Mimetismo colonial e reprodução animal: carneiros caracul no Sudoeste angolano
Mimetismo colonial e reprodução animal: carneiros caracul no Sudoeste angolano
Colonial mimesis and animal reproduction: Karakul sheep in Southwestern Angola
Tiago Saraiva*
*Department of History, Drexel University, USA. E-mail: tsaraiva@drexel.edu
ABSTRACT
This text explores the connected reproduction stories of Portuguese settlers
and karakul sheep in Southwest Angola. It follows the karakul trail from South
West Africa (SWA) under German occupation into the desert of Moçâmedes, making
use of mimesis as a concept to understand colonial practices in the Third
Portuguese Empire. The Karakul Experiment Station (Posto Experimental do
Caracul) founded in 1948 is taken as a site for testing such practices through
its combination of experiments on sheep artificial insemination as well as on
colonial sociabilities. The layout of the Station, with laboratories side by
side with an indigenous village that replicated a Kuvale onganda, was the
first materialization of the new colonial society to emerge out of karakul
production. The appropriation by Gilberto Freyre of karakul as embodiment of
luso-tropicalism makes these sheep good things to think with in inquires on the
nature of Portuguese colonialism.
Keywords: karakul, Southwest Angola, Gilberto Freyre, mimesis, Kuvale,
settlers.
O Sudoeste angolano ocupa lugar de destaque nas narrativas sobre o Terceiro
Império Português.[1] Quer nas memórias de tom rosa que prolongam o mito de
Moçâmedes e Sá da Bandeira ' atuais Namibe e Lubango ' como cidades-modelo da
colonização branca, quer nas crónicas que denunciam o caráter violento da
presença portuguesa em África, a região surge como cenário privilegiado do
confronto entre o nomadismo nativo e o sedentarismo colonizador.[2] Desde
meados do século XIX que proliferam as descrições que fizeram do planalto da
Huíla o destino natural de qualquer política de povoamento branco em Angola,
reiterando à exaustão as semelhanças ambientais com o clima temperado da
metrópole, poupando o intrépido colono às mais temidas doenças tropicais
(Almeida 1912; Medeiros 1976; Castelo 2007; Bastos 2011). Esse mesmo clima que
impediu que a zona participasse das bonanças dos ciclos da borracha ou do café
prometia, em alternativa às grandes plantações, pequenas e médias propriedades
exploradas por agricultores brancos dedicados à horticultura e fruticultura. As
tentativas de reprodução da metrópole em África chegariam ao paroxismo em
colonatos como o da Matala, construído já no princípio dos anos 50 do século
XX, onde uma moderna infraestrutura de irrigação fazia o aproveitamento das
águas do Cunene para garantir a aclimatação de aldeias portuguesas no trópico,
santos e ranchos folclóricos incluídos (Vieira 1967; Feio 1998). Estes
elementos, tão caros à revisitação da cultura popular por parte do regime
salazarista (Melo 2001), acentuavam o contraste entre o apego português à terra
e a mobilidade e desprendimento dos pastores nómadas locais. Às grandes manadas
dos nyaneka-nkhumbi, ambó e kuvales, os colonos opunham couves, morangos e
flores. Ou, dito de outra forma, o complexo do gado de Evans-Pritchard (1965
[1940]) confrontava o complexo hortofrutícola português.
Claro está que tudo é sempre mais complicado. A história da região não se conta
com a substituição de um complexo por outro, da pastorícia africana pela
agricultura europeia. Afinal, os mais bem-sucedidos colonos de Sá da Bandeira
construíram a sua fortuna a partir do comércio com pastores locais, recebendo
muitas vezes gado como forma de pagamento (E. Carvalho 1974; Medeiros 1976).
Durante toda a primeira metade do século XX, o gado era mantido integrado em
manadas africanas para venda ulterior, ou como mera acumulação de capital.
Basta estar atento a estas práticas para que a história colonial construída à
volta da diferença, materializada em pares de opostos como nativo / colono, ou
nómada / sedentário, perca a sua aparente linearidade.[3] A partir da década de
1950 esses mesmos comerciantes de Sá da Bandeira começaram a adquirir grandes
extensões de terras, com propriedades da ordem das dezenas de milhares de
hectares, onde exploravam manadas próprias segundo os critérios estabelecidos
pela zootecnia europeia. Mesmo os projetos estatais de irrigação ligados ao
aproveitamento da bacia do Cunene passaram a insistir, a partir da década de
1960, muito mais na capacidade de produção de forragens para o gado
proporcionada pela disponibilidade de água, do que na policultura destinada a
sustentar pequenos povoamentos reprodutores de Trás-os-Montes e das Beiras em
Angola (Feio 1998).
