Violência doméstica e stalking pós-rutura: dinâmicas, coping e impacto
psicossocial na vítima
O stalking tem sido entendido como um fenómeno social e comportamental
complexo (O'Connor & Rosenfeld, 2004, p. 4), sendo possível encontrar na
literatura diferentes definições para o problema (Spitzberg, 2002; Spitzberg
& Cupach, 2007). Porque nenhuma definição linear nos parece capaz de captar
a pluralidade de experiências envolvidas nesta realidade, destacamos aquela
que, pela sua amplitude, parece mais integradora: padrão de comportamentos de
assédio persistente, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto,
vigilância e monitorização de uma pessoa (Grangeia & Matos, 2010, p. 124),
o qual assume um caráter intrusivo e/ou indesejado para o alvo e pode ser
mediado por motivações diversas.
De facto, o stalking inclui um espectro diversificado de comportamentos, desde
atos aparentemente inócuos (e.g., oferecer flores) até outros explicitamente
intimidatórios (e.g., ameaças, perseguição), que tendem a escalar em frequência
e gravidade ao longo do tempo, podendo mesmo associar-se a outras formas de
violência física e/ou sexual (cf., Spitzberg & Cupach, 2007).
Embora os comportamentos de stalking não constituam uma novidade (e.g., Meloy,
2007), aquilo que hoje se reconhece como uma forma particular de violência foi,
durante séculos, socialmente aceite e até reforçado, com base nos ideais do
romantismo e da paixão (Mullen, Pathé, & Purcell, 2001). Numa análise da
literatura internacional sobre o fenómeno percebe-se que o termo apenas
adquiriu visibilidade social no início dos anos 90, quando os medianorte-
americanos começaram a usar esta designação para descrever situações de
perseguição a figuras ' públicas (Lowney & Best, 1995). A atenção mediática
dedicada a estes casos desencadeou o reconhecimento público do problema e
patrocinou um conjunto de reformas legislativas com vista à criminalização da
conduta (iniciadas na Califórnia em 1990). Mais tarde (entre 1992 e 1994),
grupos feministas e de apoio às vítimas vieram defender um enquadramento mais
lato para o fenómeno, importando o conceito para o domínio da violência
doméstica (idem).
Os inquéritos de vitimação posteriormente conduzidos neste domínio em
diferentes países (cf., Grangeia & Matos, 2010) serviram para denunciar a
elevada prevalência do problema e a sua transversalidade, fornecendo
sustentação empírica à concetualização do stalking como um fenómeno de
violência interpessoal, genderizado, frequentemente perpetrado sobre mulheres
por homens no contexto de relações íntimas (cf., Spitzberg & Cupach, 2007).
Neste contexto específico, embora os estudos mostrem que os comportamentos de
stalking podem emergir em diferentes momentos da trajetória relacional,
entendemos que a sua concetualização terá de ter em conta as motivações que lhe
estão subjacentes. Tipicamente, dois propósitos fundamentais presidem a este
padrão de conduta: a tentativa de reconciliação e/ou o desejo de vingança pela
separação, sendo certo que muitos destes stalkers facilmente flutuam entre
estes dois pólos (e.g., Burgess, Harner, Baker, Hartman, & Lole, 2001;
Morewitz, 2003). Neste sentido, cruzando estas duas dimensões, concetualizamos
o momento pós-rutura como o mais vulnerável para a emergência desta modalidade
de vitimação enquanto padrão específico de violência (embora reconheçamos que
comportamentos desta natureza possam emergir ainda durante o curso da união).
O stalking neste contexto não passou despercebido junto dos investigadores,
estabelecendo-se hoje como um campo fértil de estudo e reflexão. Atualmente, é
consensual que o stalking constitui uma faceta específica e particular da
violência na intimidade, embora esteja sobejamente documentada a sua relação
com outras formas de abuso na esfera relacional (e.g., Basile & Hall, 2010;
Miller, 2006).
Comparativamente a outros cenários de stalking (e.g., entre desconhecidos, no
contexto de relações profissionais), os dados empíricos ilustram que o stalking
perpetrado por ex-parceiros é caracterizado por uma maior diversidade e
frequência de estratégias (e.g., Mohandie, Meloy, McGowan, & Williams,
2006) e um maior risco de violência física, de persistência e reincidência dos
comportamentos (cf., McEwan, Mullen, & Purcell, 2007). A literatura da
especialidade tem mesmo identificado o stalking neste contexto como um
importante fator de risco para a ocorrência de formas potencialmente letais de
violência, reforçando a elevada perigosidade associada a este tipo de conduta
(e.g., Campbell, Glass, Sharps, Laughon, & Bloom, 2007).
Segundo Logan e Walker (2009), este tipo de stalkers pode ver a sua missão
facilitada pelo facto de possuir informações pormenorizadas sobre as rotinas da
vítima, conhecer bem nichos da sua vida privada (e.g., preocupações,
fragilidades) e por usufruir, quase sempre, de mais oportunidades de comtacto
com aquela, principalmente se tiverem filhos e/ou amigos em comum; além disso,
a escalada para atos de violência mais severa poderá ser facilitada porque
muitas barreiras foram já quebradas durante a relação passada.
Para além do risco e dos custos macro-económicos que decorrem da vitimação por
stalking (Centers for Disease Control and Prevention, 2003 como citado em
Spitzberg & Cupach, 2007), os autores que estudam o fenómeno e os clínicos
que nele intervêm são unânimes quanto aos custos individuais que esta conduta
acarreta para as vítimas, designadamente ao nível do estilo de vida, ao nível
da saúde física e, em particular, ao nível da saúde psicológica (cf. Mechanic,
2002).
