Plagues and Epidemics: Infected Spaces, Past and Present
D. Ann Herring e Alan C. Swedlund (orgs.), Plagues and Epidemics: Infected
Spaces, Past and Present. Oxford e Nova Iorque, Berg, 2010, 417 páginas, ISBN:
978-184-788-547-0.
Mónica Saavedra
CRIA-IUL, Portugal, maamsaa@gmail.com
Epidemias e pestes são o fio condutor das reflexões que compõem este trabalho
coletivo, resultado do encontro realizado em Tucson, Arizona (EUA), em setembro
de 2007, entre antropólogos e outros investigadores que trabalham sobre
questões sociais da saúde. Trata-se de um conjunto de artigos sobre doenças tão
diferentes como a gripe de 1918, a gripe aviária, o kuru (um tipo de
encefalopatia), o VIH-SIDA, a febre-amarela, a malária, o dengue, e em lugares
tão diversos como o Brasil, os EUA, Gibraltar, o México, a Papua Nova Guiné, a
Nova Zelândia, o Vietname, etc. Este conjunto de materiais problematiza a
articulação entre as escalas internacional, nacional e local na abordagem às
epidemias, revelando a fragmentação e desigualdade subjacentes à globalização
da ecologia das doenças. Não apresenta, no entanto, casos do continente
africano, terreno de vários trabalhos das ciências sociais sobre medicina e
saúde, nomeadamente sobre VIH-SIDA, alguns com uma abordagem transdisciplinar.
Esta ausência é, de resto, reconhecida no capítulo introdutório; contudo, é
explicada pela intenção de reunir em Tucson propostas inovadoras de abordagem
às epidemias e não trabalhos específicos representativos de doenças ou áreas
geográficas. Interrogamo-nos se não existem trabalhos inovadores sobre o
contexto africano
Epidemias e doenças infeciosas surgem como uma temática candente para as
angústias epidemiológicas do século XXI, ante a publicitação de infeções
emergentes e reemergentes, bactérias resistentes, vírus lentos, pandemias
iminentes. Este livro pretende tornar visíveis os desafios que se colocam à
abordagem antropológica num ambiente de ameaças globais, contribuindo para o
debate da relação da antropologia com a epidemiologia e a saúde pública, no
contexto das políticas internacionais de saúde. Enfatiza ainda a pertinência de
uma perspetiva abrangente sobre as epidemias, sugerindo a importância da
antropologia no afinamento de estratégias de intervenção em saúde pública que
integrem as ações desenvolvidas pelas comunidades, a partir das suas perceções
e conceções sobre as doenças.
A diversidade de casos históricos e etnográficos sustenta a intenção manifesta
desta coletânea de constituir uma contracorrente à balcanização do pensamento
académico e às divisões na antropologia (p. 2). Sem terem sido produzidos em
articulação uns com os outros ou em diálogo comparativo conjunto, constituem um
todo coerente, mostrando as possibilidades de convergência de abordagens e
metodologias diversas.
Esta colectânea defende a cooperação entre os diversos ramos da antropologia e
constitui um exemplo da sua importância para uma perspetiva alargada da
humanidade (p. 2), num mundo de especializações que, por vezes, não dão conta
da multiplicidade e da diversidade. Mostra ainda a possibilidade de a
antropologia se reinventar, repensando instrumentos analíticos e metodologias
de acordo com os desafios que se lhe colocam no terreno e apresentando-se com
um potencial de intervenção, nomeadamente através do trabalho etnográfico.
Este trabalho conjunto reflete sobre a complexidade das epidemias e das pestes,
enfatizando a multiplicidade de significados (com os seus ecos do passado e
dinâmicas históricas) que lhes são atribuídos pelos atores envolvidos,
nomeadamente aqueles que decorrem de experiências pessoais e localizadas dos
indivíduos e das comunidades. Transversal ao conjunto dos trabalhos é também a
crítica à tendência para abordar as epidemias como acontecimentos únicos e
demarcados no espaço e no tempo; uma espécie de acidentes epidemiológicos.
Realçam, em alternativa, a importância de compreendê-las como fenómenos
múltiplos e confluentes, com repercussões no futuro dos indivíduos e das
comunidades que afetam. O enquadramento e a contextualização das doenças
enquanto fenómenos social, política, económica e historicamente determinados
são noções chave neste livro. Esta perspetiva surge quase como uma
epistemologia, na medida em que condiciona as questões colocadas na abordagem
aos problemas da saúde e o que se considera relevante para a compreensão das
questões epidemiológicas.
