Sentidos da antropologia em Portugal na década de 1970
Um batismo informal serve de introdução
Em setembro de 1976, realizou-se em Lisboa a 28.ª Assembleia Geral da
Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA). O programa de atividades
incluiu a exposição Modernismo e Arte Negro-Africana, patente ao público no
Museu de Etnologia. Um quadro de Picasso, emprestado pelo Museu Hermitage, da
então Leninegrado, disputava sem esforço protagonismo aos artefactos africanos.
Isso acontecia por várias razões. A temática da exposição remetia para a África
ao sul do Sara, assentava numa abordagem ensaiada do ponto de vista artístico e
realizava-se num museu que não era tido como de arte. Sugestionava-se no
visitante o confronto entre correntes da arte ocidental com o mundo dito
primitivo (cf. Lima 1976). Peças etnográficas estavam encenadas como objetos
artísticos. A estes fatores, somavam-se outros. Ao público desvendavam-se mais
coisas novas e inusitadas. A exibição do Picasso implicava segurança policial
especial. Era também facto inédito para aquele tempo, em Portugal, a origem do
empréstimo. Comprovava as relações políticas internacionais normalizadas
recentemente. Por fim, o local visitado era novo. Ficava no bairro do Restelo,
em frente ao edifício que até ao 25 de Abril acolhera o Ministério do Ultramar
e que, depois de um interregno como Ministério da Coordenação Interterritorial
' durante as negociações para a descolonização ', passou a um efémero da
Cooperação, antes de transitar para a tutela do Ministério da Defesa. Mas a
referência mais popular seria por certo o vizinho estádio do clube de futebol
Os Belenenses. Era um museu acabado de construir, concebido de raiz para
acolher, manter e divulgar coleções etnográficas, e que esperava inauguração.
Designava-se Museu de Etnologia do Ultramar; no entanto, o catálogo editado já
só referia Museu de Etnologia (SEC 1976).
Concebido durante a guerra colonial, em que se mantinham três frentes de
combate simultâneas (Angola, Guiné, Moçambique), agora a situação mudara,
porque se haviam calado as armas e as colónias acediam em fila à independência.
O rebatismo do museu não passava ainda de um ato espontâneo, informal. Só em
1985 se verificaria a sua abertura oficial ao público. E tornava-se só então
efetiva a supressão do atributo geográfico na designação institucional.
Sombras projetadas
A queda do regime salazarista ocorrida em 1974 criou condições novas na
sociedade portuguesa: o novo poder era militar e incluía no seu programa
político os 3D: democratização, descolonização, desenvolvimento. O país
caminhava para profundas transformações. No que respeita a antropologia,
desenham-se algumas das sombras do passado.
Em primeiro lugar, a figura de António Jorge Dias (1907-1973), recentemente
falecido. Foi o antropólogo que mais influenciou a disciplina nas décadas
anteriores. Em 1947, na cidade do Porto, liderou um Centro de Estudos de
Etnologia Peninsular, onde congregou uma equipa que se profissionalizaria,
dedicada à etnografia portuguesa (na altura acrescentava-se metropolitana). Era
formada por Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990), Fernando Galhano (1904-
1995), Benjamim Pereira (1928-) e, durante um período, Margot Dias (1908-2001).
Na década seguinte António Jorge Dias interessa-se pelo domínio africano, será
nomeado professor do então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política
Ultramarina (ISCSPU) e, no âmbito da Missão de Estudo das Minorias Étnicas do
Ultramar, lança o seu projeto dedicado aos Maconde, no Norte de Moçambique
(Gallo 1988; R. Pereira 2006; West 2004). Em 1965, ao ser criado no papel o
Museu de Etnologia do Ultramar, será nomeado seu primeiro diretor. Nesse
contexto também se funda o Centro de Estudos de Antropologia Cultural (CEAC),
que deverá servir de estrutura de investigação em apoio ao museu e que
igualmente dirige (cf. M.M.C. Pereira 2005). Aqui se juntaram ao longo do
tempo, e em geometria variável, investigadores e colaboradores, alguns com
experiência adquirida anos a fio na administração colonial. Jorge Dias faleceu
sem conhecer o edifício do museu terminado.