Se os antropólogos, na senda de Evans-Pritchard, exploraram até à exaustão as
formas de organização das sociedades nativas à volta de bois ' o referido
complexo do gado, ou, como preferia dizer Ruy Duarte de Carvalho (1997), o boi
social ' já os historiadores não têm sido suficientemente simétricos para
levar a sério a importância dos animais não humanos na construção de
sociabilidades coloniais. É talvez no campo dos estudos de ciência que se
encontram as propostas mais interessantes e arriscadas sobre o papel dos não
humanos nas sociedades contemporâneas, resumidas por Donna Haraway (2008) com a
provocação nunca fomos humanos. O presente texto, inspirando-se na
metodologia sugerida por Sarah Franklin (2007), de simplesmente seguir os
itinerários das ovelhas entre nação e colónia, passando por concursos de gado e
laboratórios, centra também a sua narrativa nos animais não humanos, neste caso
nas ovelhas caracul,[4] explorando práticas miméticas em torno destas e
sugerindo o poder da mimese para iluminar a natureza das relações coloniais no
Sudoeste angolano. O Posto Experimental do Caracul, fundado em 1948 no deserto
de Moçâmedes, serve aqui como local de experimentação do potencial do conceito
de mimese. Neste sentido, abordo o Posto Experimental do Caracul como um espaço
performativo de três operações miméticas distintas: a mimese de outros impérios
europeus; a mimese da sociabilidade nativa; e a mimese da sociabilidade
portuguesa. Pretende-se olhar o espaço físico do posto, ovelhas incluídas, como
um laboratório no qual são testadas, produzidas e reproduzidas relações
coloniais estabelecidas por meio de práticas miméticas.
A atenção dada à mimese pelos estudos pós-coloniais, na senda de Homi Bhabha
(1984), tem como um dos seus principais méritos o de complicar a relação
colonial, antes percebida apenas em termos de diferença, ou do outro, dando
a conhecer o potencial emancipador desses híbridos negros que mimetizam de
forma exagerada (mimicry) as formas dos brancos. Aqui, mais do que reconhecer
formas miméticas de emancipação, seguem-se antes os percursos mais sombrios de
Michael Taussig (1987, 1993) e o seu recurso à mimese para dar sentido às
práticas de terror associadas à extração de borracha no Sudoeste da Colômbia e
no Congo Belga.[5] Na versão de Taussig, e em sentido oposto ao de Bhabha, o
terror colonial é uma operação de mimese por parte do colonizador, tendo por
base a reprodução de imagens do indígena como o selvagem que não hesita em
decapitar cabeças e decepar mãos. Por mais tosca e pouco fiável que seja a
imagem produzida, esta guia a ação mimética do colonizador, cuja violência
derivaria assim da selvajaria indígena. Pouco importa se os nativos realmente
atuam como os colonizadores os descrevem, ou se os judeus ' como também indica
Taussig, a partir da sua leitura de Adorno e Horkheimer ' têm alguma semelhança
com as caricaturas que os nazis deles faziam. Ainda segundo Taussig, para os
colonizadores trata-se de ser tão selvagem e incivilizado como as imagens
afirmam que índios o são, usando os alegados métodos de índios contra os
próprios como única forma de relacionamento possível com raças inferiores.
Para Taussig, a mimese dá conta do poder das imagens, da forma como estas atuam
no mundo. Neste texto, o Posto Experimental do Caracul é visto como
materialização do tipo de mimese colonial conceptualizado por Taussig. A sua
constituição física é resultado em grande parte das imagens toscas das
sociedades nativas produzidas pelo cientista responsável pelo posto. Mais
importante: as práticas científicas levadas a cabo no posto, ao reproduzirem
ovelhas caracul pelo uso intensivo de técnicas de inseminação artificial,
sugerem a relevância do papel da ciência na materialização desses processos
miméticos. Cruza-se assim a literatura dos estudos de ciência sobre não humanos
com a atenção dada à mimese pela antropologia, depositando-se na ciência e nas
suas instituições, representadas pelo Posto Experimental, a capacidade
performativa da mimese colonial. A mimese e o seu perigoso empobrecimento do
mundo, ao simplificar o real em imagens e conduzindo às ações violentas de que
fala Taussig, são, assim, percebidos como resultado de práticas científicas
concretas, constituindo-se o posto como um verdadeiro laboratório de mimetismo.
