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EuPTHUHu0873-65612012000100006

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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Ligações culturais entre portugueses na Alemanha: o futebol e a gastronomia como espaços sociais para convívios internacionais

Os portugueses constituem uma das minorias nacionais mais duradouramente estabelecidas ' se bem que não a mais visível ou numericamente significativa ' na Alemanha. Apesar de uma permanência de várias décadas, que envolve reformas, filhos e netos nascidos na Alemanha, apenas uma muito reduzida percentagem de imigrantes portugueses e luso-descendentes obteve a dupla nacionalidade ou a nacionalidade alemã.[1] O mesmo se aplica aos portugueses que entrevistámos em Hamburgo e na Baixa Saxónia durante várias visitas entre novembro de 2007 e abril de 2010. Aqui, a população portuguesa, distribuída por zonas rurais, urbanas e metropolitanas, ronda os 15 mil indivíduos.[2] Projetos míticos (constantemente adiados) de um regresso a Portugal continuam a ser centrais nas narrativas dos mais velhos, tal como o são, entre muitos dos mais jovens, as aspirações a tentar uma carreira profissional em Portugal no futuro próximo, ou a gozar os anos da reforma, ainda distantes. De modo a examinarmos as expressões de pertença e ligação cultural entre os portugueses de Hamburgo, procedemos a observação participante e conversas informais, realizadas sobretudo, mas não exclusivamente, nos espaços semipúblicos (associações e clubes desportivos de emigrantes) e públicos (restaurantes, bares) onde os portugueses se congregam. Os símbolos e ícones das equipas de futebol portuguesas e da seleção nacional estavam presentes em todos estes espaços, assim como o futebol português nos ecrãs televisivos. Setenta e quatro portugueses residentes em várias localidades do Norte da ­Alemanha, incluindo Hamburgo, com idades compreendidas entre os 18 e os 76 anos, participaram num questionário que foi administrado mediante entrevistas diretas semiestruturadas, permitindo-se desse modo aos participantes escolherem e desenvolverem tópicos do seu próprio interesse.[3] Em termos globais, os nossos entrevistados revelaram uma ligação relativamente forte aos seus ambientes locais, nos quais se encontravam bem integrados, manifestando ao mesmo tempo um igualmente forte sentido de pertença nacional a Portugal.

Este facto assumia particular relevância quando as questões de ligação e pertença eram abordadas através da lente do futebol, nas vertentes do consumo, da prática recreativa e da identificação com o mesmo. Quanto a esta última, todos os inquiridos sem exceção declararam apoiar a seleção nacional portuguesa durante o Euro 2008, e dois terços deles acreditavam até que ­Portugal chegaria à final. Ao mesmo tempo, nove em cada dez destes dedicados adeptos referiram como apoio secundário uma outra seleção nacional (no caso de Portugal não conseguir chegar à final), reunindo a Alemanha a maior parte das preferências, seguida pela seleção espanhola. Uma esmagadora maioria dos nossos entrevistados de ambos os sexos (89%) era também adepta de um clube português (com o S.L.

Benfica e o F.C. Porto à cabeça), com mais homens do que mulheres a referirem adicionalmente um clube desportivo ­alemão (66%).[4] Instituições portuguesas como a Secretaria do Estado das Comunidades ou o Instituto Camões têm exprimido preocupação relativamente a três tendências: a perda de interesse dos jovens luso-descendentes em participarem nas associações portuguesas emigrantes/locais, o decréscimo de competências linguísticas em português entre esses mesmos jovens, e o facto de 95% dos emigrantes não exercerem o seu direito de voto nos atos eleitorais.[5] Baseado nestas informações e em experiências de campo anteriores a este projeto, o nosso estudo teve início em novembro de 2007 com a seguinte hipótese: além do declínio das competências linguísticas em português e da participação em associações portuguesas, muitos dos elementos que moldavam as conceções migrantes de cultura portuguesa nos contextos diaspóricos ' tais como o folclore, o fado, o catolicismo, o interesse pelo património português, etc. ' estão hoje a perder importância, pelo menos entre os jovens luso-descendentes, ao passo que a identificação com o futebol português, bem como o consumo e a prática recreativa desta modalidade desportiva parecem manter-se estáveis ou estar até a ganhar maior importância. De facto, os resultados da nossa pesquisa sugerem que a identificação com o futebol português e o consumo dos respetivos eventos mediatizados proporcionam um espaço privilegiado para performances de pertença e cultura (popular) portuguesa.

O presente artigo examina os modos pelos quais os migrantes portugueses e os luso-descendentes estabelecem elos de ligação ao seu país de ­origem, focando sobretudo representações (de elementos) dessa cultura de origem (seja qual for o modo como esta é definida ou narrada). A nossa análise ­concentra-se nos elementos mais visíveis da vida quotidiana na diáspora ­portuguesa ' nomeadamente, nas competências linguísticas em português, na gastronomia e na procura de bens culinários tipicamente portugueses, e no papel dos espaços portugueses e do futebol português. Quais as estratégias que os emigrantes desenvolvem com vista a manter ' ou melhor, a reinventar ' a cultura quotidiana portuguesa na sua vida diária além-fronteiras? De que modo tais estratégias e preferências mudam ao longo do tempo e de que modo são moldadas pelos contextos diaspóricos específicos? Como é que os emigrantes exprimem em público o seu alegado sentido de pertença a Portugal? Será que o interesse aparentemente forte pelo futebol português implica um ato deliberado de demarcação de fronteiras que assinala limites à medida em que os emigrantes procuram integrar-se no seu novo ambiente, representando assim um ato de desejada segregação (Figueroa 2003; Dyck 2007)? Futebol e emigração portuguesa? Um olhar sobre a literatura especializada Desde meados dos anos 70 até à atualidade, o corpus literário dedicado à emigração portuguesa e às respetivas comunidades diaspóricas desenvolveu-se a um ritmo impressionante, tanto em termos de publicações portuguesas como internacionais.[6] Assim como os proeminentes casos francês (Pereira 2007, 2009a, 2009b; Silva e Dos Santos 2009) e norte-americano (Moniz 1999, 2008; Leal 2009; Feldman-Bianco e Huse 1995), as comunidades luso-germânicas (Soares 2010) contam-se entre os casos bem documentados de emigração portuguesa, graças sobretudo aos estudos etnográficos longitudinais realizados por Klimt (2002, 2005), que abordou também as questões do lar e da pertença (2000, 2003, 2009), tal como Eitzinger (2010). Por outro lado, o papel do futebol entre comunidades globalmente dispersas que não portuguesas tem recebido a atenção dos estudiosos ao longo da última década (Free 1998, 2007; Burdsey 2006; Darby e Hassan 2007; Hognestad 2006, 2009; Millward 2010; veja-se ainda Tiesler, neste volume). Para o caso da emigração portuguesa, o papel desta modalidade desportiva foi apenas reconhecido e parcialmente ­estudado por Pereira (2003, 2007, 2010, 2011) para o caso francês, por Moniz (2006, 2007, 2008) para o caso da Nova Inglaterra e por Wagg (2010) para o caso inglês. Além destes contributos, podemos encontrar comentários pontuais ao tema por parte de investigadores dedicados a outros aspetos da emigração ­portuguesa ' veja-se, por exemplo, Noivo (2002: 260) a propósito do Canadá e da Austrália, Melo (2009: 220) a propósito do ­contexto belga e Leal (2009: 76) sobre Massachusetts e Rhode Island. Enquanto Freud (2010) se debruçou sobre o tema da gastronomia portuguesa (sobretudo em Hamburgo), Klimt (2005) analisou o folclore português enquanto performance de portugalidade (igualmente em Hamburgo). O futebol, que representa talvez o mais visível elemento da cultura popular portuguesa, não foi ainda estudado no contexto alemão, onde, por outro lado, a sua importância para outras minorias étnicas e o envolvimento destas na prática de futebol amador se encontram bem documentados (veja-se, por exemplo, Blecking e Dembowski 2010).

