Os futebolistas invisíveis: os portugueses em França e o futebol
Dezoito de novembro de 2009, 22h20, Boulevard Rochechouart, PARIS. Adeptos da
seleção argelina festejam exuberantemente a qualificação da equipa para o
Campeonato do Mundo que terá lugar na África do Sul em 2010. Os automobilistas
buzinam freneticamente. Os passageiros gritam One, two, three, viva l'Algérie!,
saúdam alegremente os peões e agitam a bandeira argelina. A poucos metros, na
esquina da Rue de Dunkerque e da Rue de Rochechouart, no café português Chez
Lino, três dezenas de clientes assistem aos últimos minutos do jogo entre a
Bósnia-Herzegovina e Portugal. Depois do apito final, apenas um jovem de cerca
de 25 anos, provavelmente luso-descendente e acompanhado de raparigas da mesma
idade, se propõe ir buscar o seu carro e festejar, como os adeptos da Argélia,
a qualificação portuguesa para o Campeonato do Mundo. Enquanto vai buscar o
carro, em frente ao café, as raparigas acenam uma bandeira portuguesa, numa
espécie de diálogo com os adeptos argelinos que não param de comemorar. No
entanto, a maioria dos clientes do café não se junta aos festejos. O facto de o
jogo ter sido pouco emocionante e Portugal ter participado nos dois últimos
campeonatos mundiais parecem tirar entusiasmo ao momento. Em certo sentido,
esta atitude blasée realça o facto de Portugal ser uma grande nação de
futebol. Não é necessário festejar como fazem os adeptos da Argélia, que não
se qualificava para um Campeonato do Mundo desde 1986.
Os festejos dos adeptos da seleção argelina, noite adentro, multiplicam-se nas
principais cidades francesas. Os Champs-Elysées, onde se comemoram os grandes
sucessos desportivos em Paris, como foi o caso da vitória francesa no
Campeonato do Mundo de 1998, estão cheios. Esta celebração foi interpretada por
uma parte da elite política francesa de direita e de extrema-direita (mas
também por alguns políticos do Partido Socialista) como um sinal de não
integração dos argelinos e dos seus descendentes em França, como uma ilustração
do comunitarismo que estaria a gangrenar a sociedade francesa e a destruir o
pacto republicano.[1] Estas afirmações contrastam com a inexistência, no espaço
público, de declarações deste tipo sobre os portugueses e os seus descendentes
em França. Se os adeptos da seleção portuguesa não festejaram no dia 18 de
novembro de 2009, fizeram-no efusivamente na noite de 30 de junho de 2004,
depois da vitória lusa sobre a Holanda nas meias-finais do Campeonato da Europa
realizado em Portugal. Milhares de pessoas, com bandeiras de Portugal, vestindo
camisolas da seleção e gritando Portugal, Portugal comemoraram nos Champs-
Elysées a primeira final portuguesa numa competição deste nível. O cineasta
Jean-Philippe Neiva inicia a sua viagem iniciática de demanda identitária
(Mendes 2009: 246) com imagens destes festejos. Este luso-descendente
espanta-se com tal manifestação de alegria: pela primeira vez, vi esta
comunidade habitualmente tão discreta, quase transparente, afirmar-se aos olhos
da França, o seu país de adoção (Neiva 2005). Não encontrei na imprensa
francesa um relato depreciativo desta comemoração. Nada que insinuasse que esta
alegria manifestada no espaço público fosse prova ostentatória de um recuo
comunitarista. Mesmo quando são visíveis nas ruas, os portugueses em França são
invisíveis no espaço público. Tão invisíveis que, em 2006, o enviado especial
do France 2, canal da televisão pública, os fez desaparecer milagrosamente.
Comentando a concentração de pessoas que iam assistir à projeção da meia-final
da Campeonato do Mundo de 2006, entre França e Portugal, o jornalista relata
que há muitos adeptos da seleção francesa, franceses black-blanc-beur e que
também se contam numerosos adeptos da seleção lusa munidos de bandeiras de
Portugal e camisolas da seleção das quinas. Porém, conclui todos pensam que a
França vai ganhar,[2] tornando assim os adeptos portugueses, que deviam
certamente achar o contrário, invisíveis. Este lapso mostra como a
invisibilidade não resulta das práticas discretas dos migrantes portugueses,
que se esconderiam ao olhar da sociedade francesa, que fariam tudo para não
dar nas vistas; esta invisibilidade resulta de uma miopia de grande parte das
elites mediáticas e políticas francesas, que não veem algumas práticas de
portugueses e de luso-descendentes da mesma forma que as mesmas práticas de
outros migrantes. Está enraizada no espírito de muitos jornalistas e homens
políticos franceses a ideia de que os portugueses em França não podem ser
desleais ou inimigos da França. Um luso-descendente ter orgulho em Portugal
não é visto como antitético com a pertença francesa, enquanto este mesmo
sentimento é visto como antifrancês no caso de filhos e netos de migrantes
argelinos ou de migrantes extraeuropeus, que são, por vezes, considerados como
inimigos interiores (Deltombe e Rigouste 2005). Estas maneiras distintas de
pensar decorrem, entre outros motivos, da herança colonial francesa: os
argelinos e os seus descendentes continuam a ser vistos sob o prisma do
colonialismo, da guerra da Argélia que se saldou pela independência argelina e
pelos sentimentos antimuçulmanos. Portugal e a França nunca tiveram graves
contenciosos desde as guerras napoleónicas e as relações entre os dois países
no período contemporâneo mantiveram-se pacíficas.