[6]
Violência colonial transnacional
Mas voltemos aos bois do Sudoeste angolano, agora pela mão de René Pélissier,
um dos mais informados autores do coração das trevas português (Pélissier 1997:
267-275). No ano de 1940, um funante[7] de Moçâmedes, depois de embriagar três
kuvales que terão adormecido pelos efeitos da mistela oferecida pelo português,
mandou marcar os seus bois como forma de resgate de dívidas anteriores.[8] Após
despertarem, os kuvales seguem no encalço dos seus animais, matam dois criados
do português e ficam com a totalidade da manada. O episódio tem o seu desenlace
na chegada de dois destacamentos do exército português de cerca de mil soldados
e outros tantos auxiliares africanos, além de dois aviões equipados com
metralhadoras, mobilizados para pôr fim aos alegados roubos de gado. Entre
setembro de 1940 e fevereiro de 1941 dá-se uma autêntica caça ao kuvale por
toda a faixa semidesértica do Sul de Angola, entre o oceano e a serra da Chela,
tendo sido feitos 3500 prisioneiros entre homens, mulheres e crianças, numa
população kuvale que não contaria mais de 5000 indivíduos. Além das cenas de
violência abjeta durante o cativeiro, incluindo matanças indiscriminadas, 600
homens terão sido enviados para as roças de cacau de São Tomé, outros tantos
para a Diamang e para a colónia penitenciária de Damba, e 70 cedidos à Câmara
Municipal de Moçâmedes. Quanto aos bois, a maior parte das cerca de 46.000
cabeças de gado apreendidas terá engrossado os rebanhos dos grandes
proprietários brancos de Sá da Bandeira. Acusam-se os kuvales de serem ladrões
inveterados de gado para no fim se lhes roubar os bois. Esta violência colonial
emerge assim, tal como nos cenários de terror colonial analisados por Michael
Taussig, como a resposta adequada à barbárie imaginada dos nativos.
O enredo invoca muitas outras experiências de colonização branca, e não seria
difícil estabelecer comparações com as histórias violentas de fronteira na
América do Norte, na Argentina, ou na Austrália (Netz 2004: 39-55; Griffiths
1997). Contudo, talvez mais interessante e pertinente do que insistir na
tendência analítica da história comparativa dos diferentes impérios será seguir
as relações históricas concretas que ligam o genocídio dos kuvale ao extermínio
dos herero pelas tropas imperiais do Kaiser comandadas pelo general Von
Trotha, entre 1904 e 1907, no território do Sudoeste Africano alemão, a atual
Namíbia (Zimmerer 2005, 2011; Gerwarth e Malinowski 2009). A continuidade com o
caso angolano, além da óbvia proximidade geográfica, resulta ainda de os kuvale
serem também herero[9] e, ainda, de os argumentos justificativos da repressão
dos kuvale parecerem decalcados dos da aniquilação dos herero.
Na Namíbia, tal como no Sudoeste de Angola, a produção e criação de caracul
esteve associada às dinâmicas de violência da ocupação e colonização alemã das
terras herero. Já em 1900 o missionário Peter Heinrich Brincker descrevia os
herero como uma nação submersa na imundície do gado, uma nação que vive apenas
para o seu gado, cujo pensamento e vontade florescem apenas para o seu gado, um
facto que é fonte constante de invejas, conflitos e infelicidades (Stoecker
1986: 62). Enquanto a relação dos colonos alemães com o território era
supostamente caracterizada por uma luta constante com a natureza, numa atitude
de afirmação de força de vontade que os enraizava na terra (bodenständig), os
herero não seriam mais que seres passivos, submissos à natureza e condenados à
errância para satisfazer as necessidades dos seus animais. As autoridades
alemãs podiam reconhecer que os herero eram de facto seminómadas. Mas enquanto
a sua economia estivesse baseada na acumulação indiscriminada de gado, aqueles
não deixariam de pertencer ao patamar mais baixo de civilização. A missão
civilizadora alemã consistiria então num processo de solidificação progressiva
de zonas de fronteira por meio do avanço da sedentarização (Stoecker 1986).