O duplo imperativo: a ligação duradoura a Portugal e o ser-se um bom imigrante na Alemanha Os principais temas de pesquisa aqui abordados são centrais aos estudos da migração, um campo que, nesta era de globalização e migração internacional, abrange quase todas as disciplinas das ciências sociais e não . Se, por um lado, os investigadores estão interessados em compreender, por exemplo, as narrativas e ações dos migrantes que assinalam processos de mudança cultural, por outro, a natureza de tais conexões à (antiga) pátria reveste-se de particular interesse para os governos dos países envolvidos. Os governos dos países de acolhimento, pelo menos na Europa, esperam muitas vezes que os imigrantes abram mão de determinados hábitos e lealdades importados, ou que regressem prontamente ao seu país de origem quando o seu contributo para a força de trabalho não é necessário, ou ambas as coisas. Os governos dos países emissores têm um grande interesse em preservar os elos de compromisso, ligação e lealdade dos emigrantes à pátria e ao lar, que isto garante um fluxo contínuo de remessas e investimentos económicos.

Políticas e discursos portugueses sobre a emigração Além da bagagem parcialmente materializada, parcialmente memorizada de bens e emoções, os emigrantes portugueses transportam o peso daquilo a que Lubkemann (2002: 191 e segs.) chamou o emigrant script na sua análise de uma economia moral do discurso popular português sobre a migração. Para ­Lubkemann, assim como para Graham (1990), as obrigações morais que constituem o emigrant script têm as suas raízes no período entre o pós-II Guerra Mundial e meados da década de 1990, quando as remessas tinham um papel extremamente importante nas economias rurais locais portuguesas (­Lubkemann 2002: 192). Como observou Brettell (1986), a emigração constituiu uma estratégia de melhoramento e reprodução da vida camponesa no Portugal rural, mais do que um abandono definitivo da sociedade portuguesa. A emigração não atendia às necessidades das economias rurais locais de Portugal como tinha introduzido no discurso público uma economia moral de um sentido socialmente construído e sancionado de dever: Este script propunha um migrante cuja lealdade à pátria e ao lar era continuamente manifestada em palavras e atos, e que não perdia nem desejava perder a ligação a Portugal e às suas raízes profundas nesse país (­Lubkemann 2002: 193).

Nas suas análises do papel das associações de migrantes nos processos contínuos das conceções da nação portuguesa, Daniel Melo e Eduardo ­Caetano da Silva apontam o interesse do Estado. A comunidade portuguesa ­globalmente dispersa era chamada a representar o país, promovendo a língua e as características de uma cultura nacional, a qual, se bem que difícil de definir, o Estado procurava preservar e reproduzir (Melo e Silva 2009: 40-41). As palavras do presidente da República portuguesa, Cavaco Silva, durante uma visita a Moçambique em 2008 (citadas por Domingos no presente volume), exemplificam o tom geral dos discursos dirigidos por representantes do Estado a emigrantes portugueses. Tais discursos defendem, nomeadamente, que estas comunidades constituem verdadeiros embaixadores de Portugal e primeiro garante da defesa e afirmação da cultura lusa além-fronteiras.[7] Outra razão para permanecer português: as políticas de cidadania da Alemanha O processo de reconhecimento político para se ser ipso facto e ipso jure um país de imigração recentemente teve início. Na Alemanha, as políticas de cidadania continuam a basear-se essencialmente no jus sanguinis, pelo que o direito adquirido por nascimento é baseado na ascendência. Até à década de 1990, as políticas de imigração da Alemanha foram dominadas por discussões sobre o regresso ou a integração meramente temporária dos imigrantes. Os novos influxos migratórios de cidadãos dos estados da Europa de Leste, de alemães do Leste e dos chamados Aussiedler[8] após a reunificação da Alemanha, e os consequentes ataques xenófobos (de neonazis contra grupos migrantes estabelecidos), conduziram na época a uma revisão das políticas de imigração, amplamente debatida nas esferas públicas e políticas. Em 1998, a questão dos estrangeiros foi inserida no contexto dos assuntos de política interna, ao invés de continuar a estar escondida no departamento dos negócios estrangeiros (Schmidt-Ficke 2006: 247-251). Em 2000, sob a governação da social-democracia (SPD) e do Partido dos Verdes (Die Gruenen), a jurisdição sobre a cidadania introduziu elementos de jus soli, pelo que o território da nação passou a ser crucial para o direito adquirido por nascimento. Este facto, juntamente com a redução dos requisitos para a naturalização, permitiu aos descendentes dos imigrantes, pela primeira vez na história da imigração na Alemanha, obterem a dupla nacionalidade. Mais recentemente, em 2007, graças a novas mudanças nas políticas de cidadania, os estrangeiros de longa permanência e seus descendentes passaram a poder juntar à sua própria nacionalidade a nacionalidade alemã, desde que sejam oriundos de um país da União Europeia (UE). Estranhamente, esta informação ainda não foi amplamente divulgada ou discutida, nem em debates políticos nem nas esferas públicas ou académicas, e está apenas disponível no website do Departamento Alemão para os Refugiados e a Migração.

O contexto mais amplo: a imigração portuguesa para a Alemanha Em retrospetiva, a imigração portuguesa para a Alemanha pode ser grosso modo dividida em quatro fases: os anos de chegada (1964-1974), o período dos primeiros regressos (1973-1986), as fases dos impactes resultantes dos pontos de viragem históricos do acesso de Portugal à União Europeia e da reunificação da Alemanha (1986-1996), e os anos de 1996 ao presente, em que podem ser observadas algumas mudanças nas estruturas do emprego.