Especificamente, a literatura sobre os efeitos do stalking no âmbito de
relacionamentos íntimos ilustra várias consequências emocionais associadas a
este tipo de experiência, traduzidas em condições de grande vulnerabilidade
pessoal (Brewster, 1998; Kamphuis, Emmelkamp, & Bartak, 2003; Logan,
Shannon, Cole, & Walker, 2006). Por exemplo, num estudo conduzido junto de
uma amostra de 187 mulheres vítimas de stalking após a rutura relacional,
Brewster (1998) concluiu que praticamente todas (99%) experienciaram uma
redução na qualidade de vida em consequência da conduta levada a cabo pelo ex-
parceiro; além disso, as vítimas relataram uma grande diversidade de respostas
emocionais, nomeadamente desconfiança (44.4%), medo (41.7%), nervosismo ou
agitação (31%), raiva (26.7%), paranóia (35.7%) e sintomatologia depressiva
(21.4%).
Também o trabalho de Mechanic, Uhlmansiek, Weaver e Resick (2002) documenta a
extensão dos sintomas psicológicos numa amostra de mulheres batidas vítimas de
stalking. Os dados ilustram que aquelas que foram alvo de stalkingmais severo
manifestavam índices superiores de indicadores traumáticos; além disso, apesar
de todas as vítimas exibirem níveis elevados de depressão, os sintomas
depressivos mais severos estavam associados a experiências de stalking, também,
mais severas. Contudo, é necessário explorar mais detalhadamente o efeito
individual do stalking nas vítimas.
Para além das respostas emocionais, a reação das vítimas ao stalking contempla
outro tipo de respostas, de natureza estratégica (Dutton, 1993, 1996 como
citado em Mechanic, Uhlmansiek et al., 2002), comummente designadas na
literatura como estratégias de coping . Os comportamentos empreendidos pelas
vítimas podem assumir múltiplas formas, podendo passar, por exemplo, pela
alteração de contactos pessoais, pela implementação de medidas de segurança,
pela mudança de residência ou pela procura de apoio formal e/ou informal (e.g.,
Brewster, 1998; Mechanic, Uhlmansiek et al., 2002). Spitzberg e Cupach (2001,
2007; Spitzberg, 2002) criaram uma tipologia de coping que organiza as
estratégias tipicamente adotadas pelas vítimas de stalking (em geral) em cinco
principais categorias: Moving With, Moving Against,Moving Away,Moving
InwardeMoving Outward. As estratégias de Moving With representam esforços da
vítima para negociar com o stalker, visando uma resolução pacífica do problema;
contudo, porque podem ser racionalizadas por aquele, são consideradas
ineficazes e potencialmente reforçadoras dos comportamentos de stalking. As
estratégias de Moving Againstconstituem tentativas da vítima para confrontar
ostalker(e.g., ameaçar, agredir) e são também desaconselhadas, não só porque
patrocinam oportunidades de interação, mas também porque podem despoletar
represálias e condicionar a credibilidade de ações futuras (e.g., ameaçar
chamar a polícia). Por sua vez, as vítimas podem optar por comportamentos do
tipo Moving Away, através dos quais procuram evitar o stalker e qualquer
possibilidade de contacto ou interação com aquele. Apesar de estas estratégias
terem a desvantagem de atribuir à vítima maior responsabilidade pelo curso do
stalking, são tidas como as mais eficazes a curto e longo-prazo. As estratégias
de Moving Inward ilustram a opção da vítima em negar, minimizar ou redefinir a
situação, por exemplo, através do recurso à medicação ou consumo de
substâncias; embora possam ser úteis na gestão a curto prazo do stressinerente
à vitimação sofrida, é pouco provável que contribuam para alterar a conduta do
stalker e podem mesmo deixar a vítima mais vulnerável a futuros ataques.
Finalmente, as opções tipificadas como Moving outward centram-se na procura de
apoio junto de terceiros, quer formal quer informal, e são globalmente tidas
como eficazes.
Porém, os trabalhos que têm produzido evidências científicas sobre copingnas
situações destalkingem contexto de relacionamentos íntimos encerram algumas
limitações relevantes: baseiam as suas conclusões em exemplos de estratégias
particulares ' versus categorias de coping mais abrangentes (e.g., Brewster,
1998; Mechanic, Uhlmansiek et al., 2002) ou recorrem exclusivamente a amostras
de estudantes universitários (e.g., Dutton & Winstead, 2010).
Concomitantemente, importa não ignorar que aquilo que sabemos acerca do
stalking no âmbito de relações íntimas continua a chegar-nos, quase
exclusivamente, de investigações noutros países. Em Portugal, esta realidade
tem sido pouco estudada, embora, tal como sublinhado por alguns autores (e.g.,
O'Connor & Rosenfeld, 2004; Sheridan, Blaauw, & Davies, 2003), a
singularidade desta forma de vitimação imponha a necessidade de novos
contributos, capazes de patrocinar um conhecimento mais profundo e
contextualizado do fenómeno, sensível a realidades e influências socioculturais
particulares.
Assim, na origem deste trabalho estiveram motivações diversas. Desde logo, a
ausência de investigações nacionais acerca desta temática específica levanta
muitas questões, de natureza variada. Por outro lado, procurou-se através deste
trabalho colmatar outras lacunas presentes na literatura internacional,
nomeadamente analisar, através do recurso a categorias abrangentes, o tipo de
respostas emocionais e estratégicas associadas a este cenário específico de
violência, assim como discriminar o impacto específico das diferentes formas de
violência sofridas pelas vítimas de violência durante a relação e de stalking
após a rutura.
Assim, através da experiência de mulheres vítimas, pretendeu-se com este estudo
quantitativo (1) caracterizar as dinâmicas do stalking pós-rutura, explorando a
sua relação com características da ex-relação; (2) identificar as respostas
emocionais consequentes a esta forma de vitimação e o tipo de estratégias de
coping adotadas pelas vítimas; e (3) avaliar o impacto psicossocial exibido
pelas vítimas, identificando os fatores preditores de desajustamento
psicossocial clinicamente significativo.
Método
Participantes
A idade das participantes estava compreendida entre os 19 e os 69 anos, com uma
média de 37.64 anos (DP = 11.09). De acordo com aquelas, a idade dos respetivos
stalkers variava entre os 16 e os 70 anos, com uma média de 41.36 anos (DP =
11.41).