O grupo da etnografia portuguesa, entretanto liderado por Ernesto Veiga de
Oliveira, transferira-se em 1967 para Lisboa e partilhava as instalações onde
funcionava a título provisório o museu, pertencentes à Junta de Investigações
do Ultramar (na rua Jau, Lisboa). Coabitavam aí duas entidades, com inserções
institucionais distintas (Ministério da Educação para a etnografia portuguesa e
Ministério do Ultramar para as de origem exótica, mais o museu). Terá
funcionado uma colaboração transversal informal na manutenção das coleções
entretanto constituídas (E.V. Oliveira 1968).
Com o fim das colónias, a respetiva política de ciência perdia razão de ser. A
reformulação demorou, dando origem ao Instituto de Investigação Científica
Tropical (IICT), criado em finais de 1979. Absorvia os recursos de ciência
herdados do tempo colonial. Em consequência, o Museu de Etnologia foi integrado
no IICT e desapareceu o CEAC, substituído pelo Centro de Antropologia Cultural
e Social (CACS).
Durante a década de 1970, a principal instituição especializada em antropologia
do país não se assumia nessa função, amarrada à reestruturação pós-colonial e
no seu seio dividida entre dois setores que não conseguiam convergir: o domínio
doméstico e o exótico. A mencionada exposição de 1976, integrada no programa do
congresso da AICA, cujo tema, Black African Art and Modern Art: Reciprocal
Relations, foi uma tentativa feita de dentro da instituição chamando a atenção
governamental para a necessidade de definir um destino a dar àquela estrutura
museológica. Assim foi entendida a iniciativa pela imprensa[1] e por
especialistas (Sousa 1976). Mas, finda a exposição, as portas fecharam-se sem
apelo, nem agravo.
Nas universidades de Coimbra e do Porto, a antropologia confinava-se a uma
atividade museológica (manutenção das coleções, seu uso demonstrativo no
ensino), sem incidência pública (ausência de exposições), enquadrada
prioritariamente pela explicação biológica e genética (prestação de serviços
graças a um posto antropométrico) e menos pela abordagem cultural.
Inputs
Até ao 25 de Abril o ensino de matérias antropológicas (na abordagem cultural)
resumia-se a disciplinas optativas nas faculdades de letras, previstas na
formação de geógrafos. E no já mencionado ISCSPU existia desde 1968 um Curso
Complementar de Ciências Antropológicas e Etnológicas, com nível de
licenciatura. Matérias antropológicas eram ministradas desde muito antes nesta
instituição na preparação de administradores coloniais (exemplo de
Instituições Indígenas, lecionada por António Jorge Dias). Logo em setembro
de 1974, o curso foi reformulado, contrataram-se novos docentes e afastaram-se
(sanearam-se) alguns dos antigos, considerados ideologicamente ligados ao
regime deposto e, do ponto de vista científico, tidos por desatualizados.
Espraiava-se a vaga europeia da década de 1960, embebida nas correntes do
estruturalismo ou marxismo. Os novos docentes eram jovens regressados do
estrangeiro (França, Bélgica), onde tinham estudado ou ainda estavam a preparar
o doutoramento (Joaquim Segurado, José Carlos Gomes da Silva, José Fialho
Feliciano, Maria Olímpia Campagnolo, Pedro Castro Henriques, Rui Rodrigues,
entre outros). A maior parte deles tinha partido para não prestar serviço
militar na guerra colonial. Vivia-se em pleno uma crise revolucionária. Menos
na antropologia, do que noutras ciências sociais (sociologia, economia), jovens
de outras proveniências (fugidos a outras ditaduras: brasileiros, chilenos)
também se sentiram atraídos pela situação portuguesa e deram o seu contributo
temporário ou definitivo para a estruturação do ensino das ciências da
sociedade.
