Os fenómenos das inferências e transferências espontâneas de traço: O que são,
de onde vieram, para onde vão?
A realização de inferências é uma constante que acompanha o nosso entendimento
do mundo. Esta nossa capacidade detém uma utilidade fascinante no que toca à
forma eficaz com que nos permite extrair informação do meio ambiente.
Conseguimos fazer algo que, apesar de aparentemente simples é, em termos
teóricos, intrigante: temos a capacidade de criar novo conhecimento a partir
de pouca informação, de inferir dados além dos que nos são directamente
apresentados. Por exemplo, a apresentação de uma simples frase como O Manuel
não deixou gorjeta para a empregada, pegou na bengala e saiu implica a
inferência de um enorme conjunto de outras informações que não se encontram
incluídas na frase, que podem ir desde da inferência do simples facto de o
Manuel ter ido a um restaurante, passando por conhecimentos de normas sociais
como a de que em restaurantes é habitual e simpático deixar-se gorjeta à pessoa
que nos serve, até inferências acerca da própria personalidade do Manuel.
Possivelmente, inferiremos também que a pessoa em causa é alguém idoso, tendo
em conta a referência à palavra bengala. Assim, uma inferência ocorre quando
combinamos o significado extraído da informação fornecida pelo meio com o
conhecimento que temos guardado em memória, tornando a nossa percepção mais
completa e integrada (ex., Johnson, Bransford, & Solomon, 1973; Sharkey,
1986). Este processo confere coerência e eficácia à nossa compreensão do mundo
físico e social. O presente artigo incidirá sobre a capacidade humana de
inferir informação acerca dos outros, especificamente acerca da sua
personalidade com base em comportamentos observáveis.
Voltando ao exemplo do Manuel, perante o seu comportamento de não deixar
gorjeta à empregada poderíamos inferir traços acerca da sua personalidade, como
por exemplo, que ele é uma pessoa forreta. A forma como inferimos os traços
de personalidade de alguém com base no seu comportamento observável tem sido o
foco da literatura de Inferências Espontâneas de Traço (IETs; para revisões ver
Uleman, Newman, & Moskowitz, 1996; Uleman, Saribay, & Gonzalez, 2008).
Esta literatura tem fornecido amplo suporte, não apenas de que as pessoas
inferem traços de personalidade com base em comportamentos, mas que o fazem de
forma espontânea, ou seja, sem que o processo inferencial tenha sido activado
intencionalmente, e sem que as pessoas tenham qualquer consciência da sua
ocorrência. Esta linha de investigação representa um domínio importante na
cognição social, uma vez que vem revelar uma dimensão implícita do processo de
formação de impressões.
Recentemente, um curioso fenómeno atraiu a atenção dos investigadores da área
de inferências de personalidade, fenómeno que tem sido designado por
Transferências Espontâneas de Traço (TETs; Carlston, Skowronski & Sparks,
1995). Vários estudos têm demonstrado que o traço de personalidade que é
inferido a partir de um comportamento pode ser transferidopara uma pessoa que o
esteja simplesmente a comunicar. Ou seja, se a Rita numa conversa com terceiros
mencionar que O Manuel não deixou gorjeta para a empregada, pegou na bengala e
saiu, a própria Rita ficará associada ao traço forreta. Mais uma vez, este
processo ocorre de forma largamente automática, sem que o observador social
tenha qualquer consciência de que está a realizar inferências de personalidade
acerca da Rita.
A ocorrência das TETs teve um grande impacto na literatura por duas principais
razões. Primeiro, veio apoiar a noção de que aquilo que dizemos acerca de
outros é informativo acerca de nós próprios (ex., Mae, Carlston, &
Skowronski, 1999). Este seria um processo indirecto de formação de impressões,
através do qual a impressão que causamos está ligada aos comportamentos que
descrevemos. Segundo, e mais relevante para a presente exposição, a descoberta
deste fenómeno acendeu a discussão acerca dos processos subjacentes às IETs e
às TETs. A questão que se levantou foi saber em que medida os dois efeitos
poderiam ser explicados através da intervenção dos mesmos processos cognitivos,
ou, se pelo contrário, teriam uma natureza cognitiva distinta. Esta questão tem
vindo a tornar-se um debate central nesta literatura, uma vez que o descortinar
da natureza dos processos que os constituem informará sobre a própria
relevância dos efeitos de IET e TET na compreensão do mundo social. É esta
segunda questão que nos interessa focar no presente artigo. Especificamente, os
objectivos do presente artigo são: (1) fazer uma breve revisão das literaturas
de IETs e TETs de forma a contrastar as duas visões teóricas existentes ' a
visão dualista e a visão uniprocessual; e (2) propor novos procedimentos
experimentais que contribuam para a resolução deste debate.
O artigo principiará por sintetizar os principais resultados da literatura de
IETs. Seguidamente, será abordado o efeito de TETs e apresentados dados que
sugerem que este seja um fenómeno associativo de carácter bastante automático.
Posteriormente, será feita uma exposição crítica do debate existente entre as
duas principais explicações teóricas alternativas. Finalmente, serão
apresentados argumentos que explicam por que razão os dados existentes não são
suficientes para esclarecer o debate entre teorias e serão propostas novas
formas experimentais para explorar esta questão.
Inferências Espontâneas de Traço
A forma como extraímos informação acerca dos traços de personalidade de alguém
a partir da consideração dos seus comportamentos observáveis foi desde cedo
alvo da atenção dos teóricos em psicologia social. As inferências de traço
eram, contudo, inicialmente consideradas pelos investigadores como um processo
fundamentalmente deliberado e consciente (e.g., Heider, 1958; Jones &
Davis, 1965; Kelley, 1967).
Em 1984, Winter e Uleman documentaram pela primeira vez a ocorrência de
inferências de traço de forma espontânea, ou seja, sem que o percepiente
manifestasse intenção e consciência de que as estivesse a realizar. A
metodologia utilizada baseou-se no princípio da codificação específica proposto
pelo grupo de Endel Tulving em investigação em memória (e.g., Tulving, 1974).