A maioria das vítimas (85.4%) era de nacionalidade portuguesa. Do total, 35.9%
residia na região norte do país e 42.7% na região centro. No que concerne às
habilitações literárias, 3/4 das participantes possuía um grau de qualificação
igual ou inferior ao 3º Ciclo do Ensino Básico. A maioria pertencia à população
ativa (66%), estando as restantes desempregadas, reformadas ou a estudar. Em
média, as vítimas auferiam 532.73 euros mensais (DP = 365.58). Mais de metade
da amostra (64.4%) classificou o seu nível sócio-económico (NSE) como baixo ou
médio-baixo.
À data da realização do estudo, 26.3% das participantes afirmou estar envolvida
num novo relacionamento íntimo, embora a maioria (69.2%) não coabitasse com o
novo companheiro (cf. Tabela_1).
Instrumentos
' Inventário de Violência Conjugal ' Parte B ' Versão 3 (I.V.C.-B-3; C.
Machado, M. Matos, & M. Gonçalves, 2006, adaptado por C. Ferreira & M.
Matos, 2009): Este instrumento de autorrelato permite identificar a vitimação e
perpetração de comportamentos abusivos durante as relações de intimidade. É
composto por 21 itens (o último dos quais com a opção Outros), que
correspondem a comportamentos emocional e fisicamente abusivos (e.g., Gritar
ou ameaçar, para meter medo; Dar uma sova). Cada item é avaliado numa escala
de frequência de 3 pontos (0 = Nunca, 1 = Uma vez e 2 = Mais do que uma
vez). Para este estudo foi utilizada apenas a Parte B do instrumento (relativa
a relações passadas) e foi dada a instrução às participantes para que
respondessem com base no relacionamento que mantiveram com o stalker,
utilizando a designação ex-parceiro.
' Inventário de Comportamentos de Stalking ' Versão 2 (I.C.S.-2; H. Grangeia,
M. Matos, & C. Machado, 2008, adaptado por C. Ferreira & M. Matos,
2009): Este instrumento de autorrelato permite identificar a vitimação por
stalking, sendo composto por 36 itens (o último dos quais com a opção
Outros), que correspondem a três tipos de comportamentos (Grangeia &
Matos, em preparação): Cortejamento & Aproximação' (estratégias de
comunicação e/ou contacto com o objetivo de expressar afeto ou outros
sentimentos; e.g., Deu, ou deixou para serem encontrados, presentes),
Assédio & Invasão' (estratégias para obter informações sobre a vítima,
invadir a sua privacidade ou individualidade; e.g., Vigiou ou controlou o meu
comportamento) e Ameaças & Violência' (ações interpostas para influenciar
o comportamento da vítima ou provocar dano real; e.g., Agarrou-me ou impediu-
me de continuar o meu percurso). Cada item é avaliado numa escala de
frequência de 5 pontos (0 = Nunca, 1 = Uma vez, 2 = 2 a 3 vezes, 3 = 4 a
5 vezes, 4 = Mais de 5 vezes). Para este estudo foi dada a instrução às
participantes para que respondessem com base na conduta levada a cabo pelo ex-
parceiro após o término do relacionamento.
' Outcome Questionnaire ' 45.2 (OQ-45.2; Lambert & Burlingame, 1996, versão
portuguesa adaptada por Machado & Fassnacht, em preparação): Este
instrumento de autorrelato foi selecionado por fornecer uma medida do
ajustamento e perturbação psicossocial dos indivíduos. É composto por 45 itens
de tipo Likert, cotados numa escala de Nunca (0) a Quase sempre (4). Neste
estudo, foi apenas considerado o score total. O Alpha de Cronnbachobtido nesta
amostra de investigação (α= .92) sugereuma boa consistência interna.
' Questionário padronizado sobre: (i) Características sociodemográficas; (ii)
Outras características da ex-relação, nomeadamente duração, tipo, sexo do ex-
parceiro, perceção face à qualidade do relacionamento e tempo decorrido desde a
rutura; (iii) Outras características do stalking pós-rutura, especificamente
curso, duração, sentimentos face à experiência, forma como a mesma afetou as
suas vidas e como as vítimas a avaliavam; (iv) Tipo de estratégias de coping
adotadas face aos comportamentos de stalking sofridos. Especificamente, face a
um conjunto de seis diferentes tipos de estratégias (adaptado de Spitzberg
& Cupach, 2001, 2007; Spitzberg, 2002), pediu-se às participantes que
indicassem todas aquelas que empreenderam, pelo menos uma vez, como resposta
aos comportamentos de stalking perpetrados pelo ex-parceiro (e.g., Negociei,
de forma pacífica, com o meu ex-parceiro de modo a que ele terminasse estes
comportamentos; Procurei apoio junto de amigos ou familiares).
Procedimentos para seleção da amostra e recolha dos dados
Para este estudo foram contactadas diversas instituições de apoio a vítimas,
solicitando a sua colaboração através da identificação de potenciais
participantes que, aceitando colaborar nesta investigação, cumprissem os
critérios de inclusão definidos, nomeadamente: (i) ser do sexo feminino e (ii)
ter sido alvo, em algum momento das suas vidas, de assédio persistente por
parte de um ex-parceiro íntimo do sexo masculino, traduzido em comportamentos
de perseguição, vigilância, monitorização, intimidação, ameaça ou de outras
formas de comunicação ou contacto, repetido e indesejado. Sublinhe-se que no
contacto com as instituições foi sempre utilizado o conceito de assédio
persistente' uma vez que o termo stalking' encontra-se ainda pouco difundido
na sociedade portuguesa.
A recolha dos dados efetuou-se entre fevereiro de 2009 e janeiro de 2010. A
administração ocorreu nas instituições de apoio que colaboraram, com um tempo
médio de resposta de 30 minutos. Não foi dada às participantes qualquer
compensação económica e aquelas foram sempre devidamente informadas acerca do
caráter anónimo e voluntário da sua participação, tendo fornecido o seu
consentimento informado para a participação nesta investigação.
No total, 106 vítimas de stalking pós-rutura completaram o questionário.
