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EuPTHUHu0874-55602009000200015

EuPTHUHu0874-55602009000200015

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0874-5560
ano2009
Issue0002
Article number00015

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Diversidade e psicoterapia: expectativas e experiências de pessoas LGBT acerca das competências multiculturais de psicoterapeutas

Introdução A natureza essencialmente interpessoal do processo de psicoterapia, associada a uma cada vez maior diversidade cultural presente na sociedade, tem criado novos desafios para os/as psicoterapeutas na gestão das semelhanças e diferenças na díade terapêutica. A investigação sobre o que se faz em psicoterapia com pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero (LGBT) tem ganho relevo nos últimos anos, tendo surgido em oposição ao contexto histórico de patologização e discriminação desta população no domínio da saúde mental (King, Semleyn, Killasy, Nazareth et al., 2007). De facto, as taxas relativamente altas de utilização de psicoterapia por minorias sexuais (Bieschke, McCanahan, Tozer et al., 2000; King et al., 2007) são coerentes com a frequência elevada de experiências de discriminação, decorrentes da marcada homofobia que se vive nos mais variados contextos sociais. Estes factores colocam as populações LGBT em maior risco para problemas associados à sua saúde psicológica (Cochran, Sullivan e Mays, 2003; Meyer, 2003). Apesar dos últimos 20 anos terem testemunhado mudanças significativas na conceptualização e desenvolvimento de intervenções específicas nos serviços destinados a pessoas LGBT, muitas áreas continuam a ser pouco investigadas. Em Portugal, em particular, torna-se fundamental perceber que experiências de psicoterapia têm as pessoas LGBT e os/ as seus/suas psicoterapeutas, nesse encontro de co-construção de significados e de procura de maior bem-estar e qualidade de vida.

Recordamos que foi apenas em 1973 que a American Psychiatric Association despatologizou a homossexualidade, retirando-a da segunda edição do Manual Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais (DSM-II; ApA, 1973). No seguimento dessa decisão, a American Psychological Association(APA) tornou público um parecer defendendo que a homossexualidade, por si, não implica qualquer desajustamento na pessoa homossexual, e que os/as profissionais de saúde mental têm uma responsabilidade ética, social e profissional, relativamente à remoção do estigma associado às pessoas não heterossexuais, em parte devido aos mesmos profissionais e à história da Psicologia (Garnets, Hancock, Cochran et al., 1991). Foi a partir da década de 80 que se começou a delinear, no domínio da intervenção psicológica, o que se tem vindo a designar como o modelo afirmativo gay um conjunto de princípios que orientam a intervenção psicológica junto de pessoas LGB e que redirecciona o foco de atenção da pessoa individual para o contexto homofóbico em que esta se desenvolve (Carneiro, 2009). Nesta abordagem, os objectivos terapêuticos não se prendem com a orientação sexual das pessoas LGB, mas sim com os problemas que possam decorrer de experiências relacionadas com o preconceito, o estigma e a discriminação, ou outras queixas como conflitos familiares, nas relações amorosas, no local de trabalho, depressão, ou procura de desenvolvimento pessoal (e.g. Sorensen e Roberts, 1997). Questões como a «saída do armário», a redução da homofobia e do heterossexismo internalizados, e o desenvolvimento da identidade são centrais nesta abordagem (Jordan e Deluty, 1995).

Em consonância com as propostas afirmativas, a APA (2000) publicou uma série de linhas orientadoras que se pretendem constituir como «boas práticas» para a psicoterapia com clientes LGB. Essas recomendações éticas salientam a importância de os/as psicoterapeutas reconhecerem que as suas próprias atitudes e conhecimentos acerca das vivências de pessoas LGB são relevantes para o processo terapêutico com esta população e que, por isso, devem procurar literatura, formação e supervisão específicas. Salientam ainda o papel da estigmatização social e do preconceito no risco para a saúde mental e bem-estar de clientes não heterossexuais. No que diz respeito a questões familiares, as orientações recomendam que os clínicos estejam informados acerca do impacto que a revelação da orientação sexual não normativa pode ter nas famílias de origem de pessoas LGB, bem como reconheçam as diversas estruturas familiares que clientes LGB podem estabelecer (incluindo, ou não, laços genéticos e/ou protegidos pela lei nos diversos países). Finalmente, a APA reforça a existência de diferenças entre as próprias pessoas com orientação sexual não heterossexual, no sentido de evitar os estereótipos dos/as clientes, nomeadamente as relacionadas com a idade, a etnia ou a religião dos indivíduos, ou ainda às particularidades que pessoas bissexuais enfrentam.