Relativamente aos trabalhadores portugueses, a Alemanha e Portugal assinaram em 17 de maio de 1964 um acordo de recrutamento de trabalhadores braçais. Até 1974, cerca de 120 mil portugueses emigraram para a Alemanha, representando 3,4% da população estrangeira total neste país (­Zimmermann et al. 1998: 7). A maioria desses emigrantes conseguiu emprego não especializado ' por exemplo, em fábricas do setor da indústria automóvel, como a ­Carman, em Osnabrück, na indústria pesqueira de Hamburgo, na indústria pesada da região do Ruhr (distritos de Dortmund, Gelsenkirchen, Bochum, etc.) ' ou obteve trabalho temporário nos setores da saúde e dos serviços, como por exemplo em hospitais e hotéis (EPA 2004: 32).

Na Alemanha, a procura de mão de obra estrangeira foi extremamente ­elevada durante os anos dourados (Wirtschaftswunder) da década de 1960. No seguimento da crise do petróleo de 1973, o governo alemão travou a imigração e, até 1983, adotou uma política de promoção e encorajamento do regresso. Devido à crescente xenofobia e ao aumento da taxa de desemprego entre os trabalhadores estrangeiros, o governo da Alemanha aprovou, em outubro de 1983, uma lei para o financiamento do regresso voluntário dos trabalhadores estrangeiros aos seus países de origem. Os trabalhadores estrangeiros legalmente recrutados e residentes no país receberam individualmente um reembolso de 10.500 marcos ' aproximadamente o montante que tinham pago à segurança social alemã (ao fundo de reformas). Este programa era apenas válido para os estrangeiros que deixassem a Alemanha antes de 30 de junho de 1984. De acordo com Zimmermann et al. (1998: 1-7), 20 mil trabalhadores portugueses aderiram ao programa. No total, a população portuguesa na ­Alemanha decresceu para 69 mil até 1987.

Após a adesão de Portugal à UE, verificou-se um aumento líquido da imigração portuguesa a partir de 1993. Entre 1992 e 1995, o influxo de emigrantes portugueses aumentou para 27 mil indivíduos, mas apenas 5 mil trabalhavam para empresas alemãs. O facto prende-se com a restrição dos chamados Werksarbeitverträge (contratos de trabalho temporários). Os imigrantes trabalhavam na Alemanha, mas tinham sido formalmente contratados por empresas portuguesas, pelo que não integravam as estatísticas oficiais alemãs nem tinham acesso ao sistema alemão de saúde e de segurança social. Este novo tipo de migrantes trabalhava sobretudo no setor da construção civil. Pouco se escreveu sobre estes emigrantes, mas crê-se que recebiam muito menos do que os seus congéneres alemães e que muitos deles trabalhavam em condições muito duras, vivendo em contentores sem quaisquer direitos laborais. Assim, em 1996 o governo alemão aprovou uma lei com vista a obrigar essas empresas a pagarem salários alemães e a facultarem aos trabalhadores segurança social, seguro de saúde e direitos laborais (Zimmermann et al. 1998: 7-15).

Entre 1996 e 2000, a população portuguesa na Alemanha aumentou para 2,4% da população estrangeira total. Entre 1986 e 2000, cerca de 46 mil portugueses imigraram para a Alemanha, onde estabeleceram residência permanente. Entre estes novos emigrantes verifica-se uma mudança ao nível da estrutura de emprego: enquanto os primeiros emigrantes portugueses eram trabalhadores braçais, os portugueses da nova vaga obtiveram emprego no setor dos serviços: empresas de catering, hotéis, lojas, supermercados, etc. Observou-se também que muitos deles assinavam contratos temporários de apenas alguns meses. Um outro grupo de emigrantes portugueses é constituído por jovens que ­deixam Portugal por razões educacionais (para estudar, fazer estágio, trabalhar em multinacionais, etc.). Não obstante, desde 2000 o influxo de portugueses é inferior a 5 mil por ano (BMF 2008: 12). Em 2008, os portugueses com residência permanente na Alemanha eram 114.451, representando 1,5% da população estrangeira total.

As mudanças na paisagem política e geográfica da Alemanha, assim como a adesão de Portugal à UE, conduziram a uma alteração significativa ao nível da autoperceção dos migrantes portugueses. De facto, os novos influxos de imigrantes oriundos dos países da Europa de Leste, de alemães de Leste e dos ditos Aussiedler levaram a um reposicionamento e alteraram a autoperceção dos imigrantes portugueses enquanto comunidade estabelecida na Alemanha várias décadas. Anteriormente percecionados pela sociedade de acolhimento alemã como estrangeiros e trabalhadores convidados(guest workers) ' uma identidade que eles próprios assumiam ', os imigrantes portugueses passaram a ser vistos como europeus, graças a um novo contexto político que permitiu essa redefinição de estatuto (Klimt 2009: 237-240).

Por um lado, não obstante o facto de representarem uma minoria entre a população estrangeira total, os portugueses constituem uma das mais antigas minorias nacionais a residir na Alemanha. Cerca de 37.500 portugueses (41% do total da população portuguesa na Alemanha) viveram mais de trinta anos nesse país, e uma grande parte deste grupo alcançou a idade da reforma e tenta realizar o velho sonho de passar uma grande parte do tempo em ­Portugal. Por outro lado, cerca de 30 mil dos portugueses atualmente a residir na ­Alemanha estabeleceram-se neste país apenas dez ou vinte anos, refletindo o influxo da segunda vaga de imigrantes, posterior à adesão de ­Portugal à UE. À semelhança de outros antigos trabalhadores convidados, como os italianos, os turcos e os gregos, os portugueses constituem, pois, um grupo socialmente estabelecido de permanência de longa duração na Alemanha.

Sobre métodos e perspetivas, género e posicionalidade As políticas de imigração alemãs foram condicionadas por fatores económicos e políticos que promoveram o descuramento das responsabilidades associadas a um país de imigração oficial, diferindo assim das políticas implementadas nos contextos francês, canadiano e norte-americano (Brettell 2003). Como ­Brettell e Sargent (2005: 3) fizeram notar, os migrantes transportam, no contexto dos discursos públicos, diferentes rótulos ' legal, ilegal, refugiado, estrangeiro, cidadão ou não cidadão da UE, trabalhador convidado, estudante estrangeiro ' e lidam com um certo estatuto minoritário que obedece a uma classificação de caráter racial, nacional, político, social, étnico, religioso, linguístico, geracional e de género: Os migrantes ocupam múltiplas posições subjetivas, algumas das quais definidas pelos próprios e outras definidas por terceiros (Bretell e Sargent 2005: 2). Aquilo que é frequentemente descurado nos estudos sobre migrantes que se concentram sobretudo no seu estatuto legal, na mobilidade migratória e no trabalho é uma importante dimensão das suas vidas ' nomeadamente, as atividades de lazer. Estas tornaram-se um domínio de trabalho identitário intensivo (Rojek 2010). O lazer (por exemplo, as viagens de férias, a gastronomia e outras formas de consumo, os hobbies, a convivialidade, etc.) é essencial aos modos como os migrantes dão sentido aos seus mundos em mudança. E é também, potencialmente, a esfera na qual os migrantes desenvolvem um sentido de controlo sobre as suas vidas, sobretudo em períodos em que têm muito menos controlo sobre o seu próprio trabalho.