Virtudes da invisibilidade
Não se pode compreender os portugueses em França, e especificamente as suas
relações com o futebol, sem os relacionar com os outros imigrantes em França, e
sobretudo com os argelinos. A invisibilidade dos portugueses só se concebe pela
sobrevisibilidade dos argelinos e dos seus descendentes. Os segundos serviram
de para-raios aos primeiros (Cordeiro 1989-1990). Esta ligação está, em parte,
na origem da imigração maciça de portugueses para França desde o final dos anos
1950 e, sobretudo, a partir de 1962, ano da independência da Argélia e ano em
que o número de emigrantes portugueses para França ultrapassa pela primeira vez
o volume daqueles que se dirigem para o Brasil (Baganha 1994: 975). Com efeito,
para as frações dominantes da elite política e administrativa no poder em
França, seria de facilitar ao máximo a migração maciça de portugueses para
França. Além de responder às necessidades de mão de obra barata e pouco
qualificada num período de expansão económica, a imigração portuguesa era usada
para impedir uma imigração numerosa de argelinos. Esta estratégia foi
claramente reivindicada posteriormente pelo antigo responsável pela Direção das
Populações e das Migrações, que se vangloriava de ter introduzido
voluntariamente 700.000 portugueses para impedir a imigração argelina
(Massenet 1994: 210). As comparações entre portugueses e argelinos, sempre a
favor dos primeiros, existem desde os anos 1960, a pseudoassimilabilidade dos
primeiros contrapondo-se à não assimilabilidade dos segundos. Assim, já em 1967
Michel Massenet defendia junto do embaixador de Portugal em França que,
enquanto os trabalhadores portugueses se adaptam e se integram na sociedade
francesa, os argelinos são sempre inassimiláveis.[3] Georges Pompidou,
primeiro-ministro francês de 1962 até 1968 e presidente da República de 1969 a
1974, partilhava a ideia da assimilabilidade dos portugueses. Para ele e para
os seus mais próximos conselheiros, depois da Bélgica, da Polónia, de Itália e
da Espanha, Portugal era o último país que podia fornecer à França malthusiana
uma população europeia, branca e católica que se integraria perfeitamente na
sociedade francesa. Por isto, a partir de 1964, ordens foram dadas para que as
autoridades na fronteira deixassem passar os portugueses clandestinos que
seriam, com facilidade, regularizados posteriormente (Pereira 2007). Esta
medida alimenta decisivamente a emigração portuguesa irregular para França, que
atingiu proporções inusuais (mais de 100 mil emigrantes por ano entre 1969 e
1971). Os candidatos à emigração sabiam, pelas cartas que recebiam dos seus
familiares e pelos relatos dos emigrantes que regressavam ao país em períodos
de férias, que poderiam entrar sem passaporte em França, regularizar a sua
situação, encontrar trabalho, ganhar dinheiro, enviar remessas para a família.
O dinheiro dado às redes de passadores era um investimento seguro.
Até hoje, a comparação entre portugueses e argelinos está implícita em muitos
discursos. Quando se diz que os portugueses e os seus filhos são os imigrantes
melhor integrados em França, implicitamente esta hierarquização implica que há
alguns que estão menos integrados. No entanto, não queremos afirmar que os
portugueses estão ou não integrados. Alguns trabalhos académicos, recorrendo a
vários instrumentos, mostraram que a representação idílica produzida por muitos
políticos franceses sobre a imigração portuguesa não se comprova na realidade
(Charbit, Hily e Poinard 1997; Safi 2006; Jelen 2007). Porém, temos de ter
presente que o conceito de integração tal como ele é usado no discurso político
e mediático é um conceito criticável do ponto de vista das ciências sociais
(ver, por exemplo, Schnapper 2006). O uso do conceito de integração é muitas
vezes, como o demonstrou Abdelmalek Sayad, uma arma para deslegitimar os
imigrantes, sobretudo os argelinos e os seus descendentes, as populações mais
dominadas na sociedade francesa (Sayad 1999: 316). Integrado é muitas vezes
sinónimo de invisível ou de igual. Ora, como vemos no caso dos portugueses, há
fenómenos que o olhar político ou mediático não vê ou não quer ver. E uma
igualdade de formas de ser, de pensar, de agir, de representar a nação ' uma
suposta identidade nacional (Noiriel 2007a) ' não existe. Existe, sim, uma
pluralidade de práticas sociais e de representações variáveis segundo critérios
sociais, regionais ou religiosos. Assim, o discurso sobre a integração omite
que os imigrantes não podem integrar-se num ideal que não existe mas que, de
facto, se integram em vários subsistemas: mercado de trabalho, movimentos
sociais, territórios. O que queremos mostrar é que a invisibilidade dos
portugueses em França não corresponde tanto às suas práticas mas à miopia dos
media e da classe política francesa. Este defeito de visão permitiu aos
portugueses e aos seus descendentes viver intensamente o futebol, tanto pela
sua prática quanto pelo espetáculo que ele constitui, sem que isto causasse
retaliações ou estigmatizações, como é o caso para outras populações imigrantes
e as suas descendências. Porém, é de notar também que esta invisibilidade é
dolorosamente ressentida por alguns luso-descendentes, que prefeririam não
pertencer a uma minoria invisível, mas antes a uma minoria visível. Por isto,
alguns luso-descendentes, como escreveu Jean-Baptiste Pingault, que estudou a
principal associação de luso-descendentes em França, lamentam-se desde há
vinte anos de serem invisíveis. Todavia, não é por não terem tentado.
