Desenvolvimento de competências no pré-escolar: A importância das práticas de
escrita inventada
A comunicação através de um sistema de escrita alfabético pressupõe a
compreensão do princípio alfabético, que depende integralmente da associação
entre conhecimento das letras e consciência explícita dos fonemas e é
facilitada pelas experiências de escrita das crianças (Adams, 1990; Treiman,
1998).
Com efeito, as crianças usam os seus conhecimentos dos nomes das letras como um
guia para as correspondências entre letras e sons, ou seja, quando se
familiarizam com os nomes das letras usam esse conhecimento nas suas escritas
(Adams, Treiman & Pressley, 1998; Alves Martins & Silva, 2001;Ehri,
1997; Mann, 1993; Quintero, 1994; Treiman, 1994, 1998, 2000, 2006). No entanto,
a aprendizagem das correspondências fonema-grafema é influenciada pelas
propriedades fonológicas dos nomes das letras, devendo-se considerar o papel
crucial e distintivo que as características específicas das estruturas
fonológica e morfológica de uma língua, e o modo como essas características se
reflectem na escrita, têm na transição para o princípio alfabético (Tolchinsky,
2004). Uma vez que algumas estruturas linguísticas são mais difíceis do que
outras, podem surgir erros específicos na leitura e na escrita.
Martins, Silva e Pereira (2010) analisaram o efeito que as propriedades
articulatórias dos fonemas iniciais de uma palavra têm na fonetização da
escrita, ou seja, na utilização de letras com valor sonoro convencional, por
parte de crianças em idade pré-escolar, tendo chegado à conclusão de que é mais
fácil adquirir a fonetização das fricativas do que das oclusivas. Estes
resultados são consistentes com os de Byrne e Fielding-Barnsley (1991), que
verificaram que o ensino da identidade do fonema é mais fácil para as
fricativas do que para as oclusivas. No mesmo sentido, as fricativas são mais
fáceis de identificar em pseudopalavras do que as oclusivas, segundo McBride-
Chang (1995). Efectivamente, as fricativas são consideradas mais fáceis de
pronunciar isoladamente, com menor interferência do som vocálico, e as suas
representações acústicas mais constantes o que facilita a sua identificação
relativamente às oclusivas. No entanto, Treiman, Broderick, Tincoff e Rodriguez
(1998) verificaram que em tarefas de reconhecimento do fonema inicial, as
crianças tiveram melhor desempenho com as oclusivas do que com as fricativas.
Assim, as propriedades dos fonemas por si só, na língua inglesa, parecem não
ter uma influência consistente na capacidade em estabelecer relações grafo-
fonológicas. O que parece ser mais importante é o facto de o fonema estar
presente no nome de uma letra e, assim sendo, a posição que ele ocupa no nome
dessa letra (Treiman, 2006).
Independentemente das características dos fonemas, Byrne (1998) salienta a
robustez do princípio alfabético relativamente à aquisição de novas letras, na
medida em que, uma vez consolidado o conceito de identidade do fonema, as
crianças serão capazes de transferir os seus conhecimentos das relações grafo-
fonológicas para além das que lhes foram explicitamente ensinadas. Esta
capacidade foi igualmente verificada para a língua Portuguesa (Silva, Almeida
& Alves Martins, 2010).
Verifica-se, então, que o conhecimento de um sistema alfabético e do seu
funcionamento implica conhecer os nomes das letras e as suas correspondências
grafo-fonológicas e saber como agrupar as letras em unidades funcionais que
simbolizam os fonemas (Ehri, 1997), o que, por sua vez, implica um elevado
nível de reflexão consciente, ou seja, de consciência fonológica. Deste modo, e
sendo este um processo de desenvolvimento, a transição para o princípio
alfabético é gradual e está relacionada com a experiência de leitura e de
escrita das crianças (Tolchinsky, 2004).