Segundo este princípio, a forma como um evento é codificado e armazenado em
memória determina o tipo de pistas de recuperação que serão eficazes para
aceder a esse evento (Tulving & Thomson, 1973). Resultados ilustrativos
deste princípio foram obtidos por Thomson e Tulving (1970). Neste estudo,
apresentavam-se aos participantes palavras emparelhadas com associados fracos
(ex., homem ' mão). Mais tarde, eram fornecidas pistas para que os
participantes recordassem a palavra alvo (ex., homem), que poderiam ser os
anteriores associados (mão) ou associados fortes não apresentados (mulher).
Verificou-se que os associados anteriores, apesar de mais fracamente
associados, levaram a uma melhor recordação do que os associados mais fortes
(não havendo diferenças entre esta condição e uma condição sem pistas). Ou
seja, a eficácia de uma pista de recordação depende dessa pista ter sido
armazenada conjuntamente com o evento a recordar durante a codificação.
Foram estas as premissas em que se alicerçaram Winter e Uleman (1984). Sabendo
que dois elementos simultaneamente activados são conjuntamente armazenados e
constituem uma pista de recuperação um do outro (Tulving, 1972), caso tivesse
sido inferido espontaneamente durante a codificação da frase, o traço deveria
funcionar como uma pista eficaz para a sua recuperação. Adicionalmente,
partindo da constatação de Thomson e Tulving (1970; ver também Tulving, 1983),
de que a eficácia de fortes associados semânticos enquanto pista de recuperação
era inferior à de itens que evocavam o contexto de codificação, a hipótese de
Winter e Uleman (1984) era que, caso os traços fossem inferidos no momento da
codificação, seriam pistas de recuperação mais eficazes do que fortes
associados semânticos das frases.
Assim, no estudo de Winter e Uleman (1984, Experiência 1), os participantes
começavam por ser instruídos no sentido de memorizarem um conjunto de 18 frases
implicativas de traço (ex., A pianista deixou a carteira no banco do metro).
Depois de uma tarefa distractora, os participantes tinham de recordar os
comportamentos com três tipos de pistas diferentes: (1) os traços implicados
pelo comportamento (ex., distraída), (2) associados semânticos do actor (ex.
música), ou sem qualquer pista. Os resultados confirmaram as hipóteses. Mesmo
na ausência de um pedido explícito de formação de impressão, as pistas-traço
levaram a uma melhor recordação das frases do que as pistas-semânticas, que por
sua vez originaram melhor recordação que os ensaios sem pista. Estas
constatações indiciavam que a inferência de traço ocorreria no momento da
codificação e na ausência de um pedido explícito. Adicionalmente, quando
questionados no final do estudo, os participantes aparentavam não estar cientes
de que haviam realizado inferências de traço ' chegando mesmo a expressar
surpresa ou descrença, o que indicava que o processo ocorria na ausência de
consciência.
De salientar a importância destas conclusões, que contrastavam com a então
vigente ideia de que observações de comportamento não desencadeariam processos
inferenciais na ausência de intenção para o fazer (ex., Srull & Wyer,
1979). Não admira, então, que o vanguardista estudo de Winter e Uleman (1984)
não tardasse a ser replicado utilizando metodologias e manipulações
experimentais distintas que permitiram aprofundar a natureza das IETs.
Assim, um ano depois, Winter, Uleman e Cunniff (1985) conduziram uma
investigação onde expunham, uma vez mais, os sujeitos a frases implicativas de
traço. Contudo, desta vez, as frases eram apresentadas como meros distractores
incluídos numa suposta investigação sobre memória de dígitos. Perante esta
metodologia, o facto de a leitura das frases desencadear um processamento
inferencial representaria um ainda mais forte indício do seu carácter não-
intencional, na medida em que, não sendo relevante para a tarefa em causa, não
haveria uma razão lógica para que fosse elicitado. No entanto, e de forma
consistente com a investigação anterior, Winter e colaboradores (1985)
verificaram que, quando num teste de memória surpresa se pedia aos
participantes para recordar as frases anteriores, as pistas-traço eram as que
desencadeavam maiores níveis de recordação, o que veio a constituir evidência
adicional acerca da natureza não intencional das IETs (estes resultados foram
replicados por Lupfer, Clark, & Hutcherson, 1990).
As investigações anteriormente descritas apoiavam a ideia que as IETs
ocorreriam no momento da codificação e que deteriam um carácter espontâneo. No
entanto, os resultados obtidos assentaram num paradigma de recordação com
pistas que foi alvo de críticas por parte de outros autores (e.g. Hamilton,
1981; Wyer & Srull, 1986; Bassili & Smith, 1986). Primeiro, importa
referir que o delineamento intra-sujeitos utilizado por Winter e Uleman (1984)
coloca um problema na interpretação dos resultados. Os participantes realizavam
a recordação com pistas disposicionais, (i.e. o traço distraída era
apresentado como pista) sempre antes da recordação sem pistas. Ora, uma vez que
a tentativa de recordar as frases sem pista acontecia sempre depois da
tentativa de recordar as frases com pista, o que foi sugerido como podendo ser
uma explicação alternativa aos resultados encontrados foi um efeito inibitório,
que provocaria uma maior recordação na condição com pistas-traço não devido à
inferência espontânea de traços, mas devido a recordação inicial estar
subsequentemente a inibir a capacidade de recordar novos comportamentos
(output interference; ver D'Agostino & Beegle, 1996).