Destas, 98.1% (n = 104) foram alvo de maus tratos físicos e/ou emocionais
durante a relação com o stalker. Atendendo a esta preponderância, apenas as
vítimas com história de violência durante a ex-relação foram incluídas na
análise, perfazendo uma amostra final de 104 mulheres vítimas.
Resultados
Para a realização de todas as análises estatísticas recorremos ao
softwareinformáticoStatistical Package for the Social Sciences(SPSS), versão
18.0.
Em primeiro lugar, começámos por analisar os dados descritivos relativos às
dinâmicas de violência, referentes aos maus tratos sofridos e perpetrados
durante a ex-relação, assim como à conduta de stalking experienciada após a
rutura. Investigámos de seguida a relação entre as características da ex-
relação e as características do stalking sofrido após a separação.
Em segundo lugar, caracterizámos as respostas emocionais e as estratégias de
coping face à campanha de stalking vivenciada. Analisámos ainda o nível de
impacto psicossocial manifestado pelas participantes à data da realização do
estudo, assim como a relação entre esta variável de sintomatologia e outras
variáveis do estudo, nomeadamente características socio-demográficas,
características da ex-relação, característica da campanha de stalkinge tipo de
estratégias decopingempreendidas.
A este propósito, importa sublinhar que sempre que trabalhámos com variáveis
intervalares, começámos por conduzir uma análise exploratória de dados de forma
a verificar se estavam cumpridos os pressupostos subjacentes à utilização de
testes paramétricos. Tendo verificado que tais requisitos não estavam reunidos,
utilizámos a estratégia de calcular ambos os testes: paramétricos (t-student e
Coeficiente de Correlação de Pearson) e seus equivalentes não paramétricos
(Mann-Whitney e Coeficiente de Correlação de Spearman, respectivamente). Tal
como aconselhado por Fife-Schaw (2000), sempre que as conclusões retiradas dos
dois conjuntos de testes se mantinham, optámos por apresentar os resultados dos
testes paramétricos; nos casos em que as conclusões eram discrepantes,
apresentámos os resultados dos testes não paramétricos.
Por último, procedemos a uma análise de regressão logística para identificar os
fatores preditores de desajustamento clínico.
Características e dinâmicas de vitimação
Características da ex-relação íntima
Todas as relações passadas entre a vítima e o stalker eram de natureza
heterossexual. Especificamente, mais de metade das vítimas (55.8%, n = 58)
esteve casada com o respetivo stalker, tendo 41.3% (n = 43) vivido em união de
facto e 2.9% (n = 3) mantido um relacionamento de namoro com aquele (sem
coabitação). Em média, estes relacionamentos duraram 156.05 meses
(aproximadamente 13 anos), variando entre 1 e 576 (i.e., 48 anos) (DP =
126.75).
Durante a ex-relação, e tal como referido anteriormente, todas as participantes
(100%, n = 104) foram alvo de violência, tendo sofrido, em média, mais de 13
atos abusivos distintos (M = 13.45, DP = 5.1). Simultaneamente, 55.8% (n = 58)
das inquiridas reconheceu ter dirigido algum ato desta natureza contra o seu
ex-parceiro: entre 1 e 10 atos distintos de violência perpetrados (M = 3.16, DP
= 2.33).
Considerando a frequência média dos diferentes tipos de abuso descritos no IVC-
3, verificou-se que as vítimas sofreram violência emocional e violência física
de forma reiterada (M = 1.44, DP = 0.45; M = 1.13, DP = 0.59, respetivamente).
Por sua vez, perpetraram qualquer uma destas formas de mau-trato contra o
parceiro num registo ocasional (M Violência Emocional' perpetrada = 0.32, DP =
0.28; M Violência física perpetrada' = 0.18, DP= 0.19). Para efeito das
restantes análises, considerámos apenas a violência sofrida pelas vítimas
durante a relação passada com o stalker.
O relacionamento passado foi avaliado por 41.3% (n = 43) das vítimas como
extremamente negativo e como negativo em 36.5% (n = 38) dos casos. Das
restantes vítimas, 17.3% (n = 18) forneceu uma resposta ambígua (nem positivo
nem negativo), 1.9% (n = 2) considerou a ex-relação positiva e 2.9% (n = 3)
avaliou-a como extremamente positiva.
Em média, a rutura do relacionamento com o stalker tinha ocorrido há 18.94
meses (DP = 20.23), variando num intervalo entre 1 e 84 meses (i.e., 7 anos).
Características do stalking pós-rutura
Questionadas sobre se à data da realização do estudo continuavam a ser alvo de
stalking por parte do ex-parceiro, a maioria das participantes respondeu
positivamente: 32% (n = 33) afirmou ter a certeza que sim e 20.4% (n = 21)
pensava que sim. Por sua vez, 15.5% (n = 16) tinha a certeza que não e
19.4% (n = 20) pensava que não. As restantes (12.6%, n = 13) não sabiam se
este tipo de vitimação teria ou não terminado.
No que concerne à duração do stalking, 10.6% (n = 11) das participantes relatou
durações inferiores a um mês, 28.8% (n = 30) entre um a seis meses, 25% (n =
26) entre sete a 12 meses, 22.1% (n = 23) entre 13 meses a dois anos e 13.5% (n
= 14) referiu uma duração superior a dois anos.
Em média, as vítimas foram alvo de mais de 18 comportamentos de
stalkingdiferentes (M= 18.75;DP= 8.24), experienciados com uma elevada
frequência (M = 1.65, DP = 0.84). Na Tabela_2 ilustra-se a percentagem relativa
de cada um dos comportamentos e a frequência média das respetivas categorias.
Para este efeito, recodificámos a frequência de cada um dos 35 itens que
compõem o ICS-2 numa escala dicotómica (Nunca vs Pelo menos uma vez) e
ordenámo-los em função da sua tipologia.
A maioria das vítimas (61.6%, n = 61) avaliou a conduta de stalking como um
crime e 33.3% ( n = 33) como algo muito grave. Uma reduzida percentagem das
inquiridas apresentou-se algo tolerante face à vitimação sofrida: 3% (n = 3)
considerou tratar-se de algo que está errado mas que não é muito grave e 2%
(n = 2) afirmou que é algo normal.