Neste sentido, diversos estudos têm demonstrado os benefícios das actividades
de escrita no desenvolvimento da consciência fonémica (Kamii & Manning,
2002; Stahl & Murray, 1998; Vernon & Ferreiro, 1999), destacando-se os
estudos conduzidos em português por Alves Martins e Silva (2001, 2006a, 2006b)
e por Silva e Alves Martins (2002; 2003) no que respeita ao desenvolvimento da
consciência fonológica e das conceptualizações infantis sobre a linguagem
escrita. As autoras desenvolveram programas de intervenção destinados a fazer
evoluir a escrita inventada de crianças em idade pré-escolar. Para tal, era
pedido aos participantes que escrevessem como soubessem um conjunto de palavras
e depois era-lhes mostrada uma escrita alternativa de um nível conceptual mais
avançado. As crianças teriam de analisar oralmente a palavra, reflectir sobre
as duas formas de escrita e escolher, justificando, a que lhes parecia mais
correcta. Este procedimento promoveu uma evolução conceptual, mas também uma
melhoria no desempenho nas tarefas fonémicas e na representação do mesmo som
com a mesma letra em palavras diferentes. A melhoria nas provas de consciência
fonémica confirma que o envolvimento em situações de escrita anteriores ao
ensino formal é um factor no desenvolvimento da consciência fonémica e que isso
é verdade mesmo a partir de formas mais elementares de escrita. (Alves Martins
& Silva, 2006b, p. 52). Estes estudos reforçam a ideia de que existe uma
interacção complexa entre os processos associados à consciencialização das
unidades sonoras e a compreensão do funcionamento do código escrito.
Por outro lado, Ouellette e Sénéchal (2008) consideram que a escrita inventada
associada a um feedback que promova o desenvolvimento irá apurar e integrar um
conjunto de capacidades importantes que estão envolvidas na aprendizagem da
linguagem escrita não só a nível ortográfico, como também fonológico. Os
autores reforçam que, dada a sua natureza exploratória, a escrita inventada
encoraja as crianças a usar uma abordagem analítica que promove a integração de
informação fonológica e alfabética nas representações lexicais iniciais que
ligam não só a informação fonológica, como também a informação ortográfica
(Ouellette & Sénéchal, 2008).
Os estudos apresentados salientam a importância das actividades de escrita
inventada na compreensão do princípio alfabético. Os programas desenvolvidos
promovem o desenvolvimento da consciência fonémica e das escritas inventadas
das crianças, até à sua fonetização. No entanto, as variáveis relacionadas com
este processo de desenvolvimento não foram analisadas. Apesar da idade, do
nível intelectual, da consciência fonológica e do conhecimento das letras dos
participantes ter sido avaliado no início dos programas, a sua relação com os
resultados no pós-teste não foi considerada. Por outro lado, é também relevante
verificar a capacidade para generalizar os procedimentos de fonetização a um
número maior de consoantes e a fonemas em posição final.
Desta forma, o presente estudo tem como objectivos compreender os efeitos de
dois programas de escrita inventada no desenvolvimento das escritas inventadas
das crianças. Mais concretamente, este estudo pretende: a) comparar o número de
fonetizações entre crianças que participaram num programa de escrita inventada
com fricativas e crianças que participaram num programa de escrita inventada
com oclusivas; b) verificar se as crianças de cada grupo são capazes de
generalizar os procedimentos de fonetização a correspondências grafo-
fonológicas não trabalhadas; c) comparar se aplicam de forma equivalente os
procedimentos de fonetização às consoantes iniciais e finais; d) compreender as
relações entre consciência fonológica, conhecimento das letras e os
procedimentos de fonetização.
Metodologia
Foram estabelecidos dois grupos experimentais e um grupo de controlo. Entre os
pré- e pós-testes, as crianças do grupo experimental 1 participaram num
programa de escrita inventada que trabalhou consoantes fricativas e as crianças
do grupo experimental 2 participaram num programa de escrita inventada que
trabalhou consoantes oclusivas. Estes programas foram desenhados para conduzir
as crianças a usar letras convencionais na codificação das consoantes iniciais
de cada palavra. As crianças do grupo de controlo envolveram-se em actividades
não ligadas à linguagem escrita, nomeadamente, em exercícios de categorização
de figuras geométricas.
Os programas dos grupos experimentais e do grupo de controlo tiveram início uma
semana depois da realização do pré-teste e duraram 4 semanas. O pós-teste teve
lugar uma semana após a conclusão dos programas, sendo igual ao pré-teste.
Participantes
Participaram no estudo 56 crianças (31 do sexo feminino e 25 do sexo
masculino), que se encontravam num nível conceptual pré-silábico. Estas
crianças foram seleccionadas de um total de 118 crianças que frequentavam 6
salas de pré-escolar em 3 escolas privadas da Grande Lisboa. A sua média de
idades era de 65.59 meses, com um desvio-padrão de 4.03 meses; a idade mínima
destas crianças era de 59 meses e a máxima de 75 meses. Nenhum dos
participantes tinha recebido treino formal em leitura e escrita. As únicas
actividades regulares relacionadas com a linguagem escrita eram a leitura de
histórias, ensino do nome das letras, ou actividades em que as crianças têm de
escrever o nome próprio (e.g. desenhos, pinturas).