De facto, temos assistido ao incremento internacional no número de psicoterapeutas que usa as abordagens afirmativas com clientes LGBT, bem como ao decréscimo no número daqueles/as que encaram a homossexualidade e a bissexualidade como psicopatologias (Kilgore, Sideman, Bohanske et al., 2005).

Contudo, ainda registos do uso de técnicas psicoterapêuticas com vista à mudança da orientação sexual de clientes não heterossexuais, bem como da conceptualização da homossexualidade como uma perturbação de personalidade, ou outra, por parte de psicólogos/as (Liszcz e Yarhouse, 2005; Jordan e Deluty, 1995).

No contexto português, o estudo de Moita (2001; 2006) constituiu-se como um primordial contributo para o conhecimento das práticas psicoterapêuticas com clientes homossexuais. Através da análise dos discursos de clientes e de terapeutas, a autora concluiu que, apesar de na generalidade dos casos não haver por parte dos clínicos a intenção explícita de alteração da orientação sexual homossexual, implicitamente ela ainda existe em algumas situações. A representação que os/as psicoterapeutas participantes do estudo revelaram ter sobre os/as clientes lésbicas e gays foi, em geral, negativa, enquadrando-se numa visão da homossexualidade que a encara como uma orientação «não-natural», um défice ou uma falha no desenvolvimento, e que se reflectia na procura de causas para a mesma. Destacou-se, igualmente, uma visão negativa das dimensões intrapessoais de clientes lésbicas e gays (encarados/as como individualistas, agressivos/as, ou com dificuldades de relacionamento), em detrimento de dimensões mais positivas e/ou contextuais. Um outro exemplo prende-se com a valorização da necessidade de os/as seus/suas clientes definirem uma orientação sexual exclusiva, em despeito por orientações bissexuais. Esta tendência para patologizar experiências próprias de clientes minoritários foi também documentada noutros contextos (Neufeldt, Pinteris, Moleiro et al., 2006), nomeadamente em relação a clientes de grupos étnicos.

Estes dados são consistentes com alguma literatura internacional, onde se tem confirmado a presença de enviesamentos no diagnóstico (e.g. Beutler, Malik, Alimohamed et al., 2004), manifestado numa sobrepatologização de comportamentos, e uma maior tendência de atribuição de responsabilidade a estes/as clientes pelos seus problemas (Hayes e Erkis, 2000). Contudo, outros estudos têm encontrado psicoterapeutas que não evidenciam tais enviesamentos (e.g. Liddle, 1996), ou ainda em que se encontra um enviesamento inverso (Glenn e Russell, 1986).

Neste sentido, alguns e algumas autores/as têm procurado explorar que variáveis influenciam os processos e a interacção terapeuta-cliente com pessoas LGBT.

Alguns desses estudos têm-se focado na relação entre o sexo do cliente e do/ a psicoterapeuta e a orientação sexual de ambos. Parece relativamente consensual que terapeutas do sexo feminino tendem a encarar os/as clientes LGBT de forma mais favorável, revelam atitudes mais positivas, e são mais tolerantes e apoiantes de um estilo de vida e de identidades LGBT (Liddle, 1996; Bowers e Bieschke, 2005; Barret e McWhirten, 2002; Twist, Murphy, Green et al., 2006), quando comparados com terapeutas do sexo masculino. Esta tendência acentua-se quando não congruência entre a orientação sexual do/a cliente e do/ a terapeuta, sendo que os terapeutas homossexuais do sexo masculino são considerados tão afirmativos e apoiantes como terapeutas mulheres (independentemente da sua orientação sexual), em contraste com terapeutas homens heterossexuais (Liddle, 1996).