Procuraram constantemente afirmar-se na esfera política, francesa como
portuguesa (Pingault 2004: 71).[4] Ser visível permitiria a alguns luso-
descendentes, nutrindo ambições políticas, beneficiar das medidas supostamente
antidiscriminatórias que alguns partidos políticos desenvolveram, escolhendo
indivíduos oriundos destas minorias visíveis para a constituição das listas
eleitorais ou, recentemente, para ministérios ou secretarias de Estado. Porém,
estas escolhas têm como efeito perverso manter estas minorias na alteridade,
mantêm-nas visíveis, afinal (Geisser e Soum 2008).
Que nomes para os clubes portugueses?
Em 2009, segundo o anuário da Federação Francesa de Futebol, 205 clubes de
futebol em França demonstravam, no seu nome, ter uma ligação com Portugal. Com
efeito, desde meados dos anos 1960 os portugueses em França criaram clubes de
futebol (Pereira 2003). Porém, nem todos os praticantes de futebol portugueses
e luso-descendentes em França jogaram em clubes portugueses e estes clubes
também receberam jogadores franceses ou estrangeiros. Nenhum dos principais
jogadores profissionais de origem portuguesa (Robert Pirès, Frédéric da Rocha,
Corentin Martins, Kevin Gameiro) jogou num desses clubes. Mas foi no Club
Sportif et Culturel des Portugais de Fontainebleau, criado em 1971, que o
jogador com mais internacionalizações na equipa francesa, Lilian Thuram,
iniciou a sua carreira quando tinha nove anos. O clube guarda religiosamente
uma das camisolas do jogador na equipa de França. Além disso, praticantes
portugueses ou luso-descendentes podem jogar fora de qualquer estrutura ou em
equipas do campeonato corporativo, ligadas às empresas.
Os nomes dados aos clubes portugueses permitem-nos compreender a autoperceção
dos dirigentes associativos que estiveram no início destes clubes, quando eles
foram criados e legalizados depois de vários trâmites burocráticos. Pode
facilmente imaginar-se que os nomes foram negociados e discutidos entre os
principais associados, que a designação representava o conjunto dos
associados. A principal ocorrência nestes nomes é a referência ao país de
origem dos dirigentes e da maioria, inicial, dos associados: Portugueses
(161) e Portugal (11). Esta quantidade contrasta com a quase inexistência de
clube com referência à Argélia (6) apesar de, desde 1975, o volume das duas
populações ser muito próximo ' pelo menos o das populações que só têm a
nacionalidade estrangeira, uma vez que os censos consideram franceses os
binacionais. O número de clubes com um nome referente a Portugal é superior a
todos os outros clubes relativos a outros países de estrangeiros em França
(114). A seguir a Portugal aparece a Turquia, com apenas 57 clubes. Depois,
há 17 clubes que apresentam o termo lusitano ou um seu derivado. O mais
conhecido clube português em França chama-se Union Sportive des Lusitanos de
Saint-Maur. Criado oficiosamente em 1966 e legalizado em 1971, este clube
atingiu o topo do futebol amador em 2001 (terceira divisão). Porém, em 2002
cindiu-se em dois. A equipa principal reuniu-se com a equipa de Créteil. O
antigo presidente dos Lusitanos, o homem de negócios Armando Lopes, tornou-se
presidente do Créteil-Lusitanos, que, até 2009, jogou na segunda divisão. Os
Lusitanos de Saint-Maur, com uma nova presidência, recomeçaram no início dos
escalões amadores. Em 2008, reuniam 400 associados. Alguns nomes de clubes
resultam de tributos a clubes portugueses. Há nove Benficas, três FC Porto e
apenas um Sporting. Cinco clubes fazem referência a uma região ou a uma
localidade portuguesa (três ao Minho, um a Bragança e um a Aljustrel). Por fim,
existem apenas quatro clubes que fazem referência à condição de trabalhadores
dos associados.
Que conclusões tirar deste recenseamento? Em primeiro lugar, ele reforça a
ideia da invisibilidade dos portugueses em França e da liberdade de que eles
usufruem. Esta quantidade sem igual de clubes com referências a Portugal nunca
é referida (ou pelo menos nunca o vi) como um sinal de má integração ou de
falta de lealdade dos portugueses e luso-descendentes para com o país de
acolhimento. Quando o ministro dos Desportos, Jean-François Lamour, da Union
pour un Mouvement Populaire, o principal partido de direita, convidou, em 2004,
a ficar vigilante perante as práticas que prejudiquem o pacto republicano,
como o desenvolvimento dos clubes comunitários (Gasparini e Weiss 2007: 79),
não visava estes clubes portugueses. Tão-pouco os destinatários deste
discurso entendiam que os visados fossem os mais de 200 clubes portugueses.
Aliás, é interessante notar que poucos clubes portugueses gravaram no nome do
clube uma dupla pertença. Só 11% dos clubes são luso-franceses enquanto, no
caso dos turcos, possivelmente porque temem acusações de comunitarismo, esta
proporção sobe até os 28%. O segundo ponto interessante deste recenseamento é a
primazia do termo português, que não se pode encarar como natural por
diferentes motivos. Desde logo, esta predominância não existe em todo o
associativismo português e particularmente nos ranchos folclóricos, que também
são numerosos em França (Cordeiro e Hily 2000; Chevalier 2003; Calogirou 2003).
