Violência sexual no namoro: Os atletas universitários como grupo de risco?
Introdução
A violência sexual nas relações de namoro tem vindo a ser, progressivamente,
reconhecida como um dos problemas sociais mais significativos que a sociedade
atual enfrenta.
O progressivo investimento da comunidade científica internacional no estudo
deste fenómeno, sobretudo a partir da década de 80, tem vindo a comprovar que
esta é uma forma de abuso predominantemente assimétrico entre sexos, com uma
maior vulnerabilidade das mulheres para a vitimação sexual e dos homens para a
perpetração de atos sexualmente abusivos (e.g., Jackson, 1999; Mahoney,
Williams, & West, 2001; Schwartz & DeKeseredy, 1997). Trata‑se ainda
de uma problemática com indicadores de prevalência cada vez mais preocupantes
(Banyard, Plante, & Moynihan, 2004).
A investigação empírica sobre este tema (e.g., DeKesereday & Schwartz,
1998; Carr & VanDeusen, 2004) tem vindo a centrar‑se no contexto
universitário, demonstrando que os estudantes universitários se assumem como um
forte grupo de risco para a ocorrência de violência sexual, tanto ao nível da
vitimação, como da perpetração, comparativamente com a população em geral. A
literatura da especialidade sustenta que, entre este grupo populacional, o
género masculino constitui o principal fator de risco para a perpetração da
violência sexual (Malamuth, Heavey, & Linz, 1996; McMahon, 2000) e que, na
grande maioria dos casos, esta é cometida por um conhecido da vítima,
frequentemente pelo parceiro amoroso (e.g. Gross, Winslett, Roberts, &
Grohn, 2006; Himelein, 1995).
Mais recentemente, há evidência empírica a reportar a existência de subculturas
sexistas ou grupos de risco específicos entre a população universitária para a
perpetração de atos de violência sexual sobre as mulheres, como as associações
estudantis e os atletas universitários (McMahon, 2007), pela cultura da
hipermasculinidade que veiculam e pelos modelos legitimadores de comportamentos
sexualmente coercivos que promovem (Rozee & Koss, 2001). Assim, parece
haver determinados aspetos da cultura atlética que desempenham um papel
significativo na propensão quer para a adesão a perigosos mitos socioculturais,
legitimadores da violência sexual contra as mulheres, quer para o cometimento,
mais frequente, de atos de violência sexual na intimidade (McMahon, 2004;
McMahon, 2007; Sanday, 1990).
Assim sendo, e sobretudo devido ao facto da violência sexual (i.e., coerção
sexual, tentativa de violação e violação sexual), perpetrada por atletas
universitários no contexto das relações de namoro, ser ainda um tema omisso no
discurso científico nacional, procurámos, através de um estudo exploratório,
produzir conhecimento sobre as crenças que estes estudantes universitários, do
sexo masculino, praticantes de modalidades desportivas de competição de
contacto, possuem relativamente à violência sexual contra as mulheres na
intimidade e determinar a prevalência e tipologia de atos sexualmente abusivos
praticados. Deste modo, procurámos perceber de que forma o grau de adesão aos
mitos socioculturais se relaciona com a adoção de práticas sexuais abusivas, no
contexto das relações amorosas.
Enquadramento teórico
Delimitações terminológicas e tipologias de violência sexual
Várias definições são preconizadas na literatura sociológica e psicológica
sobre a violência sexual, todas elas enfatizando a noção de conduta sexual não
consentida (Schwartz & DeKeseredy, 1997). Num sentido lato, considera‑se
que a violência sexual integra qualquer tipo de relação sexual sem
consentimento, desde a agressão sexual, a violação sexual, o controlo sexual
dos direitos reprodutores e outras formas de manipulação sexual, utilizadas
pelos perpetradores com a intenção de causar perturbação emocional, sexual e
física na outra pessoa (Abraham, 1999, p. 592, citado por Caridade &
Machado, 2008). Num sentido particular, a violência sexual nas relações de
namoro pode ser entendida como a perpetração ou ameaça de um ato de violência
de natureza sexual, pelo menos por um membro do casal de namorados sobre o
outro, no contexto de uma relação íntima. Esta violência contempla qualquer
forma de agressão sexual, variando do simples contacto sexual indesejado à
situação extrema de violação sexual, com a intenção de obter controlo, poder e
autoridade sobre a vítima (adap. Center Disease Control, 2000, citado por
Castro, Cruz, & Martins, 2005). Neste sentido, a violência sexual tem vindo
a ser conceptualizada como um contínuo entre diferentes tipos de comportamentos
sexualmente violentos (Koss & Oros, 1982): (1) o contacto sexual (e.g.,
carícias e beijos), geralmente alcançado através do recurso à pressão verbal,
ao abuso de autoridade ou à utilização de ameaças ou da força física; (2) a
coerção sexual, que inclui praticar relações sexuais indesejadas, com recurso
privilegiado à ameaça através da coerção verbal ou do abuso de autoridade; (3)
a tentativa de violação, que implica tentar ter relações sexuais indesejadas,
através do uso da ameaça, da força ou de drogas e/ou álcool; (4) a violação
sexual, que inclui a prática de relações sexuais indesejadas e implica a
utilização da ameaça ou uso da força física ou, ainda, o uso de drogas e
álcool, podendo englobar vários tipos de atos sexuais não consentidos (relações
sexuais oral, anal, penetração digital ou com recurso a objetos).
