Razões de Saúde: Poder e Administração do Corpo; Vacinas, Alimentose
Medicamentos
Manuela Ivone Cunha e Jean-Yves Durand (orgs.),Razões de Saúde: Poder e
Administração do Corpo; Vacinas, Alimentose Medicamentos, Lisboa, Fim de
Século, 2011, 230 páginas, ISBN: 9789727542826.
Catarina Frois
Centro em Rede de Investigação em Antropologia, ISCTE ' Instituto Universitário
de Lisboa, Portugal, catarina.frois@netcabo.pt
Tenho aprendido muito com o povo. Nele, as coisas que dão à vida a inesgotável
grandeza não foram ainda violadas nem empobrecidas. O instinto do povo guarda-
lhes o mistério e a seiva. Ainda hoje, na consulta, ao insistir com um aldeão
para que me descrevesse o seu mal, ele, por fim, disse-me: É a natureza
comida. A natureza ' o sexo. Deem-me tratados onde se atinja esta sabedoria e
esta serena humildade (Fernando Namora, Domingo à Tarde).
Razões de Saúde: Poder e Administração do Corpo; Vacinas, Alimentos e
Medicamentos é uma coletânea organizada por Manuela Ivone Cunha e Jean-Yves
Durand, e reúne um conjunto de ensaios centrados em dois grandes domínios: o da
perceção e consciência do sujeito e da autonomia das suas decisões em relação
ao seu próprio corpo e, para além disso, o do modo como essas mesmas decisões
revelam e traduzem, em determinados contextos, uma agencialidade política, uma
consciência cívica que contraria o status quo dominante.
Devem ser salientadas, à partida, as mais-valias que esta obra apresenta: é um
estudo inovador sobre a gestão do corpo na área da medicina e da terapêutica,
convencionais ou alternativas; a abordagem etnográfica é centrada na sua
grande maioria no contexto português, permitindo assim contrastar com obra e
teoria produzida sobretudo na academia anglo-saxónica; por fim, proporciona um
encontro de perspetivas multidisciplinares que partilham quer o tema, quer os
saberes e as metodologias que lhe são específicas. Podemos, neste último ponto,
afirmar que a multidisciplinaridade é hoje uma quase obrigatória presença em
volumes coletivos, no sentido em que se tornou prática corrente. Ora, neste
caso, tem-se claramente a perceção de que os organizadores deste livro tiveram
a consciência de que os espaços em que se moviam reclamavam uma abordagem
holística, uma vez que são, já de si, lugares de confluência de diferentes
profissionais.
Consideremos, a título de exemplo, como lugar de observação um centro de saúde
para onde se dirigem diariamente dezenas de pessoas com o propósito de
consultar um médico ou requerer serviços de enfermagem. Esse é, por excelência,
um lugar onde se encontram médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes
sociais e também, neste caso, o antropólogo, o etnógrafo. Aqui, não é apenas a
ciência que impõe um olhar multidisciplinar, é o próprio objeto de estudo que
exige que esse olhar esteja em permanente diálogo com diferentes disciplinas.
Esta ideia é especialmente pertinente se tivermos em conta que não é somente o
etnógrafo que faz um esforço de compreensão transversal ao objeto, são os
próprios utentes dos serviços médicos que a dado momento absorvem, incorporam e
racionalizam um discurso médico-científico, formulando um autodiagnóstico, uma
compreensão da sua doença e do melhor modo de a tratar, adaptando e até
corrigindo a terapêutica que lhes é prescrita.
Uma última nota a propósito dos espaços de análise desta obra e da sua
relevância para a produção científica desta área: a ênfase no contexto
português, a que corresponde grande parte dos ensaios aqui apresentados. Seria
demasiado óbvio constatarmos a priori que temas como a vacinação ou a autonomia
do sujeito face à doença diferem grandemente em Portugal ou nos Estados Unidos
da América. Se, no primeiro, existe um Plano Nacional de Vacinação
recomendado, mas que se assume de facto como obrigatório, no segundo cabe a
cada pessoa decidir qual a opção que segue face a esta questão. Porém, é só
mediante esta observação cuidada do contexto português que nos é permitido
discutir com propriedade teorias resultantes de investigação produzidas noutros
contextos. Ao inseri-las num determinado locus histórico, cultural, social e
económico, estamos de imediato a demonstrar que a sua aplicação indiferenciada
tende a ser incongruente e até mesmo desajustada.