Mais recentemente, as questões LGBT têm vindo a ser debatidas por uma literatura mais abrangente relativa às competências multiculturais de aconselhamento e psicoterapia. Tradicionalmente direccionada para o estudo de outras populações minoritárias, especialmente as étnicas, a abordagem multicultural veio salientar o papel das diferenças entre grupos minoritários e a cultura dominante no processo clínico, reforçando numa perspectiva afirmativa o papel não da etnia mas também do género, orientação sexual, idade, nível socioeconómico (Greene, 2007). Neste domínio, a competência dos/as psicoterapeutas para trabalhar com clientes culturalmente diferentes sustenta- se em três dimensões (Sue, Arredondo e McDavis, 1992): (1) consciência das próprias atitudes, comportamentos, crenças, valores e preconceitos; (2) conhecimento acerca dos grupos minoritários, a sua história, valores, práticas, processos de discriminação e estigmatização, bem como dos modelos de aculturação e/ou desenvolvimento da identidade; e (3) competências específicas para avaliar e intervir ética e eficazmente com clientes minoritários.

Propõe-se (Israel e Selvidge, 2003) que a literatura psicológica LGBT se associe aos modelos de competência multicultural, contribuindo para a construção de uma visão mais abrangente e consolidada do trabalho psicoterapêutico com clientes culturalmente diversos. Nestes modelos, a formação específica em questões LGBT assume um carácter essencial e premente.

De facto, os/as psicólogos/as que recebem formação específica em questões LGBT tendem a perspectivar os modelos afirmativos como a melhor prática psicoterapêutica em termos éticos, considerando inaceitável a visão da homossexualidade como um défice de desenvolvimento, bem como o tratamento que visa a mudança da orientação sexual ou dos comportamentos homossexuais (Liszcz e Yarhouse, 2005). Assim, a formação sobre diversidade dirigida a psicoterapeutas, no que diz respeito às temáticas LGBT, deverá envolver: (1) questões como o conhecimento das vivências próprias de pessoas com orientação sexual e/ou identidade de género não normativas; (2) as crenças e valores pessoais (mais ou menos homofóbicos e/ou heterocêntricos) do/a psicoterapeuta e que manifestamente influenciam a sua prestação clínica (Jordan e Deluty, 1995; Barret e McWhirter, 2002; Twist et al., 2006; Liszcz e Yarhouse, 2005); (3) o uso competente das abordagens afirmativas de reconhecida utilidade pelos/as próprios/as terapeutas (Israel, Gorcheva, Walther, et al., 2008) ou, ainda, (4) o reconhecimento do papel do clima sentido no contexto onde decorre a psicoterapia nos seus resultados (Israel et al., 2008).

1. Definição do problema e objectivos do estudo O objectivo global do presente estudo consiste na contribuição para a discussão sobre a psicoterapia com clientes LGBT em Portugal, procurando estimular uma linha de investigação que esperamos resulte em práticas mais afirmativas e sensíveis para a diversidade. Os seus objectivos específicos foram explorar as expectativas e/ou experiências que pessoas LGBT têm dos serviços de saúde, especialmente no que concerne à saúde psicológica, caracterizando as suas necessidades específicas e/ou os obstáculos sentidos tanto no acesso a serviços como nas relações com os/as psicoterapeutas. Procurou-se, ainda, identificar representações de saúde mental e bem-estar psicológico.

2. Método Do ponto de vista metodológico, optámos pela recolha e análise de dados qualitativos através do recurso a entrevistas semiestruturadas realizadas a pessoas que se identificaram como LGBT no momento do estudo. A opção pela metodologia qualitativa inscreveu-se, epistemologicamente, numa abordagem naturalista em que pretendemos compreender as necessidades, expectativas e representações dos fenómenos em termos dos significados que os/as participantes lhes conferem e no seu próprio contexto. Reconhecemos os contributos das correntes pós-estruturalistas e construcionistas para a investigação com grupos historicamente discriminados, incluindo a relevância do carácter discursivo da realidade social propostas pela chamada teoria queer (Warner, 2004).

