Cognição social: Fundamentos, formulações actuais e perspectivas futuras
Introdução
How do we make sense of other people and of ourselves? What do we know about
the people that we encounter in our daily lives and about the situations in
which we encounter them, and how do we make sense of this knowledge when we
attempt to understand, predict or recall their behavior? Are our social
judgments fully determined by our social knowledge, or are they influenced by
our feelings and desires (Kunda, 1999, p. 1).
Estas são as questões centrais que orientaram a emergência de uma abordagem
relativamente recente ' a Cognição Social. Assente na vasta tradição teórica e
de investigação da psicologia social, e revigorada pela integração de ideias e
metodologias da psicologia cognitiva, a abordagem da cognição social introduziu
valiosos contributos para a compreensão de muitas das questões e problemas
clássicos da psicologia social, empenhando-se igualmente em áreas ainda não
exploradas de investigação. Esta perspectiva tem sido palco de vários
desenvolvimentos teóricos que, inicialmente partilharam o pressuposto básico de
que, para compreender e explicar o comportamento social, é preciso considerar
as estruturas e os processos cognitivos que medeiam a relação entre um estímulo
externo e as respostas comportamentais observáveis (e.g., Hamilton, Devine,
& Ostrom, 1994). Mais recentemente, a disciplina tem vindo a integrar novos
contributos, nomeadamente aqueles que enfatizam os constrangimentos emocionais,
motivacionais, corporais e os efeitos situacionais na cognição, que são
considerados como reguladores fundamentais da cognição e não, apenas,
informação adicional a ser processada (Smith & Semin, 2004). Paralelamente,
a disciplina tem vindo a beneficiar dos desenvolvimentos teóricos e
tecnológicos das neurociências, que actuam enquanto ferramenta conjunta na
compreensão dos processos psicológicos e neuropsicológicos subjacentes
(Lieberman, 2010).
Embora o principal objectivo do presente artigo seja apresentar uma breve
revisão histórica dos fundamentos teóricos da cognição social, caracterizar o
estado da arte e especular sobre as possíveis direcções futuras desta
abordagem, a uma reflexão crítica e integradora sobre a literatura não escapa
um interessante paradoxo. Este paradoxo que tem caracterizado a disciplina
desde os seus antecedentes filosóficos e históricos até aos actuais debates
epistemológicos, resulta em parte do nível de análise a utilizar na abordagem à
cognição e comportamento humanos (e.g., Doise, 1982; ver também Semin, Garrido,
& Palma, 2012).
Por um lado, e fruto de tradições filosóficas elementaristas e, sobretudo, das
teorias cognitivas do processamento da informação, o estudo da cognição humana
em geral, e da cognição social em particular, tem adoptado uma abordagem mais
microscópica, elementar, individual e simbólica da cognição tentando isolar os
seus componentes mais básicos de forma a compreender processos cognitivos mais
complexos. Mais recentemente, a natureza algo simplificadora e localizacionista
da abordagem das neurociências cognitivas parece contribuir novamente para este
elementarismo descontextualizado. Por outro lado, abordagens recentes defendem
que o fluxo de informação entre a mente e o mundo é tão denso e contínuo que no
estudo da natureza da actividade cognitiva a mente não constitui, por si só,
uma unidade de análise com significado. Por esse motivo, o estudo da cognição
exige um nível macroscópico de análise, na medida em que os processos
cognitivos emergentes possuem uma natureza diferente dos processos cognitivos
mais elementares (ou da sua combinação) que alegadamente lhes dão origem.
Assim, a cognição só poderá ser compreendida como um fenómeno emergente das
interacções do indivíduo com o seu meio físico e social envolvente, que
constrange e/ou expande os seus processos cognitivos. No entanto, e como
veremos mais à frente, esta emergência a partir de contextos infinitamente
variáveis poderá limitar o poder preditivo das teorias situadas da cognição.
Neste contexto, o paradoxo que resulta da oposição entre o esforço de
integração da cognição social situada e a natureza simplificadora das
abordagens mais cognitivas e das neurociências configuram um cenário que parece
aproximar-se de uma dicotomia teórica. No entanto, as dicotomias teóricas,
embora úteis à investigação psicológica, tendem a fundamentar-se na explicação
e classificação de fenómenos isolados, são dificilmente refutáveis e limitam
muitas vezes o progresso científico (ver Garcia-Marques & Ferreira, 2011).
Neste sentido, ao longo do presente artigo e sempre que pertinente, procuramos
identificar em que medida determinados pressupostos filosóficos, modelos
teóricos, ou abordagens metodológicas fundamentam ou reflectem o paradoxo
anteriormente enunciado.
Fundamentos da Cognição Social
A cognição social emergiu em meados dos anos 70 e representa uma abordagem
conceptual e empírica genérica (e não apenas uma sub-disciplina da ciência
psicológica) que procura compreender e explicar como é que as pessoas se
percebem a si próprias e aos outros, e como é que essas percepções permitem
explicar, prever e orientar o comportamento social. Um dos aspectos mais
idiossincráticos desta abordagem é o facto do estudo dos fenómenos sociais ser
realizado através da investigação das estruturas e processos cognitivos pelos
quais operam (e.g., Hamilton et al., 1994; Sherman, Judd, & Park, 1989).
Decorrente da estreita relação que mantém com a chamada revolução cognitiva,
esta abordagem ficou conhecida como cognição social(McGuire, 1986), perspectiva
cognitiva (Markus & Zajonc, 1985) ou paradigma do processamento de
informação (Duveen, 2000), sendo este, inicialmente, o modelo de processamento
que orientou a abordagem dos fundamentos cognitivos dos fenómenos sociais
(Hamilton et al., 1994).
Historicamente, e no âmbito da psicologia, a compreensão que as pessoas têm do
mundo social foi estudada, em primeiro lugar, sob uma perspectiva
fenomenológica (Heider, 1958), preocupada em descrever de forma sistemática o
modo como a generalidade das pessoas afirmam experienciar o seu mundo.
Paralelamente, surgiu também a preocupação com as teorias do senso comum, ou
seja, com as teorias que as pessoas têm acerca umas das outras. As abordagens
sócio-cognitivas actuais incorporaram estas problemáticas mas foram mais além
na sua exploração. O reconhecimento da importância de estudar os processos
cognitivos para explicar o comportamento social levou muitos autores a tentar
integrar os pressupostos teóricos e metodológicos da psicologia cognitiva
relativos à percepção, memória e pensamento, procurando adaptá-los às
problemáticas da psicologia social (Fiske & Taylor, 1991), nomeadamente a
formação de impressões (ver Garcia-Marques & Garcia-Marques, 2004; Garrido,
2006; Hastie et al., 1980) e os estereótipos (ver Garcia-Marques & Garcia-
Marques, 2003; Hamilton, 1981) e ainda a questões de personalidade (Cantor
& Kihlstrom, 1981; Devine, Hamilton, & Ostrom, 1994), atribuição
social, comunicação, afecto, processos de julgamento e o self (Higgins, Herman,
& Zanna, 1981; Wyer & Srull, 1984).
O poder explicativo dos modelos cognitivos adoptados em cognição social prende-
se, principalmente, com a sua capacidade em descrever de forma precisa os
mecanismos gerais da aprendizagem e do pensamento, subjacentes a uma variedade
de áreas. Os primeiros desenvolvimentos da cognição social ficaram assim
marcados pela investigação dos fundamentos cognitivos dos fenómenos sociais
através do modelo do processamento da informação, assumindo que o indivíduo no
contexto social é alguém que se encontra virtualmente embrenhado nalguma forma
de processamento de informação. Isto aplica-se quer a pessoa esteja a formar
uma impressão, a dirigir uma reunião, a pensar na sua escola primária, a lidar
com uma doença ou a decidir que marca de desodorizante comprar. Em qualquer uma
destas circunstâncias a pessoa dá atenção e codifica informação do contexto
social, interpreta e elabora essa informação através de processos avaliativos,
inferenciais e atribucionais e representa esse conhecimento em memória para que
mais tarde possa ser recuperado e, subsequentemente utilizado, em processos de
pensamento e julgamento, e para guiar o comportamento (Hamilton et al., 1994).
Para melhor compreender esta abordagem e os pressupostos em que assenta é
importante perceber os antecedentes filosóficos e históricos que a sustentam e
as concepções do percepiente social que preconizam. Estes aspectos fundamentam
ainda hoje perspectivas emergentes no âmbito da abordagem sócio-cognitiva.
Antecedentes filosóficos
Os fundamentos filosóficos que marcaram a emergência da abordagem da cognição
social são manifestos em duas grandes perspectivas: a elementarista e a
holística (Fiske & Taylor, 1991). A compressão destas duas abordagens
torna-se relevante na medida em que os seus pressupostos básicos fundamentam
orientações teóricas e metodológicas distintas cujos elementos centrais se
podem facilmente distinguir nos vários desenvolvimentos teóricos e
metodológicos que a abordagem sócio-cognitiva tem vindo a apresentar.
A perspectiva elementarista, que remonta aos filósofos britânicos dos séculos
XVII e XVIII (Hume, 1739/1978; Locke, 1690/1979), caracteriza-se pela
segmentação e análise dos problemas científicos nos seus vários componentes,
que só posteriormente serão combinados. Segundo esta abordagem da mente, as
ideias surgem da sensação e percepção e constituem elementos que podem ser
associados entre si. A demarcação da psicologia como ciência autónoma da
filosofia, aliada às preocupações de cientificidade e à generalização dos
estudos laboratoriais, conduziram às primeiras tentativas de teste empírico das
concepções elementaristas. É neste contexto que surgem os esforços pioneiros de
psicólogos como Wundt (1897/1907) e Ebbinghaus (1885/1913) de observar os seus
próprios processos de pensamento e memória através da introspecção controlada.
Fortemente influenciados pela abordagem elementarista, estes e outros
investigadores procuravam analisar a experiência nos seus vários elementos,
determinar como estes se ligam, e identificar as leis que presidem a tais
associações. Curiosamente, estas concepções elementaristas continuam bem
presentes na abordagem mais tradicional da cognição social onde se procura
isolar e explorar os elementos estruturais e as regras subjacentes aos
processos cognitivos. No entanto, a ideia de que o isolamento dos elementos
constituintes de um fenómeno e do modo como estes elementos se combinam,
assegura a sua adequada compreensão não se encontra isenta de críticas como
veremos mais à frente.