Considerando a forma como as participantes avaliaram a vitimação, verificou-se
existir uma correlação significativamente positiva entre o julgamento veiculado
e a frequência média (global) dos comportamentos de stalkingsofridos (rsp =
.24,p= .019), ou seja, quanto mais as vítimas experienciaram comportamentos
desta natureza, menos tolerantes se apresentaram face à conduta do ex-parceiro.
Por sua vez, verificámos não existir uma relação significativa entre o
julgamento veiculado e a duração do stalking (rsp = .03, p = .751).
Características da ex-relação íntima e do stalking pós-rutura: Que conexão?
Considerando a duração da ex-relação e a do stalking, verificou-se uma
correlação significativamente positiva entre as variáveis (rsp = .26, p =
.008): quanto mais duradoiro foi o relacionamento passado, mais prolongada foi
a conduta de stalking pós-ruptura. Além disso, verificou-se existir também uma
correlação significativamente positiva entre a duração da separação e a duração
do stalking (rsp = .75, p < .001), sendo que separações mais prolongadas
estavam associadas a casos de stalking mais longos.
De forma a obtermos uma compreensão clara acerca da relação entre as diferentes
modalidades de vitimação, correlacionámos os comportamentos de stalking pós-
rutura com a violência sofrida durante a relação entretanto cessada.
Tal como se ilustra na Tabela_3, os comportamentos de stalking relativos a
Assédio & Invasão' e os relativos a Ameaças & Violência'
correlacionam-se significa e positivamente com a Violência Emocional' e com a
Violência Física' sofridas durante a ex-relação. Especificamente, a correlação
mais forte ocorreu entre estratégias de stalking relativas a Ameaças &
Violência' e a Violência Emocional', ao passo que a correlação mais fraca
verificou-se entre os comportamentos de Assédio & Invasão' e a Violência
Emocional'. Por sua vez, os resultados demonstraram não existir associação
significativa entre as estratégias de Cortejamento & Aproximação' e
qualquer um dos tipos de abuso experienciados na constância do relacionamento
passado.
Respostas emocionais e coping face ao stalking pós-rutura
Na sequência dos comportamentos de stalking, a maioria das vítimas (67%, n =
67) relatou sentir-se muito assustada ou amedrontada. Menos de 1/4 (24%, n =
24) sentiu-se um pouco assustada ou amedrontada e 9% (n = 9) sentiu-se nada
assustada ou amedrontada. Além disso, quase todas as participantes (92.1%, n =
93) relataram que a conduta do ex-parceiro exerceu uma influência negativa nas
suas vidas: especificamente, 17.8% (n = 18) afirmou que o stalking pós-rutura
as afetou um pouco, 26.7% (n = 27) afirmou que afetou muito e 47.5% (n =
48) afirmou que afetou significativamente as suas vidas.
Questionadas sobre o tipo de coping adotado face ao stalking, a esmagadora
maioria das vítimas (94.2%, n = 98) referiu ter empreendido alguma estratégia.
Destas, mais de metade afirmou ter procurado ajuda junto de amigos ou
familiares (66.3%, n = 67), junto das autoridades policiais ou judiciais
(64.4%, n = 65) e/ou optou por evitar o ex-parceiro (55.4%, n = 56). Menos de
metade da amostra relatou outro tipo de estratégias, nomeadamente a negociação
com o ex-parceiro, pedindo-lhe para que interrompesse aqueles comportamentos
(45.5%, n = 46); a confrontação, assumindo uma postura intimidatória com aquele
(40.6%, n = 41); e/ou a negação / minimização dos comportamentos sofridos
(através do recurso à meditação, medicação, consumo de álcool ou outras
substâncias para esquecer) (13.9%, n = 14). Em média, as vítimas
implementaram entre 2 e 3 diferentes tipos de estratégias de coping (M = 2.96,
DP = 1.36).
Atendendo às sugestões apontadas na literatura acerca da potencial
(in)adequação de diferentes tipos de estratégias (Spitzberg & Cupach, 2001,
2007; Spitzberg, 2002), concluímos que 7.9% (n = 8) das vítimas adotou
unicamente estratégias consideradas inadequadas (negociar, confrontar e/ou
negar/minimizar), 30.7% (n = 31) adotou exclusivamente estratégias tidas como
adequadas (evitar, procurar apoio junto de amigos / familiares e/ou junto das
autoridades policiais / judiciais) e a maioria (58.4%, n = 59) implementou um
conjunto de estratégias mistas (pelo menos, um tipo de estratégia considerada
adequada e um tipo considerado inadequado).
Impacto psicossocial e fatores preditores de desajustamento clínico
No OQ-45.2, as participantes apresentaram um resultado total médio de 63.90 (DP
= 24.69), variando num intervalo entre 15 e 134. Assim, e tomando como
referência os valores normativos descritos por Machado & Fassnacht (em
preparação), 57.7% (n = 60) das vítimas exibiu uma condição de ajustamento
clínico e as restantes (42.3%, n = 44) manifestavam desajustamento clinicamente
significativo.
Impacto psicossocial e características sócio-demográficas
Os resultados demonstraram não existir diferenças significativas entre vítimas
clinicamente ajustadas e desajustadas ao nível da idade (t(102) = -0.62, p =
.536). Por sua vez, encontrámos uma associação significativa entre as
habilitações literárias das inquiridas (até ao 3º ciclo do Ensino Básico vs
mais do que o 3º ciclo do Ensino Básico) e a respetiva condição clínica (X2(1)
= 8.79, p = .003), sendo que a maioria daquelas que terminou o secundário/curso
superior (68%) reportou desajustamento psicossocial clinicamente significativo,
ao passo que a maioria daquelas (65.8%) com graus de instrução inferior
apresentou-se clinicamente ajustada. No que concerne à relação entre o nível de
(des)ajustamento e o estatuto sócio ' económico (Baixo/Médio-Baixo vs Médio/
Médio-Alto), concluímos pela inexistência de qualquer associação significativa
entre as variáveis (X2(1) = 0.17, p = .683).