Após o extermínio de 80% da população herero e de 50 % dos nama, grande parte
das terras foi distribuída entre os soldados alemães desmobilizados que
formaram uma comunidade à volta da sua condição de criadores de ovelhas caracul
(Schmokel 1985; Weigend 1985). O interesse por estes animais residia no valor
das suas peles, que com o seu característico padrão encaracolado eram vendidas
em Leipzig, Londres e Nova Iorque a preços exorbitantes, destinadas sobretudo à
confeção dos luxuosos casacos de astracã (Bravenboer 2007). Além disso, a cauda
adiposa fazia das ovelhas caracul animais especialmente resistentes às
condições semidesérticas de grande parte do território da colónia. O papel dos
caraculos na ocupação de zonas de fronteira que só tardiamente despertam a
cobiça colonial está diretamente relacionado com essa sua resistência ao
ambiente adverso aí encontrado.[10] Cientistas da Universidade de Halle já
tinham tentado, sem grande sucesso, aclimatizar os caraculos aos solos pobres
do leste da Alemanha, com a intenção de libertarem os comerciantes de peles de
Leipzig das importações de peles em bruto das estepes asiáticas. Em 1909, os
mesmos cientistas seriam responsáveis por fazer chegar os caraculos ao Sudoeste
Africano, prometendo criar uma fonte de riqueza a partir da exploração do
deserto (Saraiva 2013). As ovelhas importadas por cientistas alemães, do
Turquestão para o Sudoeste Africano, viviam em extensas propriedades de mais de
5000 hectares delimitadas por arame farpado. A sua importância crescente como
fonte de rendimento (que ultrapassou a exploração de diamantes como base da
economia do território) fez dos colonos brancos uma comunidade tão centrada nos
animais e deles dependente, quanto os herero o eram dos seus bois (Weigend
1985). No final dos anos de 1940, mais de três décadas após a perda da colónia
pela Alemanha, a atividade pecuária continuava a ocupar nada menos do que 50%
dos 40.000 brancos do território (Krogh 1955).
Alegres carneiros luso-tropicais
Não pretendo aqui desenvolver em detalhe o caracul social no Sudoeste Africano
alemão, tema que já explorei noutro local (Saraiva 2013). Sugiro antes seguir a
pista do caracul para norte, atravessando o rio Cunene, que separa Angola da
Namíbia.
Após regressar de uma visita de recreio ao Sudoeste Africano em 1944, nessa
altura sob controlo da União Sul-Africana, o governador da província da Huíla,
o capitão Bustorff Silva, tratou de inquirir junto de Manuel dos Santos
Pereira, o veterinário encarregue da estação zootécnica da Humpata na zona do
planalto, sobre a possibilidade de reproduzir a experiência alemã do caracul em
Angola (Pereira 1955). Este não tardou em dar uma resposta positiva, indicando
o deserto de Moçâmedes ' a faixa entre o oceano e o planalto recentemente
pacificada após a caça ao kuvale ' como a zona mais promissora para o
empreendimento, não só pelas suas condições climáticas semelhantes às da estepe
semidesértica do Turquestão, como pela total disponibilidade de terrenos. A
admiração de Santos Pereira deixava poucas dúvidas: O SW [Sudoeste]
principalmente à custa do caracul, que constitui de longe a sua principal
riqueza, conseguiu ocupar mais de dois terços da sua árida extensão
territorial. Mais de 50% dos seus 40.000 europeus e a maioria dos seus 300.000
indígenas vivem da pecuária e indústrias derivadas [É] um símbolo e um exemplo
digno de ser imitado (Pereira 1955: 6). Tão entusiasta se revelou o
veterinário que não duvidou mesmo em trocar a vida confortável que levava no
planalto pelo isolamento do deserto, assumindo-se como diretor do Posto
Experimental do Caracul ' o PEC ' fundado em 1948 (ver figura 1). Esta seria a
instituição responsável por materializar em território angolano o exemplo
alemão, digno de ser imitado.
Um diploma publicado em 1948, no mesmo ano em que se fundara o PEC, regulava a
ocupação da reserva do caracul, definindo concessões de 5000 hectares '
exatamente a mesma dimensão, como vimos, das alemãs. Estas concessões passariam
a constituir uma fazenda particular a partir do momento em que o seu detentor
ultrapassasse os 700 ovinos, aí tivesse construído uma casa de caráter
definitivo e dispusesse ainda de, pelo menos, um encarregado que falasse e
escrevesse português (AGU 1959). A reserva ocupava cerca de nove milhões de
hectares, mais ou menos uma área equivalente a Portugal, onde se poderiam
estabelecer, segundo as contas de Santos Pereira, umas 1600 famílias brancas,
que se ocupariam do cuidado de cerca de dois milhões de ovelhas. Esta região
semidesértica ' zona totalmente por colonizar e ocupada anteriormente pelos
kuvales ' passaria então a ser uma fonte de divisas para a economia do império
português. Segundo prometia o diretor do PEC ao inefável presidente Américo
Tomás, por ocasião da I Exposição do Caracul em Lisboa, em 1959, a reserva iria
cobrir grande parte das necessidades da metrópole, que, na década de 1950,
importava nada menos que 90.000 peles anuais, mais de 11.000 delas de caracul.