Um segundo problema inerente ao paradigma de recordação com pistas foi apontado
por Hamilton (1981). Este autor sugeriu que se podia dar o caso de os
participantes formarem impressões com o objectivo de aumentar a memorabilidade
dos comportamentos (i.e., utilizarem como estratégia consciente a extracção do
traço de personalidade para melhor memorizar o comportamento descrito na
frase), o que poria em causa o carácter espontâneo do processo. Wyer e Srull
(1986), por sua vez, desafiariam não só o carácter espontâneo das IETs, como a
sua ocorrência no momento da codificação. Wyer e Srull propuseram que os
resultados se poderiam dever a uma estratégia de recuperação das frases
adoptada pelos participantes no momento da recordação. Isto é, a exposição à
pista-traço levaria o participante a gerar comportamentos típicos daquele
traço, o que conduziria à activação do comportamento descrito pela frase
anteriormente lida (e.g., perante a apresentação da pista distraída,
comportamentos descritivos do traço podem ser gerados, como esquecer as chaves
em casa, o que pode facilitar a recuperação do comportamento estudado). A par
destas críticas alguns autores alertaram ainda para a necessidade de clarificar
se os traços inferidos se referiam ao actor do comportamento ou se se tratavam
de uma mera caracterização do comportamento (e.g. Bassili, 1989, 1993; Higgins
& Bargh, 1987; Whitney, Davis, & Waring, 1994).
No seguimento destas críticas, outros autores como Bassili e Smith (1986) ou
Claeys (1990), questionam o carácter automático deste tipo de inferências.
Bassili e Smith (1986) procederam a uma comparação da magnitude do efeito
obtido mediante o paradigma da recordação com pistas, consoante se forneciam
instruções de formação de impressões e memória. Estes autores apuraram que o
efeito é significativamente superior quando as instruções de formação de
impressões são explícitas do que quando são implícitas (i.e., memória), o que
não devia acontecer caso as inferências fossem totalmente automáticas.
Como forma de procurar responder a estas críticas, novos paradigmas foram
desenvolvidos. No paradigma de reconhecimento da palavra-teste, por exemplo
(recognition probe paradigm, Uleman et al., 1996; Uleman, Hon, Roman, &
Moskowitz, 1996b), eram utilizados dois tipos de frases: frases implicativas de
traço (ex., Ela não emprestou o seu cobertor extra aos outros campistas), e
frases de controlo (ex., Ela não tinha um cobertor extra para emprestar aos
outros campistas). Imediatamente a seguir a cada frase eram apresentadas
palavras-teste que, nos ensaios experimentais, correspondiam aos traços
implicados pelos comportamentos (ex., egoísta). A tarefa dos participantes
consistia em indicar se essa palavra tinha estado presente na frase anterior.
Se a partir da frase implicativa de traço, ocorrer uma inferência, o traço
deverá ficar acessível em memória e, como consequência, os participantes
deverão ter dificuldade em indicar correctamente que a palavra teste não estava
na frase. De facto, verificou-se um maior número de erros e um tempo de
resposta mais longo nos ensaios com frases implicativas de traços do que nos
ensaios controlo (Uleman et al., 1996b). Estes resultados reforçaram a ideia de
que as inferências de traços ocorrem durante a codificação do comportamento,
sendo que a sua activação leva a uma lentificação da capacidade de resposta dos
sujeitos (ver também McKoon & Ratcliff, 1986). Uma vez que neste paradigma
a palavra-teste é apresentada imediatamente a seguir ao comportamento e os
participantes têm de responder o mais rapidamente possível, a intervenção de
processos conscientes de recuperação é improvável. Além disso, a utilização de
processos conscientes de formação de impressões pode ser descartada neste
paradigma, uma vez que a sua operação seria prejudicial para o desempenho.
Repare-se que, neste caso, quanto mais os participantes inferirem
explicitamente os traços, maior dificuldade terão em rejeitá-los correctamente.
Ainda no que se refere às críticas acima expostas, importava clarificar se o
traço inferido era referente ao actor (ex., A Rita é egoísta) ou uma mera
categorização do comportamento (ex., Este comportamento é egoísta). No estudo
de Winter e Uleman (1984) verificou-se que as pistas traço eram mais eficazes
na recuperação do predicado da frase do que na recordação do sujeito da mesma.
Adicionalmente, verificou-se que as pistas semânticas associadas ao sujeito da
frase eram mais eficazes na recuperação do actor do que as pista-traço (Uleman
et al., 1986; Winter et al., 1985). Estes resultados colocavam em causa a
extracção do traço enquanto propriedade do actor.
O estudo de Carlston e Skowronski (1994) vem responder precisamente a esta
crítica, aprofundando o estudo do carácter disposicional das IETs mediante a
proposta de um novo paradigma ' o paradigma da re-aprendizagem. Este paradigma
tem por base a ideia de que a informação que foi aprendida anteriormente, ou
que já foi uma vez activada em memória, é mais fácil de aprender novamente,
ocorrendo um efeito de re-aprendizagem (savings effect, Ebbinghaus's, 1885/
1964). Neste paradigma, numa primeira fase pede-se aos participantes para se
familiarizarem com pares de frases implicativas de traços e fotografias de
diferentes actores; numa segunda fase apresenta-se novamente as fotografias,
mas desta vez emparelhadas com os traços implicados nas frases anteriormente
apresentadas. Nesta segunda fase, a tarefa dos participantes consiste em tentar
memorizar os pares actor-traço. De notar que alguns desses pares são pares de
re-apreandizagem (o traço apresentado é o traço implicado pelo comportamento
anteriormente apresentado com a mesma fotografia), enquanto outros são pares
completamente novos (tanto os traços como as fotos). Por fim, pede-se aos
participantes para realizarem uma tarefa de recordação com pistas, na qual as
fotografias da segunda fase são novamente apresentadas e os participantes têm
que recordar o traço correspondente. Este paradigma parte do pressuposto de que
se ocorrer espontaneamente uma inferência de traço a partir do comportamento na
primeira fase, e de este ficar associado ao actor, então deverá ser mais fácil
na segunda fase aprender os pares actor-traço de re-aprendizagem do que os
pares novos. Este padrão de resultados foi confirmado, e replicado, por
Skowronki e colaboradores em vários estudos. A recordação dos traços é
consistentemente melhor para os pares de re-aprendizagem do que para os pares
novos (ver Carlston & Skowronski, 1994; 2005; Carlston, Skowronski, &
Sparks, 1995; Crawford, Skowronski, & Stiff, 2007a; Crawford, Skowronski,
Stiff, & Scherer, 2007b).
Resultados a favor da existência de uma associação específica entre o traço e o
actor foram também obtidos por Todorov e Uleman (2002), através do
desenvolvimento de um novo paradigma ' paradigma dos falsos reconhecimentos.