Reconhecemos também as críticas que têm sido feitas às abordagens queer que, ao situarem-se em demasia no nível da análise discursiva, não atendem devidamente à urgência de soluções para as dificuldades reais e quotidianas que pessoas discriminadas enfrentam (Gamson, 2006). Deste modo, foi nossa intenção, por um lado, (i) dar visibilidade ao discurso dos próprios actores sociais que historicamente têm sido oprimidos, e cuja voz tem sido relegada para segundo plano em primazia do discurso de técnicos e especialistas (Goldfried e Pachankis, 2007) centrando esse discurso nas dificuldades relacionadas com a discriminação real e quotidiana; e, por outro, (ii) fazê-lo recorrendo a material narrativo que, contrariamente a dados quantitativos, permite aceder directamente às experiências nos mesmos termos em que estas realmente são sentidas e subjectivamente construídas. Esta opção metodológica vai de encontro às recomendações que têm sido feitas para a investigação psicológica com minorias ou grupos discriminados, nomeadamente LGBT (Warner, 2004).

A unidade elegida foi o discurso de quatro participantes uma mulher lésbica, um homem gay, uma mulher bissexual e um homem transgénero. Não foi nosso objectivo determinar padrões discursivos generalizados e representativos da população em causa, mas antes analisar de forma mais aprofundada o discurso específico e subjectivo destes/as quatro participantes. Os/as participantes reportados neste artigo foram seleccionados de um grupo de cerca de 40 entrevistados/as pertencentes a minorias étnicas, religiosas, sexuais e com incapacidades, no âmbito de um projecto mais amplo sobre a saúde psicológica de minorias em Portugal. Os/as participantes foram angariados através de uma amostra de conveniência e entrevistados por estudantes de mestrado com experiência prévia em técnicas de entrevista. Os resultados conseguidos com as restantes entrevistas, nomeadamente a grupos étnicos, encontra-se noutra investigação (Moleiro, Silva, Rodrigues et al., 2009). As quatro entrevistas aqui analisadas foram seleccionadas tendo em conta a sua riqueza narrativa, complexidade e pertinência para o presente estudo. Foi intencional a análise das representações que actores sociais individuais e concretos têm acerca das suas próprias vidas, em detrimento da análise da construção discursiva que indivíduos como por exemplo informantes privilegiados fazem acerca de outros, normalmente recorrendo à tentação de categorização identitária tão contestada pela referida teoria queer. As idades dos/as quatro participantes variavam entre os 22 e os 34 anos, na altura da entrevista. Todos tinham, pelo menos, o 12.º ano de escolaridade completo. No que respeita à etnia, três dos/ as entrevistados/as identificaram-se como brancos e um não forneceu essa informação.

O guião da entrevista foi desenvolvido em formato de entrevista semiestruturada, adaptado a partir do trabalho de Gervais e Jovchelovich (1998). Este guião envolvia quatro grandes áreas: (i) caracterização da comunidade e experiência pessoal enquanto LGBT em Portugal; (ii) representações globais de saúde e bem-estar; (iii) representações e experiências de saúde e doença psicológica; (iv) acesso e experiências em psicoterapia. As entrevistas foram posteriormente transcritas e o seu conteúdo foi analisado através de uma análise de conteúdo clássica.

Esta decorreu em dois passos. O primeiro passo prendeu-se com a divisão do texto em unidades de análise e organização em categorias. Estas foram derivadas de forma mista, isto é, por um lado, aberta à informação que surgia a partir dos dados (i.e. transcrições) e, por outro lado, guiada pelos temas das perguntas semiestruturadas. O segundo passo teve um carácter mais interpretativo, envolvendo a determinação do significado destas categorias no que diz respeito aos objectivos do estudo. Para assegurar a validade da análise realizada, esta foi efectuada de forma autónoma por dois investigadores, que integraram a sua análise por consenso. Por fim, foram extraídas citações representativas de algumas das categorias com maior relevância para o estudo.