Contrastando com a perspectiva elementarista, a abordagem holística
caracteriza-se pela análise dos fenómenos no seu contexto, incidindo sobretudo
na configuração global de relações entre eles. Esta abordagem da mente tem
origem nas teorias do filósofo alemão Emanuel Kant (1781/1969) que, numa
crítica às posições filosóficas vigentes, defende que os fenómenos mentais são
inerentemente subjectivos e sugere que a mente constrói activamente a
realidade, indo além do estímulo original. Kant atribui, assim, um papel mais
activo e construtivo ao percepiente social na percepção e interpretação dos
objectos experienciados. É nestes pressupostos que vai assentar a teoria da
gestalt (Koffka, 1935, Kohler, 1976) que, contrastando com as análises
elementaristas, se foca na experiência imediata da percepção e, adoptando uma
abordagem fenomenológica, procura descrever de forma sistemática as
experiências perceptivas e o pensamento. Kurt Lewin (1951) importa as ideias da
psicologia da gestalt para a psicologia social e, em última análise, para a
cognição social. Lewin centra-se nas interpretações subjectivas que os
indivíduos fazem do seu mundo social. Segundo o autor, seria necessário
considerar o equilíbrio dinâmico da pessoa (com as suas necessidades, crenças,
capacidades perceptivas) e da situação, para perceber como este conjunto de
factores actua na construção da realidade social. Para além disso, havia que
considerar a cognição, ou seja, a interpretação que o percepiente faz do mundo,
e a motivação, que constituiria o motor do seu comportamento. Como veremos mais
à frente estas ideias convergem com concepções mais situadas da cognição, isto
é, com a ideia de que a cognição emerge da interacção entre o indivíduo e o seu
mundo físico e social.
Contudo, a abordagem da cognição social não se fundamenta apenas em
pressupostos filosóficos gerais tendo integrado também, ao longo do seu
desenvolvimento, contributos mais específicos de diversas disciplinas
científicas, que se sistematizam na secção seguinte.
Contributos de outras disciplinas científicas
A Cognição Social é uma abordagem relativamente recente mas que foi rapidamente
incorporada, quer teórica, quer metodologicamente, em vários domínios da
psicologia. No entanto, as suas formulações remontam aos primórdios da
psicologia, e a diversidade que actualmente a caracteriza decorre de vários
contributos que tem vindo a absorver ao longo do seu desenvolvimento. De uma
forma integradora, Barone, Maddux e Snyder (1997) sugerem que a cognição social
actual evoluiu a partir de quatro grandes tradições em psicologia: a tradição
gestaltista, a teoria social da aprendizagem, o construtivismo e a teoria do
processamento de informação. A análise dos fundamentos teóricos fornecidos por
esta vasta herança poderá ajudar-nos a compreender as actuais formulações
sócio-cognitivas.
A tradição gestaltista, fortemente enraizada na Alemanha, foi uma das linhas de
desenvolvimento que conduziram à actual teoria social cognitiva, nomeadamente
devido aos esforços desenvolvidos por investigadores como Lewin (1951), Asch
(1946) e Heider (1958) em aplicar a teoria perceptiva da gestalt ao estudo de
processos cognitivos num contexto social. Combinando o interesse da gestalt na
percepção, com um interesse psicanalítico na motivação, Lewin (1951) efectua
pesquisas ao nível do desenvolvimento da personalidade, conflito, nível de
aspiração e interesse intrínseco, formulando a teoria de campo que coloca a
construção do self e do seu ambiente como fenómeno psicológico central.
Contudo, esta ideia de que o mundo social percebido pelo indivíduo não é
independente das suas características, conhecimentos, atitudes e motivações não
foi imediatamente incorporada nos primeiros esforços da abordagem sócio-
cognitiva. No entanto, a consideração destas variáveis constitui, actualmente,
um dos pressupostos fundamentais da teoria e investigação em cognição social.
Paralelamente, Asch aplica a teoria da gestalt ao estudo da percepção
interpessoal, explicando a formação de impressões como um processo de
construção de todos unificados. As suas investigações, demonstrando que
determinados aspectos centrais da informação organizam a impressão em todos
globais, aliadas aos contributos de Kelley (1950) sobre a influência das pré-
concepções na interacção social, constituem, ainda hoje, leituras obrigatórias
na investigação em cognição social. Finalmente, as contribuições de Heider
(1958), designadamente a sua concepção do cientista ingénuo, reforçam a ideia
de que as pessoas não são receptores passivos, mas que interpretam activamente
a informação. Efectivamente, as propostas deste autor sugerindo que a previsão
e o controlo se obtêm atribuindo os eventos a propriedades estáveis das pessoas
e dos contextos, constituem os alicerces da teoria da atribuição que assumiu um
papel proeminente na investigação inicial em cognição social.
A aprendizagem social constitui, igualmente, uma linha de desenvolvimento onde
se podem encontrar algumas raízes da abordagem sócio-cognitiva. Esta proposta
teórica combina a aprendizagem animal com formulações clínicas acerca da
personalidade e psicoterapia, especialmente da psicanálise. Ao sugerir que a
aprendizagem tem lugar durante o desenvolvimento da personalidade, e que é
mediada por processos cognitivos e afectivos (e.g., Dollard, Doob, Miller,
Mower, & Sears, 1939), esta proposta contraria teorias mais reducionistas
da aprendizagem (e.g., Skinner, 1953; Watson, 1913). Adicionalmente, integrando
a teoria da aprendizagem e da gestaltna teoria da aprendizagem social, Rotter
(1966) propõe que o comportamento é mediado por expectativas e valores, e pelo
reforço das atribuições acerca do locus de controlo, sugerindo uma formulação
cognitivo-comportamental mais completa do que a formulação puramente
comportamentalista na previsão do comportamento.
Estas duas teorias ofereceram alternativas à fenomenologia e ao
comportamentalismo, contribuindo para o enriquecimento de uma ciência
psicológica durante muito tempo dominada por prescrições objectivas,
elementaristas, mecanicistas e reducionistas. A cognição social actual combina
as tradições cognitivas mais recentes com estas duas perspectivas mais
tradicionais: a sua vertente da psicologia social, influenciada pela gestalt
social, e a sua área da personalidade pela aprendizagem social (Barone et al.,
1997).
A tradição construtivista assumiu, igualmente, um papel importante no
desenvolvimento de algumas formulações da cognição social. Esta tradição
assenta nos trabalhos de Piaget (1952) sobre o desenvolvimento cognitivo,
mostrando que as crianças não são percepientes passivos mas que constroem
activamente o seu conhecimento com base na experiência sensorial e motora
quotidiana. A epistemologia genética Piagetiana combina, assim, o
construtivismo e a teoria do desenvolvimento, colocando os esquemas num lugar
central ao conhecimento e ao desenvolvimento. Os esquemas seriam, então,
construções simbólicas que representam eventos que orientam o funcionamento
psicológico, e que mudam em resposta à experiência. Paralelamente, a teoria
cognitiva da personalidade de Kelly (1955) reconstruiu a personalidade como
cognição social, sugerindo a existência de um sistema de construtos pessoais
que diferem de pessoa para pessoa, e ao longo do tempo no indivíduo, que são
utilizados pelas pessoas para interpretar a sua experiência. São várias as
investigações que apoiam esta ideia de que o mundo não é encontrado mas
construído. Este pressuposto está bem patente nos trabalhos do new look em
percepção (Bruner & Goodman, 1947; Bruner & Postman, 1949) e nas
investigações de Hastorf e Cantril (1954) sobre as percepções divergentes que
indivíduos diferentes podem ter sobre a mesma realidade. A teoria
construtivista encontra ainda suporte na teoria esquemática da recordação de
Bartlett (1932), que sugere a existência de esquemas de construção de dados que
são codificados e depois reconstruídos e actualizados em cada acto de
recordação. Apoio adicional a esta teoria pode ainda ser encontrado nos
trabalhos de Bruner (1982) que, tal como Piaget, salienta o envolvimento de
categorias ou esquemas na percepção e, tal como Vygotsky (1962, 1978), o
envolvimento de outras pessoas na aquisição da linguagem.
Finalmente, investigações na área da linguagem e da aprendizagem (e.g., Luria,
1976; Vygotsky, 1962, 1978) apontam para uma noção de inteligência como uma
construção social resultante de ferramentas culturais, e o conhecimento como a
negociação de uma realidade virtual.
As ideias da teoria construtivista, e a sua ênfase na concepção de esquemas
como representações simbólicas da experiência passada que orientam o
funcionamento cognitivo, surgem assim como um dos pilares da cognição social
actual. Todavia, quer a investigação da gestalt social em formação de
impressões, quer as teorias construtivistas que sugerem que os indivíduos vão
além da informação dada, foram inicialmente negligenciadas por esta abordagem.
A teoria do processamento de informação, associada à revolução cognitiva na
psicologia, recorre à utilização do computador como metáfora teórica e
ferramenta metodológica para simular processos cognitivos. A inteligência
artificial é simulada em programas de computador que reproduzem as diferentes
fases de processamento da informação, desde o estímulo inicial que é
codificado, ao modo como é representado e posteriormente recuperado. Note-se
ainda que estas simulações exploram o modo como a informação é processada não
só através da aplicação das regras formais da lógica e da matemática, mas
também pela aplicação de estratégias heurísticas (Newell & Simon, 1961) . É
neste contexto que Simon (1997) desenvolve a teoria da racionalidade limitada,
chamando a atenção para as limitações dos processadores humanos de informação e
dos constrangimentos que a quantidade e diversidade da informação e as
capacidades de computação limitadas impõem à tomada de decisão. Note-se que
esta proposta veio estabelecer determinados limites às concepções sócio-
cognitivas sobre os processadores humanos de informação, supostamente dotados
de racionalidade e de infinitas capacidades de processamento.
Independentemente da relevância e da influência que as tradições da
gestaltsocial, daaprendizagem sociale doconstrutivismopossam ter tido,enquanto
herança teórica na cognição social, foi sem dúvida a teoria de processamento de
informaçãoque, de forma mais evidente, marcou quer emtermos de modelos
teóricos, quer metodológicos a emergência da cognição social. Foi também esta
última abordagem teórica que durante algum tempo impulsionou o estudo da
cognição e dos processos cognitivos como representações e operações simbólicas
isoladas no cérebro humano. Todavia, e como veremos mais à frente, ideias
decorrentes da abordagem gestáltica viriam a fundamentar o pressuposto de que
os processos psicológicos constituem unidades de análise qualitativamente
diferentes da mera associação dos seus elementos. Também alguns contributos
decorrentes da teoria da aprendizagem social, nomeadamente os que colocam os
processos afectivos e motivacionais como mediadores da cognição, estarão na
origem de uma reformulação da abordagem às estruturas de conhecimento, que
deixam de ser vistas como estáticas e imutáveis mas como flexíveis e
responsivas aos objectivos do percepiente numa dada situação. Finalmente,
também alguns dos pressupostos da teoria construtivista nomeadamente os que
sublinham a importância dos processos sensório-motores na cognição e a
relevância de outros agentes sociais nas aquisições cognitivas, inspiraram
abordagens que sugerem que a cognição humana emerge da interacção do indivíduo
(e do seu próprio corpo) com o meio físico e social que o rodeia.
