que nossa episteme qualifica como honra. Em tal universo empírico,
dignidade significa ser reconhecido em uma certa posição hierárquica que
prescreve deferência e obediência. Àqueles que a detêm cabe um decoro
particular, que proíbe a ofensa ou a desconsideração aos outros em público.
Por fim, a obra de Mattoso, edificada com a colaboração de José Sequeira
(Somotxo) e Florbela Marante, é também um convite a explorar mais a fundo a
história da resistência ' tarefa urgente, dado o desaparecimento progressivo de
seus heróis e protagonistas anônimos.