3. Resultados Todos/as os/as entrevistados/as descreveram experiências de discriminação com base na sua orientação sexual ou identidade de género nos mais variados contextos como a família, a escola, o emprego, ou em situações do dia-a-dia.

Referindo-se ao facto de ser bissexual, uma participante relatou «A minha mãe aceita, que remédio, mas sei que isso a incomoda, que é coisa que até a repugna», enquanto que o entrevistado gay indicou que teve «() uma infância normal, o único problema que me afectava, está, é o facto de ser gay» e que por isso «() tinha mais problemas psicológicos, passava por mais depressões, por tentativas de suicídio». De um modo geral, todos/as os/as entrevistados/as indicaram não revelar a sua orientação sexual ou identidade de género em variados momentos e contextos, como forma de evitamento da discriminação directa. Uma participante revelou que «a nível profissional é o único círculo onde sinto mesmo medo que essa informação passe. ouvi comentários mais ou menos depreciativos em relação à comunidade homossexual () e tive que engolir, calada», enquanto outra relatou « () revelo a alguns amigos, procuro ser discreta». Adicionalmente, foram descritas situações de isolamento, especialmente na infância e adolescência: «Não partilhava os meus sentimentos com ninguém, até porque achava que era único no mundo, que era a única pessoa que me sentia assim, que não era normal, () eu vivia meio escondido e não me dava assim com as pessoas».

Em paralelo, todos/as os/as participantes reconheceram e de um modo significativo a existência de heterogeneidade intragrupo. O discurso dos/as quatro entrevistados/as indicou claramente que partilham o facto de serem alvo de processos de estigmatização e discriminação em função da sua orientação sexual ou identidade de género (ou actualmente ou ao longo do seu desenvolvimento, como na adolescência), mas que em simultâneo são «() todos pessoas diferentes, com comportamentos e formas de estar diferentes» e que «não é por ser homossexual que se deixa de ser uma pessoa única», como indica a entrevistada lésbica.

Os significados atribuídos à saúde mental e ao bem-estar psicológico apareceram relacionados, por um lado, com a gestão individual que decorre da capacidade de resolução de problemas e de experiências de auto-reflexão e auto-avaliação e, por outro, com a possibilidade de procura de ajuda nas redes sociais próximas, nomeadamente família e amigos/as: «[estar bem psicologicamente] é ter sempre muita calma, pedir opinião dos familiares, amigos mais próximos, namorada ou namorado». Adicionalmente, para a maioria dos/as entrevistados/as, as experiências de discriminação assumem um carácter ameaçador da sua saúde psicológica. Um exemplo encontra-se nas seguintes palavras: «Os problemas que podem advir do facto de ser bissexual e tudo o que isso implica (). O mais difícil é eu ter que estar sistematicamente a controlar-me. () Isso até, inclusivamente, pode provocar problemas de saúde».

A possibilidade de consultar psicólogos/as surgiu como um recurso possível, especialmente na ausência de outras formas de apoio como a família ou os/as amigos/as, sendo que estes/as profissionais foram encarados/as como capazes de «() conseguir chegar à raiz do problema, saber ajudar a pessoa a resolvê-lo».

O significado que, em geral, os/as participantes atribuíram à psicoterapia prendeu-se com a procura de uma solução para diversos problemas, especialmente aqueles relacionados com a sua condição minoritária. A ajuda psicológica foi, deste modo, percepcionada como uma estratégia para gerir as dificuldades decorrentes da discriminação e da homofobia: «()se calhar os grupos minoritários têm mais tendência para terem mais dificuldades em gerir os seus dilemas, porque não os podem partilhar, ou não são bem compreendidos. E, se calhar, um psicólogo terá esse papel». De um modo geral, o discurso de todos/as os/as entrevistados/as indicou que percepcionam os/as psicólogos/as como profissionais competentes e esperam que estejam adequadamente preparados/as para lidar com as especificidades de pessoas LGBT e que, na sua prática clínica, ou seriam livres de preconceitos homofóbicos ou «() conseguem preparar-se minimamente».