Concepções do Percepiente Social
Quer os antecedentes filosóficos em que se apoia, quer os contributos das
várias disciplinas que a cognição social tem vindo a integrar, reflectem-se nas
propostas explicativas do modo como as pessoas chegam à sua própria construção
do mundo social (Bless, Fiedler, & Strack, 2004; Devine, et al., 1994;
Moskowitz, 2005). Consequentemente, as concepções do indivíduo como
percepiente, pensador e agente social têm vindo a evoluir e a modificar- se ao
longo dos anos e, segundo Leyens e Dardenne (1996), podem ser sistematizadas em
cinco grandes perspectivas.
Numa primeira abordagem, o percepiente social foi encarado como um ser racional
e consistente, ou seja, alguém que se apoiava na racionalização e na procura de
consistência para reduzir o estado de desconforto psicológico provocado pela
inconsistência entre as suas cognições. Esta ideia foi alvo de várias
conceptualizações teóricas, estando bem evidente na teoria do equilíbrio
cognitivo (Heider, 1958) e na teoria da dissonância cognitiva (Festinger,
1957).
Os trabalhos de Asch (1946) sobre a formação de impressões e a constatação de
que, mesmo com base em pouca informação, os indivíduos conseguem formar uma
impressão global sobre os outros, sugeriram que as pessoas têm ao seu dispor um
conjunto de teorias acerca dos dados, formulam hipóteses e possuem teorias
implícitas da personalidade (e.g., Bruner & Tagiuri, 1954) que vão
determinar a forma como processam a informação do seu mundo social. Embora
admitindo que o percepiente social não é totalmente insensível aos dados, esta
concepção apoia-se sobretudo num processamento holístico da informação e
corresponde à metáfora do cientista ingénuo,segundo a qual as pessoas processam
informação, recorrendo sobretudoàs suas teorias e não a um processamento mais
elementar que exige o exame detalhado e objectivo da informação.
Contestando esta abordagem, Anderson (1981) defende a primazia dos dados sobre
as teorias, conceptualizando o percepiente social como um processador de
dadosque aborda os factos de forma objectiva na ausência depreconcepções. De
acordo com Anderson, a avaliação da personalidade de um alvo resulta não de uma
impressão geral ou de um teoria implícita da personalidade mas de uma
integração algébrica das avaliações atribuídas a cada traço de personalidade.
No decorrer das duas últimas décadas, a percepção social foi muitas vezes
concebida como uma tarefa de resolução de problemas que o percepiente social
consegue desempenhar com o mínimo esforço cognitivo possível. Neste âmbito
ficou conhecida a metáfora do cognitive miser aludindo à relutância com que
as pessoas utilizam as suas capacidades para perceber os outros de forma
precisa. Esta perspectiva encerra uma visão algo negativa do percepiente social
ao centrar-se sobretudo nas limitações, erros e enviesamentos em que este
incorre na resolução dessas tarefas. Neste contexto, várias investigações
salientaram a importância da economia cognitiva (Nisbett & Ross, 1980),
presente na utilização de heurísticas ' que embora rápidas e económicas
conduzem a erros frequentes, no processamento de informação saliente (Taylor
& Fiske, 1978), na relutância em reconsiderar factos (Anderson, Lepper,
& Ross, 1980) e na confiança e utilização de crenças, expectativas e
teorias no processamento de informação.
Actualmente parece ser consensual que embora aparentemente indolentes e
crédulas, as pessoas quando motivadas podem ser pensadores sociais eficazes.
Esta ideia traduz-se na metáfora do percepiente como um estratega social
motivadoque dispõe de várias formas de pensar que selecciona e utiliza com base
nos seus objectivos, motivos e necessidades (Fiske & Taylor, 1991). Neste
sentido, e salvo as devidas excepções, o percepiente social não procura a
verdade absoluta mas sim a verdade suficiente para gerir as suas interacções.
De acordo com esta perspectiva sugere-se que os agentes sociais são
percepientes suficientemente bons (Fiske, 1992; Funder, 1987; Swann, 1984).
Saliente-se uma vez mais que encarar o percepiente como um ser racional que
procura consistência cognitiva ou como um processador simbólico de dados
humanos, implica isolar a cognição à finitude do cérebro humano. Em contraste,
quando se considera o conhecimento anterior, os objectivos e motivações do
percepiente num determinado contexto físico ou social, abre-se caminho a uma
abordagem da cognição como fenómeno emergente desta interacção entre o
indivíduo e a situação.
Formulações Actuais da Cognição Social: uma história recente
Os eventos cognitivos subjacentes à percepção, julgamento e tomada de decisão
receberam pouca atenção até aos anos 60. Durante cerca de metade do século XX,
a psicologia experimental foi dominada pela abordagem comportamentalista e pela
convicção de que a ciência deveria lidar apenas com variáveis observáveis e
fisicamente mensuráveis como os estímulos e as respostas (Skinner, 1963;
Thorndike, 1940; Watson, 1930). Neste sentido, o objectivo da pesquisa
psicológica seria o de identificar as leis que orientam o modo como o
comportamento é influenciado pelos eventos do ambiente, em particular, eventos
que funcionam como reforços e punições. Segundo as teorias da aprendizagem,
estes reforços e punições levariam, respectivamente, o organismo a repetir ou a
evitar determinado comportamento. Durante este período, a investigação sobre
sensação e percepção apoiou-se sobretudo na psicofísica e o estudo da
aprendizagem fundamentou-se frequentemente, em paradigmas sem significado
afectivo ou experiencial para os participantes (Gilbert, 1998). Durante este
período, o medo do mentalismo foi uma constante e os eventos mentais que
intervinham entre o estímulo percebido no ambiente e a resposta a que dava
origem eram considerados irrelevantes ' a mente era tratada como uma caixa
negra que os psicólogos não poderiam nem deveriam investigar (Skinner, 1963).
A psicologia da gestalt era, na altura, a mais permeável e receptiva a
conceitos mais mentalistas ou cognitivos. No entanto, os processos cognitivos
inicialmente investigados centravam-se, sobretudo, nas leis do processo
perceptivo, considerado isomorfo às propriedades dos estímulos. Tal como
referido anteriormente, com excepção de Lewin, Asch e Heider, que elaboraram os
princípios da psicologia da gestalt de forma consistente com a psicologia
social, o quadro tradicional bem estabelecido do comportamentalismo,
psicofísica e gestaltismo clássico constituíram um forte travão à emergência de
uma abordagem cognitiva dos fenómenos sociais.
Todavia, o estudo da cognição teve um passado na psicologia, nomeadamente nos
primeiros trabalhos empíricos que, com objectivos claramente cognitivos,
recorriam à introspecção como forma de compreender o pensamento humano. O
interesse na cognição foi, contudo, adiado e a introspecção abandonada como
metodologia, na medida em que o estudo de processos internos não se coadunava
com os padrões científicos de objectividade e rigor, emergentes numa psicologia
ainda preocupada em demarcar-se como disciplina científica.
O estudo dos processos cognitivos
Nos finais dos anos 50 e no início dos anos 60 com o estabelecimento do
paradigma cognitivo assistiu-se a uma reformulação radical na forma de definir
e abordar o objecto da psicologia, da sua epistemologia e métodos e a um novo
posicionamento no quadro geral das ciências. A importância da cognição foi
novamente reconsiderada propondo-se que a explicação do comportamento humano
exigia a identificação do conteúdo e formato das representações mentais e dos
respectivos processos cognitivos subjacentes.
Este movimento foi impulsionado pelas críticas da psicolinguística aos esforços
dos comportamentalistas para explicar a linguagem, cujos complexos aspectos
simbólicos não poderiam ser facilmente elucidados pelas abordagens
comportamentais (Chomsky, 1959). Um segundo aspecto, que levou à importância
renovada colocada na cognição em psicologia, foi o desenvolvimento do campo do
processamento de informação, que permitiu segmentar as operações mentais em
estádios sequenciais, especificando os processos internos que, presumivelmente,
intervinham entre a apresentação do estímulo e a resposta observada (Fiske
& Taylor, 1991). O computador tornou-se, assim, numa ferramenta
metodológica que permitia simular os processos cognitivos (Anderson, 1976;
Newell & Simon 1972; Schank & Abelson, 1977), nomeadamente ao nível da
formação de impressões e da memória social (e.g., Hastie, 1988; Linville,
Ficher, & Salovey, 1989; Smith, 1988) e, simultaneamente, numa metáfora
para descrever esses processos, falando-se de input e output, armazenamento,
processamento e recuperação da informação na cognição humana.
A ideia de que a mente poderia ser entendida e discutida de forma análoga a um
computador processador de informação levou à explosão de teorias e investigação
com o objectivo de explorar as estruturas e processos mentais utilizados pelos
processadores de informação humanos. O recurso à metáfora do computador
minimizou, contudo, e numa fase inicial, o papel do contexto social, da
motivação e do afecto, que dificilmente seriam passíveis de simular, o que
durante alguns anos conferiu à psicologia cognitiva, e mais tarde à cognição
social, aquilo que muitos consideraram uma natureza mecanicista e redutora.
Psicologia Social e Cognição
A psicologia social foi rápida a reconhecer a relevância das abordagens
cognitivas para explorar as suas preocupações tradicionais. Por um lado, a
psicologia social sempre teve subjacente uma ênfase na cognição (e.g.,
Berkowitz & Devine, 1995; Markus & Zajonc, 1985). A própria definição
clássica de Allport (1954) que descreve o objectivo da psicologia social como
uma tentativa de compreender e explicar como os pensamentos, os sentimentos e
os comportamentos dos indivíduos são influenciados pela presença, real,
imaginada ou implícita de outros seres humanos encerra um cunho cognitivo que
não contempla apenas a realidade social mas também esta realidade enquanto
representação mental. A perspectiva cognitiva na psicologia social pode, assim,
ser vista como uma explicação do comportamento humano baseada na compreensão da
natureza das representações mentais subjacentes a esse comportamento (Garcia-
Marques, 2001). Adicionalmente, muitas das questões com que a psicologia social
se vinha preocupando desde o início ' como formamos impressões acerca dos
outros; como explicamos o seu comportamento; como é que as nossas atitudes se
relacionam com as nossas acções; como resolvemos conflitos entre crenças; como
é que as nossas reacções podem ser manchadas pelo preconceito ' focalizam-se no
estudo de elementos cognitivos, como crenças e inferências. Paralelamente, a
própria linguagem da psicologia social sempre incluiu conceitos referentes a
estruturas cognitivas (e.g., atitudes, crenças, estereótipos) e processos
cognitivos (e.g., mudança de atitudes, formação de impressões, comparação
social, atribuição, tomada de decisão; Devine et al., 1994) . Embora durante
algum tempo estes conceitos tenham sido utilizados como variáveis mediadoras
que ajudavam a explicar os julgamentos, sentimentos e comportamentos,
gradualmente estas estruturas e processos se foram constituindo como o cerne da
investigação. Por exemplo, o estudo da formação de impressões não se limita a
avaliar se um indivíduo gosta ou não de uma pessoa alvo, mas investiga como é
que a sua impressão se encontra mentalmente representada e que aspectos dessa
impressão são utilizados para fazer determinado julgamento avaliativo. O mesmo
tipo de raciocínio pode ser válido para outras áreas (Devine et al., 1994).