Indicadores de prevalência
A revisão dos dados epidemiológicos da produção científica internacional sobre
a violência sexual na intimidade revela que, apesar da crescente expansão dos
estudos sobre o tema, há vários obstáculos à recolha de dados de prevalência
sobre esta problemática, nomeadamente a grande variabilidade nas opções
metodológicas utilizadas (e.g., design dos estudos, tipo de amostragem, tipo(s)
de abuso avaliado(s), instrumentos de recolha de dados administrados) (Caridade
& Machado, 2010). Concomitantemente, há autores (e.g., Caridade &
Machado, 2010; Martins & Machado 2010) que sugerem a ambiguidade concetual
associada à definição e operacionalização de atos sexuais abusivos ou
violentos, a centração predominante na medição do abuso físico (Gover, 2004) e
a ausência de estudos longitudinais (Glass, Fredland, Campbell, Yonas, Sharps
& Kub, 2003) como importantes obstáculos ao conhecimento mais preciso
destes indicadores.
Determinar o número de ofensores e vítimas de atos de violência sexual
ocorridos na intimidade implica ainda ter presente que muitos de comportamentos
abusivos não são relatados pelo facto de muitas vítimas e perpetradores não
perceberem o sexo coercivo como uma experiência de violência sexual, sobretudo
quando o contexto de ocorrência é uma relação amorosa (Humphrey & White,
2000). Assim, o fracasso em se entender a violência sexual no namoro como uma
transgressão grave e séria pode ajudar a perceber, por exemplo, porque é que,
de acordo com as estimativas, só 3% das violações nos EUA resultam em processos
judiciais (Truman, Tokar, & Fisher, 1996). A nível nacional, estima‑se que
apenas 1/5 das violações sejam participadas às autoridades (Costa & Alves,
1999).
Apesar destes obstáculos à recolha de dados epidemiológicos sobre violência
sexual na intimidade, a literatura científica é consistente na ideia de que a
agressão sexual distingue‑se doutras formas de violência por haver uma clara
propensão ou vulnerabilidade da mulher para a vitimização sexual
comparativamente com os homens, que se assumem mais frequentemente como
perpetradores (e.g., Jackson, 1999; Mahoney et al., 2001; Schwartz &
DeKeseredy, 1997). Neste sentido, Molidor, Tolman e Kober (2000) encontraram
diferenças significativas de género ao nível da vitimação sexual, em que cerca
de 18% das mulheres referem terem sido vitimadas sexualmente, comparativamente
com 0,3 % dos homens. Concomitantemente, a investigação aponta para que a
maioria das agressões sexuais ocorra em contextos relacionais de intimidade,
nomeadamente em relações de namoro (Koss, Dinero, Seibel, & Cox, 1988), não
se circunscrevendo às relações conjugais (Price, Beyers, & Dating Violence
Research, 1999). De facto, estima‑se que, nos EUA, a agressão sexual entre
namorados ou conhecidos, comummente designada na literatura internacional como
date or acquaintance rape, tem aumentado dramaticamente nos últimos 30 anos
(Day, 1994). A taxa de prevalência do date or acquaintance rapesitua‑se entre
os 80 e os 90% de todas as violações, enquanto o stranger rape apenas ocorre 10
a 20% das vezes (Koss, et al., 1988; Yeater & O'Donohue, 1999). De facto, a
investigação científica tem demonstrado consistentemente que há mais mulheres
violadas pelos próprios namorados ou conhecidos do que por estranhos (Russell,
1984, citado por Yeater & O'Donohue, 1999). O estudo de Koss, Gidycz e
Wisniewski (1987) foi pioneiro e significativo nos resultados que obteve: 95%
das violações envolvem um único agressor; 84% das vítimas conhecem o
perpetrador; 57% dos violadores são os próprios namorados. Outros autores
(e.g., Jackson & Davis, 2000) estimam ainda que uma em cinco mulheres já
foi alvo de algum tipo de vitimação sexual, durante a sua história de namoro.
Vários estudos e inquéritos internacionais, realizados em campi universitários
(e.g., Day, 1994; Koss & Oros, 1982; Muehlenhard & Linton, 1987),
revelaram igualmente taxas alarmantes de agressão sexual e violações em
situações de namoro entre a população universitária, estimando que
aproximadamente 50% das estudantes universitárias tenham experienciado alguma
atividade sexual indesejada nos seus relacionamentos amorosos.
Por sua vez, os estudos sobre a perpetração sexual masculina desenvolvidos em
contexto universitário (e.g., Abbey, McAuslan, Zawacki, Clinton, & Buck,
2001; Muehlenhard & Linton, 1987) apontam para indicadores de agressão
sexual entre os 25% e os 75%. No estudo de Koss, Gidycz e Wisniewski (1987),
25% dos homens universitários relataram terem estado envolvidos em algum tipo
de agressão sexual. Num outro estudo mais recente (Loh, Gidycz, Lobo, &
Luthra, 2005), realizado com estudantes do sexo masculino, 31% dos
participantes admitiram a prática de comportamentos sexualmente agressivos
sendo que destes, 27,5% reconheceu ter exercido violência sexual moderada e
3,7% violência sexual severa. Em suma, os estudos realizados em campi
universitários, revelam não só que os homens universitários são perpetradores
frequentes deste tipo de vitimação, mas também que as estudantes universitárias
são vítimas frequentes de agressão sexual no contexto das suas relações
amorosas.
Embora parcos, os estudos nacionais realizados em contexto universitário a
propósito da problemática da violência na intimidade juvenil obtiveram
resultados interessantes, sendo que alguns deles corroboram as evidências
empíricas internacionais. De salientar a investigação levada a cabo por Paiva e
Figueiredo (2004) sobre o abuso na intimidade dos jovens adultos portugueses,
onde a coerção sexual foi o segundo tipo de abuso mais prevalente na amostra,
com uma taxa de perpetração e vitimação de 18,9 % e 25,6%, respetivamente. No
estudo de Costa e Sani (no prelo) sobre a violência nas relações amorosas dos
estudantes universitários, a taxa de vitimação sexual (i.e., coerção sexual)
situava‑se nos 24,4% e a de perpetração nos 19,8%. Num outro estudo (Machado,
Matos, & Moreira, 2003), os indicadores de vitimação associada à coerção
sexual situavam‑se nos 1,3% e os de perpetração nos 0,3%.