Este paradigma baseou-se no pressuposto de que as pessoas têm dificuldade em
determinar a origem do conhecimento que possuem, o que leva a erros de
monitorização da fonte (ex., Johnson & Lindsay, 1993). A aplicação deste
princípio implica, numa fase inicial, a apresentação de uma frase implicativa
de traço (ex., Ganhou um torneio de xadrez com mais de 50 participantes).
Esta fase originaria, numa segunda fase de teste, uma dificuldade em determinar
a fonte responsável pela familiaridade com a palavra-traço (ex., para este
caso, a palavra inteligente). Esta dificuldade adviria do facto de,
independentemente de estarem ou não presentes na frase, os traços serem
inferidos no momento da codificação e processados em conjunto com a
representação do actor e do comportamento (Tulving & Thomson, 1973). Os
sujeitos teriam, assim, dificuldade em determinar se a palavra tinha constado
efectivamente na frase, ou se havia apenas sido inferida a partir da mesma.
Este processo levaria a que, quando questionados acerca da presença do traço no
comportamento, ocorressem falsos reconhecimentos do traço.
No seu estudo, Todorov e Uleman (2002) apresentavam aos sujeitos, numa primeira
fase de exposição, uma fotografia de um actor emparelhada com uma frase
descritiva de um seu comportamento. Nos ensaios críticos as frases utilizadas
eram implicativas de traços, mas não incluíam explicitamente o traço (ex., O
João reutiliza os materiais sempre que possível: o traço ambientalista não
se encontra presente, ou O Pedro ganhou um torneio de xadrez com mais de 50
participantes: o traço inteligente não se encontra presente). Numa segunda
fase da experiência, de reconhecimento, os sujeitos eram confrontados com pares
fotografia-traço, sendo-lhes pedido que indicassem se o traço apresentado
constara na frase originalmente emparelhada com a fotografia. Os resultados
demonstraram a existência de falsos reconhecimentos de traços nestes ensaios
críticos. Verificou-se ainda que o número de falsos reconhecimentos foi muito
superior quando os traços eram acompanhados pelas faces dos actores que lhes
correspondiam (i.e., quando a fotografia do João era apresentada com o traço
ambientalista), comparativamente com os obtidos em emparelhamentos onde o
traço e a fotografia não eram correspondentes (isto é, quando a fotografia do
Pedroera apresentada com o traço ambientalista). Essa comparação entre pares
fotografia-traço correspondentes e não-correspondentes permite concluir que
existe uma ligação específica do traço com o actor do comportamento.
De acordo com os estudos que recorrem aos paradigmas de re-aprendizagem e dos
falsos reconhecimentos, a ligação entre o traço e o actor é estabelecida de
forma não intencional, e surge em tarefas que não implicam uma intenção
explícita de formar uma impressão, requerendo apenas um processamento
atencional. Efectivamente, vários são os estudos citados anteriormente que
demonstram a não intencionalidade deste processo de inferência, como é o caso
do estudo de Winter e Uleman (1984), onde, após uma tarefa de memorização de
frases implicativas de traço, os traços se revelam pistas eficazes para a
recuperação do comportamento. É também o caso dos estudos em que os
comportamentos são exibidos enquanto meros distractores (Lupfer et al., 1990;
Uleman et al., 1992; Winter et al., 1985), ou dos que recorreram ao paradigma
de reconhecimento da palavra-teste, onde as inferências são altamente
contraproducentes e, mesmo assim, ocorrem (Uleman et al., 1996b). De notar que
a característica da não intencionalidade é uma das características de um
processo automático (ex., Bargh, 1994). A par da não intencionalidade, outra
característica deste mecanismo inferencial foi detectada e vai ao encontro de
uma padrão de funcionamento automático, trata-se da sua natureza inconsciente.
Winter e Uleman (1984) reportaram que os sujeitos não demonstram qualquer
consciência do processo inferencial, sendo que também não foi verificada uma
correlação significativa entre a consciência que se tem do processo e a
eficiência do traço como pista de recuperação (ver Lupfer et al., 1990;
Moskowitz, 1993). Isto significa que este mecanismo seria desencadeado na
ausência não apenas de intenção, mas também de consciência. Adicionalmente,
refira-se que as inferências têm ainda elevados níveis de eficiência no que
respeita os recursos cognitivos que requerem, havendo estudos que reportam que
a sua ocorrência não é afectada por tarefas concorrentes (e.g., Winter et al.,
1985; Lupfer et al. 1990; mas ver Uleman et al., 1992). Por exemplo, Todorov e
Uleman (2003, Experiência 3), apresentaram aos participantes um número (de 6
dígitos) antes e depois da apresentação do par face-comportamento, sendo-lhes
pedido no final de cada ensaio para indicarem se o número exibido coincidia com
o que havia sido apresentado no início do ensaio, obrigando assim à
recapitulação do número percepcionado durante a codificação do material alvo.
Os resultados revelaram que este tipo de carga cognitiva não afecta a
ocorrência das inferências espontâneas de traço. Crawford e colaboradores
(2007) demonstraram também que as IETs não são afectadas por uma tarefa
concorrente de memorização de dígitos, aplicando, desta vez, o paradigma da re-
aprendizagem. Tal indica que este fenómeno ocorre na ausência de intenção ou
consciência, e é dotado de um elevado nível de eficiência. Por último,
acrescente-se que as IETs ocorrem mesmo que os participantes sejam alertados
para a sua ocorrência e mesmo quando lhes é pedido uma supressão explícita das
mesmas (Uleman, Blader, & Todorov, 2005). Assim, a possibilidade dos
participantes controlarem a ocorrência de IETs parece ser reduzida. Em resumo,
os dados existentes favorecem a ideia que as IETs apresentam um grau de
automaticidade considerável.
Recentemente, contudo, surgiu um novo fenómeno na literatura dos efeitos
inferenciais que veio influenciar a interpretação do próprio conceito de IETs.