Para além de um estatuto legal factual, das condições económicas e das oportunidades de mobilidade social que moldam de modo decisivo as experiências migratórias, as atividades de lazer dos migrantes proporcionam uma lente muito útil para a análise dos processos de adaptação a um novo ambiente social e cultural, um processo que envolve diversos aspetos do decurso da vida. Entre estes aspetos contam-se as questões de pertença e a busca de autodefinições e de perceções exteriores que emergem para indivíduos e até para ­comunidades imigrantes muito estabelecidas. Como resumiram Klimt e Lubkemann (2002a: 150), as narrativas de pertença são construídas de acordo com a lógica de cada lugar específico. Esta lógica não varia de lugar para lugar, como é também dinâmica, evoluindo ao longo do tempo e de geração para geração. Eis a razão pela qual integrámos o nosso estudo de caso sobre os portugueses de Hamburgo numa investigação mais ampla realizada em três outros contextos alemães, de modo a poderemos compreender melhor as expressões e performances de portugalidade entre os indivíduos de duas gerações distintas (os emigrantes de primeira geração e os luso-descendentes).

Metodologicamente, não estávamos interessadas em encenar discussões artificiais sobre as questões de pertença, nem em solicitar explicitamente declarações sobre autoperceções e, consequentemente, encorajar afirmações (muitas vezes defensivas ou perpetuadoras) de discursos identitários normativos e ideologias hegemónicas de filiação nacional. Em vez disso, e uma vez que o tópico de pesquisa (do projeto de equipa Diasbola) focava especificamente o futebol, a nossa intenção inicial era a de participar na convivialidade dos portugueses em espaços semipúblicos e públicos e dialogar com eles a propósito do futebol.

Porém, tal projeto também não funcionou, devido a questões de género e de posicionalidade.

Em termos de consumo, enquanto atividade recreativa (desporto ativo), bem como plataforma de contacto e código de comunicação, o futebol (­português) alcançou um estatuto proeminente nas opções de lazer e ­respetivas redes sociais de migrantes do sexo masculino da classe trabalhadora. O facto tem, como efeito secundário, um impacte sobre a gestão do tempo e das atividades de lazer das mulheres, que sistematicamente aproveitam a ausência dos homens para realizarem tarefas domésticas em condições mais favoráveis (geralmente os homens atrapalham), para se reunirem entre elas (é nessas alturas que as minhas amigas me visitam), ou para assistirem aos seus programas de televi­são preferidos (que frequentemente diferem das escolhas masculinas). Esta posição proeminente do futebol resulta em parte do estatuto sociocultural desse desporto em Portugal e das narrativas culturais sobre o mesmo (Coelho 2001; ­Tiesler e Coelho 2008; Neves e Domingos 2004; Tiesler e Domingos 2012), mas também do reconhecimento ' aparentemente muito generalizado ' das qualidades e do poder de atração do futebol português entre os alemães e da recente mudança na perceção do futebol, agora reconhecido como um bem cultural por todas as classes da sociedade alemã (Blecking e Dembowski 2010; Crolley, Hand e Jeutter 2000). Falando em termos gerais, nestes tempos de acesso constante à informação e aos meios de comunicação de massas, o futebol, na sua qualidade de entidade global, institucionalizada e ­financeiramente estruturada, emerge como um campo social de acesso democrático. Independentemente do seu estatuto social, político, nacional ou religioso, as pessoas podem participar no futebol enquanto atividade recreativa, bem como no consumo e conhecimento da modalidade ' algo que também se verifica nos contextos migratórios, tanto para os autóctones como para as comunidades imigrantes, ainda que se observem diferenças ao nível dos géneros. Ainda que o desporto em geral, e o futebol em particular, pareçam ser globais, os homens e as mulheres de diferentes classes e culturas (ainda) não vivem da mesma forma as suas normas e práticas.

Dada a naturalização do futebol como um território masculino, outros corpos que sejam classificados como femininos continuam a lutar contra a exclusão (Shehu 2010: ix), tanto no que diz respeito à prática da modalidade (para a questão do futebol feminino, veja-se Scraton et al. 1999; Pfister et al. 2002), como no que concerne à relação de adepto (fandom), ao discurso quotidiano e ao consumo desse desporto (Woodhouse 1991; Haynes 1993; Hognestad 2006; para o caso específico de Portugal, ver Brasão 2004 e, em parte, Marivoet 1999).

Relativamente ao nosso contexto e à nossa experiência de pesquisa, tornou-se evidente que as mulheres interessadas pelo futebol continuam a lutar por aceitação no âmbito do discurso quotidiano sobre essa modalidade desportiva ' as célebres conversas de peritos, que são dominadas pelos homens. Os conhecimentos das mulheres nesta área são em grande medida alvo de desconfiança e, mesmo quando comprovados, não garantem o direito a uma participação igualitária nas conversas sobre o tema. Quanto a este aspeto, o contexto das comunidades portuguesas na Alemanha não constitui exceção. As duas investigadoras viram-se com frequência confrontadas com atitudes de desconfiança, e observaram reações de estranheza e desconforto por parte dos homens portugueses ao tentarem encetar uma conversa sobre questões relacionadas com o futebol.[9] Estas dificuldades eram tanto menos acentuadas quanto mais jovens e instruídos eram os entrevistados. Além dos fatores da idade e do nível de escolaridade, tal acesso dependia também, naturalmente, do contexto: a posição de um investigador do sexo feminino num grupo predominantemente masculino implica dificuldades à partida, independentemente do campo de pesquisa em questão; porém, acreditamos que as dificuldades se agravam quando se trata de um campo que, para um número significativo de homens, continua a ser uma arena para performances de masculinidade (Kreisky e Spitaler 2006). No nosso caso particular, a abordagem dos entrevistados do sexo masculino revelou- se mais fácil quando o contexto de contacto era ­sexualmente misto, e/ou quando o grupo de homens entrevistados não excedia os três elementos. Se, na sua maioria, os homens portugueses davam mostras de desconfiança ou de divertimento ao serem convidados por uma mulher a falarem de futebol e das suas experiências nessa área, por outro lado, mostravam-se tanto mais abertos quanto menos conhecimento do assunto revelávamos nós. Ou seja, quanto menos desafiávamos os seus conhecimentos e quanto mais mostrávamos aceitar a nossa posição de estrangeiras subalternas qua género nesse campo particular, mais eles se prontificavam a entrar em diálogo connosco.