Em suma, apesar da proliferação de estudos nesta área, a disparidade observada
entre os dados epidemiológicos recolhidos corrobora a necessidade de
uniformização dos critérios concetuais e metodológicos subjacentes à produção
científica na área da violência na intimidade juvenil (Caridade & Machado,
2010, p. 22).
Fatores de risco para a violência sexual no namoro: A relevância dos fatores
socioculturais
Uma revisão da literatura sociológica sobre as variáveis etiológicas implicadas
no comportamento sexualmente agressivo permite sinalizar uma complexa rede de
fatores multidimensionais: socioculturais (e.g., os valores culturais e os
guiões do papel de género tradicional), institucionais (e.g., grupos de pares,
escolas), interpessoais (características relacionais, características da
vítima, mal‑entendidos entre vítima e ofensor) e individuais (e.g., atitudes,
traços de personalidade, diferenciais de género) que, de uma forma mais distal
ou proximal, favorecem a ocorrência da violência sexual na intimidade (Davis,
2000).
A este nível, o modelo integrativo de Berkowitz (1992) surge como uma
compilação de múltiplos fatores de socialização, personalidade, características
situacionais e mitos socioculturais de perpetradores e vítimas, integrados na
conceptualização dos fatores de risco específicos associados à violência sexual
contra as mulheres. O pressuposto básico deste modelo teórico é que as atitudes
e crenças que toleram a violência sexual criam o potencial para que atos
sexualmente violentos possam ocorrer, sendo ainda reforçados por fatores
pessoais e experiências sexuais prévias, designadamente o processo de
socialização dos papéis do género tradicionais; o uso e/ou abuso de álcool; as
características de personalidade (e.g., externalização da culpa, impulsividade,
agressividade, hostilidade e falta de empatia); e o abuso e negligência
infantil (Carr & VanDeusen, 2004).
As teorias feministas deram, igualmente, um importante contributo para a
compreensão da violência sexual, considerando que as crenças e atitudes
socioculturais que legitimam a violência sexual contra as mulheres são
largamente responsáveis pela sexualidade coerciva dos homens e pela grande
tolerância social face à violência no contexto das relações íntimas
(Brownmiller, 1975; Rozée, 1993).
Em suma, várias perspetivas teóricas explicativas da agressão sexual,
designadamente as abordagens feministas e as teorias socioculturais, defendem
que os papéis estereotipados de género e os guiões sociais que orientam o
comportamento de homens e mulheres no contexto interpessoal (e.g., os homens
são dominadores e agressivos e as mulheres são passivas e submissas)
potenciam a criação de mitos socioculturais (e.g., As mulheres dizem não a uma
relação sexual quando, na verdade, querem dizer sim) e outras atitudes
sexistas que facilitam a perpetração de atos de violência sexual contra as
mulheres (ibidem). Conceptualizadas como estereótipos ou falsas crenças sobre a
violação, (Burt, 1980), este tipo de crenças visa, assim, negar ou justificar a
agressão sexual masculina (Lonsway & Fitzgerald, 1994).
Paralelamente, do ponto de vista empírico, um corpo extenso de investigação tem
demonstrado consistentemente associações significativas entre a aceitação de
mitos socioculturais com atitudes sexistas e comportamentos sexualmente
violentos (Lonsway & Fitzgerald, 1994). Neste sentido, um pressuposto
básico relativamente à violência sexual parece ser pois o de que quanto maior
for a adesão às noções e ideais socioculturais de masculinidade, maior será a
tendência para vitimar sexualmente as mulheres, especialmente no contexto das
relações íntimas. A aceitação dos mitos sobre a violação sexual surge, assim,
consistentemente referenciada nos estudos empíricos como estando associada ao
comportamento sexualmente agressivo (Lonsway & Fitzgerald, 1994). Em
particular, os estudos realizados com estudantes universitários (e.g., Koss
& Cleveland, 1997; Sanday, 1990) sugerem que estes poderão estar expostos a
uma cultura agressiva e hipermasculinizada que encoraja atitudes e práticas de
dominância dos homens e objetificação das mulheres (Martins & Machado,
2010). Neste contexto, a pertença a um grupo de pares (e.g., associações de
estudantes, equipas desportivas de modalidades de contacto) pode desempenhar um
papel determinante ao nível da perpetração de atos sexualmente agressivos
(e.g., Malamuth, Sockloskie, Koss, & Tanaka, 1991).
Adicionalmente, há estudos que sugerem traços de personalidade, como a
hostilidade masculina (e.g., Hunter et al., 2004; Mosher & Anderson, 1986,
citados por Truman et al., 1996), enquanto preditores significativos de
perpetração sexual. Assim, conceptualiza‑se que os homens que evidenciam
níveis elevados de hostilidade tendem a adotar determinados estereótipos e
mitos sexuais e, deste modo, legitimam mais facilmente a violência
interpessoal. Neste contexto, o estudo de Truman, Tokar e Fisher (1996)
procurou compreender a relação entre o papel do género masculino e as atitudes
que suportam a violência sexual no namoro. Para tal, focou‑se na análise de
constructos relacionados com a masculinidade, constatando que as atitudes
contra as mulheres emergem como o preditor mais consistente das atitudes e
crenças legitimadoras da violação nas relações amorosas.