Estes ranchos têm muitas vezes nomes com referências a uma região ou a uma
localidade. Esta diferença explica-se pelo facto de o folclore ter sido objeto
de codificação, patrimonialização e regionalização durante o Estado Novo (Melo
2001). Cada região e cada cidade têm as suas particularidades e tradições que
os emigrantes em França tentam reproduzir no desejo de uma busca de
autenticidade valorizada nas sociedades urbanas atuais. Como a emigração
portuguesa em França se fez principalmente de modo irregular, através de
cadeias migratórias, encontra-se muitas vezes nas cidades francesas um
predomínio de portugueses provenientes da mesma aldeia (ver a cadeia
emigratória estudada por Rocha-Trindade 1973, ou por Portela e Nobre 2001). O
conceito de comunidade, pouco heurístico, esconde que as sociabilidades dos
portugueses em França assentam muitas vezes sobre a reconstituição de
sociabilidades anteriores, baseadas em redes de parentesco e de amizade. Há,
por vezes, várias comunidades na mesma localidade. Assim, portugueses ou luso-
descendentes oriundos da mesma região reconstituem em França tradições
folclóricas da sociedade local de origem, num diálogo constante com os ranchos
existentes em Portugal. Este facto ilustra que o título de português para o
futebol não é nada natural. Se ele foi escolhido pelos dirigentes é, em parte,
porque não há no futebol, contrariamente ao folclore, uma diferenciação
regional codificada. Pode haver diferenças de estilos de jogo entre clubes, mas
as regras são comuns. Apesar das rivalidades futebolísticas, que prolongam as
rivalidades entre o Norte e o Sul (Sobral 2004; Domingos e Kumar 2006;
Seabra 2011), a região portuense e a capital, há apenas um futebol português,
conceito aliás problemático (Domingos 2004). A escolha do termo português é
pois, em grande parte, resultado do fenómeno migratório. Como vimos, há
distinções sociais e / ou regionais entre portugueses e luso-descendentes em
França. Aconteceu-me muitas vezes que um português em França me perguntasse de
onde sou. Ele não se refere (e eu não o entendo assim) ao sítio onde vivo em
França, mas àquele de onde os meus pais são originários.[5] Muitos emigrantes
que provinham das regiões rurais do interior português, que não conheciam
Portugal na íntegra, que por vezes conheceram Paris antes de Lisboa (Barreto
1997: 20), identificaram-se como portugueses em França. Até na emigração, eles
sentiam-se sobretudo originários de Castro Laboreiro, do Penedono ou de
Quadrazais. Em França, foram confrontados com uma sociedade estrangeira, na
qual se impôs desde o século XIX a tirania do nacional (Noiriel 1991), que
assenta na identificação com um Estado--Nação, identificação que é
materializada em documentos administrativos (como os bilhetes de identidade,
que muitos portugueses não tinham antes de emigrar) (Torpey 2003; Noiriel
2007b). Para o dizer como Eugen Weber, os camponeses das Beiras ou do Minho
tornaram-se portugueses emigrando (Weber 1976). É perante a alteridade que a
identidade (nacional ou outra) se constrói. Assim, um natural de Bragança em
Paris apresenta-se como português em Paris (salvo se está perante outro
português) e transmontano (ou até bragantino) em Lisboa. De resto, se há
inúmeras casas regionais ou municipais em Lisboa (Melo 2006), elas são raras em
França. Assim, no contexto migratório, é a pertença nacional que sobressai.
Outro resultado do contexto migratório é a subalternização das identidades
clubistas, pelo menos no que é relativo aos nomes dos clubes. Para a maioria
dos indivíduos do sexo masculino em Portugal e para parte dos de sexo feminino,
a pertença clubista, principalmente a um dos três grandes clubes, é
incontornável (Salesse 2008). Os jovens, sobretudo das classes populares, são
socialmente constrangidos a escolherem um clube. No entanto, os associados dos
clubes portugueses em França preferem subalternizar o que pode ser uma fonte
de dissensão entre os associados que, mesmo que venham da mesma aldeia ou
região, têm clubes diferentes. É frequente ouvir, aquando de um desentendimento
mais grave entre adeptos dos três grandes clubes na retransmissão do jogo num
café, a frase mas afinal somos todos portugueses ' que deve acabar com os
conflitos suscitados pelas algazarras clubistas.