A liberdade de expressão e de opinião, o questionamento das instituições, a
instauração de mecanismos de participação democrática, eis alguns dos fatores
que incrementaram a procura dos estudos sociais em geral e do conhecimento do
passado. Institucionalizam-se as ciências sociais nos diversos ramos, entre
eles a antropologia, cujo primeiro curso de licenciatura completo (quatro anos)
é criado na Universidade Nova de Lisboa, em 1978 (MEIC 1978; ME 1979). A
antropologia passava a dispor de condições de ensino e da sua reprodução
(Cordeiro e Afonso 2003). A função de controlo da reprodutibilidade deste saber
específico não podia ser assumida pelo museu, o que viria a ditar a sua
subalternização dentro da comunidade antropológica em gestação. Em paralelo,
verificava-se que a antropologia académica emergente acabava de se posicionar
numa faculdade de ciências sociais (embora também com as humanidades por
arrastamento duma dissidência). A antropologia não foi acolhida pelas
faculdades de letras existentes nas universidades antigas. Pese a relatividade
da classificação, as primeiras tinham um potencial inovador que não se entrevia
nas últimas.
Durante a década preponderaram ainda os conteúdos ligados à tradição
intelectual francófona, com uma tendência crescente para o uso de bibliografia
anglo-saxónica, acedida em inglês. Consumou-se o triunfo da fotocópia (quase
sempre Xerox), ainda que elas saíssem húmidas da máquina, com um odor próprio e
não resistissem demasiado ao tempo. Não havia autosserviço. Encomendavam-se
sempre a um/a operador/a, o que constituía um negócio rendoso. O estudante
português não estava afeiçoado à manipulação de teclados, a não ser alguns, por
se dedicarem a instrumentos musicais. Os trabalhos eram mandados passar à
máquina (manuais, dado o elevado custo das elétricas), o que fazia da
datilografia uma atividade lucrativa, garantindo o sustento de muita gente.
Nesta década, Portugal era um país que dispunha de horário de abertura. As
fronteiras fechavam à noite. A exceção acontecia durante o mês de agosto, na
maior fronteira terrestre, a de Vilar Formoso. Em vez de encerrar entre a uma e
as seis horas da manhã, ficava aberta sem interrupção, por causa dos emigrantes
que vinham de vacanças. Mas o país tinha outras fronteiras com traçado
diferente. Para as camadas urbanas letradas, o interior quase constituía uma
terra incógnita. Tal desconhecimento reforçava-se com o esvaziamento
demográfico que desde a década anterior acontecia. A população migrava em massa
para o litoral e para além-Pirenéus. O Plano Trabalho e Cultura (PTC), levado a
efeito no verão de 1975 (Branco e Oliveira 1993; L.T. Oliveira 2004) ou as
Campanhas de Dinamização Cultural e Ação Cívica, desencadeadas pelos militares
revolucionários (Almeida 2009), traduzem um propósito voluntarista de ir em
demanda dessa face ocultada do país. Já José Cutileiro colocara na abertura da
sua monografia sobre uma vila alentejana (Cutileiro 1971, versão portuguesa de
1977) a frase do poeta Alexandre O'Neill: Portugal, questão que eu tenho
comigo.
Nada disto tem a ver diretamente com a antropologia em Portugal nos anos 1970,
mas revela um estado de espírito existente em grupos intelectuais, que os
tempos revolucionários intensificavam. Traduzia um mal-estar criado pela
consciência do atraso do país, económico (industrialização periférica),
político (regime autoritário acabado de colapsar) e social (baixos índices de
prosperidade da população). A este facto acrescem as limitações financeiras e
logísticas para fazer terreno em paragens longínquas, o que explica a
motivação dos estudantes de antropologia, tanto no ISCSP (até à suspensão da
atividade letiva por ordem governamental, mantida entre finais de 1976 e 1980),
como depois na Universidade Nova de Lisboa, canalizada para que se aplicassem
no terreno português os seus conhecimentos e as suas capacidades de
operacionalizar pesquisa. Dois acontecimentos paralelos à universidade tiveram
repercussão no contingente reduzido de estudantes, professores e apreciadores
de assuntos antropológicos. A estreia comercial do filme Trás-os-Montes,
realizado por António Reis e Margarida Cordeiro,[2] assim como, nesse mesmo
ano, uma panorâmica da obra de Jean Rouch (1917-2004), realizada na Fundação
Calouste Gulbenkian (CPR 1976).