Adicionalmente, a investigação aponta para que a frequência das relações
amorosas e o número de parceiros sexuais, as diferenças de poder entre homem e
mulher, as atitudes adversas sobre os relacionamentos amorosos, a aceitação dos
papéis de género tradicionais, os locais de encontro e o uso de álcool e/ou
drogas constituam alguns dos mais significativos fatores de risco proximais
para que a agressão sexual ocorra no contexto de uma relação amorosa (Koss
& Dinero, 1989; Muehlenhard & Linton, 1987). Assim, conclui‑se que os
indivíduos que namoram mais frequentemente e/ou possuem mais parceiros amorosos
têm uma maior probabilidade de experienciar e/ou cometer violência sexual, em
virtude de uma maior oportunidade para tal (Koss & Dinero, 1989). Outros
estudos (e.g., Muehlenhard & Linton, 1987) sugerem como fatores de risco as
diferenças de idade e certos comportamentos (como, por exemplo, ser o homem a
iniciar uma relação de namoro, a pagar as despesas e a conduzir) aumentam a
probabilidade de vitimação sexual.
Há, igualmente, evidência empírica (e.g., Miller & Marshall, 1987; Mynatt
& Allgeier, 1990, citados por Söchting, Fairbrother, & Koch, 2004) que
aponta para que a probabilidade de uma agressão sexual seja tanto maior quanto
mais isolado e privado for o local de encontro dos namorados. O estudo de
Muehlenhard e Linton (1987) encontrou uma percentagem de 81% de ataques sexuais
ocorridos em carros e locais privados (e.g., apartamento ou casa do namorado).
Assim, os homens tendem a interpretar o à‑vontade da mulher para ir a certos
locais como sinal de que esta está interessada e disponível para o envolvimento
sexual (Muehlenhard & Linton, 1987). Frequentar locais ermos parece
aumentar igualmente a ocorrência de atos de agressão sexual porque há uma menor
probabilidade de interrupção por outros (ibidem).
Por sua vez, o uso/abuso de álcool parece ser um fator situacional
interveniente em qualquer tipo de agressão sexual. Estima‑se que cerca de 40 a
65% das mulheres que sofreram algum tipo de violência sexual tenham consumido
álcool antes da agressão (Frintner & Rubinson, 1993; Harrington &
Leitenberg, 1994; Miller & Marshall, 1987; Wilson & Durrenberger, 1982,
citados por Söchting et al., 2004). A revisão de literatura sobre este tema
sugere que o álcool interfere de forma significativa com a capacidade para
consentir o envolvimento sexual, detetar o perigo, bem com a capacidade para
resistir mais prontamente a uma agressão sexual (Söchting et al., 2004). Os
mal‑entendidos entre homens e mulheres, como a sexualização do comportamento
da mulher, também parecem dar azo a um aumento da probabilidade de contatos
sexuais indesejados entre parceiros amorosos (Muehlenhard & Linton, 1987).
Assim, não raro, um qualquer comportamento, descomprometido de intenções
sexuais (e.g., abraço, beijo), pode ser interpretado como um preliminar para a
relação sexual.
Atletas universitários e violência sexual contra as mulheres no namoro: Das
crenças aos comportamentos
Nos últimos anos tem aumentado o interesse da literatura científica pelo papel
dos atletas universitários na violência sexual contra as mulheres, apesar dos
estudos neste domínio serem ainda escassos. Não obstante, tem‑se assistido a
um grande debate sobre se os atletas têm, de facto, maior probabilidade para
cometerem atos de violência sexual ou se estamos simplesmente perante uma
publicidade especulativa em torno do seu estatuto e da sua visibilidade social
(McMahon, 2007).
A investigação sobre a violência sexual na população universitária
norte‑americana tem dado particular atenção a duas formas frequentes de
agressões sexuais, em que os atletas universitários se assumem como os
principais perpetradores: o gang rape e o date or acquaintance rape (Day,
1994).
A violência sexual perpetrada por um gang é uma realidade frequente nos
campusuniversitários norte‑americanos, sobretudo entre pessoas que se conhecem
(Gordon & Riger, 1989 citado por Day, 1994). Esta forma de agressão sexual
ocorre mais frequentemente entre grupos de homens que foram socializados em
torno do consumo de álcool, da pressão de pares e da objetificação da mulher.
As associações de estudantes e as equipas de atletas universitárias são, neste
contexto, os perpetradores primários de atos de violência sexual (Day, 1994).
Enhard e Sandler (1981, citados por Day, 1994) levaram a cabo um estudo sobre
50 casos registados de gang rape e descobriram que 30% destes casos envolviam
atletas universitários.
Não obstante, os investigadores têm caracterizado a maioria dos ataques sexuais
envolvendo a população universitária como sendo do tipo date or acquaintance
rape, ou seja, comummente perpetrados por uma pessoa que as vítimas conhecem
(Day, 1994). Este tipo de ataques envolve, geralmente, o uso de álcool ou
outras drogas ilícitas e, frequentemente, ocorre num contexto de intimidade
entre vítima e agressor (Warshaw, 1988, citado por Day, 1994). O álcool parece
ser, de facto, uma das variáveis situacionais explicativas das elevadas taxas
de violência sexual nas equipas atléticas e nas associações de estudantes (Koss
& Gaines, 1993). Também neste tipo de violação há evidência empírica
substancial a documentar que os atletas universitários se assumem como um grupo
de alto‑risco para a perpetração de violência sexual, quando comparados com
não atletas (Day, 1994).
