Searching for Africa in Brazil: Power and Tradition in Candomblé
Diana Espírito Santo
(Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa)
Obra recenseada: Stefania Capone, Searching for Africa in Brazil: Power and
Tradition in Candomblé, Durham e Londres, Duke University, Press, 2010, xiv +
316 páginas, trad. Lucy Lyall Grant.
Esta convincente tradução do livro La quête de l'Afrique dans le candomblé:
Pouvoir et tradition au Brésil(1999) finalmente disponibiliza a antropólogos
não francófonos a trabalharem na área das religiões afro no Brasil a obra
principal de Capone, cujos valor antropológico e riqueza etnográfica são
incontestáveis. Capone é veterana neste contexto etnográfico, começando o seu
percurso de investigação no final dos anos 80 no Rio de Janeiro, nomeadamente a
partir do seu estudo de casas de Candomblé da nação Efon. Fascinada com a
continuada predominância de certos modelos de pureza religiosa, como os da
chamada tradição Nagô, associados às vertentes Ioruba no Candomblé, Capone
dedica-se neste trabalho a demonstrar o quão imbricadas estão as trajetórias
dos antropólogos e líderes e intelectuais religiosos na fabricação do mito da
ortodoxia religiosa. Neste mito, certas modalidades religiosas são vistas como
o estandarte da tradição africana e outras como a sua manifestação degenerada
e infetada. Visto através da lente do seu desenrolar histórico, entre outros na
escrita de Nina Rodrigues e até de Roger Bastide, em jogo na propagação deste
mito estaria a oposição entre a religião e a magia, entre força e fraqueza
cultural, e um conceito de superioridade racial dentro do complexo de heranças
africanas na definição destas. Capone mostra-nos com impressionante detalhe a
natureza complexa mas construída de polaridades como as estabelecidas entre a
macumba (tida tipicamente como um conjunto de práticas urbanas largamente
desprovidas de coerência religiosa), e outras tradições no Candomblé como o
Angola e os Candomblés da Baía, a sua antítese, nos quais alguns dos
antropólogos mais influentes ingressariam, por vezes até iniciando-se,
tornando-os modelos analíticos além de etnográficos.
A contribuição de Capone neste livro reside não apenas na sua capacidade de
sintetizar as correntes principais do que é sem dúvida um campo extenso de
informação e contradição, principalmente para quem o leia sem qualquer
conhecimento prévio. O seu sucesso apoia-se também na sua exploração magistral
da ideia de que a religião afro-brasileira é de facto constituída por uma série
de articulações através das quais modalidades como a Umbanda e o Candomblé,
tradicionalmente concebidas separadamente, se encontram num só contínuo, no
qual um sem-número de práticas e narrativas, inclusivas ou exclusivas, são
possíveis e até necessárias. Chamo a atenção para a originalidade da abordagem
com respeito à sua desconstrução da relação cosmológica e ritual (além de
sociológica) entre estas duas vertentes da religião e a força das suas
estratégias de delimitação, talhada em particular através da análise do orixá
Exu (mensageiro dos deuses, dono dos caminhos e do movimento), nas suas
variadas manifestações ontológicas e pessoais.
Capone divide o livro em três partes. Na primeira, The metamorphoses of Exu,
a autora guia-nos pelas origens da figura de Exu, o inversor por excelência da
ordem social, descrevendo os seus mitos e associações nos vários ramos da
religião e a sua função fundamental nos terreiros contemporâneos, além da
sensível natureza da sua conceptualização. No Xangô do Recife, por exemplo,
distingue-se entre Exus batizados (Exu como divinidade) e pagãos (Exu como
entidade). Esta será uma classificação explorada pela autora através das
categorias de Exu-egun e Exu-orixá e suas refrações. Para contextualizar esta
dualidade, Capone introduz-nos à Umbanda da década de 20, considerada uma
tentativa de desafricanização. A autora realça, porém, a existência de um
vasto cosmos de praticantes cujas entidades ' o povo da rua ' não se contêm
dentro dos parâmetros visados pelos fundadores: além dos espíritos dos
escravos, dos pretos-velhos, das crianças (êres), e de Exus batizados, que
teriam uma ligação direta com os orixás do Candomblé, os múltiplos Exus pagãos,
como o conhecido Zé Pilintra, e as pombagiras sedutoras e rebeldes, como Maria
Padilha, incarnariam algumas das imagens mais relevantes do imaginário popular
religioso. A Quimbanda, o lado escuro da Umbanda, emergiria como um padrão de
acusação entre médiuns nos discursos morais, inimiga, porém necessária e
complementar, da formação da Umbanda mais difundida.