Os participantes foram distribuídos pelos três grupos: grupo experimental 1 (N
= 19); grupo experimental 2 (N = 19); grupo de controlo (N = 18), tendo-se
verificado uma homogeneidade de variâncias ente os grupos no que respeita às
variáveis idade, nível intelectual, consciência silábica, consciência fonémica
e conhecimento das letras. Os valores das médias e dos desvios-padrão são
apresentados na Tabela_1.
Foram realizadas 5 ANOVAs tendo como variável independente o grupo e como
variáveis dependentes cada uma das variáveis acima mencionadas. Os resultados
não revelaram diferenças significativas entre os 3 grupos, tendo-se obtido os
seguintes valores respectivamente: F(2,55) = .66, p = 0.523 para a idade; F
(2,55) = .21, p = .808 para a inteligência; F(2,55) = 1.80, p = .18 para o
teste de classificação da sílaba inicial (consciência silábica); F(2,55) = .44,
p = .65 para o teste de classificação do fonema inicial (consciência fonémica);
F(2,55) = .82, p = .446 para o conhecimento das letras. Os resultados dos
testes Post Hoc (Tukey HSD) realizados, também indicaram não haver diferenças
significativas para cada uma destas varáveis entre cada grupo.
Instrumentos e Procedimentos
Avaliação das escritas inventadas das crianças para selecção dos participantes
Para seleccionar as crianças pré-silábicas, foi pedido às 118 crianças que
frequentavam as três escolas que escrevessem o seu nome e seis palavras: pulga,
boi, formiga, serpente, tartaruga, dinossauro. Depois de escreverem cada
palavra, era pedido a cada criança que as lesse. Também lhes era perguntado
porque tinham usado aquelas letras e não outras. As respostas das crianças
foram categorizadas de acordo com Ferreiro (1988) e Alves Martins e Silva
(2006b) em escritas pré-silábicas, silábicas sem fonetização, silábicas com
fonetização e silábico-alfabéticas/alfabéticas.
Nas escritas pré-silábicas, as crianças utilizam um número fixo de letras,
pseudoletras ou algarismos, com diferentes combinações que distinguem cada
palavra; a escrita não é orientada por critérios linguísticos e não se
verificam verbalizações.
Nas escritas silábicas sem fonetização, as crianças começam a fazer
corresponder os sons das palavras a letras, ou seja, a escrita é orientada por
hipóteses linguísticas, em que as crianças fazem corresponder uma letra
arbitrária a cada sílaba da palavra.
Nas escritas silábicas com fonetização as crianças mobilizam letras com valor
sonoro correspondente a um dos fonemas de cada sílaba.
Por fim, nas escritas silábico-alfabéticas/alfabéticas, as crianças usam letras
convencionais para representar os sons. No caso das escritas silábico-
alfabéticas, as crianças podem representar todos os sons numa sílaba da palavra
e apenas um dos sons na outra sílaba da mesma palavra. No caso das escritas
alfabéticas, as crianças representam todos os fonemas de todas as sílabas da
palavra, apesar de poderem não respeitar as regras ortográficas.
As palavras escolhidas eram linguisticamente diferentes no que respeita ao seu
tamanho ' palavras mono, di, tri e polissilábicas ' e algumas delas remetiam
para referentes de tamanho diferente (e.g. boi; formiga). Estas palavras
permitem-nos perceber se o raciocínio subjacente ao tipo de escrita da criança
é baseado nas características do referente ou em critérios linguísticos. É
esperado que crianças pré-silábicas se baseiem em critérios não linguísticos,
justificando a sua escrita sem estabelecer uma relação com a linguagem oral.
Por outro lado, as crianças que já não se encontram no período pré-silábico
baseiam as suas escritas em critérios linguísticos ' número de sílabas ou uso
de letras pertinentes ' e justificam a sua escolha estabelecendo uma relação
entre a oralidade e a escrita.
Participaram apenas as cinquenta e seis crianças que revelaram uma escrita pré-
silábica.
Avaliação da inteligência
O nível de inteligência dos participantes foi avaliado através da versão
colorida das Matrizes Progressivas de Raven (Raven, Court & Raven, 1998),
por não ser um teste dependente da competência verbal.
Avaliação da consciência fonológica
Tal como foi referido num capítulo anterior, um dos aspectos que influencia a
escrita inventada das crianças é a consciência fonológica, pelo que foi
necessário avaliar esta competência. Assim, para avaliar a consciência
fonológica dos participantes foram utilizados dois subtestes baseados na
Bateria de Provas Fonológicas (Silva, 2002): um teste de classificação da
sílaba inicial e um teste de classificação do fonema inicial. Cada teste era
composto por 16 itens precedidos por 2 exemplos. Em cada item, eram
apresentados à criança quatro desenhos representantes de quatro palavras ditas
oralmente (não se apresentaram palavras escritas).