De facto, há um corpo de estudos empíricos que, embora parcos, concluíram,
consistentemente, que os atletas estão sobrerrepresentados como perpetradores
frequentes de ataques sexuais entre a população universitária e que há aspetos
da cultura atlética que suportam a evidência de maior aceitação e perpetração
de atos de violência sexual (e.g., Boeringer, 1996; Boeringer, 1999; Crosset,
Benedict, & McDonald, 1995; Crosset, Ptacek, McDonald, & Benedict,
1996; Frintner & Rubinson, 1987; Koss & Gaines, 1993). No estudo de
Crosset, Ptacek, McDonald e Benedict (1996), apesar dos atletas‑estudantes da
I Divisão constituírem apenas 3,3% do corpo estudantil, eles representavam 19%
dos perpetradores de ataques sexuais. Por sua vez, Fritner e Rubinson (1993)
obtiveram resultados ainda mais surpreendentes. No seu estudo, apesar de os
atletas constituírem menos de 2% do total dos estudantes universitários, eles
representavam cerca de 22,6% dos perpetradores de relações vaginais, orais ou
anais forçadas. Estes resultados significam que, apesar da pequena
representação que os atletas têm ao nível da população académica, este grupo
está sobrerrepresentado em termos daqueles que relatam mais frequentemente
tentativas ou consumação de atos de violência sexual, abuso sexual, agressão
física ou intimidação (Schwartz & DeKeseredy, 1997). Outros estudos,
incluindo um do National Institute of Mental Health (1990), documentam que os
atletas participam em 1/3 de todos os ataques sexuais que ocorrem no contexto
universitário, nos EUA (Melnick, 1992; Schwartz & DeKeseredy, 1997).
Neste sentido, alguns autores (e.g., Ehrhart e Sandler, 1992; Sanday, 1981;
Sanday, 1990; O'Sullivan, 1991, citados por Crosset et al., 1995) sustentam que
a pertença a grupos onde a segregação sexual existe (e.g., equipas atléticas,
forças armadas, associações de estudantes) favorece a prática de atos sexuais
abusivos. Adicionalmente, a afiliação a desportos agressivos e competitivos,
que envolvem o contacto físico direto com os adversários1, parece
correlacionar‑se positivamente com taxas mais elevadas de perpetração de
ataques sexuais nas relações íntimas. A este nível, Kemler (1988, citado por
Smith & Stewart, 2003) encontrou, no seu estudo, níveis mais elevados de
agressão reativa nos atletas de desportos de contactodo que nos atletas de
desportos de não‑contacto.Por sua vez, Brown e Davis (1978, citados por Smith
& Stewart, 2003) obtiveram indicadores de maior legitimação da violência
entre os atletas dos contact sportsdo que nos não atletas. Há autores que
afirmam que os atletas de modalidades desportivas de contacto tendem a
apresentar níveis elevados de competitividade, de orientação para ganhar e
taxas mais elevadas de agressão sexual, assim como atitudes legitimadoras da
violação e maiores níveis de hostilidade em relação às mulheres. Bredemeier,
Shields, Weiss e Cooper (1984, citados por Smith &Stewart, 2003) aditam que
a participação dos homens em modalidades desportivas de contacto apresenta uma
correlação positiva com o desenvolvimento de atitudes e tendências agressivas.
Assim, há uma clara evidência da associação entre altos níveis de agressão e a
maior legitimação da violência nos atletas de desportos de contacto do que nos
atletas de desportos onde não há contacto ou em não atletas.
Os estudos com estes agressores são unânimes em considerar que estes homens são
socializados num ambiente de masculinidade hegemónica (Connell, 2005) e de
hipermasculinidade (Day, 1994)que veiculam, entre outros valores, controlo,
força física, proeza sexual, submissão da mulher, competitividade,
invulnerabilidade, homofobia e consumo de álcool, o que poderá ter implicações
ao nível dos seus relacionamentos amorosos (Forbes, Adams‑Curtis, Pakalka,
& White, 2006). Neste sentido, Russell (1983, citado por Schwatz &
DeKeseredy, 1997) defende que o trabalho exaustivo para tornar os atletas
dominantes, agressivos e competitivos dentro de campo pode levar a um aumento
destes comportamentos fora dele, nomeadamente no contexto das relações
amorosas.
Estudo empírico
Objetivos
Este estudo transversal, de carácter exploratório, tem como objetivo primordial
perceber se os estudantes universitários do sexo masculino, praticantes de
modalidades desportivas de competição de contacto, designados neste estudo por
atletas, por um lado, evidenciam um nível superior de legitimação/tolerância
face à violência sexual sobre as mulheres e, por outro, se apresentam uma taxa
de prevalência de atos de violência sexual no namoro mais elevada, quando
comparados com um grupo de não atletas. Mais especificamente, pretendemos: a)
descrever as crenças dos atletas e dos não atletas em relação à violência
sexual contra as suas parceiras amorosas, através da identificação do grau de
tolerância/legitimação em relação a esta problemática e a tipologia de crenças
que concorrem para a sua legitimação; b) recolher dados sobre a prevalência e
frequência de perpetração de diferentes tipos de violência sexual (i.e.,
coerção sexual, tentativa de violação e violação) nas relações de namoro
passadas e presentes dos atletas e dos não atletas; c) estabelecer e analisar
as possíveis diferenças entre atletas e não atletas, em termos de crenças e
comportamentos de violência sexual nas suas relações amorosas.
Método
Amostragem
Trata‑se de uma amostra de conveniência, constituída por 100 estudantes
universitários do sexo masculino. Estes participantes integraram dois grupos
independentes de estudantes universitários, semelhantes em termos de
características sociodemográficas (sexo e idade) e formativas (tipo de curso e
ano académico). O grupo de atletas foi constituído por 50 participantes,
praticantes de cinco modalidades desportivas de competição, na vertente
desportos de contacto, designadamente: 14 praticantes de futsal, 11 de
basquetebol, 13 de andebol, 6 de pólo aquático e 6 de judo. Neste grupo, as
idades variam entre os 18 e os 38 anos, sendo a média 22,9 e o desvio‑padrão
3,61. A média de anos de formação era 1,2 (DP= 0,39) e a maioria dos atletas
(n= 41, 82%,) frequentava cursos do domínio das Ciências Exatas, sendo que
apenas 9 atletas (18%) frequentavam cursos do domínio das Ciências Humanas e
Sociais. O grupo de não atletas foi composto por 50 sujeitos, com idades
compreendidas entre os 19 e os 28 anos, sendo a média 22,3 e o desvio‑padrão
2,73. A média de ano de formação era 2,9 (DP= 1,42) e a maioria dos
não‑atletas (n = 41, 82%,) frequentava cursos do domínio das Ciências Exatas,
sendo que apenas 9 atletas (18%) frequentavam cursos do domínio das Ciências
Humanas e Sociais. A aplicação do teste não paramétrico Mann‑Whitney
demonstrou que não há diferenças estatisticamente significativas entre atletas
e não atletas ao nível da idade (U = 1145.5, p = .468) e do ano académico (U =
1168, p = .563).