Efectivamente, a conclusão a que vários investigadores chegaram foi que ao
excluir as representações e os processos cognitivos da investigação em
psicologia social, se estaria a adoptar uma perspectiva bastante redutora e
empobrecida do comportamento humano (Fiedler, 1996). Embora o pleno
desenvolvimento da abordagem cognitiva da psicologia social fosse travado pelas
tradições conservadoras do comportamentalismo e do reducionismo fisiológico, as
preocupações da psicologia social requeriam inevitavelmente um conjunto de
pressupostos acerca da estrutura e dos processos cognitivos. Pressupostos
herdados da gestalt social, do construtivismo, da teoria da aprendizagem
social, e doprocessamento de informaçãocomeçaram a serintegrados, convergindo
na ideia de que os acontecimentos não são recebidos passivamente por registos
perceptivos, mas são sim organizados em categorias, interpretados em termos de
estruturas internas de processamento de informação, e moldados em função da
experiência individual e cultural, adquirindo significado através de um
processo activo e construtivo de lidar com a realidade.
Assim, na década de 60, com o ressurgir do interesse pelo estudo dos processos
mentais, a psicologia cognitiva transborda para a psicologia social a vários
níveis. A partir da psicologia cognitiva a psicologia social formula novos
problemas, abraça novos métodos e constrói novas teorias, adoptando o interesse
por modelos de processo, procurando especificar a organização mental e
identificar as etapas exactas dos processos cognitivos internos subjacentes a
fenómenos psicossociais. Deste modo, embora a psicologia social já encerrasse
um carácter eminentemente cognitivo, a sistematização desse pendor cognitivo
permitiria um maior desenvolvimento teórico (Hamilton, et al., 1994).
Todavia, a permeabilidade da psicologia social a uma abordagem sócio-cognitiva
tornou por vezes a fronteira entre as duas abordagens um pouco ténue (Higgins,
2000). Uma possível solução para demarcar estas perspectivas foi fazer
corresponder a cognição social a um determinado conteúdo particular da
psicologia social. De facto, a cognição social foi durante algum tempo
equiparada à área da percepção de pessoas, preocupada com as impressões,
julgamentos, explicações e previsões acerca da personalidade e do comportamento
dos outros. Esta constituiu uma solução historicamente popular frequentemente
adoptada nos manuais de psicologia social. No entanto, esta solução não
satisfez os psicólogos sociais dos finais dos anos 70, entusiasmados com a
importância da cognição social para as mais variadas áreas da psicologia
social, tais como a mudança de atitudes, a comunicação interpessoal, a tomada
de decisão em grupo, entre outros (ver Fiske, Gilbert, & Lindzey, 2010;
Higgins & Kruglanski, 1996; Markus & Zajonc, 1985). Deste modo, não se
pode distinguir a cognição social da psicologia social fazendo da primeira
apenas uma área de conteúdo da última.
Uma solução alternativa seria reconhecer que a cognição social enfatiza o nível
de análise cognitivo na psicologia social. Contudo, nem toda a psicologia
social é cognição social porque nem toda a psicologia social enfatiza o nível
de análise cognitivo. A cognição social é social porque enfatiza o carácter
interpessoal, inter-subjectivo e reflexivo da cognição, e cognitiva porque
enfatiza o nível de análise cognitivo na psicologia social.
Por outro lado, a adopção da perspectiva cognitiva por parte da psicologia
social não se traduziu de forma linear em avanços significativos tanto ao nível
do conhecimento dos fundamentos sociais dos processos cognitivos como dos
fundamentos cognitivos do comportamento social. Segundo Garcia-Marques (2001),
grande parte das teorias do comportamento social foram desenvolvidas na
ausência de pressupostos relativos à arquitectura cognitiva subjacente a esse
comportamento, e sem preocupações relativas à plausibilidade cognitiva dos
mecanismos propostos. Segundo o mesmo autor, esta negligência levou a um
excessivo proliferar de mecanismos psicológicos avançados para explicar
domínios comportamentais específicos, ao invés de, com base nos mesmos
processos psicológicos básicos, se explicarem diversas funções cognitivas
(Abelson & Black, 1986). Por último, a psicologia social nem sempre adoptou
metodologias de investigação orientadas para o estudo dos processos cognitivos,
persistindo na utilização de paradigmas e instrumentos que visavam a
compreensão dos seus produtos finais (e.g., escalas de atitudes, listas de
traços; Fiske & Taylor, 1991; Ostrom, 1984).
Neste sentido, a cognição social demarca-se da psicologia social constituindo-
se como uma abordagem conceptual e empírica genérica e não apenas uma sub-
disciplina da ciência psicológica. Esta abordagem permite assim abrir novas
perspectivas no estudo dos problemas clássicos da psicologia social, mas também
no estudo de outras áreas de investigação ainda por explorar.
Cognição Social
O exponencial desenvolvimento da cognição social resultou de uma reacção ao
anterior domínio do comportamentalismo, e ao pressuposto de que as
representações e os processos internos não observáveis não se poderiam
constituir como objecto de investigação científica. Os investigadores em
cognição social foram capazes de aproveitar os novos modelos teóricos e as
novas ferramentas metodológicas desenvolvidas na psicologia cognitiva, e
utilizá-los para abordar problemas e questões clássicas da psicologia social a
partir de uma nova perspectiva e com novas estratégias experimentais (Devine et
al., 1994). A adopção desta abordagem obrigou a um conjunto de mudanças na
metodologia de investigação e ao estabelecimento de medidas desenhadas para
lidar com os processos psicológicos, inferindo-os e demonstrando-os através de
protocolos de recordação, medidas de tempos de reacção, julgamento, entre
outros.
Teorias e métodos desenvolvidos para examinar como é que conceitos como
pássaro ou maçã se encontram representados, poderiam ser utilizados para
estudar a representação de conceitos sociais como extrovertido ou
bibliotecário. Metodologias experimentais, revelando que a exposição a uma
palavra como banco automaticamente trazia à memória palavras relacionadas
como dinheiro, poderiam ser utilizadas para compreender como é que a
exposição a um membro de um grupo estereotipado activa automaticamente traços
associados com o estereótipo desse grupo. A investigação sobre as regras
inferenciais que as pessoas usam para fazer julgamentos acerca de eventos
incertos (e.g., arremesso de moedas) poderia ser aplicada aos julgamentos
acerca de eventos sociais incertos, como a probabilidade de outro indivíduo
exibir determinado comportamento (Kunda, 1999).
Neste contexto a cognição social constitui-se como uma abordagem própria que,
em meados dos anos 70, se encontrava em pleno desenvolvimento. Durante esta
década e nas seguintes assistiu-se ao ressurgir da exploração detalhada do
papel dos processos cognitivos na compreensão de fenómenos tão diversos como as
atitudes, as atribuições, e os processos intergrupais e ainda a memória de
pessoas, o desenvolvimento de esquemas, e o papel da cognição na persuasão e na
inferência social (Hogg & Cooper, 2003). A perspectiva da cognição social
atingiu o seu auge em 1984 com a publicação do livro Social Cognition de Susan
Fiske e Shelley Taylor. Definindo a cognição social como o estudo da forma
como as pessoas se compreendem umas às outras e a si próprias este livro,
reeditado em 1991 e novamente em 2008, espelha o desenvolvimento de todo o
domínio de investigação em cognição social.
Contributos e Críticas à Abordagem Sócio-Cognitiva
A cognição social tornou-se numa abordagem geral aplicável a quase todos os
domínios da psicologia social, cuja receptividade e produção teórica e
metodológica se encontra bem visível na quantidade de investigação e literatura
produzida ao longo das últimas quatro décadas. A adopção de uma abordagem
cognitiva permitiu um bom enquadramento para vários assuntos, incluindo alguns
dos mais proeminentes na psicologia social, nomeadamente a atribuição (e.g.,
Gilbert, Pelham, & Krull 1988), as atitudes (e.g., Eagly & Chaiken,
1993), os estereótipos (e.g., Hamilton, 1981), as relações interpessoais (e.g.,
Fletcher & Fincham, 1991), os grupos (e.g., Hinsz, Tindale, & Vollrath,
1997), a memória para informação social (e.g., Wyer & Srull, 1986), entre
outros.
Contudo, e embora a herança cognitiva tenha permitido aos investigadores da
abordagem sócio-cognitiva fazer uso efectivo das teorias e técnicas da
psicologia cognitiva para explorar estruturas mentais e criar modelos de
processo, o compromisso com o paradigma do processamento de informação levou,
na opinião de muitos autores, a que se tenham perdido de vista os fenómenos do
mundo real que, provavelmente, motivaram inicialmente a investigação (e.g.,
Neisser, 1980, 1982; Forgas, 1983; Graumann & Sommer, 1994), removendo
muito do que era social na investigação gerada e isolando o indivíduo na sua
actividade cognitiva.
Os modelos de processamento de informação centrais à cognição social foram
assim criticados por estudarem processos cognitivos desprovidos do seu conteúdo
e do seu contexto. Especificamente, estas críticas foram dirigidas à
perspectiva individualista que orientou a teoria e a investigação, e ao modo
como negligenciaram o facto dos conteúdos da cognição terem origem num contexto
físico e social de interacção e comunicação humanas. Efectivamente, o facto de
a cognição social ter como unidade de análise o indivíduo que percebe, deixando
de parte a importância do outro e do contexto nos processos cognitivos,
acabou por incentivar a individualização do social e a dessocialização do
indivíduo (Graumann, 1986). Assim, uma das principais críticas apontadas à
cognição social mais tradicional é que esta perpetua a divisão ontológica
cartesiana entre sujeito e objecto e assenta em concepções individualistas do
conhecimento (Farr, 1996). Por outro lado, a democratização da experimentação
que através de sofisticadas manipulações procurou demonstrar as mais recentes
criações teóricas, controlando deliberada e propositadamente potenciais
variáveis contaminadoras do mundo real, fizeram questionar em que medida este
ambiente idealizado poderia permitir reais progressos na tarefa de construir um
corpo de conhecimento que de alguma forma se aproximasse da experiência social
humana (Augoustinos & Walker, 1995). Estas e outras questões levaram a que
se discutisse até que ponto social seria um termo próprio para definir a
disciplina uma vez que, na perspectiva de alguns críticos, o único aspecto
social da cognição social seriam os próprios objectos sociais ' pessoas,
grupos, acontecimentos.