Tais problemas de posicionalidade levaram-nos a rever a nossa metodologia, e acabámos por pôr de lado a ideia de realizarmos pesquisa em espaços públicos e semipúblicos portugueses (tais como bares, restaurantes e associações) onde o número de homens era superior ao das mulheres. Assim, reiniciámos a investigação em contextos familiares e com participantes maioritariamente do sexo feminino, até começarmos a ser convidadas a participar em reuniões mais públicas por membros de ambos os sexos. Além disso, pusemos temporariamente de lado o nosso tema de pesquisa e encetámos conversas sobre tudo menos futebol ' o trabalho ou os estudos, a história migratória da família, os pais e os filhos, o consumo de bens portugueses, os meios de comunicação, as atividades de lazer, etc. Deste modo, foram os próprios entrevistados a introduzir nas conversas o tópico do futebol, referindo, por exemplo, as suas interações com os colegas de trabalho (com quem falam de futebol e das suas celebridades ' atualmente, quase Cristiano Ronaldo ' e com quem partilham o futebol como atividade recreativa), os seus esforços para assistirem a um jogo num estádio português durante as visitas a Portugal, as relações entre pais e filhos, as dificuldades de comprar jornais portugueses (sendo o mais desejado A Bola, o mais importante dos três diários desportivos portugueses) e os elevados custos dos pacotes de televisão por satélite que incluem canais portugueses e lhes permitiriam assistir aos jogos em casa, em vez de terem de se dirigir a um restaurante, a um bar, a um clube desportivo ou associação para esse efeito.

Hamburgo, a área metropolitana: o fim das associações e os visionamentos públicos Hamburgo foi escolhida como campo de investigação por ser a cidade (e o estado federal) que regista a mais elevada densidade populacional portuguesa no Norte da Alemanha. Com 7930 membros recenseados, a comunidade portuguesa é de dimensão mais ou menos similar à polaca, sendo constituída, na sua grande maioria, por trabalhadores convidados e seus descendentes.[10] Atendendo a uma tal concentração de imigrantes portugueses numa cidade, seria de esperar a existência de diversas estruturas organizacionais e associações portuguesas ou, pelo menos, de uma elevada visibilidade da comunidade portuguesa. Assim, torna- se ainda mais surpreendente o facto de o último centro português de Hamburgo ter fechado definitivamente as portas em 2006, após mais de trinta anos de existência, por razões de ordem financeira, organizacional e pessoal. Durante a década de 1980, o número de associados do centro chegou a ultrapassar os seis mil.

Manuel da Silva é vice-cônsul em Osnabrück, o gabinete consular que constitui o ponto de referência administrativo para 10 mil portugueses. O vice--cônsul assistiu ao fim de muitas associações portuguesas desde a viragem do milénio.

As razões são diversas e vão desde a gestão até à falta de membros e à ausência de recursos financeiros e de pessoal. Silva declarou numa entrevista em agosto de 2008:

Suponho que os portugueses que atualmente se encontram no grupo etário dos 35-50 anos simplesmente não querem passar os seus tempos livres a trabalhar voluntariamente nesse tipo de associações. As associações estão a perder cada vez mais a sua importância inicial, deixando de ser um ponto de referência para os emigrantes portugueses. No passado, as associações eram locais onde os portugueses se reuniam para conversarem sobre os problemas que tinham com a burocracia alemã, jogar cartas ou assistir a jogos de futebol.

Porém, quanto mais estabeleciam as suas vidas na Alemanha e eram adotados pela sociedade alemã, mais essas associações perdiam a sua razão de ser.

No verão de 2008, apenas os seguintes clubes e pontos de encontro portugueses permaneciam ativos: a Casa do Benfica, a Casa do Sporting, a Casa do Porto e dois grupos (os chamados ranchos) folclóricos rivais, que, embora sejam associações legalmente constituídas, parecem ser mais fechados a não membros, à exceção das suas atuações em determinadas festas como o chamado baile português, aberto a toda a comunidade portuguesa. Além disto, a instituição católica Cáritas promove festas de imigrantes portugueses durante feriados religiosos como a Páscoa, o Pentecostes e o Natal. Se, no passado, a participação em eventos religiosos funcionava também como um meio de implementação dos laços comunitários, especialmente em relação ao culto de santos portugueses, atualmente não tem um impacte significativo entre os membros mais jovens da comunidade portuguesa. Como afirmou uma mulher de 25 anos, empregada num supermercado português:

P: Os portugueses daqui assistem à missa, quando a Cáritas cede as suas instalações? R: [longa pausa] Para falar com franqueza, não sei Antigamente as igrejas estavam cheias quando os portugueses celebravam a missa, ainda me lembro disso dos meus tempos de criança, ou quando fazíamos grandes procissões em redor da igreja, em maio [culto de Nossa Senhora de Fátima]. Mas aqui tempos, quando fui à igreja com a minha mãe depois de alguns anos sem ir não sei se era Natal ou Páscoa ou outra coisa qualquer [pausa] Bem, enfim, fiquei chocada: éramos umas 50 ou 60 pessoas. Muitos dos da minha idade não estavam. Eram quase velhotas e alguns homens.

Assim, um dos principais elos culturais da vida diaspórica portuguesa parece ter desaparecido e sido substituído por outras formas de socialização e outros padrões de convivialidade. A observada predominância de mulheres na igreja contrasta com a presença maioritária de homens nas associações portuguesas.

Além disso, a associação desportiva Casa do Sporting, um clube de futebol de considerável renome no distrito de Hammerbrock, em Hamburgo, é principalmente frequentada por homens. O clube é um ponto de encontro para homens portugueses e de outras nacionalidades, organizando treinos e jogos de futebol contra equipas rivais da mesma localidade. Quando o visitámos, apenas homens frequentavam as sessões de treino enquanto jogadores e espetadores, à exceção das namoradas de alguns dos jogadores, que chegaram mais tarde. Quando falta de jogadores para um jogo importante, as diferentes equipas de futebol do clube podem integrar jogadores de outras nacionalidades, como afrodescendentes, brasileiros, turcos, gregos, alemães ou espanhóis. É igualmente muito comum os portugueses serem convidados a jogar noutros clubes. Consequentemente, se bem que a aparência exterior de tais eventos possa reter algumas características portuguesas ' devido aos produtos portugueses vendidos durante um jogo de futebol real ou mediatizado e à omnipresença da televisão portuguesa ', a atmosfera torna-se marcadamente internacional. Outro aspeto importante é o da predominância linguística: embora o clube tente manter as suas raízes nacionais, a língua franca é geralmente o alemão, sobretudo quando o número de não portugueses é muito elevado. Nos anos mais recentes, começou a verificar-se uma abertura do clube a outros tipos de eventos culturais, tais como as Festas de Cabo Verde, ou as festas de Danças Latinas Modernas.