Por fim, os imigrantes portugueses vieram para trabalhar em França, e, como
demonstrou Sayad, é o trabalho que legitima a sua presença neste país (Sayad
2006), mas apenas quatro clubes fazem referência ao estatuto de trabalhador. Há
pelo menos três explicações para este fenómeno. Em primeiro lugar, grande parte
dos emigrantes dos anos 60-70 vinham de um meio rural e, mesmo quando
trabalhavam na construção civil, nas obras públicas ou nas fábricas, a maioria
não adquiriu uma consciência de classe proletária. Este facto foi reforçado
pela desindustrialização e enfraquecimento da identidade operária a partir do
fim dos anos 1980 (Noiriel 1986). Em segundo lugar, muito poucos clubes
inscritos na Federação Francesa de Futebol estiveram ou estão hoje ligados a
grupos de esquerda, extrema-esquerda ou a sindicatos. Os que, eventualmente,
teriam esta ligação encontram-se nos campeonatos da Federação Sportive et
Gymnique du Travail. Os portugueses não criaram estes clubes, ou as associações
que lhes estavam muitas vezes subjacentes, para defender os seus direitos de
trabalhadores, mas sim para organizar os seus lazeres, criar espaços de
sociabilidade próprios, transmitir a cultura portuguesa aos filhos. Por fim,
a identidade operária é vista como menos prestigiosa que uma dita identidade
portuguesa. Muitos portugueses em França orgulham-se da identidade e da cultura
portuguesa tal como eles as concebem, buscando principalmente no passado das
grandes descobertas motivos de orgulho patriótico (Oriol 1985). Como ilustração
desta utilização de uma certa leitura do passado, refira-se a principal
associação de luso-descendentes em França, chamada Cap Magellan, remetendo
explicitamente para a epopeia portuguesa. Os governos portugueses reforçaram
estas representações usando objetos como caravelas ou personagens como Luís de
Camões nas diferentes liturgias e comemorações simbólicas. O facto de o 10 de
Junho se chamar Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas mostra
esta ligação entre Descobrimentos e emigração. Aqui há mais uma diferença em
relação aos imigrantes argelinos. Como mostraram autores como Frantz Fanon, os
colonizadores esforçaram-se por rasurar a história dos povos conquistados e
difundir nestas populações um sentimento de inferioridade que legitimava a
dominação colonial. Assim, os imigrantes argelinos e os seus descendentes têm
mais dificuldades em usar a história como recurso e como meio de se afirmarem
na sociedade francesa.
Dos vários usos dos clubes portugueses
A quantidade considerável de clubes portugueses e os nomes que lhes foram dados
indicam uma vontade inicial dos associados de criar espaços de sociabilidade à
parte do resto da sociedade francesa. Porém, a constituição de um espaço
autónomo não resulta apenas da vontade dos portugueses. É também o fruto da
legislação vigente nos anos 1960-1970. Com efeito, os clubes não podiam
contratar mais de dois jogadores estrangeiros (cinco nas regiões onde havia uma
forte imigração). Em sentido contrário, os clubes estrangeiros só podiam
contratar dois jogadores franceses. Aos portugueses que queriam jogar futebol
numa estrutura organizada e não podiam jogar em clubes franceses, apenas
restava a possibilidade de criar um clube. Os primeiros clubes foram fundados
em 1965 e resultavam da iniciativa de empresas onde trabalhavam muitos
portugueses (a empresa Michelin, cuja principal fábrica estava sediada em
Clermont-Ferrand criou a Amical Ibérique para os seus empregados espanhóis e
portugueses) ou de indivíduos e entidades próximos das estruturas consulares
portuguesas (o clube português de Toulouse foi fundado pelo Padre Ardérius e a
Associação Nacional dos Portugueses em França criou vários clubes em Paris e
arredores). No início, os clubes são pouco autónomos do patronato e dos
indivíduos que se mobilizam para impedir a politização dos emigrantes em França
(Pereira 2011). Mas, depressa, os clubes de futebol vão surgir da iniciativa de
imigrantes com nenhuma ou pouca ligação com empresas ou consulados.
Antes do 25 de Abril de 1974, foram fundadas 114 associações com, pelo menos,
uma equipa de futebol. Este número é impressionante porque, neste período, os
portugueses, cuja maioria tinha emigrado irregularmente, eram pouco propensos a
submeter-se ao poder da administração e a preencher formulários, sobretudo em
francês. As interações que eles tinham tido em Portugal com a administração
alimentara neles uma sólida desconfiança do Estado (Cabral 2006) e, em França,
nestes primeiros anos de emigração, o Estado aparecia também como um organismo
inquisidor, potencialmente ameaçador. No entanto, os benefícios ultrapassavam
os incómodos. Legalizar um clube ' muitas equipas existiam informalmente, em
terrenos por vezes pouco praticáveis ' permitia participar em campeonatos, ter
acesso a campos de futebol, obter subsídios.
Assim, nos anos 1960-1970, os clubes portugueses funcionaram como um espaço de
sociabilidade, de autonomia e de proteção. Porém, não se pode concluir que os
portugueses se queriam fechar, ficando arredados do resto da sociedade
francesa. Se fosse esse realmente o caso, não teriam participado em
competições que incluíam principalmente clubes franceses e teriam jogado entre
si, num círculo fechado. A prática do futebol funcionou também como uma
mercadoria cultural que permitiu transações na sociedade francesa. Os
portugueses criaram então uma competência, um savoir-faire neste domínio,
porque poucos eram os que, em Portugal, tinham jogado futebol num clube.[6] A
prática era sobretudo informal. As crianças e os adolescentes jogavam na
escola, nas praças, na rua ' tendo por vezes de fugir à polícia que impedia os
jogos nestes espaços (Murteira 2008) ' mas muito raramente em clubes, em campos
com relva, com árbitros que tentavam faziam cumprir regras não negociáveis. A
prática em clubes permitiu aos portugueses adquirir um reconhecimento nas
cidades onde viviam. Eles usufruíam do prestígio que tinha na altura o futebol
português (bons resultados nas competições europeias do Sport Lisboa e Benfica,
do Sporting Clube de Portugal, do Vitória de Setúbal e da seleção nacional no
Campeonato do Mundo de 1966), prestígio que contrastava com um período medíocre
do futebol francês entre a última final europeia do Stade de Reims em 1959 e a
primeira do Saint-Etienne em 1976. Para os portugueses, que provinham de um
país considerado em França como pobre, atrasado, vivendo sob uma ditadura
obscurantista e conduzindo guerras coloniais em África, o futebol era a única
coisa da qual eles podiam orgulhar-se e em que apresentavam uma certa
superioridade[7] e autoridade. Por exemplo, o jornal Correio Português,
publicado pela Associação Nacional dos Portugueses em França, impulsionada pelo
Consulado-Geral de Portugal em Paris, realçava frequentemente esta
superioridade portuguesa que contrastava com o insípido futebol praticado em
França (Correio Português 1967).