Instrumentos
Os instrumentos utilizados para a recolha de dados foram a Escala de Crenças
sobre a Violação (ECV), um questionário de autorrelato, cuja versão para
investigação foi elaborada por Machado, Gonçalves e Matos (2000) e o Sexual
Experiences Survey ' Short Form Perpetration (SES‑SFP) (Koss, Bachar & SES
Collaborative, 2004, versão traduzida por Peixoto, J. & Machado, C., 2006).
O EVC é composto por 29 itens, relativos a crenças socioculturais comuns sobre
a violação, face aos quais os sujeitos se devem posicionar em termos de grau de
concordância/discordância. Os itens estão construídos segundo a concepção de
que as vítimas serão do sexo feminino e os seus perpetradores do sexo
masculino. As opções de resposta encontram‑se formuladas numa escala do tipo
Likert de 5 pontos (em que 1 corresponde a discordo totalmente e 5 a
concordo totalmente). A sua nota total mede o grau de legitimação/tolerância
face à violência sexual sobre as mulheres. Os 29 itens da escala
correlacionam‑se fortemente com o seu total (as correlações variam entre um
mínimo de .41 e um máximo de .76). A Análise de Componentes Principais, seguida
de rotação Varimax, permitiu obter três fatores que, no seu conjunto, explicam
53.5% da variância da escala. O primeiro fator [legitimação da violência pelo
consentimento feminino] explica 43.8%, o segundo [legitimação da violência
através do comportamento sexual prévio da mulher] explica 5.2% e o terceiro
[legitimação da violação pela normalidade do ofensor] explica 4.5% da
variância. A consistência interna da ECV, obtida através do coeficiente alpha
de Cronbach, é de .93 (Machado, Gonçalves, & Matos, 2000).
Para determinar as taxas de prevalência da perpetração de diferentes tipos de
atos de violência sexual, utilizámos o SES‑SFP (2004), cuja tradução e
adaptação foram efetuadas por Peixoto e Machado (2006). A versão de 2004 avalia
os comportamentos sexuais abusivos, perpetrados tanto por homens, como por
mulheres. Para os propósitos deste estudo, considerámos pertinente adaptar os
itens do questionário aos perpetradores masculinos. Assim, trata‑se de um
questionário de autorrelato constituído por seis itens, cada um com cinco
opções de resposta relativas a estratégias de violência sexual perpetradas.
Esta versão revista para perpetradores (Koss & Dinero, 1988; Koss &
Gidycz, 1985; Koss & Oros, 1982) encontra‑se dividida em duas partes, uma
dedicada às experiências sexuais abusivas ocorridas no último ano e outra às
experiências sexuais abusivas ocorridas desde os 14 anos. Mais concretamente, é
pedido aos participantes para estimar o número de vezes que adotaram cada uma
das estratégias sexualmente abusivas, em cada um dos seis itens, no último ano
e desde os 14 anos, numa escala de frequência entre 0 vezes e 3 ou mais
vezes. O SES permite ainda colocar os participantes em categorias mutuamente
exclusivas, de acordo com o tipo de atos sexuais mais severos praticados (não
perpetrador; perpetrador de coerção sexual; perpetrador de tentativa de
violação e violador), assim como determinar a frequência dos atos sexuais
abusivos praticados pelos participantes categorizados como perpetradores
(frequência da coerção sexual entre os perpetradores de coerção sexual;
frequência da tentativa de violação entre os perpetradores de tentativa de
violação e frequência da violação entre os violadores). O questionário
apresenta uma consistência interna de 0.70 (Koss et al., 2004).
Procedimentos
A fase de entrega e recolha dos questionários utilizados neste estudo
compreendeu dois momentos distintos. Num primeiro momento, após obtida a
autorização do Departamento de Desporto e Cultura de uma Universidade do Norte
do País e dos técnicos responsáveis por cada uma das modalidades desportivas
participantes nesta investigação, procedeu‑se à entrega e recolha dos
questionários junto do grupo dos atletas nos treinos semanais das respetivas
equipas. Num segundo momento, após identificadas as variáveis sociodemográficas
(idade) e formativas (ano e curso de formação) presentes no grupo dos
atletas, pedimos autorização aos diretores dos cursos dos não atletas
participantes e procedemos à administração dos questionários nos tempos letivos
cedidos pelos docentes.
A participação foi, em todos os casos, voluntária. Os participantes dos dois
grupos foram, previamente, informados acerca do objetivo do estudo a realizar e
explicitou‑se a importância da sua contribuição para o mesmo. A
confidencialidade e anonimato dos participantes foram assegurados através da
garantia de uso exclusivo dos dados recolhidos para o presente estudo e da não
recolha de dados de identificação pessoal.
Análise estatística dos dados
De acordo com os objetivos de investigação e as variáveis em estudo, os dados
recolhidos foram submetidos a uma análise estatística através do programa
informático IBM SPSS, versão 20.0, com o qual se efetuaram análises descritivas
e inferenciais. Tendo‑se verificado que os pressupostos subjacentes à
utilização de testes paramétricos não estavam cumpridos, recorremos ao teste
não paramétricoMann‑Whitney para amostras independentes, de modo a explorar a
existência de diferenças entre os dois grupos de estudantes universitários do
sexo masculino, atletas e não atletas, em termos do grau global de legitimação/
tolerância e da tipologia de crenças face à violência sexual no namoro e da
frequência de atos de violência sexual na intimidade. Utilizámos ainda o teste
do Qui‑quadrado para determinar a associação entre perpetradores e tipo de
atos sexuais abusivos mais severos perpetrados.