No teste de classificação da sílaba inicial, duas palavras de cada item
começavam pela mesma sílaba e as outras por sílabas diferentes (e.g. sofá/fada/
vaca/fato), tendo a criança de identificar as palavras iniciadas pela mesma
sílaba.
No teste de classificação do fonema inicial duas palavras de cada item
começavam pelo mesmo fonema, enquanto que as outras começavam por fonemas
diferentes (e.g. pessoa/ pinheiro/ boneca/ tapete). Da mesma forma, a criança
tinha de identificar as palavras que começavam com o mesmo fonema.
Avaliação do conhecimento das letras
Foram mostrados 23 cartões com cada letra do nosso alfabeto, em letra de
imprensa maiúscula, uma vez que é neste formato que os participantes se
familiarizaram com as letras, nas respectivas escolas. Depois de se mostrar
cada cartão, era pedido às crianças que nomeassem as letras. A pontuação deste
teste poderia ser de 0 a 23.
Avaliação da escrita inventada nos pré- e pós testes
As escritas das crianças foram avaliadas através de um pré-teste e de um pós-
teste, nos quais foi pedido a cada criança que escrevesse cinquenta
pseudopalavras dissilábicas com uma estrutura CVCV ' uma vez que esta é a
estrutura mais frequente na língua portuguesa (Vigário, Martins & Frota,
2006).
Considerando que se pretendia comparar a fonetização de fricativas e de
oclusivas, as pseudopalavras eram compostas pelas fricativas surdas [f] e [s] e
pelas oclusivas surdas [p] e [t], que foram trabalhadas nos programas. Como
também se pretendia verificar a capacidade das crianças em generalizar os
procedimentos de fonetização para correspondências grafo-fonológicas não
trabalhadas nos programas, as pseudopalavras eram ainda compostas pelos
correspondentes, quanto ao modo de articulação, fonemas fricativos sonoros [v]
e [z] e fonemas oclusivos sonoros [b] e [d]. Foram ainda incluídos mais dois
fonemas surdos: uma fricativa e uma oclusiva, [ι] e [k], respectivamente.
Pretendia-se ainda comparar se as crianças eram capazes de aplicar igualmente
os procedimentos de fonetização às consoantes inicial e final2 pelo que todos
os fonemas aparecem em ambas as posições.
Um dos objectivos deste estudo é verificar a fonetização das consoantes. Uma
vez que o uso de vogais na escrita inventada das crianças de língua portuguesa
é mais frequente do que o uso de consoantes (De Abreu & Cardoso-Martins,
1998; Pollo, Kessler & Treiman, 2005), e que o efeito facilitador do nome
da letra na língua portuguesa é mais acentuado nas vogais, especialmente as
abertas, do que nas consoantes (Alves Martins & Silva, 2009), optou-se por
combinar vogais surdas ' ' (Cunha & Cintra, 2000) ' com as consoantes. Por
exemplo, fasse , bude
Assim, o uso de pseudopalavras deveu-se ao facto de não existirem palavras na
língua portuguesa que permitissem a manipulação destas variáveis linguísticas.
No pré-teste, todas as crianças se encontravam na fase pré-silábica, não se
tendo verificado nenhuma fonetização. No pós-teste, as escritas das crianças
foram avaliadas através das mesmas pseudopalavras e com o mesmo procedimento.
Todas as correspondências grafo-fonológicas possíveis das consoantes em posição
inicial e final foram consideradas e contabilizadas como fonetizações. Uma vez
que o nosso sistema de escrita não é totalmente transparente, os fonemas [k],
[s], [ι] e [z] podem ser representados por mais do que um grafema, pelo que se
considerou como correcto o uso dos grafemasc e q para [k], dos grafemas c e s
para [s], do dígrafo ch e do grafema xpara [ι] e dos grafemas s e z para [z].
Deste modo, o número máximo de fonetizações possível para o pré- e o pós-teste
era de 100 fonetizações, 50 de consoantes em posição inicial e 50 em posição
final. O número máximo de fonetizações de cada consoante era de 10, das quais 5
em posição inicial e 5 em posição final.
Programas de escrita inventada
Os programas de escrita inventada, inspirados nos programas feitos por Silva e
Alves Martins (2002), foram organizados em quatro sessões individuais,
realizadas uma vez por semana, e foram desenhados para conduzir as crianças a
usar letras convencionais na codificação das consoantes iniciais de cada
palavra. Cada sessão durou cerca de quinze minutos.