Convém contudo salientar que esta individualização tem um contexto histórico
onde se situam, simultaneamente, as forças da experimentação e do positivismo
que integraram a disciplina e a dotaram de respeitabilidade científica. Como
resposta a algumas destas críticas, alguns autores (e.g., Bodenhausen &
Wyer, 1988) recuperaram os pressupostos básicos, sumariados por Wyer (1980),
que orientaram a teoria e investigação em cognição social no fim dos anos 70. O
resultado destas reflexões sugere que os princípios teóricos suportados pela
investigação de laboratório acerca dos processos sócio-cognitivos fazem também
importantes previsões acerca dos fenómenos do mundo real. Ainda como resposta
ao alegado esvaziamento social das investigações conduzidas em cognição social,
Devine e colaboradores (1994) revêem teoricamente as várias áreas da abordagem
sócio-cognitiva e especificam o modo como os principais domínios e preocupações
da psicologia social têm sido abordados, pela cognição social, ao longo das
últimas décadas. Também Leyens e Dardenne (1996) defendem que a investigação em
cognição social é mais do que uma aplicação particular da psicologia cognitiva
a objectos sociais, nomeadamente porque tem um objecto social, tem uma origem
social que é criada e reforçada através da interacção social, e porque é
socialmente partilhada, sendo comum a diferentes membros de uma sociedade ou
grupo. Para além disso, Forgas em 1981, acentua explicitamente os aspectos
sociais da cognição, sugerindo que a cognição é mais do que o processamento da
informação, na medida em que é socialmente estruturada e socialmente
transmitida, e é moldada por valores, motivações e normas sociais. Finalmente,
e numa recente reflexão sobre a cognição social, também Higgins (2000) defende
a sua natureza social na medida em que aquilo que se aprende é relativo ao
mundo social e o mundo social é onde esta aprendizagem tem lugar. A cognição
social é por isso diferente da cognição não-social no modo como revela a
natureza interpessoal essencial da cognição.
Com base nestas reflexões saliente-se ainda que a cognição social difere dos
princípios gerais da cognição em alguns aspectos: comparativamente aos
objectos, as pessoas são agentes causais que percepcionam e são percepcionadas.
As pessoas, ao contrário dos objectos, possuem crenças, desejos, emoções e
traços de personalidade e a nossa percepção dos outros pode afectar o seu
comportamento. As pessoas são alvos difíceis de cognição porque se ajustam ao
facto de serem percebidas, sendo que muitos dos seus atributos têm que ser
inferidos e podem inclusivamente mudar (Ostrom, 1984).
Efectivamente, e se até final dos anos 80 a maior parte da teoria e
investigação em cognição social focou-se em cognições relativamente frias,
envolvidas na representação de conceitos sociais e no retirar de inferências a
partir delas, no final desta década e embora mantendo o interesse em elementos
cognitivos, o campo começou a orientar a sua atenção para outras dimensões
fazendo ressurgir um interesse histórico em dois outros sistemas ' motivação e
afecto (Cook, Fine, & House, 1995). A noção de que os nossos motivos podem
influenciar as nossas crenças assenta numa das mais importantes teorias da
psicologia social, a teoria da dissonância cognitiva, que se baseia no
pressuposto de que a motivação para reduzir a tensão desconfortável entre
crenças em conflito pode provocar tentativas de modificação de uma das crenças
discordantes (Festinger, 1957). Uma outra linha de investigação importante em
psicologia social, a investigação das atitudes e o seu impacto no
comportamento, posicionou, igualmente, o afecto como central ao conceito de
atitudes (Eagly & Chaiken, 1993). Mais recentemente, a investigação
especificamente direccionada às áreas afectivas da cognição levou a esforços
teóricos renovados para integrar a cognição, a motivação e o afecto (Kunda,
1999). Mais concretamente, começou a ser aceite que os organismos actuam no
sentido da satisfação das suas necessidades de sobrevivência (Fiske, 1992;
Simpson & Kenrick, 1997) e, como tal, a motivação e a cognição estabelecem
uma relação bidireccional de mútua influência (Kruglanski, 1996).
Paralelamente, a estreita ligação entre a emoção e a cognição é ainda
ilustrada, por exemplo, em estudos que demonstram que quando a emoção é
afectada se regista um decréscimo drástico na tomada de decisão racional
(Damásio, 1994). Actualmente, a teoria e a investigação convergem assim no
reconhecimento de que os processos cognitivos, motivacionais e emocionais
estabelecem uma relação de interdependência, em que os últimos regulam o
primeiro (Singer & Salovey, 1988) e que todos são partes indissociáveis e
fundamentais de um sistema auto-regulador que apoia a acção adaptativa (Smith
& Semin, 2004). Este interesse renovado nas cognições quentes levou à
exploração da forma como os nossos objectivos, desejos e sentimentos
influenciam o modo como nos comportamos e damos sentido ao mundo social (Kunda,
1999) e a estudar o modo como o próprio corpo, o contexto físico e a situação
social influenciam a cognição e, consequentemente o comportamento, de
organismos que procuram a melhor adaptação possível ao ambiente que os rodeia
(Smith & Semin, 2004).
Cognição Social: Desenvolvimentos e Perspectivas Futuras
Decorrente das críticas anteriormente mencionadas e de um esforço de integração
teórica e metodológica dos desenvolvimentos de áreas adjacentes, os psicólogos
sociais e sócio-cognitivos começaram a alargar o seu foco de atenção para além
dos processos cognitivos simbólicos e individuais. Actualmente são cada vez
mais aqueles que orientam os seus esforços de investigação de modo a incluir o
estudo da motivação e afecto, relações pessoais, pertença grupal, contexto
físico e social e diferenças culturais. Paralelamente a estes desenvolvimentos,
áreas como a psicologia cognitiva (Barsalou, 1999), a robótica (Brooks, 1999),
a antropologia cognitiva (Hutchins, 1995) e a psicologia do desenvolvimento
(Thelen & Smith, 1994), contribuíram de forma decisiva para a emergência de
uma nova abordagem ' a Cognição Social Situada.
Por outro lado, a constante preocupação em identificar os mecanismos internos
inerentes à cognição e ao comportamento conduziu a um redobrado interesse na
utilização de medidas complementares às medidas comportamentais tradicionais da
cognição social. Referimo-nos especificamente a um conjunto de metodologias que
permitem localizar e empreender uma avaliação compreensiva dos processos
cerebrais subjacentes à cognição e comportamento social e que fundamentaram uma
nova área de estudo ' as Neurociências Sócio-Cognitivas.
A Cognição Social Situada
A perspectiva da cognição social situada questiona as concepções
individualistas da cognição social, defendendo o carácter situado da cognição
e, consequentemente, da acção (Smith & Semin, 2004, 2007; para uma revisão
ver Semin et al., 2012). Esta perspectiva sustenta assim que os processos
sócio-cognitivos são permeáveis aos objectivos do percepiente social (Sinclair
& Kunda, 1999), ao seu estado emocional na situação (DeSteno, Dasgupta,
Bartlett, & Cajdric, 2004), ao contexto comunicativo (Norenzayan &
Schwarz, 1999), e aos constrangimentos do próprio corpo (e.g., Barsalou, 1998).
Contrariando a divisão cartesiana assumida pela perspectiva mais tradicional em
cognição social, que separa sujeito e objecto (Farr, 1996), todos estes
aspectos contextuais são equacionados como reguladores fundamentais da cognição
e não, apenas, como informação adicional a ser processada (Smith & Semin,
2004). Esta proposta implica, assim, uma alteração paradigmática dos
pressupostos inerentes à relação estabelecida entre a cognição e a acção,
assumindo um papel fundamental na mudança da metáfora computacional
cognitivista para a metáfora biológica que sustenta que a cognição e a acção
constituem um processo regulador adaptativo que serve, em última instância,
necessidades de sobrevivência (Fiske, 1992; Simpson & Kenrick, 1997).
Assim, por questões de sucesso adaptativo (e.g., evitar predadores ou caçar), a
cognição humana tem raízes no processamento sensório-motor e é orientada para
agir de acordo com a especificidade do contexto (para uma discussão, ver
Wilson, 2002). Ao assumir que a cognição actua enquanto agente regulador
adaptativo, a cognição social situada questiona que as representações mentais
sejam simbólicas, abstractas e estáveis e que sejam activadas e aplicadas por
processos relativamente automáticos e independentes do contexto, tal como
geralmente postulado pelas ciências cognitivas (Smith & Semin, 2007).
Passa, então, a ser considerada a natureza modal da cognição humana, que é
flexível e baseada em processos perceptivos e sensoriais (e.g., Barsalou, 1999;
Clark, 1997; Smith & Semin, 2004).
A cognição social situada encarna, deste modo, um projecto de mudança
epistemológica da própria construção e definição do conhecimento que, ao
retomar e adequar ideias passadas da psicologia social, promove a redefinição e
reenquadramento da investigação e análise da cognição e da acção humana. Desta
nova concepção emergem os seguintes pressupostos: 1) a cognição é para a acção;
2) a cognição é socialmente situada; 3) a cognição é distribuída; 4) a cognição
é corporalizada (embodied) (Semin & Smith, 2002; para uma revisão ver Smith
& Semin, 2004).
O primeiro pressuposto sugere que a cognição não é um fim em si mesmo, mas um
processo regulador adaptativo que é moldado pelos objectivos sociais e pelos
requisitos da acção (Smith & Semin, 2004). Assim, a inteligência é
percebida enquanto interacções adaptativas com outros agentes e com o contexto
e as estruturas cognitivas são consideradas não só como receptores passivos mas
também como operadores no mundo. Por exemplo, as atitudes são automaticamente
activadas e influenciam os julgamentos e comportamentos em torno do objecto
(Fazio, Sanbonmatsu, Powell, & Kardes, 1986), e as impressões, que integram
informação dos sistemas visual, verbal, afectivo e de acção (Carlston, 1994),
ditam um comportamento adaptado e moldado às características da pessoa
percebida.
Outro dos pontos de análise da cognição situada é a sua natureza socialmente
situada(Semin & Smith, 2002; Smith & Semin, 2004). Se considerarmos que
os processos cognitivos não são construídos nem constrangidos pela situação,
como a perspectiva mentalista preconiza, então, o agente lida com um mundo
análogo ao inscrito na sua cabeça e o conhecimento é remetido para um conjunto
de descrições de como o mundo aparenta ser e de comportamentos adequados a
certas situações (Clancey, 1997). Como contraponto, a cognição situada defende
o poder da situação, ou seja, a influência de um ambiente significativo cujas
características são recursos ou constrangimentos à cognição (Gibson, 1966) e às
interacções entre os indivíduos (Semin & Smith, 2002). Estas ideias são
sustentadas por evidências que demonstram que as atribuições (Norenzayan &
Schwarz, 1999), as auto-atribuições (Rhodewalt & Augustsdottir, 1986), a
auto-estima (Crocker, 1999), o auto-conceito (McGuire & McGuire, 1988) e os
estereótipos sociais (Schaller & Convey, 1999; Garcia-Marques, Santos,
& Mackie, 2006), processos cognitivos normalmente considerados automáticos
e estáveis, são afinal influenciados por pistas derivadas da situação social
imediata. Adicionalmente, existe uma resposta adaptativa dos processos
comunicativos, cognitivos e avaliativos às propriedades situadas da comunicação
(Higgins & Semin, 2001); o conhecimento conceptual não é representado de
forma abstracta mas sim organizado por situações específicas (Barsalou, 2000;
Yeh & Barsalou, 2006); e, uma vez que o ambiente faz parte dos nossos
processos cognitivos, aprendemos a geri-lo para aceder de forma mais rápida e
eficaz à memória (Clark, 2008; Kirsh, 1995).