Trata-se de um aparente erro inferencial relacionado com o alvo a que é
atribuído o traço inferido, que como veremos adiante, não é necessariamente o
actor do comportamento (Carlston & Skowronski, 2005). Este fenómeno levou a
uma reconsideração crítica da literatura da área, introduzindo a questão da
clarificação dos processos subjacentes aos dois fenómenos.
Transferências Espontâneas de Traço
As Transferências Espontâneas de Traço (TETs; Carlston et al., 1995) ocorrem
quando o traço implicado pelo comportamento é inferido e associado não ao
actor, mas a qualquer outro elemento que também se encontre presente no
contexto de codificação. Este efeito foi inicialmente verificado por Carlston
et al. (1995), mediante o recurso ao paradigma da re-aprendizagem, e mais tarde
extensivamente analisado por Skowronski, Carlston, Mae, e Crawford (1998).
Estes estudos demonstraram que os traços inferidos ficam associados às faces de
comunicadores que descrevem um comportamento acerca de um actor cuja imagem não
está presente. Traduzindo para uma situação do dia-a-dia, imaginemos que
durante uma pausa, a Maria, uma nova colega de trabalho, menciona o seu amigo
João que ganhou um torneio de xadrez. O que o fenómeno de IETs nos diz é que
perante uma situação destas o traço inteligente será inferido acerca do João (o
actor), mas curiosamente o que as TETs no dizem é que também a Maria
(comunicadora) será percepcionada como mais inteligente do que seria se não
tivesse contado a história acerca do João. Esta ligação errónea dos traços
implicados pelo comportamento a indivíduos que não o actor, parece persistir no
tempo (Skowronski et al., 1998), mesmo quando os sujeitos são alertados para a
ocorrência do fenómeno (Carlston & Skowronski, 2005, Experiência 3;
Skowronski et al., 1998), e quando estão sob sobrecarga cognitiva (Crawfrod et
al., 2007).
A robustez deste efeito, de carácter aparentemente arbitrário, no processo de
formação de impressões, levou a o que os teóricos da área não tardassem a
formular hipóteses explicativas da sua ocorrência. Os primeiros comentários que
surgiram levantaram a hipótese de a transferência se dever ao facto de os
participantes acreditarem que haveria uma relação entre o comunicador e o actor
da acção descrita. Ou seja, caso estes fossem percebidos como tratando-se de
amigos ou conhecidos, poderia ser retirada a plausível conclusão de que as duas
pessoas pudessem partilhar características de personalidade (Brown &
Bassili, 2002; Skowronski et al., 1998). Foi ainda sugerido que os
participantes pudessem considerar que o facto de o comunicador ter optado por
descrever determinado comportamento se deveria ao facto de a acção descrita ser
importante para si, ou estar de acordo com os seus ideais. Ambas estas
hipóteses legitimariam as transferências do traço do actor para o comunicador.
Estas hipóteses foram, contudo, descartadas no seguimento de um estudo em que o
efeito de TET se verificou, apesar de não haver qualquer ligação lógica entre o
comunicador e o comportamento. Neste estudo, os participantes eram informados
de que a pessoa, e a descrição do comportamento, haviam sido emparelhados de
forma aleatória (Skowronski et al., 1998; Experiência 4). Mesmo assim,
verificou-se que os traços foram espontaneamente transferidos para os actores
correspondentes. O efeito de transferência foi também observado num estudo que
utilizou fotos de objectos inanimados em vez de fotos de pessoas (e.g.,
banana fica associada ao traço supersticiosa; Brown & Bassili, 2002), o
que elimina claramente a plausibilidade de haver qualquer associação lógica
entre o traço e a fotografia apresentada, uma vez que não é de todo habitual
atribuirmos traços de personalidade a objectos inanimados.
Uma outra possibilidade explicativa do efeito de TETs é a sua ocorrência ser
consequência de o participante pensar que o comunicador era na verdade o actor
do comportamento. De acordo com esta hipótese, o efeito dever-se-ia ao facto do
participante confundir ensaios onde era apresentado o actor com ensaios onde
aparecia o comunicador (Carlston & Skowronski, 2005). Este erro poderia ter
origem em dois momentos distintos na codificação e dever-se ao facto de o
participante estar pouco atento ao tipo de ensaios (actor versus comunicador);
ou na recordação, devido a esquecimento (o que levaria o sujeito a pensar que o
comunicador foi o actor do comportamento que descreve).
De modo a minimizar a eventual codificação errónea actor/comunicador, Carlston
e Skowronski (2005) manipularam o género, de forma que o género da pessoa da
foto (comunicador) era diferente do género da pessoa cujo comportamento era
descrito. Os autores procederam, adicionalmente, a um alargamento do tempo de
codificação (20 segundos), manipulação que visava também contradizer a hipótese
da confusão de ensaios na codificação, pois concederia aos participantes mais
tempo para o processamento do material. Os resultados demonstraram que nenhuma
destas manipulações originou diferenças significativas associadas aos níveis de
TET encontrados, o que permitiu refutar esta explicação alternativa. Além
disso, de notar que o efeito de TETs se verificou igualmente em investigações
que recorreram a uma manipulação inter-participantes (i.e., em que cada
participante apenas é exposto a um tipo de ensaio, ou actor, ou comunicador;
Carlston & Skowronski, 2005; Crawford et al., 2007b), o que mais uma vez
contraria a hipótese da codificação errónea.
De forma a descartar a possibilidade das TETs se deverem a um esquecimento
durante a recordação da natureza da pessoa apresentada na fotografia (actor ou
comunicador), os autores apresentaram a medida dependente imediatamente a
seguir a cada comportamento, em vez de apenas no final de todos os
comportamentos (Carlston & Skowronski, 2005, Experiência 2). O efeito de
TETs foi também replicado nestas condições, indicando que mesmo quando os
participantes têm certeza que a pessoa da foto se trata de um comunicador,
continua a ocorrer transferência de traços.
A refutação destas explicações alternativas veio apoiar a ideia de que a
explicação mais adequada para o efeito das TETs é aquela que postula que
mecanismos associativos estão na sua origem. Especificamente, a transferência
do traço para o comunicador dever-se-ia ao estabelecimento de uma ligação
associativa entre traço e indivíduo devido à sua activação simultânea.