[11] Mas insista-se que o significado colonial do caracul de Angola ia bem além
desta contabilidade import / export. O próprio edifício do PEC no meio do
deserto assim o indicia. O Posto Experimental foi construído com o intuito de
se constituir como a materialização primeira de um povoamento branco exemplar,
uma espécie de quinta-modelo que deveria ser replicada pelo deserto fora. O
quadriculado das concessões que ocupariam toda a área reservada deveria, pois,
expandir-se a partir do núcleo original do PEC (AGU 1959).[12]
Dada a sua relevância nos projetos de colonização do interior de Angola neste
período, o PEC não tardou em ganhar o estatuto de paragem obrigatória de todo o
visitante ilustre ao Sul de Angola, como seria o caso de Gilberto Freyre. Em
janeiro de 1952, Freyre visitou o PEC, no seu périplo por terras portuguesas da
metrópole e das colónias a convite do governo português (Freyre 1980 [1953]).
Em Aventura e Rotina: Uma Viagem à Procura das Constantes Portuguesas de
Carácter e Acção, livro em forma de diário de viagem que recolhe as impressões
e reflexões do antropólogo pernambucano, este invoca a visão inesquecível
[do] posto que junta aos currais um laboratório moderníssimo. Nas pastagens,
milhares de cabeças de gado já adaptadas ao deserto. Os cruzamentos acabaram
pela revelação de um tipo como que ecológico de carneiro. Carneiro do deserto
(Freyre 1980 [1953]: 374). Cabe aqui citar ainda o final do livro, no qual
Gilberto Freyre refere a sua entrega ao Presidente do Brasil da oferta do
Presidente da República Portuguesa de um cofre com uma rara e velha edição de
Os Lusíadas, de tal modo composto com diamantes de Angola, marfim de
Moçambique, ouro da Guiné, prata de Portugal, pérolas do Oriente português,
madeira de Cabo Verde ' que todo ele irradia Portugal, o Ultramar português, o
carinho pan-lusitano pelo Brasil (Freyre 1980 [1953]: 444). O dito cofre ia
forrado a nada mais, nada menos que pele de caracul de Angola.[13] Vale, pois,
a pena explorar esta inesperada referência de Freyre ao caracul, analisando-
a como materialização das supostas constantes portuguesas de caráter e ação
por ele avançadas. Importa, por outras palavras, investigar a natureza luso-
tropical do caracul.
Para Freyre, o carneiro ecológico era o resultado do cruzamento levado a cabo
pelos melhoradores zootécnicos das espécies introduzidas pelos portugueses com
espécies locais, formando um híbrido que demonstrava mais uma vez a capacidade
permanente de adaptação lusitana às condições encontradas nos trópicos ' a tal
constante de ação que obcecava Freyre. Um carneiro híbrido merecia do
brasileiro elogios semelhantes ao das plantas do Jardim do Ultramar de Lisboa,
que haviam levado a cabo; escrevia:
[uma] revolução no plano da sociologia da vida vegetal Novos
ajustamentos ecológicos foram conseguidos. É certo que quase sempre
tiveram essas aventuras de transplantação a favorecê-los, no sentido
como que pantropical da vida, que foi de início, e continua hoje, o
principal na atividade portuguesa no ultramar (Freyre 1980 [1953]:
19-20).
Estamos portanto perante práticas de cruzar animais e plantas que têm um
correlato direto com o pantropicalismo alegadamente característico da forma
portuguesa de estar no mundo. Num inspirado e inspirador texto de Cristiana
Bastos, o alegre luso-tropicalismo de Freyre é lido em contraponto aos
Tristes Trópicos de Lévi-Strauss, tomando o primeiro como uma tentativa de
superar a alteridade e contradição, dualismo, oposição, características da
antropologia dominada pela figura do segundo (Bastos 1998: 420).[14] A proposta
de Bastos não é, claro está, retomar o gesto de Freyre para ver continuidades
onde outros só querem ver alteridade. A autora convida-nos antes a revisitar os
ícones e temas do luso-tropicalismo, recomendando distância crítica em
relação ao mito do não racismo e do grande humanismo dos Portugueses e
propondo um ambicioso programa de trabalhos em torno dessa tão peculiar
iconografia feita de soldados de Albuquerque casando com indianas e nativos
sortidos de mãos dadas e sorrisos nos lábios (Bastos 1998: 431). O caracul,
cuja pele aconchega o relicário luso-tropicalista oferecido por Américo Tomás a
Getúlio Vargas ' com Gilberto Freyre como oficiante do ritual ', pertence de
pleno direito à família desses ícones que integram o programa de trabalhos
proposto por Bastos no final dos anos de 1990.