Resultados
Crenças socioculturais face à violência sexual no namoro
A análise global das crenças dos participantes sobre a violência sexual no
namoro revelou que ambos os grupos, atletas e não atletas, evidenciavam níveis
reduzidos de concordância face aos mitos socioculturais apresentados. As
respostas dadas à ECV pelo grupo dos atletas apresentaram um nível médio de
59.0 (DP= 15.26), enquanto que as respostas do grupo de não atletas registaram
uma média de 61.2 (DP= 22.18). Estes dados indicaram uma tendência de resposta
no sentido do discordo por parte dos dois grupos em relação à generalidade
dos itens que compõem a escala. Relativamente a cada um dos fatores que
integram o instrumento: (F1) Legitimação da violação pelo consentimento
feminino(atletas 'M= 33.9, DP= 9.53; não atletas ' M= 34.6, DP=13.24); (F2)
Legitimação da violação pelo comportamento prévio da mulher(atletas 'M
=27.74,DP =8.59; não atletas ' M= 31.5, DP= 13.36) e (F3) Legitimação da
violação pela normalidade do ofensor(atletas 'M =14.1, DP =3.32, não atletas '
M =14.4, DP =5.53), todos revelaram uma tendência de resposta no sentido da
baixa legitimação da violência sexual.
A análise das diferenças da ordem média entre os dois grupos, realizada através
do Teste de Mann‑Whitney para amostras independentes, indicou que não há
diferenças estatisticamente significativas entre atletas e não atletas em
relação ao nível global de legitimação da violência sexual, U= 1231, p= ,896.
Quanto aos fatores da escala, verificou‑se igualmente a ausência de diferenças
significativas entre os grupos no que concerne à legitimação da violação pelo
consentimento feminino, (F1) U= 1206,50, p=,764, à legitimação da violação pelo
comportamento sexual prévio da mulher, (F2) U = 1088, p= ,264]; e à legitimação
da violação pela normalidade do ofensor, (F3) U= 1249,50, p=,997 (cf. Tabela
1).
Prevalência da perpetração de diferentes tipos de comportamentos de violência
sexual nas relações de namoro
A análise da categorização dos atletas e não atletas de acordo com a tipologia
de atos sexuais mais abusivos perpetrados, tanto nas relações passadas, como
nas relações atuais, revelou que apesar de uma percentagem elevada de atletas
(passado ' 58%; presente ' 68%) e não atletas (passado ' 60%; presente ' 64%)
se assumirem como não perpetradores, há uma percentagem preocupante de
atletas (passado ' 26%; presente ' 22%) e de não atletas (passado ' 24%;
presente ' 26%), categorizados em termos da perpetração da forma mais grave
de agressão sexual ' violação. Importa ainda referir que a perpetração de
atos sexuais menos graves esteve igualmente presente nas vivências
relacionais íntimas destes grupos, embora com uma expressão menos significativa
(e.g., coerção sexual) (cf. Tabela_2). Ainda a este nível, verificou‑se que
não há uma associação significativa entre o tipo de grupo (atletas vs não
atletas) e a tipologia de atos de violência sexual perpetrados, tanto no
passado (χ2 (3) = , 348, p = , 951), como no presente (χ2 (3) = ,703, p =
,872).
A análise comparativa das respostas dadas ao SES‑SFP pelo grupo de atletas,
com as respostas dadas pelo grupo de não atletas, ao nível da frequência de
perpetração de atos sexualmente abusivos, quer nas relações amorosas passadas,
quer nas atuais, sugeriu que nenhum dos dois grupos apresentava uma frequência
média de perpetração de atos de agressão sexual significativamente superior.
Não obstante, observou‑se, tanto no grupo de atletas como no de não atletas,
uma frequência média mais elevada na perpetração de atos de violência sexual
mais graves e intrusivos, designadamente a violação, tanto no passado como no
presente, comparativamente com uma menor prevalência de formas menos graves de
violência sexual (e.g., coerção sexual) (cf. Tabela_3).
Discussão
A análise dos dados recolhidos não suporta a hipótese empírica de que os
atletas apresentam níveis superiores de legitimação/tolerância face à violência
sexual na intimidade e uma taxa mais elevada de prevalência de comportamentos
sexualmente abusivos, quando comparados com os não atletas.
Na globalidade, os dois grupos, participantes neste estudo, demonstram, ao
nível cognitivo‑atitudinal, um reduzido grau de suporte face às crenças
socioculturais comummente utilizadas para justificar ou desculpabilizar a
violência sexual perpetrada pelo homem sobre a mulher. Concomitantemente,
atletas e não atletas não evidenciam diferenças estatisticamente significativas
quer ao nível do grau global de legitimação/tolerância face à violência sexual
na intimidade, quer no que se refere à tipologia de crenças face à violência
sexual.
Em termos comportamentais, verifica‑se que ambos os grupos apresentam
resultados similares, evidenciando uma taxa de perpetração de atos sexuais
abusivos na intimidade superior no tipo mais grave de violência sexual ' a
violação ', tanto no presente (último ano) como no passado (desde os 14 anos).