Processos subjacentes às IETs e às TETs
Não obstante o considerável volume de resultados, bem como a diversidade de
metodologias que têm sido utilizadas, entender que processos estão implicados
no desencadear dos efeitos de IETs e TETs, assim como explicitar os elementos
que lhes são comuns e aqueles que divergem não se tem revelado tarefa fácil.
Foi precisamente no contexto da explicação dos processos subjacentes às IETs e
TETs que surgiram duas argumentações predominantes, que não tardaram a tornar-
se concorrentes.
Uma primeira defende a existência de dois mecanismos cognitivos distintos (ex.,
Crawford et al., 2007a). Segundo esta visão, as TETs caracterizar-se-iam por um
processo puramente associativo. A activação dos traços resultaria da
categorização do comportamento, a que se seguiria uma associação do traço aos
outros elementos do contexto. Este processo daria origem a ligações
associativas simples, que derivariam da mera exposição simultânea aos diversos
estímulos. Estas seriam, por defeito, ligações fracas entre constructos. Em
contraste, as IETs basear-se-iam num processo inferencial interpessoal mais
profundo, que levaria a que o traço ficasse vinculado ao actor. Estas ligações,
comparativamente com as associativas, para além de mais fortes, seriam
rotuladas, permitindo a definição de um constructo como propriedade de um
outro (neste caso, levariam à definição do traço como propriedade do actor;
Carlston & Skowronski, 2005; Skowronski, Carlston, & Hartnett, 2008).
Em contraste com esta perspectiva, outros autores sugerem uma explicação
uniprocessual (ex., Brown & Bassili, 2002). De acordo com esta abordagem,
um mesmo processo associativo, decorrente da contiguidade espácio-temporal dos
elementos percepcionados e insensível à relevância dos componentes associados,
é responsável pela ocorrência tanto das TETs como das IETs. Estamos, então,
perante um debate com duas posições antagónicas, a primeira de carácter
qualitativo (diferenças de magnitude de um mesmo processo), a segunda de
natureza quantitativa (diferentes processos implicados). De modo a facilitar
uma melhor compreensão da discussão em causa, descreveremos de seguida as
diferenças empíricas até aqui encontradas entre os dois fenómenos.
Importa, primeiro, notar que os dois efeitos não surgem com a mesma magnitude,
sendo que em todas as investigações se verificou que o efeito de IETs é mais
forte que o efeito de TETs (Goren & Todorov, 2009; Mae et al., 1999;
Skowronski et al., 1998). No entanto, este resultado pode ser justificado tanto
em termos de diferenças quantitativas como qualitativas. Tal poder-se-á dever à
existência de processos distintos, como é o caso do associativo e inferencial,
mas pode, também, pode de um único processo associativo que nas IETs leva a
criação de associações mais fortes. Portanto a única informação que pode ser
extraída deste resultado é de que há de facto uma diferença entre os dois
fenómenos, não sendo claro qual é exactamente esta diferença.
Um outro resultado refere-se ao efeito halo,i.e., à generalização do traço
implicado para outro avaliativamente congruente (e.g., se se considera alguém
inteligente é mais fácil considerar essa pessoa também simpática ' um traço com
valência positiva tal como inteligente), verificando-se uma mais consistente
presença deste efeito nas IETs do que nas TETs (Carlston & Skowronski,
2005; Crawford et al., 2007a; Crawford et al., 2007b; Skowronski et al., 1998;
Wells, Skowronski, Crawford, Scherer, & Carlston, 2011). Segundo alguns
autores (e.g., Carlston & Skowronski, 2005), o resultado está de acordo com
a existência de um processo inferencial de natureza atribucional, que nos
permite criar impressões de personalidade congruentes e generalizáveis. Mas,
apesar de ter sido recebido como prova da existência de dois processos
distintos, este resultado não constitui uma prova clara. Uma diferença em
termos de magnitude associativa pode ser responsável por este resultado, uma
vez que podemos pensar que determinados efeitos só se tornam visíveis a partir
de um determinado nível de força associativa.
Outro efeito que tem sido visto como prova de uma explicação qualitativa é a
sensibilidade à negatividade dos comportamentos, i.e., o traço é mais
fortemente inferido a partir de comportamento negativos do que de
comportamentos positivos (devido à alta diagnosticidade dos comportamentos
negativos). Este efeito de negatividade é observado no caso das IETs, mas não
das TETs (Carlston & Skowronski, 2005; Crawford et al., 2007a; Crawford et
al., 2007b). De notar que a diagnosticidade é descrita como umas das
características do processo atribucional (e irrelevante no caso de um processo
associativo), daí ter sido apresentado como apoiando uma visão dualista. De
considerar, no entanto, que este resultado é fraco e não tem manifestado
consistência ao longo de todos os estudos (ver Wells et al., 2011).
De referir, no entanto, a existência de alguns dados que sugerem que há
variáveis que afectam as IETs e não as TETs, como é o caso da instrução de
detectar se a pessoa apresentada estará a mentir quanto ao comportamento
descrito (isto em vez da instrução de memorizar a foto e a frase; Crawford et
al., 2007a). Contudo, estes resultados estão sujeitos a críticas. A mesma
instrução de detecção de mentira poderá activar processos bastante diferentes
consoante o tipo de ensaio. No ensaios actor, o participante tem de
identificar se a pessoa está a mentir quando descreve um comportamento acerca
de si próprio (Eu doei dinheiro para caridade), enquanto que nos ensaios
comunicador, o participante tem de detectar se a pessoa está a mentir na
descrição que faz acerca de uma terceira pessoa (Ele doou dinheiro para
caridade). Ora, a intenção de mentir acerca do seu próprio comportamento
poderá ter motivações muito distintas das motivações por detrás da mentira
acerca do comportamento de um terceiro. As diferenças obtidas são, portanto,
dificilmente interpretáveis, uma vez que poderão ser devidas ao facto da
instrução funcionar como uma manipulação diferente consoante o tipo de ensaio,
e não a diferenças processuais dos efeitos em si.