Em Hamburgo e nos restantes contextos do Norte da Alemanha, 89% dos entrevistados declararam-se adeptos do futebol português. Participar ­ativamente numa equipa ou num clube português local como a Casa do ­Sporting é uma escolha que não reflete necessariamente uma ligação ao ­respetivo clube ­português da primeira divisão: o Benfica e o Porto são apontados como os ­clubes portugueses preferidos, com 32% de adeptos, seguidos pelo Sporting, com 26%. Os jogadores amadores que entrevistámos eram maioritariamente adeptos do Sporting, mas entre eles havia também apoiantes do Porto e do Benfica. E este facto não parecia ser considerado contraditório, nomeadamente por um dos jogadores, de 25 anos:

P: É permitido ser-se de um outro clube que não o Sporting? R: Claro Jogar futebol e apoiar uma equipa são coisas completamente diferentes! Não, o pessoal do Sporting é porreiro, e desde que eu jogue bem, posso apoiar quem eu quiser. Bem, mas eu também gosto do Sporting. Mas ninguém liga muito a isso, alguns dos meus colegas de equipa são mais adeptos do S.V. Hamburg do que do Sporting português. Eu acho que às vezes eles até sofrem mais quando o Hamburg perde!

O sentimento de pertença local (também observado por Klimt 2009: 264--267) refletia-se na distribuição não portuguesa dos clubes de futebol preferidos: S.V. Hamburg com 16% de adeptos, e St. Pauli com 13%. O mesmo se verifica noutras regiões do Norte da Alemanha, onde os portugueses manifestam preferências similares (apoio secundário) pelos clubes de futebol locais.

Cozinha e gastronomia Pondo de lado a fraca estrutura organizacional da comunidade portuguesa em Hamburgo, podemos afirmar que a visibilidade dos portugueses é mais elevada no Norte da Alemanha devido à forte presença da gastronomia portuguesa. Como fez notar o jornalista Nick Czaja,[11] a cultura portuguesa do café, sobretudo sob a forma do galão ' o equivalente português ao italiano latte macchiato ', é cada vez mais dominante. A zona portuguesa junto a Landungsbrücken, uma área facilmente acessível e de ambiente vagamente turístico, é um bom exemplo da visibilidade portuguesa entre a variada topografia das minorias de Hamburgo.

Estes cafés e restaurantes portugueses não são necessariamente, nem sequer maioritariamente, frequentados apenas por imigrantes portugueses e seus descendentes. Ao longo das últimas décadas, a indústria hoteleira e da restauração parece ter-se tornado o setor mais procurado pelos antigos trabalhadores convidados ou outros imigrantes que desejam estabelecer-se por conta própria e alcançar autonomia profissional.[12] Os portugueses têm obtido também um considerável sucesso no setor da venda a retalho. Existem muitas lojas portuguesas em Hamburgo, as quais vendem também produtos oriundos de Espanha, uma vez que os espanhóis constituem uma minoria muito mais reduzida ' não em termos gastronómicos, mas simplesmente numéricos (em Hanôver verifica-se o fenómeno inverso). Mas não se observa uma coincidência geográfica entre os estabelecimentos gastronómicos portugueses e estruturas como os clubes de futebol portugueses ou outros tipos de associações (Freud 2010: 133-136). Pelo contrário: ainda que os portugueses se congreguem aqui, a maioria dos clientes destes espaços portugueses são alemães. Porém, a comida propriamente dita apresenta-se como tradicionalmente portuguesa, e os empregados são, na sua maioria, portugueses. Segue-se um excerto de uma entrevista com R, uma empregada de mesa de 37 anos:

P: Quem costuma comer aqui? R: Toda a gente, as pessoas que têm fome [risos] Estes restaurantes são frequentados por toda a gente; não é um espaço para portugueses, se é isso que quer dizer. Para isso havia as associações portuguesas até pouco tempo. Mas desde que a última delas fechou, reparei que o número de portugueses que vêm aqui aumentou, principalmente quando um jogo de futebol importante, os restaurantes ficam todos muito cheios Nessas alturas, diversos grupos de pessoas juntam-se, comem, bebem e veem o jogo de futebol.

Bom, de certa forma é um ponto de encontro para os portugueses, mas não exclusivamente, compreende? ainda muitos portugueses que gostam de preparar os seus pratos preferidos em casa à maneira deles e que se queixam dos modos de preparação do nosso restaurante. Mas nós cozinhamos tal como nos ensinaram, como eu costumo dizer Muitas pessoas de diferentes nacionalidades comem aqui e a grande maioria são alemães e nunca se queixam. Gostam da nossa comida. É boa, saudável e diferente da comida italiana, espanhola ou turca. E continua a ser mais barato do que irem a um restaurante tradicional alemão!

Este depoimento enfatiza o facto de que os restaurantes não são pontos de reunião exclusivos dos portugueses ' porém, a situação altera-se quando um evento futebolístico é transmitido pela televisão. Uma vez que as tradicionais associações deixaram de existir, os ambientes gastronómicos passaram a ser ­usados como espaços alternativos para o visionamento de eventos desportivos, na companhia de outras pessoas que partilham o mesmo interesse pelo futebol. O excerto da entrevista mostra também que, de algum modo, a exclusividade dos espaços portugueses desapareceu. Estes estabelecimentos de restauração não foram predominantemente criados para satisfazer as necessidades da comunidade portuguesa, mas atraem também outra clientela, a maioria da qual de nacionalidade alemã. A questão da autenticidade, que é abordada com particular destaque no trabalho de Klimt sobre as performances de portugalidade através dos grupos de dança folclórica, torna-se aqui igualmente evidente nos aspetos culinários ' no modo como é recordada uma refeição tradicional ­portuguesa.[13] Em Portugal, como em toda a parte, a paisagem culinária das especialidades varia amplamente de região para região, uma diversidade que se reflete nos espaços diaspóricos de acordo com as regiões de origem das comunidades imigrantes. As reclamações dos clientes portugueses são uma indicação de que, em muitos casos, as refeições servidas nos restaurantes portugueses de Hamburgo não coincidem com as suas próprias ideias de autenticidade, ou daquilo que eles creem ser típico ou tradicional.

Em comparação com a presença gastronómica de outras minorias, os restaurantes portugueses estão menos bem representados. Freud (2010) explica este facto referindo a reação tardia dos portugueses à procura alemã, mas também a difícil comercialização da cozinha portuguesa: ao contrário do que se verifica com a comida turca, asiática ou italiana, a gastronomia portuguesa não parece prestar-se a um menu de fast-food a preços razoáveis. A cozinha portuguesa não possui uma imagem única (estandardizada) nem estratégias de marketing na sociedade alemã ' de facto, muitos turistas alemães entram em contacto com especialidades gastronómicas portuguesas durante, por exemplo, as suas férias no Algarve, mas aqui a comida obedece mais aos preceitos da cozinha internacional e ao gosto dos turistas, e raramente inclui pratos típicos portugueses. Além disso, a comida portuguesa é rica em especialidades de peixe e marisco que são inerentemente caras e muitas vezes desconhecidas na sociedade de acolhimento alemã; o mesmo se pode dizer a propósito de uma grande variedade de bebidas alcoólicas.[14] Freud refere também a decoração frequentemente pobre de algumas tascas e restaurantes portugueses, onde as luzes fluorescentes e as televisões barulhentas compõem um ambiente considerado pouco acolhedor pelos clientes não portugueses (Freud 2010: 142-149).