Delito de mocidade
Fiz parte da última leva de licenciados em antropologia (a designação oficial
era Ciências Antropológicas e Etnológicas) do ISCSP ' antiga Escola Superior
Colonial, em 1962 integrada na Universidade Técnica de Lisboa como ISCSPU. Como
finalistas fomos surpreendidos pelo encerramento ' já referido ' feito por
ordem ministerial. Durante os estudos debatera-se apaixonadamente o papel do
antropólogo na sociedade, sublinhara-se a necessidade de suscitar a procura do
seu saber. Mas este era um problema comum aos outros ramos das ciências sociais
em processo de consolidação universitária. A grande saída para os licenciados
em muitas áreas era a docência no ensino básico e secundário, dada a explosão
da população escolar que se verificava. Findo o colonialismo e a guerra
colonial, o país voltava-se para dentro e, desde logo, assumia políticas
expansivas e abrangentes na educação e na saúde.
Regressei à terra (adotiva) procurando um início de vida, despido da ilusão de
aproveitar a formação obtida. Trabalhei no turismo. A implantação de uma
administração pública regional como consequência da autonomia para as regiões
insulares prevista na constituição de 1976 e implementada a partir de 1977 pelo
recém-instalado governo regional madeirense foi uma oportunidade para muitos
jovens recém-licenciados. Fui contratado, em 1978, para a Direção Regional de
Assuntos Culturais (DRAC), que estava a ser criada. O que pouco antes me
parecia irrealista, acontecia. A minha formação em antropologia fora um
critério de peso. Achei-me rapidamente envolvido numa atividade abrangendo a
programação, o planeamento e a execução de projetos culturais. Esperava-se de
mim um contributo em sintonia com o período político vivido: a realidade criada
pela autonomia. Importava detetar e valorizar os componentes definidores de
identidade regional. A necessidade de diferenciação do exterior sentia-se no
dia a dia, manifestando-se com maior ou menor veemência nas relações políticas
entre os governos regional e nacional. Para reforço das reivindicações
políticas forjavam-se argumentos de índole identitária.
Absorvido nesta experiência, lembrei-me de ter lido muito antes, algures num
texto de António Jorge Dias, que, em finais dos anos 40, se lhe tinha deparado
uma situação similar à minha: devia definir um plano de trabalho que suscitasse
aceitação e fosse viável concretizar. Nessa altura, para Jorge Dias, pairava a
sombra e o legado de José Leite de Vasconcelos (1858-1941), sustentados numa
rede estabelecida à escala nacional e composta por apaixonados por escavações e
achados arqueológicos, especulando sobre símbolos e sentidos em tempos remotos.
Por isso Jorge Dias se virara para a cultura material, protagonizando uma
viragem centrada na recolha de material no presente e em uso: um terreno com
gente e dela dependendo. Neste contexto nasceu o projeto do Atlas Etnográfico
de Portugal, corria o ano de 1947. Esta mudança de atitude permitia alinhar a
pesquisa com iniciativas equivalentes então a decorrer em muitos países
europeus (elemento comparativo).
Cheguei a uma conclusão semelhante, mas o artigo de António Jorge Dias só me
veio à memória no fim da minha reflexão. Era recente a publicação da Alfaia
Agrícola Portuguesa (Oliveira, Galhano e Pereira 1976), a súmula do projeto do
atlas etnográfico. Definir um tema no âmbito da cultura material, aplicado à
Madeira, implicava começar de igual modo pela utensilagem agrícola. Também
neste caso se evitariam as pequenas polémicas, discussões e impressões
especulativas em torno da identidade regional ou em processo de regionalização,
a propósito de música, dança, festividades ou gastronomia.
Recordava ainda as considerações que ouvira no Museu de Etnologia (continuava
fechado ao público, mas era frequentado por um grupo mais ou menos restrito de
interessados e de curiosos viciados naquelas causas). Comparavam-se as duas
regiões insulares: enquanto dos Açores se afirmava possuírem uma etnografia
rica, da Madeira dizia-se ser pobre. E passeávamos pelas reservas recheadas de
alfaias agrícolas. Grande variedade de cada implemento caracterizava a situação
açoriana, a Madeira pontuava pelo cariz uniforme dos equipamentos recolhidos.