Finalmente, entre os resultados apresentados como mais fortes a favor duma
perspectiva dualista estão aqueles que encontraram condições que conduzem à
eliminação das TETs, mas em que as IETs se mantêm (Todorov & Uleman, 2004;
Crawford et al., 2007; Crawford, Skowronski, Stiff, & Leonards, 2008; Goren
& Todorov, 2009). Estes resultados foram obtidos mediante a aplicação de
uma de duas metodologias. Alguns estudos aplicaram um paradigma de duas caras,
isto é, procederam à apresentação simultânea não apenas do comunicador e da
descrição do comportamento, mas também do próprio actor do comportamento.
Nestas condições, verificou-se que as TETs são eliminadas, mas as IETs ocorrem.
Este resultado foi interpretado como apoiando uma visão dualista, na medida em
que caso o mesmo processo associativo estivesse subjacente a ambos os
fenómenos, então, tanto o actor, como o comunicador, deviam estar igualmente
associados ao traço. Uma vez que não foi esse o caso, poder-se-á concluir, de
acordo com os autores, que as IETs se devem a um mecanismo atribucional
selectivo, responsável pela ligação entre traço e o actor do comportamento, que
bloquearia a associação entre o traço e a outra face. Todavia, também desta vez
uma explicação alternativa não pode ser descurada, pois poder-se-ia tratar
simplesmente de um fenómeno associativo em que a resposta a um estímulo desce
na presença de um outro mais saliente (overshadowing effect; Rescorla &
Wagner, 1972), significando isso que o traço estaria mais associado ao actor,
que é neste caso, o estímulo mais saliente.
O segundo caso em que as TETs são eliminadas e as IETs se mantêm é perante a
apresentação separada da fotografia e da frase descritiva do comportamento
(i.e. primeiro aparecia a fotografia, sem referir se se tratava do actor ou
não, depois um ecrã em branco e só a seguir apareceria a frase com o
comportamento, onde era então referido se a foto tinha sido do actor ou não;
Goren & Todorov, 2009, Experiência 3). Este tipo de manipulação, onde
existe uma quebra espacial e temporal entre os dois tipos de estímulos,
interfere mais com as TETs do que com as IETs. Este resultado parece transmitir
que a apresentação separada da face e do comportamento interfere com o processo
associativo das TETs, e não com o processo atribucional subjacente às IETs. No
entanto, também neste caso, os resultados são compatíveis com uma explicação
uniprocessual. Uma ligação associativa mais forte (subjacente às IETs) será
menos dependente da saliência perceptiva dos elementos do que uma ligação
associativa menos forte (subjacente àsTETs).
Em resumo, os dados existentes não permitem clarificar a natureza dos processos
subjacentes às IETs, nem resolver o debate entre explicações alternativas,
sendo necessárias novas abordagens para alcançar uma resposta. Embora existam
alguns dados que são tomados como indicadores da existência de dois processos,
eles não são conclusivos. Além disso, o facto de uma explicação uni-processual
poder explicar os mesmos dados, com menos pressupostos, tem uma vantagem em
termos de parcimónia.
Como esclarecer o debate? Proposta de novas abordagens
Para o presente debate dois aspectos irão ser desenvolvidos. Um primeiro em que
pretendemos analisar a viabilidade da explicação associativa, e um segundo
aspecto, em que nos debruçaremos sobre a importância e necessidade de definir
de forma clara, e objectiva, o conceito de inferência para uma mais eficiente e
focalizada busca das diferenças entre os dois fenómenos em causa.
Teste da Explicação Meramente Associativa
Como acima mencionado, uma das formas de explicar as diferenças entre IETs e
TETs está baseada na existência de um único processo ' um processo associativo
' e especificamente na sua actuação em magnitudes diferentes originando
ligações associativas mais fortes nas IETs do que nas TETs (Orghian, 2012;
Ramos, 2011). Mas importa ainda clarificar qual a origem dessas diferenças. O
que aqui sugerimos é que esta diferença entre os dois fenómenos possa estar
ligada a níveis diferentes de atenção implicados em cada um. É natural que as
fotografias dos actores dos comportamentos sejam percepcionadas como mais
relevantes do que fotografias de outra pessoa que não o actor (ex., o
comunicador ou uma pessoa aleatoriamente emparelhada com o comportamento), e
por isso adquiram uma maior saliência atencional. O facto de os ensaios-actor
capturarem uma maior atenção levará a que o traço inferido fique mais
fortemente associado às pessoas nestes ensaios. Em contraste, no caso da
apresentação de uma pessoa que não o actor, a saliência dessa foto é menor
devido à falta de relevância para a descrição com que é apresentada, criando
uma desvantagem atencional que originaria uma ligação pessoa-traço mais fraca.
Esta vantagem atencional traduzir-se-ia em ligações mais fortes nas IETs do que
nas TETs.
De notar, ainda, que esta hipótese baseada na saliência dos estímulos parece
ter bastante poder preditivo, sendo que um modelo computacional que funcione
com base em princípios unicamente associativos, e que considere uma diferença
de saliência inicial entre as representações das duas faces (em termos de
activação dos seus nódulos responsáveis), prevê os mesmos resultados que têm
sido encontrados na literatura e que acima foram relatados aquando da descrição
das diferenças entre o efeito de IET e o de TET (detectar se o alvo está a
mentir, maior magnitude do efeito de IET, apresentação simultânea da face
relevante e da não relevante e o efeito de generalização dos traços; para mais,
ver Orghian, Garcia-Marques, Uleman & Heinke, submetido). Desta forma
prova-se que para explicar as diferenças entre as IETs e as TETs não é
primordial recorrer a explicações dualistas, uma vez que um funcionamento uni-
processual pode perfeitamente dar conta dos resultados.