Impacto psicossocial e características da ex-relação
Considerando as características da ex-relação, concluímos que não existiam
diferenças significativas entre os grupos ao nível da duração do relacionamento
(t(102) = 0.70, p = .488) e ao nível da frequência média (global) dos
comportamentos violentos sofridos durante aquele período de tempo (t(102) = -
0.88, p = .379).
Impacto psicossocial e características do stalking pós-rutura
Por sua vez, atendendo às características do stalking, não foi encontrada
qualquer associação significativa entre o curso da vitimação e o nível de
impacto psicossocial exibido (X2 (4) = 3.34, p = 503), assim como entre aquela
variável de sintomatologia e a duração da experiência (menor que 6 meses vs
maior ou igual a 6 meses; X2(1) = 2.20, p = .138). Já em relação à frequência
média (global) dos comportamentos de stalking, verificou-se uma diferença
estatisticamente significativa entre os grupos em análise (t(102) = -3.13, p =
.002): as vítimas que exibiram desajustamento clínico relataram ter sido alvo
de comportamentos desta natureza mais frequentemente (M = 1.94; DP = 0.78) do
que aquelas que não exibiram a mesma condição clínica (M = 1.44; DP = 0.82).
Impacto psicossocial e tipo de estratégias de coping adotadas
Analisando a relação entre o tipo de coping e o nível de impacto exibido, e tal
como se ilustra na Tabela_4, encontrou-se uma associação estatisticamente
significativa entre a sintomatologia e a resposta de evitamento: a maioria das
vítimas que evitou o ex-parceiro exibiu ajustamento clínico e a maioria
daquelas que não adotou esta estratégia manifestou desajustamento com
relevância clínica. Também foi encontrada uma associação estatisticamente
significativa entre a estratégia de confrontação e o nível de impacto
psicossocial: a maioria das vítimas que confrontou o stalker apresentou
desajustamento clínico, ao contrário da maioria daquelas que não empreendeu
este tipo de estratégia.
Preditores de desajustamento psicossocial clinicamente significativo
A regressão logística (método Enter) foi usada para proceder à previsão do
desajustamento clínico a partir das variáveis que, nas análises anteriores, se
mostraram significativamente relacionadas com o nível de impacto psicossocial.
Refira-se que as análises preliminares revelaram estarem cumpridos os
pressupostos subjacentes à utilização deste tipo de análise, nomeadamente
dimensão adequada da amostra, ausência de multicolinearidade e de outliers
(Pallant, 2007).
Os preditores foram inseridos em três blocos, tal como se ilustra na Tabela_5:
no primeiro bloco foram inseridas as características sócio-demográficas das
vítimas (i.e., habilitações literárias), no segundo introduziram-se as
características da vitimação por stalking (i.e., frequência média global dos
comportamentos) e no terceiro integraram-se as respostas de coping(i.e., evitar
e confrontar).
O modelo com as características da vítima (i.e., habilitações literárias)
explicou entre 8.5% e 11.4% da variância (Cox & Snell R Square e Nagelkerke
R Square, respetivamente) e classificou corretamente 66.3% dos casos.As
habilitações literárias da vítima assumiram uma contribuição individual
estatisticamente significativa na predição do desajustamento psicossocial,
sendo que as inquiridas com graus de formação mais elevados evidenciaram maior
probabilidade de exibir aquela condição clínica.
A introdução da frequência média dos comportamentos de stalking sofridos
contribuiu para aumentar ligeiramente o poder preditivo do modelo, o qual
passou a explicar entre 14.5% e 19.5% da variância (Cox & Snell R
SquareeNagelkerke R Square, respetivamente). Ainda assim, o número decasos
corretamente classificados sofreu um ligeiro decréscimo (64.5%). Ambas as
variáveis revelaram-se preditores significativos do desajustamento
psicossocial: mais uma vez, as vítimas com habilitações mais elevadas
evidenciaram maior probabilidade de exibir aquela condição clínica, o mesmo
acontecendo com aquelas que sofreram comportamentos de stalking mais
frequentemente.
As variáveis incluídas no terceiro bloco, relativas às estratégias de
copingadotadas face a esta experiência de vitimação, vieram acrescentar
umcontributo ainda mais importante na predição do desajustamento psicossocial,
tendo o modelo passado a explicar de 23.8% a 32% da variância (Cox & Snell
R SquareeNagelkerke R Square, respetivamente) e a classificar corretamente
69.4% dos casos. Neste caso, apenas dois dos preditores incluídos exerceram uma
contribuição individual estatisticamente significativa na predição daquela
condição: a frequência média dos comportamentos de stalking (preditor mais
forte) e a estratégia de evitamento. Pudemos concluir que as vítimas que foram
mais frequentemente alvo daquele tipo de comportamentos e aquelas que não
evitaram os contactos com o stalker tinham maior probabilidade de manifestar
desajustamento psicossocial com relevância clínica.
Discussão
Assumindo particular relevância dada a escassez de investigação em Portugal
sobre esta temática, os resultados deste estudo revelam uma realidade
preocupante sobre as mulheres vítimas de violência doméstica e de stalkingpor
parte do ex-parceiro.