Tristes caraculos puro-sangue
Olhemos então mais de perto para o carneiro do deserto, para tentar superar as
visões de Freyre sobre a natureza do colonialismo português. Do que já se
disse, convém recordar que o caracul de Angola foi construído em cima da
erradicação dos kuvale e das suas manadas da faixa desértica do Sudoeste
angolano. Talvez mais grave aos olhos do luso-tropicalismo de Freyre, esta
violência portuguesa imitava as iniciativas alemãs mais a sul, na atual
Namíbia, das quais a alegria luso-tropical estava certamente ausente. Além
disso, um olhar mais atento às próprias práticas de melhoramento animal levadas
a cabo no PEC revela uma história muito diferente dos benignos cruzamentos e
miscigenações tão caros a Freyre; revela também, afinal, uma história colonial
de purificação e violência.
Qualquer exploração de caraculos tinha de começar por garantir um macho
reprodutor, cuja pureza era certificada pelos grandes centros mundiais de
genética animal, como a Universidade de Halle na Alemanha, até ao eclodir da
Segunda Guerra Mundial, ou o United States Department of Agriculture em
Washington, DC, nos anos do pós-guerra (Saraiva 2013). Foi justamente a partir
dos reprodutores certificados de Halle que a exploração de caraculos no
Sudoeste Africano alemão se desenvolveu. Apenas os dispendiosos reprodutores
puros, de linhagem certificada, garantiam os padrões de pele rizados que faziam
dos casacos de astracã um objeto de consumo de luxo. Estes reprodutores não
eram fáceis de obter, com os grandes países produtores como o Sudoeste Africano
ou a União Soviética proibindo a sua venda para evitar futura concorrência.
Uma exploração de caraculos só era viável cruzando o caro reprodutor com alguma
ovelha local barata, pois uma exploração toda feita em pureza seria
incomportável do ponto de vista comercial. Felizmente, os geneticistas haviam
já demonstrado a dominância do pelo rizado, o que possibilitava levar a cabo os
ditos cruzamentos. O tal carneiro do deserto, a que se referia Freyre, era o
resultado do cruzamento do reprodutor puro-sangue com raças locais, uma prática
que exigia o registo cuidadoso de cada um dos cruzamentos e o controlo das
cobrições, garantindo sempre que a fecundação fosse feita por um macho puro e
não por qualquer híbrido (Saraiva 2013). Registos e controlos faziam do negócio
do caracul um exclusivo branco, pondo-se completamente de lado a hipótese de
alguma vez um nativo poder levar a cabo a gestão científica de um rebanho
caracul. Não estamos então perante uma simples mistura do europeu com o
tropical, do estrangeiro com o local, ou do colonizador com o nativo. Há, neste
caso, uma necessidade imperiosa de garantir e manter a pureza do colonizador '
o carneiro caracul certificado ' para produzir cordeiros com as peles rizadas
tão do agrado das habituées dos salões de chá lisboetas. Ou, dito de outra
forma, a produção do carneiro colonial, capaz de sustentar os bravos colonos
portugueses, dependia da vigilância ativa da pureza dos reprodutores vindos da
Europa ou dos Estados Unidos. A pureza não podia desaparecer nunca num feliz
processo de aclimatação.
É revelador que uma das tarefas essenciais do PEC fosse a guarda e distribuição
dessa pureza: não só os machos reprodutores eram emprestados gratuitamente aos
donos das várias concessões, como o próprio Santos Pereira (o veterinário
responsável pelo posto) era quem desenvolvia os maiores esforços para promover
a inseminação artificial como forma eficiente de distribuir os genes dos seus
caraculos puros por toda a área de reserva do caracul. Se as fêmeas híbridas,
resultantes dos diferentes cruzamentos, podiam ser inseminadas com sémen dos
reprodutores puros, já todos os machos híbridos tinham de ser sacrificados
antes de atingir a idade de reprodução, de forma a não contaminarem o rebanho e
a não comprometer a viabilidade de toda a exploração.[15] Na verdade, todos os
cordeiros destinados à produção de peles eram sacrificados, o mais tardar, ao
segundo dia após a nascença, momento depois do qual o padrão rizado da pele se
desfazia, perdendo esta a quase totalidade do seu valor.
É difícil, pois, evitar a violência ao falar de caraculos. A própria noção de
ovelha local é uma categoria problemática. Nunca foi fácil para os
concessionários europeus obter ovelhas locais em número suficiente para
conseguir uma exploração comercialmente interessante. Além disso, os pastores
locais sempre resistiram a vender as suas ovelhas, obrigando à importação de
animais de outras paragens. Depois de várias tentativas frustradas com raças de
outras zonas de Angola, houve que despender vastas somas de dinheiro para
adquirir ovelhas do Tanganica, cuja cauda grossa, à semelhança da do caracul,
garantia a sua sobrevivência nas exigentes condições do deserto (Garutti 1951).