Complementarmente, outro teste associativo pode ser aplicado às IETs e que
especificamente pode explicar porque é que quando se apresenta o actor do
comportamento ligações a outros estímulos do meio são impedidas (não ocorrência
de TETs; Crawford et al., 2007b), um fenómeno intitulado overshadowing e
descrito no modelo Rescorla-Wagner (Rescorla & Wagner, 1972). De notar que
este resultado é frequentemente interpretado na literatura como prova de que
processos inferências podem estar a actuar nas IETs e que terão um efeito de
bloqueamento nas associações a outros estímulos. E o que aqui sugerimos, é que
o mecanismo de competição entre pistas que é descrito no modelo Rescorla-
Wagner, forneça uma explicação alternativa compatível com uma perspectiva
associativa acima exposta. O modelo assume que 1) estímulos que são
apresentados simultaneamente (neste caso as fotografias das duas pessoas)
competem pela força associativa com um terceiro (neste caso o traço), estando a
resolução dessa competição dependente da saliência dos estímulos, fenómenos
denominado overshadowing e 2) se determinado estímulo A (neste caso o actor)
foi previamente associado com X (traço), a associação de X a um segundo
estímulo B será bloqueada, fenómeno chamado blocking. Estes dois fenómenos
associativos em conjunto explicariam porque é que a ligação do traço é feita
preferencialmente ao actor quando duas faces são apresentadas.
O que distingue uma Inferência?
O segundo aspecto que consideramos importante para o debate em causa é repensar
e criar uma conceptualização mais robusta do próprio conceito de inferência. O
repetidamente citado processo inferencial deve ser melhor descrito em termos
cognitivos do que o está actualmente na literatura, urgindo desenvolver
manipulações de variáveis que afectem esse processo individualmente e que o
caracterizem de forma exclusiva (Orghian, 2012; Ramos, 2011).
A este propósito, propomos uma caracterização mais aprofundada do conceito de
inferência, e estabelecemos três variáveis que caracterizam um processo
inferencial e que permitem a sua diferenciação de um fenómeno associativo. A
exploração dos efeitos destas variáveis será crucial no debate sobre se existem
ou não diferentes mecanismos subjacentes às IETs e às TETs.
Uma primeira variável é a sensibilidade à incoerência, e, quanto a isso, há um
conjunto de literatura, da área de compreensão de texto, que descreve o papel
que as inferências têm na resolução de incoerências locais (Kintsch, 1998). O
estudo desta variável pode ser feito recorrendo à imposição do processamento de
uma incoerência, expondo, por exemplo, os sujeitos a faces com expressões
incongruentes com as descrições comportamentais apresentadas, o que afectaria,
devido à detecção da incoerência, a ligação inferencial do traço à pessoa. Isso
levaria a interferências no processo inferencial e, consequentemente,
influenciaria o efeito de IET mas não o de TET, caso as suas naturezas fossem
distintas. Por outro lado, se a manipulação de coerência não afectar nem as
IETs nem as TETs, então, a hipótese associativa é apoiada.
Consideramos que outra característica diferenciadora de uma inferência, é a
criação de expectativas. Ou seja, uma verdadeira inferência de traço acerca de
um actor (ex., O João é simpático) deverá levar a expectativas relativamente ao
comportamento futuro desse actor (ex., expectativa de que o João tende a
comportar-se uma forma simpática). Por outro lado, se a pessoa e o traço
tiverem sido ligados de forma meramente associativa, não se espera que o traço
seja representado como uma característica da pessoa, nem que actue como uma
expectativa (ver Ramos, 2011). Uma forma de testar esta ideia, é depois de uma
fase inicial de criação de IET e de TET, apresentar nova informação
comportamental acerca das pessoas anteriores. Se existirem expectativas,
espera-se que comportamentos novos, inconsistentes com as expectativas, demorem
mais tempo a serem lidos (devido à dificuldade de integração dessa informação
com a expectativa existente) do que comportamentos consistentes.
Por último, uma variável muito pouco explorada neste campo diz respeito ao
contexto. Na nossa perspectiva, as inferências, por serem mais integradas do
ponto de vista dos conceitos cognitivos implicado a volta de um actor, seriam
mais independentes do contexto, enquanto que as TETs por estarem muito
dependentes do momento e do espaço onde a codificação ocorre devem ser muito
mais sensíveis ao contexto e às variações que neste podem ocorrer. Um exemplo
de um tipo possível de manipulação contextual refere-se a uso de imagens de
fundo diferentes do momento de codificação (i.e., da apresentação da pessoa e
da frase descritiva) e de recuperação do material (i.e., quando a foto da
pessoa é apresentada juntamente com o traço inferido), mediante, por exemplo, o
paradigma dos falsos reconhecimentos. Poder-se-ia esperar que esta mudança de
contexto interferisse com a formação das TETs, na medida em que uma importante
pista de recuperação se perderia, mas não com a das IETs, que teriam uma
organização mais independente do contexto de codificação e mais dependente da
estrutura referente a personalidade do actor.
Explorando estas variáveis, esperamos entender em que sentido é que as
inferências se distinguem de simples associações tanto em termos processuais
como em termos funcionais (o que de novo trazem ao nosso funcionamento e
adaptação relativamente às associações). Também pretendemos definir, via estas
variáveis, características claras e inequívocas que descrevam uma inferência.
Conclusão
No presente trabalho foi exposto o debate referente às explicações acerca dos
processos subjacentes aos fenómenos de inferência espontânea de traços e
transferência espontânea de traços - uma qualitativa e outra quantitativa.
Discutimos várias evidências a favor das duas posições e a viabilidade das suas
conclusões. Vimos também o papel que a atenção poderá ter nas diferenças
encontradas e demonstramos de forma sistemática de que forma a explicação
associativa surge como uma explicação plausível. Por último, sugerimos que as
futuras direcções de investigação no campo com o objectivo de melhor esclarecer
este debate, devem ter como prioridade a clarificação do conceito de
inferência. Propomos três características definidoras de uma inferência: a
susceptibilidade à coerência, a criação de expectativa e a insensibilidade ao
contexto. Esta é uma nova proposta, que além de contribuir para a clarificação
do debate acerca da natureza das IETs e TETs, irá estimular o desenvolvimento
de novos procedimentos experimentais, essenciais para melhor perceber as
condições de ocorrências das IETs e das TETs, assim como o seu impacto na
percepção social.