Nesta lógica de diversidade e multiplicidade, realça-se a importância da
diversificação de metodologias na abordagem às epidemias, articulando métodos
quantitativos e qualitativos. As epidemias não são redutíveis aos números das
estatísticas. Compreendem escolhas pessoais, comportamentos individuais
inscritos em redes sociais intrincadas, contextos históricos, culturais,
económicos, políticos; mas também emoções, cruzando-se e confundindo-se com os
ciclos de vergonha e culpa, discursos estigmatizantes, isolamento dos doentes,
medo do contágio e cenários de fim do mundo (p. 4) associados às pestes.
Num contexto de diversidade e desigualdade, compreendido na convergência
epidemiológica global, Plagues and Epidemics coloca(-nos) diversas
interrogações: quem define as epidemias e com que critérios? Como são
descartadas outras explicações e como interagem modelos explicativos diversos?
Quais os processos subjacentes ao estabelecimento de explicações consensuais?
Nestas explicações carregadas de significados, como se cruzam instituições e
organismos governamentais, globais e locais com o quotidiano dos indivíduos?
Referindo-se à problemática dos processos da definição das epidemias, bem como
às experiências pessoais e comunitárias das doenças e seus condicionalismos,
este livro apresenta-se como um contributo para o desenvolvimento de teorização
e análise sobre a problemática das doenças infeciosas emergentes, na
antropologia. Como fica dito na introdução, identifica-se, em certa medida, com
as propostas da antropologia das doenças infeciosas introduzida por Marcia
Inhorn e Peter Brown, no início da década de 90 do século XX, empenhada numa
abordagem holista que aproveitasse os enquadramentos teóricos da antropologia
em geral. Mas oferece, igualmente, vias de diálogo e comparação com trabalhos
da epidemiologia e da antropologia médica anglófonas, que desenvolvem uma
perspetiva crítica à epidemiologia, alguns dos quais são referidos ao longo
deste livro. Contudo, este diálogo não é explicitado, deixando também de fora
as propostas analíticas da epidemiologia crítica e da medicina social,
avançadas por investigadores da América Latina (a contribuição de Arachu
Castro, Yasmin Khawja e James Johnston, neste livro, é um exemplo concreto
desta afinidade), o que levanta questões sobre os limites da desbalcanização
proposta neste livro, ditados, entre outros fatores, pela reduzida visibilidade
dos trabalhos produzidos em línguas que não o inglês, mas também sobre as
tendências dominantes dentro da antropologia e o que as determina, bem como
sobre divergências teóricas, potencialmente suscitadas pela epidemiologia
crítica, de inspiração marxista.
A complexificação das noções de epidemia e peste encontra enquadramento
conceptual nas noções de sindemia (syndemic) e ecossindemia (ecosyndemic),
presentes ao longo deste livro. Trata-se de conceitos forjados na antropologia
médica por Merrill Singer, cuja contribuição nesta coletânea passa por uma
síntese sobre as potencialidades da sua operacionalização, referindo a sua
difusão para a epidemiologia e a saúde pública (palavras de Singer, p. 25). O
conceito de sindemia é, de resto, reconhecido pela epidemiologia (veja-se, por
exemplo, o trabalho de Francisco Inácio Bastos, de 2006, AIDS na Terceira
Década, publicado pela Fiocruz) como a súmula das sinergias entre fatores
sociais, políticos, económicos, ambientais e ação humana, determinantes para a
saúde das populações.
O enquadramento na antropologia médica, bem como a ênfase dada nesta coletânea
às desigualdades sociais, à dimensão política e às experiências individuais e
coletivas das epidemias justificaria uma articulação ' ainda que crítica ou
alternativa e apresentando-se como um passo em frente ' com os conceitos de
violência estrutural e de sofrimento social desenvolvidos por Paul Farmer
(cujos trabalhos são mencionados neste livro), Veena Das, Arthur Kleinman e
outros. Estes conceitos remetem não só para o peso das desigualdades sociais e
das relações de poder na saúde dos indivíduos e das comunidades, mas também
para os mecanismos de desigualdade e opressão consolidados ao longo de
processos históricos seculares e incorporados no quotidiano daqueles que vivem
em contextos de pobreza e privação, influenciando a distribuição das doenças
infeciosas, bem como as respostas institucionais, comunitárias e pessoais a
estas.
Plagues and Epidemics é uma coletânea coerente e aliciante, com momentos
empolgantes de etnografia, que dão corpo e emoções às epidemias de hoje e de
ontem, mostrando a variação caleidoscópica que compõe a nossa condição de
humanos, num mundo dominado por metáforas de risco e ameaças.