Apesar de toda a retórica sobre as virtudes civilizadoras do sedentarismo sobre
o nomadismo, a exploração de caraculos exigia a disponibilidade de mão-de-obra
local para pastorear os rebanhos pelos milhares de hectares das propriedades.
Criticando a pouca apetência dos kuvales para a pastorícia de ovinos e o seu
costume de reservar essa atividade para as crianças, Santos Pereira não duvidou
em sugerir que fosse o agente do curador dos indígenas da circunscrição a
fornecer mão-de-obra, reproduzindo os esquemas de trabalho forçado comuns no
mundo colonial português.[16] Na sua contabilidade, cada pastor indígena
cuidaria de 100 ovelhas, pelo que, no longo prazo, estaríamos então a falar de
20.000 pastores mobilizados para a reserva do caracul. É bom ter presente que
esta nunca era uma operação de reprodução fiel, pois a pastorícia passaria
agora a ser uma atividade estandardizada, distinta das transumâncias dos gados
kuvales. As deslocações entre as diferentes zonas das concessões eram afinal
estabelecidas por um quadro de gestão de pastos que determinava os movimentos
dos pastores e dos seus rebanhos.
Mas a presença de processos miméticos na história colonial do caracul de Angola
tem a sua forma mais evidente nas casas construídas no posto para habitação dos
pastores que formavam o bairro indígena do PEC.[17] Santos Pereira estava
verdadeiramente orgulhoso de um novo modelo de cubata por ele desenvolvido,
batizando os redondéis construídos com tijolo e argamassa de estilo caracul.
A sua grande originalidade estaria na substituição, nos tetos dos redondéis, do
tradicional colmo por tijolos e cimento, aplicados estes em fiadas concêntricas
cada vez mais apertadas, e para a construção dos quais não se carecia de
ferro, de suportes, de armações ou de moldes.[18] O veterinário não se coibiu
de desenvolver um processo estandardizado para a edificação destas cubatas
estilo caracul, as quais, além de terem sido construídas nas diferentes
concessões, foram também erigidas em Moçâmedes, onde se ergueu um bairro
indígena todo em estilo caracul, inaugurado, como não poderia deixar de ser, a
28 de maio de 1958. O caráter uniforme dos redondéis escondia ainda três
diferentes topologias de interiores: sem divisão para pretos casados e já
assimilados; uma divisória central para dois casais sem filhos; três divisões
albergando quatro indígenas solteiros.[19] Compare-se esta descrição sucinta
com a complexidade de uma onganda, a modalidade mais fixa de residência dos
kuvale (R. Carvalho 1997: 25). A antropologia, sobretudo da mão de Ruy Duarte
de Carvalho, deu já boa conta das funções sociais mantidas por uma onganda de
kuvales:
cercados de rama de arbustos que podem atingir os 70 m de diâmetro e
no interior dos quais o gado pernoita e se dispõem as casas, cónicas
e baixas, e um cercado menor para os vitelos. Cada onganda abriga
dois ou três grupos familiares que podem ser ou não parentes entre si
e contar ou não com a presença dos filhos adultos, ou sobrinhos, ou
outros dependentes, dos homens mais velhos que os chefiam e
estabelecem desta forma entre si parcerias que implicam a exploração
em conjunto do gado que mantêm sob a sua incidência imediata (R.
Carvalho 1997: 29).
O perímetro de uma onganda incluía também cemitérios e locais de culto.
Percebe-se assim melhor o que acima referi como o empobrecimento operado pelo
processo mimético ' bem como a sua violência. A aparente sensibilidade local do
veterinário responsável pelo PEC, expressa na criação do estilo caracul, oculta
uma negação da sociabilidade kuvale, resumindo-se agora a esfera doméstica à
oposição casado / solteiro e a condição de indígena à de assalariado de uma
fazenda de colono branco.