Não sei se isto terá ferido o meu sentimento insular, mas achei que isto não
podia ser assim: etnografias ricas e etnografias pobres. Como se definem? Como
se elabora a escala? Que significado podem ter os valores apurados? Naquela
altura não sabia como argumentar. Mantinha-me num silêncio deferente, que não
significava concordância.
Fui construindo um plano de trabalho, tendo por meta final a criação de um
museu etnográfico da Madeira. Seria uma estrutura vocacionada para encenar as
representações identitárias. Havia que programar recolhas, a fim de constituir
coleções. Optei por começar pelo levantamento da alfaia agrícola à escala do
arquipélago, servindo posteriormente de leitmotiv para um discurso expositivo.
Era minha intenção identificar semelhanças e diferenças entre as duas ilhas
habitadas do arquipélago. E, a partir da comparação, talvez fosse possível
construir argumentação sobre o tal escalonamento das etnografias
Trabalhei o terreno da Madeira (cf. Branco 1989) e de Porto Santo durante quase
dois anos, aumentando a coleção de alfaias agrícolas, obtidas quase sempre por
compra. Em agosto de 1980, em jeito de relatório sobre a atividade
desenvolvida, organizou-se a exposição Alfaia Agrícola Insular, montada numa
tenda insuflável de grandes dimensões, colocada durante dois meses numa zona
popular do Funchal (Campo Almirante Reis).[3]
O Museu Etnográfico da Madeira, situado na Ribeira Brava, foi inaugurado em
1996 (Matos 1999; Gouveia 2009). Depreende-se que a identidade madeirense,
forjada no processo autonómico, se cimentou por outros caminhos.
Portugal como terreno
Na corrente mediterranista inaugurada por Julian Pitt-Rivers (1919-2001) nos
anos 50, com a monografia sobre Alcalá de la Sierra, uma aldeia da Andaluzia
(The People of the Sierra, 1954)[4] Portugal é parente pobre, numa família onde
a Itália, a Espanha e depois a Grécia são os membros com maior presença. A obra
de síntese elaborada por John Davis (1977) ' ele próprio com trabalho de campo
feito em Itália e na Líbia ' refere Portugal baseando-se na obra de José
Cutileiro (1971), então ainda recente. Ao longo da década aqui discutida, o
território continental e insular português foi destino escolhido por uma série
de jovens antropólogos/as que procuravam temas e lugares com vista à elaboração
de teses de doutoramento. A respetiva listagem não pretende ser exaustiva,
porque de alguns se perdeu o rasto. Constata-se a presença maioritária de
estrangeiros. A ordenação cronológica proporciona o seguinte panorama.
Jeanne B. Purcell (1938-1984) dedicou-se ao romanceiro de tradição oral; era
norte-americana e, entre 1969 e 1970, faz recolhas intensivas nos Açores, na
Madeira e no continente. Embora não se trate de uma antropóloga, a sua postura
perante o terreno permite colocar o seu domínio disciplinar como equiparável à
disciplina que nos interessa. Apresentará o seu doutoramento na Universidade da
Califórnia Los Angeles (UCLA), em 1976.
Fortunata Piselli (1942-) é uma socióloga italiana, na altura ligada à
Universidade da Calábria. Interessou-se pela população camponesa dos arredores
de Coimbra desde os anos 60. Entre 1971 e 1973 está novamente no terreno,
fazendo uma série de entrevistas aprofundadas. Interrompe a pesquisa e deverá
regressar depois do 25 de Abril, em 1980, preocupando-se com os processos de
mudança ocorridos durante a década no seguimento da revolução. Está ligada ao
catolicismo social e mantém contacto com Manuel L. Rodrigues de Areia (1937-),
então responsável pelo Museu Antropológico da Universidade de Coimbra.
Moisés Espírito Santo (1938-) é um português que elaborou um desenvolvido
relatório final de curso em Sociologia Rural na Ecole des Hautes Etudes en
Sciences Sociales, em Paris. Faz trabalho de campo entre 1973 e 1976 em
Reguengo do Fetal, próximo de Batalha, no centro do país, sua terra natal.