Nos campos de futebol, nas competições amadoras, os portugueses, reunidos numa
mesma equipa, podiam confrontar-se coletivamente com equipas francesas ou de
outros grupos imigrantes. Nos noventa minutos do jogo, as hierarquias sociais
e / ou étnicas desapareciam. Indivíduos estigmatizados, dominados na vida
quotidiana, no trabalho, podiam jogar de igual para igual e por vezes reverter
o estigma. Um dos principais dirigentes associativos portugueses em França,
Manuel Dias, escrevia, em 1990, que o futebol é um dos únicos domínios no qual
os portugueses enfrentam os franceses com uma raiva de vencer descomplexada
(Dias 1990: 211). O uso de termos com conotações guerreiras indica que, apesar
dos discursos de parte das elites sobre a suposta assimilabilidade dos
portugueses, havia tensões entre portugueses e franceses, tensões que se
manifestavam também nos jogos de futebol. Nos relatórios da polícia ou dos
prefeitos, existem muitos relatos de confrontos físicos envolvendo jogadores e
espetadores portugueses (ver Pereira 2003).
Esta violência não se explica cabalmente usando a teoria crítica do desporto,
desenvolvida principalmente por Jean-Marie Brohm, que defende que o futebol é
por essência um fenómeno guerreiro, uma peste emocional (Brohm e Perelman
2006), um amplificador de um chauvinismo xenófobo. O processo de civilização
descrito por Norbert Elias e o processo de integração descrito pela escola de
sociologia de Chicago são muito mais úteis para enquadrar estes atos vistos
como violentos. Por um lado, os emigrantes portugueses provinham de regiões
rurais onde o controlo das emoções e das pulsões violentas era menos comum que
nas regiões urbanas francesas. A ideia de que a violência é ilegítima e de que
o Estado tem o monopólio da violência legítima não era interiorizada por grande
parte da população camponesa, que considerava poder usar da violência para se
vingar e limpar a honra (Fatela 1989). Ora, estes usos do corpo e da violência
física são vistos como totalmente ilegítimos pelas autoridades francesas. O
facto de a maioria da população que vive em França ter interiorizado a
proibição de recorrer à violência torna ainda mais insuportáveis as suas
ocorrências. Alguns portugueses em França usaram com facilidade a violência
para se imporem perante indivíduos que não estavam de todo acostumados a isto.
Por outro lado, o conflito não deve ser visto como oposto ao processo de
integração, mas, pelo contrário, como parte dele. A escola de Chicago
demonstrou que a competição e o conflito fazem parte do processo de integração
dos imigrantes (Rea e Tripier 2003). Sem conflito poderá dizer-se que não
existe integração. Por fim, a violência entre pessoas de grupos étnicos
diferentes é por vezes explicada por uma distância cultural e religiosa
demasiado importante. Porém, a violência exerce-se muitas vezes em grupos pouco
distintos cultural e religiosamente. É o narcisismo das pequenas diferenças
apontado por Freud (ver Blok 2004). Paradoxalmente, se os jogos entre clubes
portugueses e franceses se transformavam em batalhas campais é porque as
similitudes eram mais importantes que as diferenças e porque os portugueses que
participavam nestas competições se integravam paulatinamente na sociedade
francesa.
A violência era muitas vezes uma resposta de populações dominadas, que sofriam
discriminações e estigmatizações e eram vítimas de insultos racistas. Em 1971,
o prefeito de um departamento do Sudoeste francês observava que todos os
incidentes são uma oportunidade para cada um fazer observações que, no caso
particular das equipas estrangeiras, são relativas à nacionalidade dos
interessados acrescidas de qualificativos pejorativos.[8] Na mesma ordem de
ideias, Luis Fernandez, internacional francês de origem espanhola, legitimou
os atos violentos que os filhos de migrantes, como ele, podiam exercer: ouvir
chamar-nos todo o dia, como nos jogos, melon[9], espingouin[10], tos[11], acaba
por ser revoltante (Noiriel e Beaud 1990: 91). A violência era assim uma
resposta à estigmatização que, apesar da invisibilidade mediática, acontecia
nas interações quotidianas.
A inserção dos clubes portugueses em competições da Federação Francesa de
Futebol indica uma vontade de se integrarem num sistema concorrencial. Ao longo
dos anos, porém, as distinções entre clubes portugueses e outros reduziram-se.