O futebol serve fins económicos Durante o megaevento da final do Euro 2008, as bandeiras portuguesas que decoravam os tejadilhos dos automóveis e os telhados e janelas das casas indicavam que Hamburgo era um bastião de adeptos de futebol portugueses. Para estes e outros adeptos da modalidade, os restaurantes, tascas e bares de Schanzenviertel e da zona em redor de Landungsbrücken constituíam pontos de encontro muito concorridos: além de bem equipados em termos de meios de transmissão, esses locais ofereciam comida, bebidas, instalações e espaço suficientes para adeptos de todo o mundo. A presença dos portugueses era evidenciada pelos produtos gastronómicos disponíveis e pelo enorme número de adeptos que envergavam as cores nacionais ' vermelho e verde. As experiências muito positivas para os estabelecimentos portugueses que ­promoveram o visionamento público de (mega)eventos futebolísticos durante o campeonato mundial da FIFA de 2006 deram origem a uma nova ideia de marketing. De acordo com José Mendes, coordenador da Lusonetwork, Marketing & Communication de Hamburgo:

Desde o Euro 2004 que os alemães veem o futebol como ‘uma coisa portuguesa', algo em que os portugueses são realmente bons. Os visionamentos públicos de jogos internacionais em espaços portugueses são vistos como uma garantia de uma atmosfera acolhedora.

Juntamente com o papel dos clubes desportivos (de futebol) portugueses na esfera das atividades de lazer dos emigrantes, a presença e o consumo de futebol mediatizado em espaços portugueses e a organização de jogos entre equipas de crianças e adultos (encontros internacionais em que os alemães defrontam uma seleção dos melhores jogadores portugueses dos diferentes clubes de Hamburgo) por ocasião de festividades anuais como o Dia de ­Portugal, estas sessões de visionamento público garantem lucros acrescidos aos estabelecimentos portugueses e funcionam como um signifyer de etnicidade portuguesa. Na primavera de 2009, diversos clubes de futebol começaram a lançar as bases de uma organização de cúpula chamada União Portuguesa de ­Hamburgo, com vista a organizar e coordenar todos os tipos de atividades e eventos relacionados com o futebol, incluindo aqueles que têm fins económicos. O futebol tornou-se um elemento importante para estratégias de marketing como as desenvolvidas pela Lusonetwork, que visa desenvolver uma marca específica de serviços e produtos culturais portugueses capazes de atrair uma clientela não portuguesa.

O caráter internacional do futebol português e a natureza sincrética dos hábitos culinários De que modo se ligam a Portugal os emigrantes portugueses e os luso- descendentes? Quais os principais espaços sociais para a interação cultural coletiva com a sociedade de acolhimento em termos de atividades de lazer? Será que a importância do futebol e da gastronomia portugueses entre estas famílias e comunidades implica a sua segregação e uma mera reprodução de hábitos culturais (populares) importados? Dois elementos da cultura (popular) portuguesa se têm revelado particular­mente importantes: a gastronomia e o futebol. Perguntámos aos entrevistados a frequência com que preparam e consomem pratos por eles considerados tradicionalmente portugueses. Nos quatro locais da nossa pesquisa na ­Alemanha, 27% dos inquiridos responderam frequentemente, 24% esporadicamente, 26% geralmente e 19% sempre no que concerne ao seu consumo de comida portuguesa. Para os luso-descendentes, os pais e outros membros da família constituem importantes fontes de comida tradicional portuguesa. Observámos também a crescente incorporação de elementos alemães nos hábitos de alimentação e consumo dos portugueses ' por exemplo, a cerveja alemã e determinados pratos.

Acima de tudo, e tal como se verifica noutras regiões do Norte da ­Alemanha, os emigrantes portugueses e os luso-descendentes de Hamburgo estabelecem elos de ligação à pátria de um modo multiestruturado através das visitas a Portugal durante as férias, do consumo e prática de futebol, da gastronomia, dos meios de comunicação, das formas associativas e, para os mais jovens, das comunidades virtuais da Internet. A manutenção de contactos com familiares e amigos em Portugal, o interesse pela informação fornecida pelos meios de comunicação e os programas noticiosos portugueses, o uso da língua portuguesa, bem como a valorização e o consumo de comida portuguesa são aspetos comuns entre os migrantes portugueses, tal como, em termos gerais, entre as comunidades migrantes de outras nacionalidades.[15] E o mesmo se pode dizer a propósito da prática, da identificação e do consumo de desporto, que no caso destas comunidades diaspóricas é praticamente um sinónimo de futebol.

O recente declínio do número de membros das associações portuguesas é notório em todos os locais que estudámos no Norte da Alemanha. ­Hamburgo não constitui exceção. As associações que continuam a existir funcionam também, com frequência, como bares ou restaurantes para clientes não portugueses. Existe na Alemanha um total de 140 associações, 17 missões católicas e 39 grupos folclóricos portugueses. Porém, tal como se verifica noutras áreas urbanas, como Hanôver, também em Hamburgo a cultura portuguesa é hoje predominantemente representada pela gastronomia, mais do que pelas associações de emigrantes portugueses. O grau de visibilidade dependerá da densidade populacional local de imigrantes portugueses e seus descendentes. Assim, Hamburgo constitui um caso exemplar em termos de representação e predomínio da gastronomia portuguesa, mas, ao mesmo tempo, é também um exemplo do recente declínio das associações portuguesas e da sua fragilidade estrutural e organizativa, não obstante a grande dimensão da comunidade lusa. O futebol tem um papel assinalável como elemento aglutinador dessa comunidade. Se aqui décadas os portugueses se reuniam nas associações de imigrantes, ­atualmente encontram um substituto no campo de futebol ou em frente ao ecrã da televisão. O futebol é uma parte importante da vida diaspórica portuguesa na Alemanha enquanto atividade de lazer, de consumo e de identificação, e também como atividade com fins económicos. Nos feriados anuais (sobretudo no Dia de Portugal) e nas festas portuguesas (os chamados bailes), os jogos de futebol constituem um elemento chave, assim como a gastronomia portuguesa, ao passo que os ranchos folclóricos são apenas chamados a participar nas ocasiões mais importantes.