A análise da vitimação por stalking após a separação ilustra conceções
amplamente documentadas na literatura sobre o tema, entre as quais se destaca a
sua natureza altamente prolongada: mais de 60% da amostra foi alvo deste tipo
de violência durante 6 ou mais meses, tendo 13.5% das inquiridas reportado uma
duração superior a 2 anos. Esta evidência está de acordo com a representação
traduzida nos diferentes estudos internacionais conduzidos junto desta
população (e.g., Brewster, 1998; Mechanic, Weaver, & Resick, 2002) e
suporta a ideia de que, neste contexto em particular, o risco de uma vitimação
persistente e continuada é expressivo (cf. McEwan et al., 2007). No que
concerne à natureza dos comportamentos, os resultados são também bastante
esclarecedores e concordantes com a literatura internacional (Spitzberg &
Cupach, 2007), sendo possível identificar um continuum comportamental que
abrange ações com uma gravidade bastante distinta entre si. Especificamente, os
comportamentos mais comuns (reportados por mais de 70% das participantes),
incluíram telefonemas ou outro tipo contacto telefónico indesejado, tentativas
para obter informações pessoais sobre a vítima através de terceiros, abordagens
diretas, aparecimento nos locais ou nas proximidades dos locais frequentados
por aquela, vigilância ou controlo do seu comportamento, assim como agressões e
ameaças, ambas de natureza verbal. Importa sublinhar que o caráter coberto de
muitas destas ações poderá colocar os seus intervenientes em posições
paradoxais: se, para o stalker, os riscos envolvidos são menores (e.g.,
ausência de tipificação criminal para vários destes atos), para a vítima torna-
se mais difícil proteger-se das mesmas (e.g., maior dificuldade de ver as suas
necessidades acreditadas por terceiros). Para além disso, estes resultados
sugerem que o stalking tem na sua génese uma forma de violência mais camuflada
ou invisível, hipótese que vai ao encontro das indicações também apontadas
por outros autores (e.g., Mechanic, Weaver, & Resick, 2002).
Ainda assim, os comportamentos sofridos durante a campanha de stalkingpós-
rutura situados no pólo mais extremo docontinuumcomportamental foram muito
elevados: atos de violência física (53.8%), ameaças com armas ou outros objetos
intimidatórios (37.5%) ou ações contra a sua própria vida (29.8%). Estes
resultados corroboram evidências documentadas noutros trabalhos, nomeadamente
aqueles que identificam a presença de ameaças (no geral) como um dos preditores
mais significativos para a ocorrência de abuso físico (e.g., Brewster, 2002;
Roberts, 2005) e aqueles que apresentam o cenário de stalking no âmbito de
relações íntimas como o de maior risco (cf., McEwan et al., 2007). De realçar
ainda o facto de, não raras vezes, este tipo de ofensores ter envolvido
terceiros na campanha de assédio perpetrada, quer como seus aliados, quer como
alvos secundários dos seus comportamentos, o que é igualmente compatível com os
dados disponíveis na literatura (e.g., Melton, 2007).
A esmagadora maioria das vítimas avaliou a conduta de stalking sofrida como um
crime ou algo muito grave. Os julgamentos menos tolerantes estavam
associados a experiências caracterizadas por uma maior reiteração deste tipo de
comportamentos. Julgamos que outros fatores podem ter contribuído para esta
atitude geral de reprovação da campanha de assédio pós-rutura, nomeadamente o
acompanhamento institucional recebido e, sobretudo, a história passada de
violência perpetrada pelo mesmo agente. Ao violar as expectativas das mulheres
face à reserva, edificação e preservação do seu próprio território (Wuest
& Merrit-Gray, 1999, p. 118), este tipo de conduta poderá ser vista como um
obstáculo à construção de um projeto de vida alternativo e imune à violência,
pondo em causa os propósitos que, possivelmente, presidiram à decisão de
separação.
As conclusões sobre a relação entre diferentes comportamentos abusivos
ocorridos durante a ex-relação e diferentes comportamentos de stalking
ocorridos após a rutura constituem mais um alicerce para a conceptualização do
stalking como uma faceta da violência na intimidade (e.g., Basile & Hall,
2010; Miller, 2006). A este respeito, não podemos ignorar a aproximação
conceptual entre os comportamentos de Cortejamento & Aproximação' e as
estratégias que, tipicamente, caracterizam a fase de lua-de-mel do ciclo da
violência (Walker, 1994): durante a relação, este tipo de atos serve para o
ofensor envolver a vítima de bons tratos, investindo na sua sedução através
de estratégias de manipulação; contudo, durante aquele período de tempo, a
mulher vítima raramente tem consciência do nível de manipulação envolvido
naquele tipo de atos e, em virtude disso, não lhes reconhece um caráter
abusivo. Contrariamente, porque a separação traduz o seu desejo em cessar os
contactos com o ex-parceiro, aqueles atos de cortejamento e sedução passam
agora a não ser bem recebidos pela mulher e esta parece estar assim mais capaz
de os perceber como intrusivos e manipulativos.
A forma como as vítimas respondem à experiência de stalking constitui outra
dimensão importante deste estudo. Desde logo, importa sublinhar que quase todas
as participantes (91%) relataram algum nível de medo na sequência dos
comportamentos perpetrados pelo ex-parceiro, levando-nos a concluir pelo
caráter endémico desta reação, sendo estes dados corroborados pela investigação
internacional (e.g., Brewster, 1998). Além disso, a esmagadora maioria das
participantes (92.1%) reconheceu que este tipo de vitimação pós-rutura teve uma
influência negativa nas suas vidas, reforçando o efeito nocivo destas
experiências (e.g., Mechanic, 2002).
Ainda assim, as vítimas demonstraram ser ativas na gestão individual da
violência sofrida, empreendendo diferentes tipos de estratégias de coping face
aos comportamentos de stalking perpetrados pelo ex-parceiro. Embora tenhamos
percebido que a maioria acabou por adotar, simultaneamente, estratégias tidas
como positivas e outras menos eficazes (Spitzberg & Cupach, 2001, 2007;
Spitzberg, 2002), as respostas mais frequentemente apontadas pelas
participantes correspondem aos estilos de coping recomendados pela literatura,
situação que pode ser compreendida pelo acompanhamento institucional de que
todas usufruíram. Além disso, o facto de acumularem a vitimação doméstica
anterior pode explicar também o seu maior sucesso e expertise na gestão da
violência pós separação.
Em termos psicossociais, 57.7% das vítimas encontrava-se clinicamente ajustada,
contrariamente às restantes 42.3%, onde foi identificado desajustamento com
relevância clínica. A condição sub-clínica manifestada por mais de metade da
amostra pode ser compreendida de diferentes formas, entre as quais o
pressuposto de anestesia ao mal-estar (Ravazola, 1997). Julgamos, contudo,
que esta explicação é pouco compatível com a reduzida tolerância face à conduta
de stalking evidenciada pela esmagadora maioria das participantes.