A obra está dividida em duas partes. Numa primeira, temos acesso a uma
diversidade de ensaios que giram em torno do conhecimento médico-científico,
num contexto de lógica política e interação entre médico e paciente, com os
textos de Sylvie Fainzang sobre terapêutica, de Cristiana Bastos focando a
sida, e de Emily Martin sobre o sono; noutra vertente, surge ainda a
automedicação e a saúde mental no campo das toxicodependências e da anorexia,
com os textos de Luís Fernandes e de Ana Cristina Martins. Estes dois últimos
textos diferenciam-se dos restantes na medida em que o consumo de drogas
psicoativas, para além da manifestação de um comportamento autodestrutivo, é um
dos exemplos paradigmáticos do modo como a ingestão de drogas é, por si mesma,
uma autoterapia, a identificação de um mal ' entre outras características, a
doença da adicção define-se pelos comportamentos obsessivos e compulsivos ' e a
escolha de um remédio, neste caso ilegal e que por sua vez desencadeia todo
um processo terapêutico paralelo, através da medicina convencional.[1]
A segunda parte do livro é totalmente consagrada ao tema da vacinação, com
textos de Mónica Saavedra, Anne Marie Mourin, Manuela Ivone Cunha e Jean-Yves
Durand, e apresenta exemplos do modo como esta prática médica é, por um lado,
largamente aceite pela população e, por outro lado, questionada e até mesmo
rejeitada em prol de diferentes tipos de conduta e de gestão do corpo, como por
exemplo através da alimentação macrobiótica, como reflete Virgínia Calado.
É importante termos em conta que, ao falarmos sobre vacinação, neste livro
estamos sobretudo a considerar a vacinação de crianças. Nesse sentido, os
interlocutores privilegiados foram pais com crianças menores, que se confrontam
com essa questão. Se é sobretudo nestas idades que a vacinação assume um papel
mais presente ao nível da preocupação dos prestadores de cuidados de saúde, é
também nesta fase que os pais assumem consciente ou inconscientemente uma
tomada de posição. O texto de Maria José Casa-Nova ilustra bem esta ambiguidade
no contexto de famílias ciganas, em que existem crianças que não são vacinadas
por descuido ou desinteresse da família (ideias manifestadas por alguns
interlocutores da autora), mas, para outras, é o inverso que é privilegiado:
vacinar é a expressão do cuidado, da proteção, mesmo quando implica a compra de
vacinas que não são comparticipadas pelo Estado mas que se considera serem uma
prevenção, um cuidado extra que se tem para com as crianças.
A questão da vacinação demonstra a sua complexidade ' e talvez sejam os textos
de Virgínia Calado e de Manuela Ivone Cunha e Jean-Yves Durand os que melhor a
explicitam ' no âmbito da recusa da vacinação enquanto expressão de
agencialidade política. Tal acontece no sentido em que são aqueles que têm um
maior conhecimento sobre os propósitos e efeitos da vacinação que a questionam
e põem em causa todo o sistema político hegemónico no qual esse plano está
inserido. Vacinar não representa então um cuidado acrescido, mas antes um risco
desnecessário, e a autoridade médica é desafiada nos seus preceitos e
convicções. Não vacinar, para além de uma escolha, torna-se um ato de
resistência rara no contexto português. Assim, não estamos a falar de uma
lógica economicista, como sucede noutros países, mas antes na consciência de si
próprio e da gestão do corpo, na saúde e na doença. Ora, estamos antes de mais
perante um tema que provoca e espoleta toda uma série de inquietações, não só
em termos teóricos e académicos, mas também ao nível da sociedade civil, da
comunidade médica e dos decisores políticos. Neste sentido, esta é uma obra que
tem a potencialidade de catapultar essa discussão e contribuir para um
conhecimento informado que não se confine nem à coleta de informação ad hoc e
acrítica, nem à partilha de um modelo que, na prática, se desconhece.
NOTAS
[1] Gregory Bateson, numa obra de 1972, Steps to an Echology of Mind
(University of Chicago Press) reconhecia precisamente este paradoxo: o
alcoólico bebe como resposta à sua doença, mas, quando é tratado do alcoolismo,
não estará a medicina a trazê-lo novamente para a condição de doente?