O terceiro pressuposto da cognição situada refere que a cognição é
distribuídaespacial e temporalmente pelo ambiente, pessoas e grupos
(e.g.,Garcia-Marques, Garrido, Hamilton, & Ferreira, 2012; Garrido, Garcia-
Marques, & Hamilton, 2012a; Garrido, Garcia-Marques, & Hamilton, 2012b;
Levine, Resnick, & Higgins, 1993; Wegner, 1986; Weldon & Bellinger,
1997; para uma revisão ver Rajaram & Pereira-Pasarin, 2010). A evolução da
sociedade humana em geral e o funcionamento individual em sociedade não podem
ser percebidos sem uma compreensão do conhecimento como um processo cumulativo
que é distribuído e preservado através de ferramentas (e.g., compassos,
calculadoras, computadores), da estruturação do meio ambiente (e.g., sinais de
trânsito, marcos de correio) e da distribuição do conhecimento por pessoas e
grupos (mecânicos, navegadores, programadores, ver Hutchins, 1995). Os agentes
devem conseguir aceder, coordenar e sincronizar este conhecimento distribuído
para resolver problemas específicos e utilizar ferramentas (e.g., linguagem)
que permitam a ligação social (Semin, 2000).
A última consideração da cognição situada sustenta que a cognição é
corporalizada. Os sistemas nervosos desenvolveram-se para controlar oscorpos,
para que os organismos adaptem o seu comportamento a um ambiente de rápida
mudança. Neste sentido, as arquitecturas envolvidas no nosso corpo e cérebro
constituem fontes de regularidade ou de constrangimento à cognição, afecto,
motivação e comportamento (Smith & Semin, 2004). No que diz respeito à
corporalização dos processos cognitivos, estudos recentes ilustram por exemplo
que os estados emocionais e os julgamentos avaliativos podem ser induzidos por
actividades corporais. Por exemplo, foi demonstrado que a execução de
movimentos verticais com a cabeça enquanto se escuta uma mensagem persuasiva,
promove avaliações mais positivas dessa mensagem, do que quando o movimento da
cabeça é horizontal (Wells & Petty, 1980). No âmbito da formação de
impressões, verificou-se também que a congruência entre a valência dos
comportamentos de um alvo social (e.g., positiva) e a localização espacial onde
estes são apresentados (e.g., em cima) facilita o processo de formação de
impressões e a sua posterior recuperação (Palma, Garrido, & Semin, 2011).
Outros estudos mostram ainda que a adopção de expressões faciais
correspondentes a estados emotivos (induzidas linguística ou mecanicamente)
promove a emoção correspondente (e.g., Duclos et al., 1989; Laird, 1974) e
influencia tarefas de julgamento avaliativo (e.g., Foroni & Semin, 2009;
Strack, Martin, & Stepper, 1998; para uma revisão ver Niedenthal, 2007).
Esta ligação dos programas afectivo-motores é imediata, automática, impulsiva e
não deliberada (e.g., Neumann & Strack, 2000). A corporalização da cognição
é igualmente demonstrada pela ligação entre a percepção e o comportamento, já
reconhecida por William James (1890/1950). Por exemplo, estudos experimentais
mostram que a activação do conceito bem-educado promove comportamentos de boa
educação (Bargh, Chen, & Burrows, 1996; Chartrand & Bargh, 1999) e a
activação do estereótipo idoso, leva a que os participantes andem mais
devagar (Bargh et al., 1996). Estes e outros estudos sugerem que o corpo
estabelece uma relação estreita com o processamento de informação social e
emocional. No entanto, só as recentes teorias da cognição corporalizada, que
interpretam a aquisição e utilização do conhecimento como processos
fundamentados nos sistemas de modalidades específicas do cérebro, conseguem
explicar tais evidências ou, pelo menos, predizer os efeitos explícitos e a
priori(Barsalou, Niedenthal, Barbey, & Ruppert, 2003; Smith & Semin,
2004).
Contributos e Críticas à abordagem da Cognição Social Situada
Apesar da cognição social situada ter vindo a granjear um amplo e crescente
apoio, em parte decorrente das críticas que aludem à descontextualização da
análise dos processos cognitivos por parte da cognição social mais tradicional,
as propostas desta abordagem são também caracterizadas pela controvérsia que
suscitam. Alguns autores (e.g., Wilson, 2002) defendem por exemplo, que sugerir
que toda a cognição é situada implica excluir uma grande parte do processamento
cognitivo humano nomeadamente, a actividade cognitiva realizada offline. Como
exemplo salientam-se actividades como planear, recordar ou sonhar acordado que
poderão ocorrer em contextos não directamente relevantes para o conteúdo dessas
actividades. Ou seja, segundo Wilson, um dos aspectos mais característicos da
cognição humana é precisamente o facto de que pode ocorrer dissociada de
qualquer interacção com o ambiente físico e social.
No entanto, e se a interacção com o contexto influencia as actividades
supracitadas, tornando a cognição situada, então a inexistência dessa
interacção torna-a igualmente situada, na medida em que a presença ou ausência
de determinados conteúdos, facilita ou constrange a actividade cognitiva. Este
argumento encontra apoio nas propostas das grounded theories (e.g., Barsalou,
1999; para revisão ver Barsalou, 2008) que sugerem que mesmo quando a cognição
é realizada offline, são reactivadas as respectivas modalidades activadas na
cognição online, levando o indivíduo a simular a experiência como na presença
da situação ou evento. Este argumento dificilmente deixa espaço para a noção de
existência de uma cognição não situada.
Por outro lado, a ideia de que a actividade cognitiva não se restringe ao que
se passa na cabeça dos indivíduos mas que é distribuída por outros agentes
sociais e situações com as quais o indivíduo interage também não fica isenta de
críticas. Segundo Wilson, o estudo do indivíduo na situação como um sistema
unificado não se justifica. Para esta autora, a definição das fronteiras de um
sistema constitui uma questão de julgamento e depende dos objectivos
particulares da análise realizada. Neste sentido, é preciso decidir que sistema
será mais natural e mais cientificamente produtivo: a mente, ou a mente, o
corpo e certos aspectos da situação. Recordando como objectivo da ciência o
estabelecimento de princípios e regularidades e não a explicação de
acontecimentos específicos, então a natureza facultativa da cognição
distribuída torna-se um problema.
Em resumo, a transição de uma abordagem elementar, simbólica e
descontextualizada da cognição para uma abordagem marcadamente contextual,
dinâmica, e sistémica tem os seus perigos. Tal como reconhece Clancey (2009),
uma das dificuldades em articular uma visão situada da cognição tem sido e
continua a ser o facto de, para algumas pessoas, esta abordagem sugerir um
certo relativismo cultural da ciência (Slezak, 1989; Bruner, 1990). Estas
objecções à cognição situada decorrem assim da preocupação de que sistemas
abertos possam ser arbitrários e da necessidade de impor um controlo externo
para manter os sistemas complexos organizados (Lakoff; 2002). Por outro lado,
uma visão da cognição como infinitamente flexível, distribuída e responsiva ao
contexto físico e social carece de poder preditivo. Torna-se assim difícil
prever exactamente como é que um contexto infinitamente variável afecta o nosso
pensamento e comportamento. Para contornar esta limitação será necessário um
acrescido esforço teórico e empírico, no sentido de explorar as características
do contexto que são mais importantes na determinação da cognição (Smith &
Conrey, 2009).
Não sendo uma teoria unificada, nem constituindo uma ruptura com as temáticas
historicamente estudadas na cognição social, a cognição social situada pode ser
perspectivada como uma continuação das trajectórias tradicionais, com novas
metodologias, novas ferramentas conceptuais, e, por vezes novos objectivos,
chamando a atenção para a importância de se desenvolverem abordagens teóricas
que coloquem a interdependência entre o ser social e o contexto em primeiro
plano, e que especifiquem não só os processos psicológicos envolvidos mas
também as suas fronteiras (Smith & Semin, 2004; Wilson, 2002).
A Abordagem das Neurociências Sócio-Cognitivas: O que se faz de novo em
Cognição Social
As neurociências sócio-cognitivas (NSC)2, tal como a sua designação deixa
antever, constituem uma área interdisplicinar que combina métodos da
neurociência cognitiva com teorias da cognição social, economia, ciências
políticas, antropologia, entre outras, de forma a estudar os mecanismos mentais
que criam, enquadram, regulam e respondem à nossa experiência no mundo social
(Lieberman, 2010). Para tal, recorrem à medida de correlatos neurológicos, que
expressam uma relação entre um estímulo e uma resposta específica,
suficientemente estáveis para serem psicologicamente interpretados,
constituindo, por isso, uma ferramenta potencialmente útil de investigação em
psicologia.
A receptividade da cognição social às neurociências cognitivas deveu-se
sobretudo ao potencial desta abordagem para colmatar algumas limitações
teóricas mas sobretudo metodológicas, nomeadamente no que diz respeito à
identificação das estruturas e processos cognitivos. Tal como referido
anteriormente, muitos dos paradigmas que permitiram retirar inferências quanto
à influência dos processos cognitivos nas respostas comportamentais observáveis
basearam-se em medidas dependentes como a latência da resposta, a taxa de erros
e em avaliações da memória dos indivíduos (e.g., recordação). Apesar de estas
medidas comportamentais contribuírem indiscutivelmente para o desenvolvimento
de paradigmas e teorias em cognição social, não deixam de ser limitadas quanto
às inferências que podem ser extraídas. Por exemplo, as medidas comportamentais
expressam o resultado da combinação de processos cognitivos, afectivos e
motores (Coles, Smidt, Scheffers, & Otten, 1995), não sendo todos de
interesse teórico para as questões em estudo. Mais especificamente, as medidas
comportamentais representam um conjunto de processos cumulativos relativos ao
estímulo de interesse, mas não constituem em si mesmas medidas directas desses
processos. Assim, devem ser ponderadas as inferências extraídas destas medidas,
uma vez que dificilmente conseguem separar a influência dos vários componentes
do sistema de processamento de informação, não localizam os processos
psicológicos no cérebro (o que não permite diferenciar mecanismos psicológicos,
aparentemente semelhantes, que são afinal diferentes e identificar processos
que afinal ocorrem nas mesmas regiões cerebrais), não avaliam os processos
psicológicos em tempo real, e apresentam limitações em revelar especificamente
a estrutura da cognição social (e.g., Bartholow, 2010).