O grupo experimental 1 (G1) trabalhou as correspondências grafo-fonológicas das
fricativas surdas ([f] and [s]) e o grupo experimental 2 (G2) trabalhou as
correspondências grafo-fonológicas das oclusivas surdas ([p] and [t]).
Em cada sessão a criança era convidada a escrever doze palavras diferentes
começadas pelo fonema que se pretendia trabalhar e, tal como para as
pseudopalavras, precedidas por uma vogal surda, para que esta não fosse mais
saliente do que a consoante.
Na primeira sessão trabalhou-se o fonema [f] para o grupo experimental 1 e [p]
para o grupo experimental 2. Na segunda sessão foram trabalhados o fonema [s]
para o grupo experimental 1 e [t] para o grupo experimental 2. Pretendia-se,
assim, estabilizar a noção de cada um dos fonemas. Nas sessões 3 e 4 foram
trabalhados ambos os fonemas, havendo seis palavras começadas por cada um
deles: [f] e [s] para G1; [p] e [t] para G2.
Uma vez que a correspondência do som da sílaba com o nome das letras facilita a
fonetização, foram introduzidas no início das duas primeiras sessões quatro
palavras consideradas facilitadoras, começadas com o nome ou som da letra
correspondente ao fonema trabalhado (e.g. feno [fenu]; pena [penα]; seda
[sedα]; tema [temα]). Nas restantes palavras, a vogal era diferente (e.g.
fama [fama]; sino [sinu]; poço [posu]; tubo [tubu]) para evitar um efeito
de repetição.
A lógica de construção dos programas foi a mesma para os dois grupos. Depois de
escrever cada palavra, era pedido à criança que mostrasse com o dedo e que
lesse em voz alta a palavra escrita. Posteriormente, era mostrada à criança a
mesma palavra escrita por uma outra criança da mesma idade, de uma forma mais
evoluída. A escrita de confrontação das sessões 1 e 2 era uma escrita silábica
com fonetização; a escrita de confrontação das sessões 3 e 4 era alfabética. A
escrita alfabética não foi apresentada logo nas primeiras sessões, por se
considerar ser conceptualmente demasiado distante das escritas inventadas
iniciais das crianças. Seguidamente, era pedido à criança que nomeasse as
letras usadas na escrita de confrontação e que as comparasse com as letras
usadas por si. Finalmente, era pedido à criança que avaliasse qual era a melhor
forma de escrever a palavra, justificando a sua escolha. Desta forma,
pretendia-se levar as crianças a reflectirem sobre a escrita das diferentes
palavras, concretamente, sobre os seus sons, sobre as letras que as compõem e a
sobre relação entre ambos.
O seguinte exemplo da interacção entre o experimentador (E), e um dos
participantes (R), durante o programa de escrita inventada, ilustra os
progressos da criança:
1ª sessão (parcial) - E: Escreve como souberes a palavra PENA [penα]
R: escreve PITRA
E: Mostra-me com o teu dedo onde escreveste e tenta ler.
R: Pena (mostra PITRA)
E: Que letras usaste?
R: lê o nome das letras P-I-T-R-A
E: Eu estive com uma menina de outra escola, a Maria, e ela escreveu PENA de
uma maneira diferente. Queres ver?
R: Sim.
E: mostra PN'.
R: Ela só pôs 2.
E: Sim, ela usou 2 letras para escrever PENA. Porque é que tu achas que ela
escreveu assim?
R: Não sei
E: Lê o que ela escreveu e mostra-me com o teu dedo.
R:lê PENA mostrando PN
E: Que letras usou a Maria?
R: P-N
E: Lê lá outra vez.
R: PE-NA (apontando P e N)
E: PE-NA! Porque e que tu achas que ela usou um P para escrever PENA?
R: Não sei
( )
3ª sessão (parcial) - Olha, agora escreve PARADO.
R: Pa- ra , pa Ah! Já sei! Começa por P (escreve P). Parado, do. Acaba em U
(escreve PATU).
( )
Programa do grupo de controlo
Foi organizado um conjunto de exercícios com blocos lógicos para o grupo de
controlo. Era pedido às crianças que classificassem as figuras geométricas em
função da sua forma, tamanho e cor. Estas actividades não envolviam actividade
linguística que pudesse interferir com os programas de escrita inventada. O
programa envolveu quatro sessões individuais conduzidas pelo experimentador,
com duração semelhante à das sessões dos programas, uma vez por semana.