Trabalha à maneira de etnólogo, conforme assume. Vê na freguesia como entidade
administrativa territorial a essência da comunidade rural portuguesa. Vive e
descreve as transformações desencadeadas pelo 25 de Abril.
Joaquim Pais de Brito (1945-), que estudara etnologia em Paris, regressa com o
25 de Abril a Portugal, nesse mesmo mês visita a aldeia de Rio de Onor, em
Trás-os-Montes e decide passar uma temporada em 1976 nesse local, após ter
obtido uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Conforme afirma, pretendia
viver uma experiência de estranhamento. Conhecia em pormenor a monografia de
António Jorge Dias sobre a aldeia publicada em 1953, versando sobre estruturas
sociais de tipo comunitário.[5]
Brian Juan O'Neill (1950-), norte-americano, estuda antropologia social na
Universidade de Londres. Depois duma experiência na Galiza e com vista à sua
tese de doutoramento, estabelece-se em Seixas, Trás-os-Montes, por 18 meses, de
1976 a 1977. O seu olhar centra-se nos mecanismos sociais geradores de
desigualdade (propriedade, herança, casamento, bastardia), em contradição com o
discurso ouvido da boca dos habitantes da aldeia.
Também nesta década a norte-americana Denise Lawrence faz terreno no Sul do
país, nos arredores de Évora. A sua tese de doutoramento, intitulada Festa:
Cooperation in Rural Southern Portugal, foi defendida em 1979 na Universidade
da Califórnia Riverside.
Três antropólogas dedicaram-se à emigração feminina lusa para França. Colette
Callier-Boisvert (1938-), francesa, conhece o terreno português ' Soajo, no
Alto Minho ' desde 1962, e enveredava agora pelo tema do êxodo rural visto na
sociedade de acolhimento (Callier-Boisvert 1999). Em paralelo, uma norte-
americana de origem canadiana, Caroline Bretell, estudou o mesmo assunto, dando
origem à sua tese de doutoramento Hope and Nostalgia: The Migration of
Portuguese Women to Paris, apresentada na Universidade de Brown, em 1978. Falta
referir uma pioneira na temática das migrações, com terreno ' multissituado
avant la lettre ' feito na origem (região de Viseu) e no destino (França):
Maria Beatriz Rocha-Trindade (1938-), que em finais de 60 estuda portugueses
nos arredores de Paris, apresentando a sua tese em 1970, na Sorbonne,
intitulada Immigrés portugais: Observation psycho-sociologique d'un groupe de
Portugais dans la banlieue parisienne (Orsay).
Anne Caufriez, é belga, recolheu a partir de 1978 e até 1983, em sucessivas
missões etnomusicológicas, material para o estudo comparado da balada ibérica
(romanceiro), que se destinaria ao seu doutoramento em Paris. Na altura
concentrou-se no Nordeste português (região mirandesa).
João de Pina-Cabral (1954-), doutorando em Oxford, faz o seu trabalho de campo
no Alto Minho, em 1979-80, centrado nos aspetos simbólicos da morte, com vista
à sua tese.[6]
Verificamos a existência de uma série de pesquisas de terreno dedicadas ao país
e à diáspora, envolvendo antropólogos/as nativos e estrangeiros/as. Os
materiais recolhidos reverteram para teses defendidas em universidades
estrangeiras. O sistema universitário nacional não dispunha ainda da capacidade
para produzir conhecimento antropológico certificado. Neste sentido, os jovens
antropólogos nativos mencionados devem ser considerados como estrangeirados.[7]
Não se sabia o futuro que poderiam ter.
Antropólogos em áreas protegidas
A atividade de campo empreendida pelos antropólogos, folcloristas e
etnomusicólogos referidos caracterizou-se por se tratar de iniciativas
individuais tendo em vista a elaboração de teses académicas. Inseriram-se em
pressupostos discutidos em contextos académicos outros que não os portugueses.