Uma casa portuguesa no deserto de Moçâmedes
À data em que Gilberto Freyre visitou o PEC, ainda este bairro não estava
construído. Mas não custa imaginar as loas que Freyre poderia ter tecido às
cubatas híbridas desenhadas por Santos Pereira, combinando as tradições locais
com o engenho e a técnica europeias. O que, sim, já estava de pé quando Freyre
visitou o PEC, era a casa do diretor, a qual demonstrava, segundo Freyre, que
era possível viver um português em Caracul em verdadeiro oásis:
Tal era residência do diretor de Posto, toda cercada de trepadeiras,
entre as quais uma latada com cachos de uvas tão lusitanamente
frescas que à primeira vista parecem postiças as parreiras rebentam
em uvas gordas, junto à varanda das casas e ao alcance das mãos dos
meninos e da própria gente grande mais saudosa de frutas e dos aromas
de Portugal (Freyre 1980 [1953]: 374).
Enquanto Santos Pereira cuidava da manutenção da pureza dos reprodutores
caracul acumulando quilómetros na sua carrinha Chevrolet, a sua mulher servia
almoços magníficos, com a graça e dignidade de quem presidisse a um jantar de
Lisboa ou no Porto (Freyre 1980 [1953]: 375). Já muito foi escrito sobre os
excessos de reprodução dos costumes da metrópole no espaço colonial, como
aqueles praticados pela mulher de Santos Pereira e descritos por Freyre (Stoler
2002). Afinal, já Malinowski chamava a atenção na década de 1940 para o facto
de a comunidade de colonos brancos não ser de forma nenhuma uma réplica direta
da comunidade da metrópole (Malinowski 1966 [1945]). A mimese da vida
portuguesa ' materializada tanto na formalização excessiva dos atos quotidianos
como na arquitetura casa portuguesa da residência do diretor com a sua
varanda e latada ', mais do que transplantar Portugal para África, constitui um
elemento de construção da comunidade inventada do colono branco (Anderson
1983). Esta casa portuguesa ultramarina (Milheiro 2012), na expressão dos
técnicos do Gabinete de Urbanização Colonial responsáveis pelos projetos
arquitetónicos de casas para colonos e para funcionários da administração
colonial, era, como bem sublinhou Ana Vaz Milheiro, mais portuguesa que a
própria casa portuguesa na metrópole (Milheiro 2012). O posto juntava assim à
mimese por defeito do bairro indígena a mimese por excesso da metrópole, a
qual era destinada, como afirmava o próprio Santos Pereira, a reproduzir
criadores de caraculos (Pereira 1959). O posto não era mais, pois, do que o
primeiro núcleo de um projeto de colonização que ocuparia um território com
extensão semelhante ao do Portugal metropolitano e que estaria destinado a ser
mais português que Portugal.
A reprodução de caraculos equivalia então à reprodução de colonos. A vida dos
povoadores brancos na reserva colonial do caracul não estava menos organizada
em função da reprodução animal do que a vida dos kuvales junto das suas manadas
de bois. Olhar para as técnicas de reprodução dos caraculos não serve assim
apenas de metáfora da vida social colonial e para estabelecer uma
correspondência de ordem formal entre falta de hibridismo animal e falta de
miscigenação humana. Manter uma fazenda de caraculos exigia seguir não apenas
os preceitos zootécnicos difundidos por Santos Pereira, mas seguir, também, a
construção de um espaço colonial específico, exemplificado modelarmente pelo
PEC: um espaço constituído pela casa do diretor, pelo bairro indígena, e por
pastagens segmentadas a arame farpado em função da cuidada gestão de forragens.
Na aparência, o Posto Experimental do Caracul parecia ser respeitador dos
costumes locais: cubatas limpas e ordenadas e nativos empregados no cuidado de
animais, mas seguindo agora os ensinamentos da genética europeia em vez das
suas complicadas genealogias. Mas basta raspar um pouco esta superfície de
aparências e a mimese alegre de Freyre toma os tons mais escuros da mimese
colonial de Taussig. Kuvales roubados do seu gado e exterminados por serem
tidos como violentos selvagens e ladrões de gado; bairros indígenas à imagem
de ongandas, mas que não são mais que depósitos baratos de mão-de-obra
assalariada; fazendas imensas de caracul que rasgam a paisagem a arame farpado,
e entre cujas fiadas os kuvales têm direito a conduzir o seu gado, mantendo
assim vivo o mito do respeito português pelo outro. Percebe-se então que o
luso-tropicalismo visionado por Freyre, ao contrário do que este pretendia, se
sustenta não sobre processos de hibridação, mas sim sobre um triplo mimetismo:
de outras experiências imperiais europeias materializadas nas ovelhas caracul
importadas da Alemanha; da sociabilidade local reproduzida de forma
estandardizada no bairro indígena do posto; e, por fim, da metrópole,
traduzida na casa portuguesa tropical do diretor. O Posto Experimental do
Caracul lembra-nos que tanto o luso como o tropicalismo são afinal produtos
da operação de modos vários de mimese colonial.