Os clubes portugueses abriram-se a não portugueses e os clubes franceses
abriram-se aos portugueses e luso-descendentes (ver, por exemplo, Solacroup e
Sabatier 2011). Atualmente, alguns clubes portugueses só têm de português o
nome. Clubes portugueses integraram-se profundamente em certas localidades,
tornando-se o principal clube local (Aprile, Billion e Bertheleu 2008: 99). O
exemplo da passagem de Lilian Thuram por um clube português ilustra este
processo. Num livro de memórias, o ex-jogador, entre outros, da Juventus de
Turim e do Barcelona conta que o clube português de Fontainebleau era o
preferido dos jovens do bairro social onde vivia na altura com a mãe e os
quatro irmãos. A maioria dos filhos de imigrantes que jogavam futebol escolhiam
o clube português: nenhum deles queria jogar nos outros dois clubes da
povoação. Uma cumplicidade ligava-os aos portugueses de Fontainebleau. Uma
cumplicidade que todos partilhávamos porque a comunidade portuguesa trazia um
extraordinário tom festivo aos jogos. O cheiro das sardinhas assadas, das
salsichas preenchia o ar; as bandeiras com as cores portuguesas ondulavam; os
cantos eram repetidos até a exaustão. Nós estávamos em Portugal e eu próprio
era português durante algumas horas (Thuram 2004: 43). Os clubes portugueses
não são assim clubes de uma comunidade, mas de um dado território e das classes
populares. Assim, Thuram recorda que
tinha decidido, depois de duas temporadas nos portugueses de
Fontainebleau, ingressar no clube de Fontainebleau, de um nível
desportivo mais elevado. A minha atitude chocou porque esta equipa
era tabu, ela tinha herdado o qualificativo de burguesa'. Os
responsáveis tentaram convencer-me a ficar. Eles jogavam na corda
sensível do isolamento, dizendo-me que não era o meu mundo e
sobretudo que talvez nunca participaria nos jogos (Thuram 2004: 43).
No mercado do futebol amador, alguns clubes portugueses estão constantemente à
procura dos melhores jogadores, qualquer que seja a sua nacionalidade. O pai do
jogador francês Claude Makélélé que, apesar de ter sido internacional do Congo
Belga, emigrou para a Europa, trabalhando em fábricas, jogou alguns meses no
Lusitanos de Saint-Maur que, querendo conservá-lo, lhe ofereceu um emprego com
menos horas de trabalho e mais dinheiro (Makélélé 2009: 31).
Os clubes portugueses tornaram-se, como as associações em França no fim do
século XIX estudadas por Pierre Rosanvallon, espaços protetores e lugares de
aprendizagem de uma nova apreensão do coletivo na sociedade dos indivíduos
(Rosanvallon 2004: 310). Esta inserção coletiva pela via dos clubes de futebol
não está imune, por vezes, a instrumentalizações políticas. Com efeito, alguns
presidentes destes clubes portugueses, que frequentemente também são os
presidentes das associações locais, são escolhidos por homens políticos de
certas localidades para integrarem as suas listas eleitorais. Atrás destas
escolhas, esconde-se por vezes a vontade de ganhar o voto dos portugueses que
já podem votar nas eleições municipais e serem eleitos. Esta estratégia
clientelista, que postula que os indivíduos votam em função da nacionalidade
dos candidatos e tende a fortalecer as diferenças étnicas, é claramente
explicada num livro retratando alguns dos portugueses e luso-descendentes
eleitos para os concelhos municipais nas eleições autárquicas de 2001. A
entrada de Bernardo Martins no concelho municipal de Cluny é assim resumida:
a política sempre interessou Bernardo mas ele nunca pensou fazer
política. Foi preciso o presidente da Câmara insistir para que ele
aceitasse apresentar-se na lista dele nas eleições municipais de 2001
[...]. Porque Bernardo compreendeu bem que os portugueses representam
10% da população de Cluny, a presença dele na lista UMP atrairia o
voto deles e asseguraria um segundo mandato ao presidente da Câmara.
Devido ao seu estatuto de presidente da associação portuguesa, cujo
clube de futebol e rancho folclórico ele dirige, Bernardo tinha uma
certa notoriedade junto da comunidade dele (Dreyfus 2004: 65).
Futebol e transmissão
Depois de ter tido um papel relevante na inserção dos emigrantes portugueses
em França, a prática do futebol teve, com o enraizamento de parte desta
população em França, um papel preponderante na transmissão cultural
intergeracional. Este desejo de transmissão cultural intergeracional ' o termo
cultura engloba aqui muitas práticas ' tornou-se um elemento essencial do
associativismo português. As associações, as suas atividades (futebol,
folclore, organização de festas) e os seus espaços (as sedes das associações),
escondidos do olhar exterior (Jelen 2007: 70), permitem também um controlo
dos mais jovens. Os lazeres dos adolescentes desenvolvem-se assim num espaço
socialmente restrito. De resto, muitas associações reproduzem uma repartição
desigual dos papéis em função do género. A maioria dos dirigentes associativos
é composta por homens, ainda que se não possa pensar que o futebol é só um
problema de homens. Há, com efeito, uma correlação entre a chegada das mulheres
dos imigrantes vindos como pioneiros e a multiplicação dos clubes de futebol. O
reagrupamento familiar, sinal de inserção mais profunda na sociedade francesa,
permitiu aos homens libertarem-se das tarefas domésticas que, vivendo sós,
tinham que exercer. E as mulheres, numa repartição das tarefas domésticas
desigual, trataram de lavar as camisolas dos jogadores.