Constitui exceção ao quadro traçado a pesquisa levada a cabo por Manuel Viegas
Guerreiro (1912-1997), professor de etnologia no curso de Geografia da
Universidade de Lisboa. Dando seguimento a um pedido feito pela instância
governamental responsável pelo Parque Nacional da Peneda-Gerês (criado em 1971,
no Alto Minho), fez trabalho de campo durante quase um ano em 1977-78. Escolheu
a aldeia de Pitões das Júnias com um duplo intuito: estudar a já clássica
questão do comunitarismo agropastoril na etnografia portuguesa e verificar como
melhorar o relacionamento da população aldeã com a direção do parque. O projeto
inicial previa uma participação mais intensa e regular de uma equipa de
antropólogos na produção de conhecimento aplicável à gestão daquela primeira
área protegida portuguesa. Um grupo emergente de antropólogos da Universidade
do Minho, integrando, entre outros, Alice Duarte Geraldes (1923-) e Luís
Polanah (1921-2005), associou-se a esta antropologia implicada no parque, daí
resultando algumas publicações preliminares. A monografia de Manuel Viegas
Guerreiro sobre a mencionada aldeia de montanha Pitões das Júnias seria
publicada em livro no início da década de 1980 (Guerreiro 1981). Para além da
monografia, foi conselheiro do documentário em longa-metragem realizado por
Ricardo Costa e intitulado Pitões, Aldeia do Barroso (1979, 16 mm, cor, 86',
Diafilme/RTP).
A delimitação de áreas protegidas foi campo onde as autoridades nestes anos 70
tentaram envolver cientistas sociais, mostrando-se sensíveis à abordagem
antropológica. Refira-se a ação de Alberto Martinho (1947-) no Parque Natural
da Serra da Estrela. Era um antropólogo nativo (Martinho 1972) e residente na
região e, nessa qualidade, contratado pela administração do parque. Dessa
experiência publicou ' entre outros assuntos ' sobre a produção de queijo
(Martinho 1980).
A elaboração de estudos antropológicos resultantes de encomendas feitas por
organismos governamentais não singrou. As razões deverão ser procuradas em dois
planos. Primeiro, a incapacidade desses organismos em assegurar o financiamento
continuado de pesquisas. Segundo, a inabilidade da antropologia em processo de
institucionalização académica para se articular com ações práticas fora da
universidade (contratos, prazos, recursos humanos, gestão).[8]
Conclusões
Uma série de acontecimentos (exposição da AICA no museu, ciclo Jean Rouch,
estreia duma etnoficção, publicação da obra terminal do atlas etnográfico) e
alguns processos iniciados (questão do museu por solucionar, licenciatura em
antropologia criada de raiz, pesquisas de terreno individuais em andamento
orientadas em universidades estrangeiras, tentativa de pesquisa antropológica
aplicada em equipa sem continuidade), eis o quadro traçado para a década em
análise.
Da conjugação destes elementos ressalta uma situação caracterizada por rutura e
arranque, mas não de renovação. Vista noutros termos, a antropologia desses
anos não é de construção da nação, não a evoca na sua essência, antes busca o
país numa indagação ora contemplativa, ora inconformada (ecos da revolução e da
descolonização). Também não é ainda internacional, porque embora o terreno
esteja a ser visitado, as etnografias elaboradas resultam de ações individuais
e serão formatadas no exterior. Colocada a questão nestes termos, a proposta de
Stocking (1982) não permite atribuir sentidos aos dados expostos. Aqui pretendi
aprofundar a análise dum processo de descontinuidade num quadro de produção
nacional, alargando a dimensão temporal ao contexto vivido nos anos 1970, em
que a revolução do 25 de Abril é determinante (Branco 2010).
O contexto então vivido pauta-se pelas ondas de choque geradas pela emancipação
colonial. A ainda insipiente comunidade antropológica portuguesa retira-se numa
atitude de luto intelectual: abstinência forçada em relação a África, contenção
em casa. Se se procurarem paralelos, será na França face à Argélia colonial,
onde existiu situação comparável: colonialismo, antropologia praticada para
dominar o colonizado, guerra de libertação, descolonização, êxodo de colonos,
recriminações prolongadas.
E o luto gerou uma dinâmica revitalizadora. A geração emergente de antropólogos
(os jovens docentes regressados do estrangeiro e os estudantes) não se
reconhece no paradigma científico herdado e altera os seus termos: a busca de
harmonia vigente no passado (igualitarismo) cede lugar à ênfase posta no
conflito (desigualdade).