Contrariamente aos/às psicólogos/as e, de uma forma geral, os resultados indicam que os outros/as profissionais de saúde (como médicos/as e enfermeiros/ /as) foram encarados/as como potencialmente homofóbicos/as e capazes de permitir que os preconceitos se atravessem na sua prática profissional. Esta distinta percepção acerca do trabalho de psicólogos/as e de outros/as técnicos/ as de saúde, transversal ao discurso de todos/as os/as participantes, foi clara nas palavras da entrevistada bissexual, que indicou que «[os médicos] têm preconceitos como todas as pessoas. () Eu própria tenho receio em abordar um médico», mas que, por outro lado, «No fundo, o psicólogo é uma pessoa como outra qualquer, que tem uma preparação para lidar seja com o que for».

Dos/as quatro participantes, dois revelaram ter tido experiências enquanto clientes de psicoterapia, mas apenas um o participante transgénero indicou procurar a psicoterapia na sequência de problemas relacionados com a sua condição minoritária. Aliás, o relato do entrevistado transgénero destacou-se dos restantes, no que diz respeito a experiências nos serviços de saúde. Este participante narrou um extenso percurso pautado por diversas experiências em serviços de saúde públicos e privados, sendo as experiências que relatou variadas. Referindo-se a profissionais de saúde médicos/as e psicólogos/as especialistas no acompanhamento de pessoas transgénero, indicou que alguns têm «[] sensibilidade para perceber aquilo que a pessoa, que o transexual, possa estar a sentir, têm cuidado na forma como tratam», enquanto que outros

[] não têm a mínima sensibilidade e parece que não percebem o que é ser transexual. Parece que sabem tudo a nível teórico, mas não se conseguem pôr no papel do transexual para perceber minimamente o que está a sentir, o que o perturba ou não. Uma insensibilidade enorme. Que se fez muitos estudos e que se sabe muita coisa, mas falta a parte humana.

Em simultâneo, este participante indicou ter contactado com profissionais de saúde mental psicólogos/as e psiquiatras cuja visão acerca de papéis de género se sustentam em pressupostos estereotipados, como por exemplo «[] se és mulher, não podes andar com botas de tropa e tens que ter o cabelo comprido e usar florinhas no cabelo, se possível».

4. Discussão O intuito deste estudo foi analisar o discurso de pessoas LGBT acerca das suas visões de saúde e saúde mental, procurando perceber as suas eventuais expectativas e necessidades específicas. Os resultados evidenciam o papel central da discriminação na vida destes/as participantes, em diversos contextos, incluindo no acesso à saúde. Foram relatadas experiências diversas que podem constituir-se como factores de risco para a saúde psicológica. Ainda assim, os/as participantes revelaram uma consistente expectativa positiva em relação à sensibilidade e competência dos/as psicoterapeutas no que diz respeito ao trabalho clínico específico com pessoas LGBT.

A literatura tem revelado que muitos/as psicoterapeutas estão longe do «ideal» descrito pelos/as participantes deste estudo. Durante décadas, os/as clientes LBGT têm sido alvo de discriminação por psicoterapeutas (Goldfried, 2001; Goldfried e Pachankis, 2007), por vezes na forma de invisibilidade (e.g.

assumir a normatividade da orientação heterossexual), outras de forma subtil (e.g. apresentação de explicações para a orientação sexual), e outras ainda de forma clara (e.g. terapias de mudança de orientação sexual). Como anteriormente referido, também em Portugal a investigação tem mostrado que, de um modo geral, os/as psicólogos/as não têm consciência, conhecimento, e competências específicas no que diz respeito à intervenção afirmativa e sensível à diversidade com clientes LGBT (Moita, 2001, 2006).