Resultados
Tal como foi referido anteriormente, no pré-teste não se verificaram
fonetizações; as crianças usavam letras convencionais e, em alguns casos,
pseudoletras, para escreverem as pseudopalavras apresentadas. Na sua maioria,
as crianças escreviam um conjunto de letras arbitrárias, ou do seu nome,
combinadas de diferentes maneiras de pseudopalavra para pseudopalavra.
No pós-teste, 25 crianças passaram a fonetizar a sua escrita, mobilizando
letras convencionais para representar as consoantes ' doze crianças do grupo
experimental 1, doze crianças do grupo experimental 2 e uma criança do grupo de
controlo.
A Figura_1 apresenta um exemplo da evolução verificada, desde uma escrita pré-
silábica no pré-teste até uma escrita fonetizada no pós-teste.
Como se pode observar, esta participante começou por usar várias letras de
forma aleatória para escrever cada pseudopalavra pedida, não mobilizando
nenhuma letra convencional para representar as consoantes nas seguintes
pseudopalavras: . Posteriormente, verificámos que usou correctamente a
consoante x para representar o fonema inicial e usou correctamente a consoante
q para representar o fonema final nas pseudopalavras xeque e xoque.
A Tabela_2 apresenta os valores das médias e dos desvios-padrão das
fonetizações no pós-teste dos três grupos. É de referir, tal como foi dito nos
procedimentos, que o número máximo de fonetizações possível era de 100.
Para comparar as fonetizações totais no pós-teste entre os três grupos, uma vez
que não se verificou homogeneidade de variância entre os grupos, utilizou-se o
teste de Kruskal-Wallis, com os grupos como variável independente e as
fonetizações totais das consoantes como variável dependente. Os resultados
indicam haver diferenças significativas entre os três grupos, H = 12.84, p <
.01. Da comparação das fonetizações entre cada dois grupos, os resultados
indicam haver diferenças significativas entre o grupo de controlo e o grupo que
trabalhou fricativas, p < .01 e diferenças significativas entre o grupo de
controlo e o grupo que trabalhou oclusivas, p < .001.
Estes resultados revelam que as crianças de ambos os grupos experimentais foram
capazes de fonetizar a sua escrita após os programas de escrita inventada, o
mesmo não acontecendo com as crianças do grupo de controlo. Por outro lado, os
resultados entre o grupo que trabalhou as fricativas e o grupo que trabalhou as
oclusivas não revelaram diferenças significativas, pelo que os programas de
intervenção foram igualmente eficazes no que respeita ao desenvolvimento das
escritas das crianças.
Passando à análise da capacidade de generalizar os procedimentos de fonetização
a correspondências grafo-fonológicas não trabalhadas, foram comparadas as
diferenças para os dois grupos experimentais através de dois testes t para
amostras emparelhadas. Assim, para o grupo experimental 1 (G1), que trabalhou
as fricativas, foram comparadas as diferenças entre as fonetizações das
fricativas trabalhadas [f] e [s] e das fricativas não trabalhadas - [v], [x],
[z] ' e as diferenças entre as fonetizações de [f] e [s] e as fonetizações das
oclusivas não trabalhadas - [b], [d], [k], [p], [t]. Da mesma forma, para o
grupo experimental 2 (G2), que trabalhou as oclusivas, foram analisadas as
diferenças entre as fonetizações das oclusivas trabalhadas [p], [t] e das
oclusivas não trabalhadas - [b], [d], [k] -, e as diferenças entre as
fonetizações das oclusivas trabalhadas e das fricativas não trabalhadas - [f],
[s], [v], [x], [z]. Para realizar estas comparações foram divididas as
fonetizações ocorridas em cada uma das condições pelo número de consoantes em
causa de forma a obter resultados comparáveis. Assim, por exemplo, para o caso
das fricativas trabalhadas e não trabalhadas dividiu-se o número de
fonetizações do [f] e [s] (máximo de 20) por 2 e o número de fonetizações de
[v], [x], [z] (máximo de 30) por 3. O mesmo procedimento foi utilizado para as
restantes comparações, sendo o número máximo de fonetizações em cada condição
de 10.
A Tabela_3 indica os valores das médias e dos desvios-padrão das fonetizações
das fricativas e das oclusivas, trabalhadas nos programas de intervenção e dos
fonemas não trabalhados.
Os resultados dos testes t indicam que não existem diferenças significativas
entre as fonetizações das fricativas e das oclusivas que foram trabalhadas
durante o programa e as fonetizações das fricativas e das oclusivas que não
foram trabalhadas. Desta forma, as crianças de ambos os grupos experimentais
foram capazes de generalizar os procedimentos de fonetização para outros
fonemas não trabalhados, tanto fricativas como oclusivas.