Nos capítulos da segunda parte, Ritual practice, Capone salienta o caráter
fluido e combinatório do campo religioso afro-brasileiro, a existência de
entidades traçadas e cruzadas, tanto dentro do Candomblé como da Umbanda,
assinalando a existência de formas religiosas tais como o Omolocô (que se
posicionaria entre as duas) como evidência de um contínuo orgânico de práticas,
indivisível. Capone mostra que a construção do Candomblé como religião
universal estará predicada na oposição entre cultos puros e degenerados,
traçando com fluência o contexto sociopolítico e racial e a sua cristalização
no Rio de Janeiro e além. Capone analisa os mecanismos pelos quais os
Candomblés da Baía se tornariam símbolos culturais na década de 1970,
influenciando movimentos literários, artísticos e musicais. A visibilidade de
alguns dos líderes destes templos ajudaria a que o estigma do Candomblé se
esvanecesse, mas também a que o culto se identificasse com estes mesmos
templos. Capone afirma que, para o médium umbandista, a transição para o
Candomblé começaria a implicar prestígio e, para além, uma via pela qual buscar
e justificar origens, raízes e cientificidade. Embora mencione brevemente outra
opção ' a trajetória reamericanizadora da Umbanda (que se vê hoje em casas
que postulam a sua ancestralidade indígena), Capone sublinha a natureza
reafricanizadora desta passagem, analisando a reorganização ontológica e ritual
necessária por parte de ambos, o médium e o seu novo pai-de-santo. A questão do
espaço tornar-se-ia crucial para a resolução das tensões latentes entre os
iniciados de uma e de outra. Capone demonstra aqui o potencial subversivo e
contestador dos Exus da Umbanda, através de uma série de casos de estudo que
apontam para a centralidade de questões de poder, género e individualidade no
desenvolvimento religioso.
Na terceira parte ' intitulada The construction of tradition ', Capone efetua
uma leitura crítica da figura de Exu na antropologia e na sociedade brasileira
mais amplamente, na qual tece noções de raça, ciência e cidadania através do
prisma da religião afro e associadas representações. Salienta-se o papel da
negação do culto de Exu na construção da diferença entre a cultura Bantu e
Nagô, e como os antropólogos do Candomblé do século XX se tornariam autores da
autenticidade. Capone descreve como paradigmático o movimento de retorno a
África na religião brasileira, marcado pelo início de um trânsito religioso e
intelectual entre o Brasil e África, no qual também participaria Pierre Verger,
antropólogo e figura emblemática. O resultado: um acréscimo de autoridade,
frequentemente favorecendo certas redes religiosas. Mas, como diz Capone, the
founding myth in Candomblé in Brazil seems to be built upon a lack of full
knowledge and the perpetual search for forgotten secrets (p. 214). Como David
Brown ilustra em relação à Santería cubana (em Santeria Enthroned, The
University of Chicago Press, 2003), Capone mostra de maneira formidável os
acasos, as personagens e as decisões que possibilitaram a invenção da tradição
no Brasil no século XX. Capone também se dedica a mostrar alguns dos efeitos
deste movimento de reafricanização, entre os quais está a redefinição deste
mesmo processo como algo que paradoxalmente já não implicará a África
necessariamente. Como diria Stephan Palmié (2008, Africa of the Americas,
Leiden, Brill Academic Publishers), nem a África é um dado ontológico.