A NSC procura, deste modo, estudar os mecanismos neuronais que estão
subjacentes aos processos sócio-cognitivos (e.g., Blakemore, Winston, &
Frith, 2004) através da combinação de três níveis de análise: o nível social,
relativo aos factores sociais e motivacionais que influenciam o comportamento e
a experiência; o nível cognitivo, que diz respeito aos mecanismos do
processamento de informação que levam aos fenómenos de nível social; e o nível
neuronal, centrado nos mecanismos cerebrais que levam aos processos de nível
cognitivo (Ochsner & Lieberman, 2001). Assim, esta abordagem pretende
estudar os mecanismos neurocognitivos implícitos que suportam a cognição
social, em vez de focar a atenção nos efeitos psicofisiológicos posteriores
resultantes da cognição social (Lieberman, 2005).
Note-se contudo que nem sempre foi este o caso. Até há bem pouco tempo, os
estudos nesta área centravam-se sobretudo na utilização de técnicas
farmacológicas e psicofisiológicas para relacionar variáveis sócio-cognitivas
com padrões de resposta imune tais como níveis hormonais, batimento cardíaco,
respiração ou outras medidas fisiológicas periféricas (e.g., Cacioppo et al.,
1998; Cacioppo, Tassinary, & Berntson, 2000; Tomaka, Blascovich, Kelsey,
& Leitten, 1993). No entanto, estas medidas só reflectem indirectamente as
operações do sistema cerebral, não se podendo retirar inferências directas
sobre o sistema neurocognitivo. Nos últimos anos, o aumento e melhoria das
populações neuropsicológicas e das técnicas de neuroimagem permitiram
relacionar directamente as funções sociais e afectivas com os sistemas
neurocognitivos e testar novas hipóteses quanto à natureza da cognição social
(ver Ochsner & Lieberman, 2001).
A NSC conheceu um exponencial desenvolvimento na década de 90, a partir de um
conjunto de estudos que, recorrendo a sofisticadas metodologias, procuraram
estudar o cérebro para testar questões sobre o tipo de processos envolvidos na
cognição social normal, em vez de se focarem em descrever o que está
danificado no cérebro dos pacientes com lesões (Lieberman, 2007a). Por exemplo,
a utilização dos ERP3 (Event Related Potentials) permitiu identificar as
regiões do córtex que estão diferencialmente envolvidas em crenças avaliativas
e não avaliativas, sugerindo que diferentes tipos de cognição apoiam estes dois
tipos de atitudes (e.g., Cacioppo, Crites, & Gardner, 1996). De facto,
actualmente reconhece-se que os ERP são bastante úteis para determinar em que
medida cada condição dos estímulos influencia diferentes aspectos do
processamento de informação, separando a influência dos vários componentes do
sistema de processamento de informação; a ordem temporal relativa desses
processos em tempo real; e como é que esses processos dão origem às respostas
comportamentais observáveis, indexando directamente as respostas neuronais
inerentes a processos cognitivos e afectivo-motivacionais de interesse (ver
Bartholow, 2010; Bartholow & Dickter, 2007, para revisão).
No entanto, foi a introdução da fMRI4 (Functional Magnetic Resonance Imaging),
enquanto técnica das neurociências aplicada à cogniçãosocial, que catalisou a
NSC, conferindo-lhe a coerência necessária enquanto área de estudo (Lieberman,
2005). Os primeiros estudos a utilizar esta técnica abordaram temas como os
estereótipos, verificando, por exemplo, uma maior activação da amígdala perante
a apresentação de faces de pessoas pertencentes a um outgroup (Hart et al.,
2000; Phelps et al., 2000); o auto-conhecimento, ao propor que recordamos
melhor informação sobre nós próprios do que outro tipo de informação semântica,
porque o processamento relativo ao self ocorre numa zona do córtex
funcionalmente diferente da de outro tipo de processamento (Kelley et al.,
2002), e a teoria da mente, ou seja, a capacidade da mente pensar sobre a
mente, no âmbito da qual foram revelados os vários substratos cerebrais
envolvidos neste tipo de processamento (Baron-Cohen, Ring, Moriarty, Shmitz,
& Costa, 1994; Frith & Frith, 1999) . Estudos mais recentes abordam
vários domínios da psicologia social como a auto-consciência (Gusnard, Akbudak,
Shulman, & Raichle, 2001; Keenan, Nelson, O'Connor, & Pascual-Leone
2001); julgamento e tomada de decisão (De Quervain et al., 2004; Sanfey,
Rilling, Aronson, Nystrom, & Cohen, 2003); a cooperação (Kosfeld,
Heinrichs, Zak, Fischbacher, & Fehr, 2005; Rilling, Sanfey, Aronson,
Nystrom, & Cohen, 2004); os auto-esquemas (Lieberman et al., 2004); a
exclusão social (Eisenberger, Lieberman, & Williams, 2003); a avaliação
atitudinal (Cunningham, Johnson, Gatenby, Gore, & Banaji, 2003; Wood,
Romero, Knutson, & Grafman, 2005); a regulação dos estereótipos (Amodio,
Harmon-Jones, & Devine, 2003; Lieberman, Hariri, Jarcho, Eisenberger, &
Bookheimer, 2005; Richeson et al., 2003); os efeitos das expectativas
(Petrovic, Kalso, Petersson, & Ingvar, 2002; Wager et al., 2004); a
cognição relacional (e.g., Aron et al., 2005; Iacoboni et al., 2004); a empatia
(Carr, Iacoboni, Dubeau, Mazziotta, & Lenzi, 2003; Singer et al., 2004),
entre outros.
O contributo para a cognição social dos estudos que recorrem a fMRI pode ser
apreciado a três níveis. Por um lado, permitem clarificar situações em que
ocorrem dois processos psicológicos que experiencialmente se sentem de forma
idêntica e produzem resultados comportamentais semelhantes, mas que na verdade
dependem de diferentes mecanismos subjacentes. Por outro lado, permitem
observar processos que, ao contrário do que se pensa, dependem dos mesmos
mecanismos. Em ambas as situações esses mecanismos podem ser reconhecidos ao
ser identificada a sua localização no cérebro. Por fim, à medida que se vai
sabendo mais sobre as funções de diferentes regiões do cérebro, começa a
tornar-se possível inferir alguns processos mentais, apenas através da
observação da actividade cerebral (Lieberman, 2007a).
Em resumo, na sequência de importantes desenvolvimentos tecnológicos, as
ferramentas utilizadas em neurociências foram importadas e desenvolvidas para
estudar a cognição social. Entre estas destacamos as técnicas de neuroimagem
como a ressonância magnética funcional (fMRI), a tomografia de emissão de
positrões (PET)5, os potenciais evocados (ERP), a estimulação magnética
transcranial (TMS)6, e as técnicas neuropsicológicas do estudo de lesões
cerebrais (e.g., Lieberman, 2007a; Lieberman, 2010). Como vários autores
referem (e.g., Ochsner & Lieberman, 2001), o importante é perceber estas
técnicas como ferramentas adicionais e complementares às medidas tradicionais
de investigação em cognição social, e não como um fim em si mesmo, que retire a
ênfase da compreensão dos processos afectivo-sociais e o coloque na sua
localização.
Contributos e Críticas às Neurociências Sócio-Cognitivas
Mas quais são então as consequências para a cognição social desta aparente
explosão das neurociências? Qual o papel da neurociência sócio-cognitiva no
desenvolvimento de modelos e teorias psicológicas? Num breve olhar pela
literatura podem encontrar-se pelo menos três perspectivas distintas sobre
estas questões.
De um lado do extremo situam-se aqueles que afirmam que a investigação em
neurociência cognitiva ainda não possui dados que possam ser utilizados para
testar e distinguir entre teorias que concorrem pela explicação do mesmo
fenómeno psicológico (e.g., Coltheart, 2006; Henson, 2005).
Com uma posição mais moderada encontram-se aqueles que, reconhecem as
neurociências como uma área importante, e que apesar de recente apresenta já um
desenvolvimento considerável. Especificamente, admitem que o mapeamento das
áreas cerebrais de alguns processos cognitivos simples permitido pelas
neurociências poderá ser útil para informar e diferenciar entre modelos
psicológicos. No entanto, reconhecem também o limitado potencial de aplicação
dos dados obtidos na investigação em neurociência aos modelos actualmente
existentes em cognição social. Estas limitações decorrem da complexidade dos
próprios processos psicossociais que dificilmente permitem uma exacta
localização (e.g., Lieberman, 2007a; Mitchell, 2008; Willingham & Dunn,
2003). De facto, a complexidade da mente humana coloca problemas à neurociência
cognitiva7. A mente humana possui um carácter hierárquico com diferentes níveis
de complexidade e de integridade teórica. Na base desta hierarquia estão as
representações e os processos cognitivos. No nível seguinte encontram-se os
construtos de primeira ordem (e.g., percepção, atenção, memória), constituídos
por representações e processos. Seguem-se os construtos de segunda ordem (e.g.,
estereótipos, formação de impressões, conformidade), construídos a partir de
construtos de primeira ordem mas que podem também incluir representações e
processos. Enquanto que a psicologia cognitiva tende a centrar-se nos
construtos de primeira ordem, a cognição social é, por definição, uma
disciplina cujo nível de análise incide nos níveis mais elevados da hierarquia,
o que coloca desde logo o problema da sua localização no cérebro. É no entanto
possível argumentar que muitos dos modelos contemporâneos da cognição social
são compostos por construtos de segunda ordem que apesar de não serem passíveis
de localização cerebral directa podem ser decompostos em construtos mais
básicos que são eventualmente localizáveis (Willingham & Dunn, 2003).
Contudo, será que, por exemplo, o processo de categorização inicial, comum em
muitos dos actuais modelos de formação de impressões (e.g., Brewer, 1988; Fiske
& Neuberg, 1990), não é ele próprio composto por vários sub-processos
recrutados consoante o tipo de categorização a efectuar (e.g., raça, sexo)?
Qual é assim a pertinência deste nível de detalhe para os actuais modelos de
formação de impressões? Será que estes modelos ganham poder explicativo se
incorporarem em si este nível de precisão? Estas questões levam, precisamente,
a outra crítica feita à introdução das medidas das neurociências cognitivas na
cognição social. Até que ponto é que os contributos feitos por ambas as áreas
(NSC e cognição social) resultam em benefícios mútuos e contribuem para um
desenvolvimento recíproco? Segundo Lieberman (2005) pode considerar-se que a
NSC retira muito mais da investigação em cognição social do que aquilo que dá
em troca, na medida em que os conceitos e teorias em cognição social são usados
para identificar a função sócio-cognitiva de determinadas regiões no cérebro,
não sendo claro até que ponto a compreensão destas relações é de facto um
contributo para a cognição social. Além disso, algumas das metodologias
utilizadas em NSC impedem os participantes de falar, de se mexerem, de
interagirem e, muitas vezes é necessária a sucessiva repetição de ensaios para
extrair sinais detectáveis do ruído. Assim, ao suprimir a importância do
contexto, dos agentes e das suas interacções, poderá questionar-se até que
ponto esta visão não se torna redutora, e em que medida enfatizar a localização
dos processos psicológicos, poderá contribuir para a compreensão dos fenómenos
sociais e afectivos que consideram o indivíduo inserido num contexto social.