Este estudo pretende ainda comparar se os participantes aplicam de forma
equivalente os procedimentos de fonetização às consoantes trabalhadas em cada
um dos grupos em posição inicial e final, tendo sido usados dois testes t para
amostras emparelhadas. Os valores das médias e dos desvios-padrão das
fonetizações dos fonemas trabalhados em posição inicial e em posição final no
pós-teste, para os grupos experimentais 1 e 2, são apresentados na Tabela_4.
Os resultados do teste t revelaram a existência de diferenças significativas no
grupo que trabalhou as fricativas relativamente às fonetizações totais dos
fonemas [f] e [s] em posição inicial e em posição final no pós-teste,t(19) =
3.24, p <0.01. Estes resultados indicam que, apesar de as crianças terem sido
capazes de fonetizar a consoante em posição final nas pseudopalavras, essa
capacidade foi significativamente superior na fonetização das fricativas em
posição inicial. No que respeita ao grupo experimental 2, os resultados do
teste t indicam que não existem diferenças significativas nas fonetizações
totais dos fonemas [p] e [t] em posição inicial e em posição final. Assim, as
crianças do grupo experimental 2 foram igualmente capazes de fonetizar os
fonemas trabalhados [p] e [t] em posição inicial e final.
Por fim, este estudo pretende compreender a correlação entre consciência
fonológica e conhecimento das letras e os procedimentos de fonetização.
Uma vez que as variáveis não apresentavam uma distribuição normal, foi usado o
teste de correlação de Spearman, cujos resultados indicam não se verificar uma
correlação significativa entre a consciência fonológica e o número de
fonetizações no pós-teste. Por outro lado, relativamente ao conhecimento das
letras e ao número de fonetizações, verifica-se uma correlação significativa
com ρ = .62, p < .000.
Discussão
O primeiro objectivo deste estudo era o de compreender os efeitos de dois
programas de escrita inventada no desenvolvimento da escrita de crianças em
idade pré-escolar.
A metodologia utilizada nos programas, baseada nos estudos de Silva e Alves
Martins (2002) e de Alves Martins e Silva (2006a; 2006b) e que tem como
princípios orientadores incentivar as crianças a desempenhar um papel activo na
construção do seu conhecimento acerca da escrita, criar um conflito cognitivo e
agir na zona de desenvolvimento proximal, contribui para a compreensão do
princípio alfabético, uma vez que promoveu a capacidade para analisar de forma
consciente os sons da fala, ao nível do fonema e facilitou a evolução das
conceptualizações infantis sobre a escrita.
Os resultados do presente estudo sustentam a eficácia destes programas de
escrita inventada, uma vez que as crianças de ambos os grupos experimentais
evoluíram desde um nível pré-silábico, em que não havia uma tentativa de fazer
corresponder a linguagem oral à linguagem escrita, até um nível de análise e
compreensão que permitiu a fonetização da escrita. Tal como salienta Treiman
(1998), as experiências com a escrita ajudam as crianças a dominar o princípio
alfabético.
Por conseguinte, comparou-se o número de fonetizações entre crianças que
participaram num programa de escrita inventada com fricativas e crianças que
participaram num programa de escrita inventada com oclusivas. Os resultados
indicaram não se verificarem diferenças significativas no número total de
fonetizações das consoantes no pós-teste entre os grupos experimentais, sendo
consistentes com os resultados de Treiman, Broderick, Tincoff e Rodriguez
(1998), que consideram que as propriedades dos fonemas por si só ' seja vogal
ou consoante, surda ou sonora, oclusiva ou um fonema que se possa pronunciar
sozinho ', não parecem ter uma influência consistente na capacidade das
crianças em relacionar o fonema à sua escrita.
Procurou-se também compreender a influência das fricativas e das oclusivas na
capacidade para generalizar os procedimentos de fonetização a outros fonemas
não trabalhados. Os resultados revelaram que as crianças de ambos os grupos
experimentais foram capazes de estender os procedimentos de fonetização a
correspondências grafo-fonológicas que não tinham sido trabalhadas. Com efeito,
os participantes que trabalharam as fricativas surdas [f] e [s] foram capazes
de fonetizar outras fricativas, mais concretamente as fricativas sonoras [v] e
[z], correspondentes quanto ao modo de articulação e a fricativa surda [ι], e
foram capazes de fonetizar oclusivas, nomeadamente [b], [d], [k], [p] e [t]. Da
mesma forma, os participantes que trabalharam as oclusivas surdas [p] e [t]
foram capazes de fonetizar as outras oclusivas sonoras [b] e [d], que lhes
correspondem quanto ao modo de articulação, e a oclusiva surda [k] e, foram
também capazes, de transferir os procedimentos de fonetização para as
fricativas [f], [s], [v], [z] e [ι].