Com os anos, o futebol, tanto a sua prática como o seu consumo enquanto
espetáculo, tornou-se um elemento fundamental da relação entre os pais
portugueses e seus filhos, muitos deles nascidos em França e tornando-se
franceses aos 18 anos, em função das evoluções do direito da nacionalidade
(Weil 2002). O futebol atenua algumas das roturas que a emigração provoca no
seio das famílias. Este papel do futebol na relação entre pais e filhos não é
particular ao contexto da emigração portuguesa em França. Ele encontra-se
também em outros contextos migratórios ou não migratórios. Entre cada geração,
há roturas, diferenças, conflitos. Mas nos casos que envolvem a migração estes
processos são muitas vezes exacerbados (Sayad 2006; Attias-Donfut e Wolff
2009): pais e filhos não falam sempre, com a mesma fluência, uma língua comum;
os primeiros foram socializados em sociedades rurais, enquanto os segundos
vivem desde pequenos numa sociedade urbanizada; os filhos conhecem por vezes
uma certa ascensão social (mas bastante limitada por vezes no caso português) e
podem recusar os empregos mais difíceis e menos prestigiantes que os pais
tiveram de exercer. Gérard Noiriel e Stéphane Beaud (1990) descreveram estes
processos no contexto da imigração em França, focando sobretudo o caso dos
imigrantes vivendo no Norte e Leste de França, regiões mineiras e industriais
que atraíram muitos imigrantes entre os anos 1950 e 1970. Eles demonstraram que
na classe operária, constituída por muitos imigrantes polacos e italianos, os
pais imigrantes partilham e transmitem aos filhos a paixão pelo futebol. O
futebol é muitas vezes um dos principais temas de conversa entre pais e filhos,
adultos e jovens. Muitos jogadores franceses de origem estrangeira eram filhos
de jogadores de futebol que tinham adquirido uma certa fama local e que tinham
iniciado os filhos na prática do desporto. Foi o caso, por exemplo, de Michel
Platini. E foi na mesma região, num processo bastante similar, que Robert
Pirès, o jogador luso-descendente mais conceituado (tendo ganho um Campeonato
do Mundo e um Campeonato da Europa), iniciou a sua carreira. O seu pai,
originário do Alto Minho, trabalhava numa fábrica perto de Reims (Leste de
França) e tinha um certo prestígio num clube da empresa onde trabalhava. O pai
transmitiu esta paixão do futebol e algum savoir-faire ao filho, que nas suas
memórias o descreve como o seu ídolo e modelo. A transmissão fez-se pelo
mimetismo: desde pequeno, ia com ele [o pai], pedia-lhe que me trouxesse ao
campo de futebol (Pirès 2002: 48).
O futebol desempenha um papel tão importante na transmissão intergeracional
porque, além de superar as roturas, além de ser o desporto-rei das classes
populares, tanto em França como em Portugal, permite aos luso-descendentes
conciliar, muitas vezes sem conflitos, a lealdade aos pais e a lealdade ao país
onde vivem. Como vimos, a partilha da paixão por um clube português e / ou pela
seleção portuguesa por parte dos luso-descendentes não é vista, no espaço
público francês, como um sinal de não integração, de recusa dos valores
republicanos. Por outro lado, para milhares de luso-descendentes e portugueses,
apoiar uma equipa portuguesa e, sobretudo, a seleção portuguesa é um recurso
para a vida quotidiana. Na escola, no trabalho, eles podem tirar partido dos
sucessos da seleção portuguesa, dos clubes portugueses ou dos jogadores
portugueses (Cristiano Ronaldo, Pedro Miguel Pauleta). O futebol é um dos
sustentáculos das sociabilidades masculinas adolescentes e um grande tema de
conversa, e isto permite aos jovens luso-descendentes ter orgulho no futebol
português. No trabalho, por exemplo nas obras de construção civil, onde são
feitas inúmeras piadas sobre as origens étnicas de cada um (Jounin 2008), os
portugueses, contrariamente a outros migrantes, podem vangloriar-se dos bons
resultados lusos. Aliás, é frequente, no contexto dos confrontos entre as
seleções portuguesas e francesas, os adeptos da seleção das quinas preocuparem-
se com as reações dos franceses nos dias seguintes, tanto em caso de vitória
como em caso de derrota. Já em 1973, antes de um jogo amigável entre França e
Portugal, o jornalista de A Bola exagerava as consequências de uma eventual
vitória lusa: Se desgraçadamente, Eusébio e companheiros derem uma grande
baraque', nem eu sei bem o que pode acontecer, entre o bistro' e o
comissariado de polícia, passando pelo hospital (arnica, mercurocromo, pontos
naturais) (Santos 1973).
O futebol é o veículo de transmissão de uma identidade portuguesa ' mas não de
uma suposta identidade nacional ' e uma mercadoria cultural que os
portugueses podem usar nos mercados simbólicos em França. A importância que o
futebol tem junto dos emigrantes portugueses e dos seus filhos resulta, no
contexto francês, do papel dado a este desporto na sociedade francesa e da
invisibilidade das práticas destes migrantes. É importante realçar os contextos
nos quais se inserem os migrantes porque a paixão pelo futebol não pode ser
considerada apenas como uma importação. Os migrantes não trouxeram apenas o
futebol nas malas deles. Em França, este desporto permitiu-lhes ultrapassar as
estigmatizações. A paixão pelo futebol também não é o sinal de uma eventual
portugalidade. Este conceito, que reifica uma suposta identidade portuguesa,
oculta as diferenças sociais, culturais, de género que dividem os portugueses e
omite que os portugueses que vivem no estrangeiro devem negociar e adaptar a
identidade deles na sociedade em que vivem. Assim, a portugalidade não é igual
em todos os países de imigração. Em certos países, em função dos mercados
simbólicos, tal prática ou tal costume será valorizado. A portugalidade não é
uma essência: é uma construção e depende dos contextos locais e dos mercados
simbólicos nos quais os portugueses se inserem.