Efectivamente, a complexidade dos indivíduos e dos próprios fenómenos sociais
está presente em qualquer tipo de investigação em cognição social. Acrescentar
qualquer contribuição à cognição social usando qualquer metodologia é difícil,
uma vez que os nossos participantes são alvos em movimento que tentam perceber
o propósito das nossas experiências e as nossas experiências devem ser
ecologicamente válidas dentro de limites éticos aceitáveis, e ainda assim
avaliarem as variáveis dependentes adequadas (Lieberman, 2010).
Por último, do outro lado do extremo, temos aqueles que defendem que a NSC é
uma área vibrante que tem contribuído grandemente para o conhecimento sobre o
ser humano social com novas descobertas e ideias que desafiam muitas teorias
existentes em cognição social (e.g., Lieberman, 2007a; Mitchell, 2008; Ochsner
& Lieberman, 2001). Segundo esta perspectiva, sendo a cognição social uma
disciplina que coloca o seu ênfase nos processos cognitivos envolvidos nos
fenómenos psicossociais, a localização das áreas cerebrais onde esses processos
ocorrem poderá ser potencialmente interessante. Para além disso, uma vez que
os processos cognitivos são implementados pelo cérebro, parece fazer sentido
explorar a possibilidade de que as medidas da actividade cerebral possam
fornecer insights sobre a sua natureza (Rugg & Coles, 1995, p. 27). Neste
sentido, as recentes técnicas de neuroimagem e os desenvolvimentos da NSC
poderão constituir contributos importantes para a compreensão do funcionamento
cognitivo. No entanto, o facto de muitos investigadores consideram que saber
onde os processos cognitivos ocorrem é o mesmo que saber como ocorrem,
levou a que as contribuições dos estudos de neuroanatomia funcional para a
cognição social fossem precedidos por uma má reputação. Contudo, e apesar de o
onde por si só deixar em aberto muitas questões, por vezes, estes estudos de
mapeamento cerebral levam a outros estudos que contribuem realmente para o
desenvolvimento de teorias em cognição social (Lieberman, 2010). Deste ponto de
vista, a utilidade da investigação em NSC emerge quando a questão onde (no
cérebro) é apenas um prelúdio para as questões quando, porquê e como. Há
muito mais na neurociência cognitiva para além da neuroanatomia funcional, da
localização dos processos psicológicos, da resposta à pergunta onde. O facto
de se saber onde certos fenómenos ocorrem leva a que, por vezes, se saiba como
ocorrem, quando ocorrem e porque ocorrem. Assim, se a resposta à pergunta
onde não for interpretada enquanto um fim em si mesmo, podemos considerar que
as medidas da NSC podem contribuir para desvendar as estruturas e os processos
inerentes aos fenómenos sociais (Lieberman, 2007a).
Neste sentido, um dos benefícios da abordagem NSC é a melhor precisão na
caracterização do fenómeno sócio-emocional (Ochsner & Lieberman, 2001). Ao
estudar-se as estruturas neurocognitivas subjacentes podem ser capturadas
comunalidades existentes entre fenómenos sociais aparentemente heterogéneos. A
NSC pode ainda esclarecer algumas destas relações ao mapear as bases neuronais
das diferentes formas de cognição social. Se as mesmas áreas cerebrais forem
activadas para diferentes formas de cognição social, será razoável concluir que
as mesmas áreas estão a ser recrutadas para diferentes processos (Lieberman,
2000) . Para além disso, a informação relativa ao funcionamento do cérebro pode
se utilizada para diferenciar fenómenos aparentemente semelhantes e dissecar
fenómenos complexos nos seus componentes mais simples, o que não poderia ser
feito recorrendo às medidas comportamentais tradicionais (Ochsner &
Lieberman, 2001). Um bom exemplo disto é a investigação em memória, que
indagava se diversos tipos de memória eram fruto de um único sistema de memória
a operar de diferentes formas, ou de sistemas de memória distintos a operarem
de forma concertada. Esta questão foi recentemente ultrapassada recorrendo a
dados neuropsicológicos e provenientes da neuroimagem que apontam para a
existência de múltiplos sistemas de memória (e.g., Schacter & Tulving,
1994; Squire, 1992). Por último, a neuroimagem permite também a avaliação das
contribuições independentes de processos que ocorrem simultaneamente como, por
exemplo, os componentes automáticos e controlados de um dado processo (Ochsner
& Lieberman, 2001).
No entanto, é de notar que é a junção de múltiplas áreas do conhecimento e de
vários métodos e técnicas que constitui um real contributo para o
desenvolvimento das teorias em cognição social. Enquanto que os neurocientistas
cognitivos usaram, historicamente, metodologias minimalistas para estudar
fenómenos elementares, compreendendo o fenómeno social segundo uma perspectiva
bottom-up, os psicólogos sociais estiveram mais interessados em analisar um
vasto conjunto de fenómenos sociais complexos e socialmente relevantes,
integrando uma perspectiva top-down. Nos últimos anos, começou a considerar-se,
cada vez mais, que ambas as perspectivas não podem ser investigadas
independentemente e, como tal, ambas têm a ganhar com os contributos recíprocos
(Ochsner & Lieberman, 2001). Efectivamente, uma das premissas desta
abordagem respeita ao facto de as diferentes questões impostas pelos psicólogos
sociais e pelos neurocientistas cognitivos não serem independentes ou
mutuamente exclusivas, mas podem sim servir e enriquecer ambas as áreas (e.g.,
Miller & Keller, 2000; Ochsner & Lieberman, 2001). Por um lado, os
psicólogos sociais podem usar os dados das neurociências para desambiguar e
testar teorias concorrentes relativas aos processos psicológicos subjacentes a
vários tipos de fenómenos. Para desempenharem tais testes, os psicólogos
sociais podem fazer uso do conhecimento relativo aos sistemas do cérebro que
estão inerentes à memória, linguagem, emoção e outros processos, o que
permitiria testar hipóteses que não poderiam ser testadas usando somente
medidas comportamentais. Por outro lado, ao investigarem fenómenos sociais, os
neurocientistas cognitivos podem informar os seus estudos com conhecimento
proveniente da psicologia social sobre os factores que determinam porquê e como
é que os seres humanos percebem os outros e a si mesmos, tomam decisões, entre
outros, partindo do princípio que os estímulos sociais e não sociais são
processados de forma diferente. Esta perspectiva assume que a NSC tem muitos
objectivos em comum com a psicologia social em geral, e com a cognição social,
em particular, conferindo e acrescentando um novo conjunto de ferramentas para
suportar e empreender esses objectivos (Lieberman, 2007a; Ochsner &
Lieberman, 2001).
Em síntese, a ideia de que o entendimento dos processos cognitivos é importante
para a compreensão dos fenómenos sociais não é, tal como referido, nova em
cognição social. Indiscutível é também, o contributo dos avanços metodológicos
das neurociências que, em conjunto com teorias e medidas da cognição social,
permitem responder a algumas questões e levantar outras tantas. No entanto,
ainda há um longo caminho a percorrer e enquanto não houver um conhecimento
compreensivo quanto aos sistemas neuronais subjacentes a determinados fenómenos
comportamentais e cognitivos, estes passos iniciais em NSC servem mais para
identificar os correlatos cerebrais desses fenómenos do que para testar teorias
sobre o como e o porquêda sua ocorrência (Ochsner & Lieberman, 2001).
Assim, e face ao panorama que as neurociências nos oferecem actualmente, talvez
seja mais pertinente para a cognição social a manutenção do nível de
desenvolvimento teórico atingido até ao momento ao invés de um esforço em
dirigir (e limitar) os seus programas de investigação exclusivamente a
problemas que são localizáveis. Não obstante, a informação que advém do
mapeamento cerebral pode ser bastante útil para a melhor compreensão dos
problemas colocados pela cognição social, reconhecendo a existência de
fenómenos que não são passíveis deste mapeamento devido ao seu grau de
complexidade. Contudo, a nossa expectativa é a de que o desenvolvimento das
duas áreas continue e que a comunicação entre ambas aconteça, combinando as
recentes medidas das neurociências com as medidas comportamentais tradicionais,
de modo a actuarem enquanto ferramenta conjunta para compreender os processos
psicológicos inerentes às respostas comportamentais, limitando os mecanismos
que são referidos como subjacentes ao comportamento observável e contribuindo
para o desenvolvimento e delimitação de vários paradigmas e teorias em cognição
social.
Conclusão
A abordagem sócio-cognitiva está presente em diferentes domínios da psicologia.
Embora inicialmente a sua proximidade seja mais evidente com a psicologia
cognitiva, reflectindo o pressuposto de que os mesmos princípios de
processamento de informação se aplicam quer a domínios sociais quer não
sociais, a cognição social não é apenas a aplicação da psicologia cognitiva a
tópicos da psicologia social. De uma maneira geral, a abordagem cognitiva dos
fenómenos sociais não os reduz a uma racionalidade fria e descontextualizada.
Os defensores da abordagem da cognição social não se limitam ao estudo de
processos puramente intelectuais de pensamento, julgamento e recordação, na
medida em que acentuam a natureza social do processamento de informação,
considerando na sua abordagem quais os factores (e.g., a relevância pessoal, os
estados afectivos e motivacionais) bem como as variáveis contextuais que
influenciam a forma como percebemos, sentimos e agimos sobre o mundo.
Curiosamente, os desenvolvimentos actuais da cognição social parecem apontar
caminhos opostos: se, por um lado, a abordagem situada da cognição procura
integrar a interacção do organismo com o ambiente e os actores sociais na
emergência e na utilização do conhecimento, por outro lado, a popularidade das
neurociências e a receptividade que determinadas abordagens localizacionistas
obtiveram neste domínio parecem apontar novamente para um elementarismo
descontextualizado. Ou seja, mais uma vez se parece perpetuar um cenário que se
configura próximo de uma dicotomia teórica.
Mas se as dicotomias teóricas, tais como a natureza modal ou amodal das
representações cognitivas, discutidas por Garcia-Marques e Ferreira (2011),
podem ser recebidas com cepticismo, o mesmo poderá aplicar-se às soluções que
sugerem o pluralismo representacional (i.e., a existência dos dois tipos de
representações) para a resolução de determinadas questões científicas (Dove,
2009). Se por um lado esta última proposta de compromisso se afigura como uma
solução eficaz, as teorias pluralistas tendem a ser demasiado flexíveis e
difíceis de refutar (e.g., Dove, 2009) não constituindo, por isso, uma boa
estratégia de investigação.
Face a estes constrangimentos, uma abordagem pluralista do funcionamento
cognitivo só deverá ser adoptada na presença de fortes argumentos que a
justifiquem. Em nosso entender, a complexidade e flexibilidade da cognição
humana constituem tais argumentos. Acreditamos assim, que a reconciliação e
integração de explicações individuais, situacionais e sociais possam operar
simultaneamente e eventualmente co-existir de uma forma dialéctica, promovendo
uma compreensão mais reflexiva e dinâmica da experiência humana.