Provavelmente, estas mulheres possuem fatores de resiliência pessoal e/ou
dispõe de outras circunstâncias protetoras (e.g., apoio e suporte informal mais
efetivo, autoconceito positivo) que lhes permitiram preservar ou recuperar a
sua condição psicossocial, apesar das dificuldades e adversidades enfrentadas
(Spitzberg, 2002). Além disso, importa também atender ao tempo de separação e à
possibilidade de reorganização das suas vidas graças ao apoio institucional
recebido.
Por fim, de modo a identificarmos os preditores de desajustamento clínico,
conduzimos uma análise de regressão logística, com base nas variáveis que
relevaram uma relação estatisticamente significativa com aquela variável de
sintomatologia em análises prévias.
Assim, quando se analisaram exclusivamente as características da vítima (i.e.,
habilitações literárias), concluímos que as vítimas com um grau de formação
mais elevado (ensino secundário e/ou universitário) tinham maior probabilidade
de exibir desajustamento psicossocial clinicamente significativo. Este dado
poderá ser explicado pelo facto da maior instrução facilitar a perceção do
caráter intrusivo e violador das liberdades individuais que os comportamentos
de stalking encerram.
Quando se exploraram de forma conjunta as características da vítima e as
dinâmicas do stalking (i.e., frequência média global dos comportamentos),
constatámos que ambas as variáveis eram preditores do desajustamento
psicossocial, sendo que as vítimas que sofreram comportamentos de stalking mais
frequentemente apresentaram maior probabilidade de manifestar aquela condição
clínica. Estes resultados vão ao encontro das conclusões de outros trabalhos
(e.g., Mechanic, Uhlmansiek et al., 2002) e demonstram que esta modalidade de
vitimação assume um papel particularmente crítico na explicação da
sintomatologia exibida por mulheres alvo de múltiplas experiências de violência
no contexto relacional, especialmente quando os comportamentos de stalking
assumem um formato altamente reiterado, situação que pode ser explicada pelo
seu caráter mais imprevisível e pela prolongada exposição à ameaça que impõe
(e.g., Collins & Wilkas, 2001).
A análise conjunta das características da vítima, das dinâmicas de stalkinge do
tipo de estratégias decopingadotadas pelas participantes (i.e., evitar e
confrontar) permitiu concluir que o desajustamento psicossocial exibido por
vítimas de stalking pós-rutura resulta de uma interação complexa de variáveis
de naturezas várias. Neste último caso, apenas dois dos preditores incluídos
exerceram uma contribuição individual estatisticamente significativa na
predição: a frequência média dos comportamentos de stalking (preditor mais
forte) e a estratégia de evitamento. Em relação a este último, sucedeu que as
vítimas que não evitaram os contactos com o stalker tinham maior probabilidade
de manifestar desajustamento psicossocial com relevância clínica. Este
resultado sugere que o tipo de coping utilizado pode exercer um importante
papel mediador na relação entre a vitimação por stalking e o desajustamento
psicossocial exibido pelas vítimas e fornece sustentação empírica às conceções
que apresentam esta estratégia como uma das mais eficazes em situações de
stalking (Spitzberg & Cupach, 2001, 2007; Spitzberg, 2002). O evitamento
dos contactos, não só dificulta a tarefa ao stalker e diminui o risco de
revitimação, como pode favorecer sentimentos de autoeficácia na gestão desta
experiência.
Neste sentido, os resultados deste trabalho sugerem que a intervenção com
vítimas de stalking por parte de ex-parceiros deve contemplar um conjunto
específico de saberes, competências e conhecimentos. Intervir às cegas ou
importando práticas de outros contextos, não só é pouco eficaz como encerra
possíveis incorreções, dadas as idiossincrasias desta modalidade de vitimação.
A este nível, destaca-se a necessidade de o profissional desenvolver junto da
vítima estratégias adequadas para lidar com o stalker. Especificamente, importa
reforçar junto daquela a necessidade e pertinência de transmitir ao stalker o
seu desinteresse e desagrado face à atenção recebida, através de uma mensagem
breve, explícita, não emotiva e desprovida de justificações; depois de
transmitido o desinteresse, a vítima deverá ser sensibilizada para a
importância de cessar todos os contactos com o stalker, de modo a não reforçar
os seus comportamentos, nem contribuir inadvertidamente para a sua perpetuação
(Matos, Grangeia, Ferreira, & Azevedo, 2011).
Este estudo permitiu corroborar evidências internacionais já disponíveis sobre
o stalking no contexto de relações íntimas, chamando a atenção para uma
realidade que, embora seja comummente relatada pelas mulheres vítimas de maus
tratos conjugais, continua votada a alguma negligência no panorama nacional.
Interessa, pois, aperfeiçoar o conhecimento nacional desta realidade e investir
na melhoria das políticas de intervenção, capazes de patrocinar respostas
efetivas às múltiplas necessidades enfrentadas pelas vítimas de violência no
contexto de relacionamentos íntimos.
Não obstante os contributos alcançados, importa refletir sobre algumas
limitações deste trabalho. O facto de termos utilizado uma amostra de
conveniência inviabiliza, desde logo, a generalização dos resultados obtidos.
Outra limitação deste estudo prende-se com a particular ênfase conferida aos
atos de violência emocional e física ocorridos durante a ex-relação, deixando
por abordar a violência sexual durante aquele período de tempo; esta limitação
é inerente à medida utilizada (IVC-3), não deixando de ter sido ponderada
aquando da sua escolha (que, ainda assim, foi selecionada dado tratar-se de um
instrumento validado e aferido para a população portuguesa) . Além disso, o
facto de a amostra ter sido recolhida em instituições formais poderá ter
potenciado o contacto com casos mais extremos, caracterizados precisamente pela
experiência cumulativa de diferentes modalidades de vitimação e por níveis
elevados de dificuldades psicossociais. Finalmente, outra reserva deste estudo
prende-se com o seu design retrospetivo.