A natureza interpessoal da relação terapêutica, onde não são negligenciáveis os efeitos das variáveis do/a terapeuta, reforça a necessidade deste/a último/ a estar consciente dos seus valores e atitudes face às orientações sexuais não heterossexuais. Enquanto terapeuta, como se sente em relação ao/seu/sua cliente LGBT? Que semelhanças e diferenças assume no trabalho com estes/as clientes? O que significam essas diferenças para si e para o/a cliente? E, em alguns casos, de que forma a sua própria homofobia internalizada pode ser actuada na relação e, se sim, será capaz de ser um/a bom/boa terapeuta para esta pessoa (criança, adolescente, adulto, casal ou família)? Estas questões tornam-se mais relevantes quando reconhecemos que a qualidade da aliança terapêutica é fundamental para a mudança dos/as clientes (Horvath e Simons, 1991; Norcross, 2002) e que as discrepâncias entre as expectativas dos/as clientes e dos/as psicoterapeutas afectam negativamente a relação terapêutica e potenciam o abandono precoce da psicoterapia (Glass, Arnkoff e Shapiro, 2001).

Para além dos impactos da consciência pessoal do/a terapeuta na relação, também o conhecimento técnico e competências específicas são relevantes na psicoterapia com pessoas LGBT. Os resultados indicam que os/as participantes do presente estudo assumem que os/as psicólogos/as não não deixam os seus preconceitos interferirem com o seu trabalho clínico, como têm conhecimento para os ajudar na procura de estratégias para lidar com a discriminação e estratégias para a promoção do seu bem-estar pessoal e social. Contudo, apenas recentemente têm sido desenvolvidos esforços junto da APA para adicionar ao conteúdo formativo de psicoterapeutas as teorias de desenvolvimento infantil LGBT, relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo, parentalidade e famílias homoparentais, violência doméstica entre pessoas do mesmo sexo, entre outros temas (Goldfreid, 2001; AFFIRM Stambor, 2005). As noções de homofobia e heterossexismo internalizados (Pereira e Leal, 2002) são desconhecidos de muitos/as psicoterapeutas, bem como os processos de desenvolvimento da identidade (Carneiro e Menezes, 2006) e as fases de «saída do armário» (Frazão e Rosário, 2008), apesar destes conhecimentos serem apenas o ponto de partida para o encontro com aquele/a cliente particular, cuja história e características são únicas. O reconhecimento da heterogeneidade intragrupal de grupos minoritários tem sido avançado como um marco de desenvolvimento multicultural dos/as terapeutas (Neufeldt et al., 2006), e também os/as entrevistados/as salientaram a sua relevância. O discurso dos/as quatro participantes foi revelador das especificidades e idiossincrasias de cada percurso de vida, denunciando a diversidade contida na categoria a que habitualmente nos referimos com a sigla LGBT.

Torna-se, assim, fundamental que os clínicos sejam capazes de responder às elevadas expectativas que clientes LGBT podem trazer para o processo terapêutico, maximizando as possibilidades de sucesso do mesmo. Essa é, no nosso entender, também uma exigência ética profissional, de acordo com as «boas práticas» definidas internacionalmente (APA, 2000). Para que tal aconteça, torna-se central a formação académica e pós-graduada dos clínicos no que diz respeito à diversidade sexual como tem sido sugerido por diversos/as autores/ as (Barret e McWhirter, 2002; Garnets et al., 1991; Bowers e Bieschke, 2005; Carneiro, 2009) , bem como à multiculturalidade nas suas mais variadas formas (incluindo identidades múltiplas, como mulheres lésbicas de minorias étnicas; Greene, 2007).

Os resultados deste estudo devem ser lidos no contexto do seu carácter exploratório e tendo em conta o desenho metodológico escolhido. Estudos futuros devem optar por outras metodologias e recorrer a amostras mais alargadas e representativas, contribuindo para uma maior compreensão do panorama da psicoterapia com clientes LGBT em Portugal. Apesar destas limitações, acreditamos que o estudo aqui apresentado demonstra a urgente necessidade da introdução das temáticas LGBT nos curricula académicos das formações graduadas e pós-graduadas em Psicologia.


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