Devido à constante falta de jogadores, estas equipas de futebol não integram apenas membros portugueses, mas também jogadores de outras nacionalidades. Do mesmo modo, muitos portugueses que jogam em equipas gregas, ­espanholas, turcas ou alemãs. Consequentemente, a língua franca nos clubes de futebol portugueses é o alemão e não o português. Os jogos da primeira divisão portuguesa são apenas transmitidos nos estabelecimentos portugueses (e raramente noutros espaços públicos ou semipúblicos). Aqui, são também transmitidos jogos de outras ligas nacionais (a espanhola, por exemplo), em atenção ao caráter misto da clientela e devido a uma vontade deliberada de atrair mais espanhóis. O convívio entre portugueses e espanhóis é particularmente forte em Hamburgo e Hanôver, um facto que se manifestou também, durante os jogos do Euro 2008, na escolha da segunda equipa a apoiar, caso Portugal não conseguisse chegar à final. Quanto a este segundo apoio, a Espanha, com 35,2% de apoiantes, surgia em segundo lugar, logo a seguir à Alemanha, com 36,4%.

Quando lhes perguntámos se estavam informados sobre o futebol, ­apenas 16,4% dos entrevistados responderam nunca ou raramente. Quanto a este aspeto, a televisão portuguesa, a família, os amigos, os membros das ­associações e a Internet foram referidos como as principais fontes de informação. Na sua grande maioria, os entrevistados afirmaram apoiar Portugal e os clubes portugueses nos campeonatos internacionais, ainda que não fossem adeptos desses clubes em geral. Assim, a principal razão é o simples desejo de ver uma equipa portuguesa a alcançar sucesso internacional, porque somos portugueses, sobretudo no que toca ao futebol. No que diz respeito a apoiar as equipas de futebol alemãs, observámos que a maioria dos portugueses se mantinha leal à sua região de residência, apoiando as equipas locais ou regionais. A identificação com a região ou o contexto local parece ser muito mais importante do que um sentido geral de pertença à Alemanha.

A abertura a outras culturas é evidente, tanto no que diz respeito às atividades de lazer comuns, como em termos de uma adaptação aos hábitos alimentares do país de acolhimento. Isto parece constituir um desenvolvimento natural, resultante da permanência de várias décadas dos imigrantes portugueses em Hamburgo e da dimensão relativamente pequena da sua comunidade, o que conduz a uma interação mais intensiva com indivíduos de outras nacionalidades. Entre os traços comuns que observámos em todos os contextos alemães estudados conta- se o declínio da importância da língua portuguesa e da participação voluntária de diferentes gerações nos clubes portugueses, com a exceção do clube desportivo Casa do Sporting de Hamburgo, onde o futebol funciona como um interface para os luso-descendentes. Ainda que estes se vejam a si próprios como híbridos que sentem uma relação mais próxima ou com a cultura de acolhimento alemã ou com a cultura portuguesa que herdaram, nenhum deles nega ou recusa as suas raízes portuguesas ou alemãs.

Conclusão: respostas afirmativas ao emigrant scripte imperativos de integração no domínio do lazer O presente artigo mostra que as equipas de futebol regionais ou amadoras fundadas por imigrantes portugueses ou luso-descendentes desempenham um papel ativo na paisagem dos clubes de futebol da cidade de Hamburgo e funcionam frequentemente como um interface para intercâmbios multiculturais. Para muitos portugueses, assistir a jogos de futebol do país de origem constitui um modo de coabitação, uma das principais atividades praticadas entre as comunidades portuguesas e um importante elemento económico dos seus estabelecimentos gastronómicos, onde se observa um sincretismo entre a cozinha tradicional portuguesa e elementos espanhóis e alemães, com vista a satisfazer os desejos e as preferências de uma clientela predominantemente não portuguesa.

Como explicámos na primeira parte deste estudo, os migrantes portugueses são alvo dos discursos governamental e populares portugueses e de imperativos de integração alemães.

A gastronomia e o futebol portugueses surgem como espaços socioculturais privilegiados que funcionam simultaneamente como um contexto para performances de pertença a Portugal e como espaços sociais para a interação cultural. Aqui, o desejo de manter e reproduzir elementos de uma cultura de origem diversamente narrada, debatida e imaginada encontra um terreno comum no convívio com indivíduos de outras nacionalidades, ao mesmo tempo que se abre à integração de elementos culturais e de parceiros de interação dos seus contextos locais. Nas suas formas gastronómicas comercializadas, a cozinha portuguesa sofreu, por razões económicas, um processo de hibridização com elementos sobretudo alemães e espanhóis, o que demonstra a integração no seu contexto diaspórico específico.

Aquilo a que Lubkemann (2002) chamou emigrant script continua vigente hoje em dia: espera-se que os emigrantes permaneçam leais e ligados ao seu país de origem, não obstante uma ausência cuja principal característica é o seu caráter em grande medida involuntário (Noivo 2002: 264). Tomando em consideração estes estudos anteriores, procurámos compreender de que modos os imigrantes portugueses na Alemanha exprimem em público o seu sentido de pertença nacional. De que modo partilham e demonstram uma lealdade (que se espera duradoura) a Portugal? Uma importante ocasião social para tais performances públicas é proporcionada pela transmissão internacional de eventos futebolísticos que, neste caso, envolvem clubes, jogadores e treinadores portugueses e, ainda mais proeminentemente neste contexto, a participação da seleção nacional portuguesa no palco internacional dos mega-eventos futebolísticos. Tais ocasiões lançam uma breve mas intensa luz sobre as minorias portuguesas. No futebol, Portugal é um jogador global altamente desenvolvido, moderno e bem-sucedido. Durante os megaeventos de futebol, também as câmaras de televisão dos principais canais portugueses são apontadas aos emigrantes, que se apresentam a si próprios (mais visivelmente desde que o treinador brasileiro Scolari promoveu esta carnavalesca moda durante o Euro 2004) adornados com as cores vermelha e verde da seleção portuguesa. Como afirmou um dos nossos entrevistados do sexo masculino em Hamburgo, que acabara de se queixar de que em Portugal nada funciona como deve ser, tirando a comida e o clima: No que toca ao futebol, somos sempre os ‘bons portugueses'! Na Alemanha, a formação social do futebol português (para uma ­conceptualização do termo, veja-se Domingos, bem como Tiesler, neste volume) sublinha o seu caráter transnacional de uma forma que é também específica a este contexto diaspórico: o futebol amador português tornou-se um fórum internacional de jogadores de diferentes nacionalidades, onde o ­alemão ­funciona como a língua franca. A identificação futebolística entre os portugueses introduziu um elemento translocal diaspórico específico: um apoio secundário aos clubes alemães locais e à seleção nacional do país de acolhimento pode ser observado, a par de uma aparentemente eterna lealdade à ' e paixão pela ' seleção nacional portuguesa e às equipas da primeira divisão de ­Portugal. Tendo em conta este potencial para a performance da dupla pertença e integração, acreditamos que não é coincidência o facto de o futebol e a gastronomia se terem tornado os elementos mais visíveis da cultura popular na vida quotidiana da diáspora portuguesa na Alemanha.


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