Assim, estes resultados parecem corroborar a ideia veiculada por alguns autores
(e.g., Smith & Stewart, 2003) de que a conceptualização da cultura atlética
como facilitadora da violência sexual contra as mulheres na intimidade pode não
passar de uma sobressimplificação, motivada pelo estatuto e visibilidade
social dos atletas entre a população universitária. Adicionalmente, há estudos
(e.g., Sawyer, Thompson & Chicorelli, 2002) que indicam que os atletas não
são um grupo homogéneo e que, por conseguinte, só fará sentido estudar o papel
da afiliação atlética nas crenças e comportamentos dos homens atletas, se se
tiver em consideração a forma como essa variável se relaciona ou potencia a
influência moderadora de outras variáveis (e.g., vitimação na infância, consumo
de álcool, ideologia de masculinidade, características de personalidade).
O reduzido corpo de estudos que se conhece sobre o tema em estudo sugere,
contrariamente aos presentes resultados, a existência de uma associação
significativa entre a participação atlética em modalidades agressivas e
competitivas de contacto (e.g., Smith & Stewart, 2003), o maior grau de
adesão a mitos legitimadores da violência sexual (e.g., Boeringer, 1999) e a
perpetração frequente de agressões sexuais na intimidade (e.g., Frintner &
Rubinson, 1993).
Uma das possíveis alternativas para a explicação dos resultados obtidos, diz
respeito ao efeito da desejabilidade social associada aos questionários de
autorrelato. Neste sentido, a literatura aponta para que as medidas de
autorrelato possam desencadear nos participantes a tendência para responder de
acordo com o desejado socialmente, sobretudo no que concerne às crenças face a
problemáticas tão sensíveis, no plano social, como a violência sexual sobre as
mulheres. Não obstante, ao nível comportamental, parece‑nos que os resultados
obtidos podem sugerir, por um lado, a tentativa dos participantes em agir de
acordo como os ideais socioculturais de masculinidade, assumindo o relato de
comportamentos de violência sexual como uma demonstração de controlo, poder e
autoridade sobre as mulheres e, por outro, a oportunidade de admissão anónima e
confidencial da prática de atos sexuais violentos nas suas relações amorosas.
Outro aspeto particularmente relevante prende‑se com as diferenças existentes
entre a cultura atlética no campusuniversitário norte‑americano e a cultura
inerente à prática desportiva nas universidades portuguesas, que podem
desempenhar um papel preponderante na explicação da discrepância entre os
resultados do presente estudo e os dados empíricos dos estudos
norte‑americanos sobre o tema. Assim, os níveis elevados de competitividade e
agressividade que caracterizam a cultura atlética norte‑americana (Davis,
2000), podem ajudar a explicar os elevados indicadores de legitimação e
perpetração de atos de violência sexual identificados nas investigações
realizadas com atletas universitários norte‑americanos. De facto, Eskenazi
(1990, citado por McMahon, 2004) postula que a forma como o desporto é
organizado (i.e., a cultura atlética) influencia o desenvolvimento de uma
masculinidade hostil face às mulheres, não sendo a participação desportiva per
se que torna os atletas mais propensos a legitimar e/ou cometer atos de
violência sexual na intimidade.
Deste modo, torna‑se importante analisar, clarificar e aprofundar, em futuras
investigações, a relação entre cultura atlética, masculinidade e violência
sexual contra as mulheres na intimidade (McMahon, 2004, 2007).
Limitações
Este estudo apresenta algumas limitações que devem ser tidas em consideração na
interpretação dos resultados obtidos. Uma primeira limitação prende‑se, desde
logo, com o método de amostragem. Foi utilizada uma amostra reduzida e de
conveniência, recolhida num único campus universitário, o que à semelhança do
que sucede com a grande maioria dos estudos realizados nesta área, não permite
extrair generalizações para toda a população universitária atlética portuguesa
Por outro lado, o efeito da desejabilidade social associado aos instrumentos de
autorrelato administrados poderá também ter influenciado os resultados obtidos,
no sentido quer da reduzida legitimação face à violência sexual, quer do
sobrerrelato da perpetração de comportamento sexualmente abusivos na
intimidade.
Por último, o facto de se tratar de um estudo meramente quantitativo, com
recurso exclusivo a questionários de autorrelato, não permite compreender
algumas questões fenomenológicas relacionadas, por exemplo, com as
circunstâncias em que as condutas sexuais abusivas ocorrem, os motivos que lhes
são atribuídos, a sequência interativa dos atos sexuais abusivos, nem a
significação atribuída à agressão pelos seus intervenientes.
Conclusões
Os resultados obtidos não corroboram os dados empíricos da maioria das
investigações internacionais realizados em torno deste tema, sendo indicativos
de presença de crenças globalmente adequadas. Não obstante, ao nível
comportamental, constatámos a existência de uma percentagem significativa de
atletas e não atletas que se inserem na categoria de violadores. Este dado
alerta, assim, para que a violência sexual, na sua expressão mais severa, possa
ser uma realidade prevalente entre a população universitária estudada.
No que se refere a investigações futuras sobre esta temática, consideramos
importante a expansão de estudos nacionais sobre a problemática da violência
sexual na intimidade, junto de uma amostra representativa da população atlética
portuguesa, de modo a explorar e compreender melhor as complexidades da
hipotética relação entre participação desportiva, masculinidade e violência
sexual. Algumas sugestões a este nível prendem‑se com a relevância empírica de
se englobar atletas de outras universidades e utilizar uma metodologia
complementar de cariz qualitativo, para uma análise mais detalhada das crenças
e comportamentos sexuais abusivos dos atletas. Ao nível das crenças, poderá ser
também interessante analisar se os universitários que admitem cometer actos
sexuais abusivos sustentam crenças diferentes dos não perpetradores.
Em suma, este estudo poderá constituir‑se como um pequeno no sentido de abrir
caminho a futuras investigações sobre esta temática e, desta forma, contribuir
para a prossecução do objetivo a que nos propusemos inicialmente de compreender
e refletir acerca da relação entre a participação atlética masculina e a
violência sexual contra as mulheres.