Assim, as propriedades fonéticas parecem também não influenciar a generalização
das fonetizações, pois, tal como salientam Byrne e Fielding-Barnsley (1991),
depois de adquirido o princípio da identidade dos fonemas para alguns fonemas,
esta capacidade irá espalhar-se sem ajuda para outros sons. Apesar de
inicialmente as fricativas parecerem facilitar a aquisição do conceito de
identidade do fonema, depois de as crianças terem alguma compreensão deste
conceito, a diferença para as oclusivas desaparece (Treiman, et al., 1998), tal
como os resultados deste estudo o reforçam.
Relativamente à capacidade de aplicar de forma equivalente os procedimentos de
fonetização às consoantes iniciais e finais, os resultados indicam que, apesar
de os participantes terem utilizado letras pertinentes para codificar os
fonemas em posição final, fonetizaram significativamente melhor estes fonemas
em posição inicial. Estes resultados são consistentes com os estudos de Byrne e
Fielding-Barsnley (1991) e deTreiman (1994; 1998), fundamentando a hipótese da
letra inicial, que sublinha a ocorrência de correspondências grafo-fonológicas
sistemáticas primeiro para as letras iniciais (Bowman & Treiman, 2002).
No entanto, quando analisamos os resultados obtidos pelo grupo experimental que
trabalhou as oclusivas surdas [p] e [t], verificamos que não houve diferenças
significativas na capacidade de aplicar os procedimentos de fonetização às
consoantes em posição inicial e final. As diferenças entre os grupos
experimentais podem estar relacionadas com as diferenças nos nomes das letras.
Enquanto as fricativas trabalhadas têm uma estrutura VC no seu nome ' , as
oclusivas trabalhadas têm uma estrutura CV ' [pe] e [te], ou seja, o som
surge no início do nome no caso das oclusivas, o que facilita a correspondência
da letra com o seu som (McBride-Chang, 1995; Treiman, et al, 1998). Salienta-se
que todos os participantes conheciam as fricativas pelo seu nome, i.e., f como
e s como . Assim, o facto de o som das oclusivas ser o primeiro som do nome das
letras pode explicar porque é que os participantes tiveram melhor desempenho na
fonetização dos fonemas finais oclusivos trabalhados do que na dos fonemas
finais fricativos trabalhados. No entanto, uma vez que em algumas escolas as
crianças aprendem o som das letras e não o seu nome, i.e. f como [fe] e s como
[se], seria relevante, em pesquisas futuras, comparar as fonetizações entre
fricativas e oclusivas em posição final em função do conhecimento das crianças
dos nomes ou dos sons das letras.
Por fim, pretendeu-se compreender as relações entre consciência fonológica,
conhecimento das letras e os procedimentos de fonetização. Considerando que,
como vimos anteriormente, a consciência fonológica e o conhecimento das letras
são factores determinantes na compreensão do princípio alfabético, esperava-se
que pudessem estar correlacionados com os processos de fonetização.
Os resultados deste estudo, porém, indicaram que apenas o conhecimento do nome
das letras tem uma correlação significativa com as fonetizações no pós-teste.
Desta forma, pode-se considerar que, apesar de as crianças serem capazes de
identificar e classificar os sons iniciais das palavras, só irão mobilizar as
letras com valor sonoro convencional, ou seja, fonetizar a sua escrita, se
souberem os nomes das letras a que esses sons correspondem. Uma análise
qualitativa das sessões, nomeadamente das interacções entre participantes e
experimentador, seria interessante na medida que poderia explicar os processos
subjacentes à evolução conceptual que conduz a escritas fonetizadas. Por outro
lado, seria também relevante compreender se, numa replicação deste estudo com
mais sessões em que os participantes tivessem mais tempo para reflectir nas
suas escritas, conduziria a melhores resultados.
Os resultados do presente estudo, salientam então a importância do
desenvolvimento de actividades de escrita em idade pré-escolar, como forma de
promover a compreensão do princípio alfabético. A evolução nas escritas das
crianças ocorre independentemente das propriedades fonéticas e estende-se para
além dos fonemas trabalhados. No entanto, a transição para escritas fonetizadas
parece depender do conhecimento dos nomes das letras, pelo que se torna
fundamental, em contexto pedagógico, tornar explícitas as relações entre os
sons e os nomes das letras.