É em comum que nós habitamos
«Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
– Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que
vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?
(…)
Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza».
Herberto Hélder, 2004, OU O POEMA CONTÍNUO
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"…o homem habita como poeta…"
1. "A maneira como nós, os humanos, somos na terra é a habitação. Ser
humano quer dizer: ser na terra como mortal, isto é: habitar", escreveu
Heidegger numa conferência de 1951, Construir habitar pensar (Heidegger, 1958:
173). O "somos" sublinhado por ele é uma forma do verbo mais forte
da filosofia, o verbo "ser", e a segunda frase é uma definição, a
operação por excelência do pensamento gnoseológico greco-europeu. Em 1927, Ser
e Tempo, o livro que abriu o chamado existencialismo (que renegou), buscava ir
mais além do que o seu mestre Husserl na tentativa de conseguir escapar ao
dualismo desse pensamento greco-europeu. O dualismo joga entre oposições
exclusivas: Céu/Terra antes de mais, donde alma/corpo - ela imortal,
quase divina, ele gerado e mortal - em Platão, Agostinho, Lutero,
Descartes, esta dependendo por sua vez também duma outra mais insidiosa, pois
que partilhada por quase todos nós, sem o sabermos porventura: a oposição
dentro/fora, trivialmente sujeito/objecto. Um sintoma de como esta oposição
sobrevive como armadilha filosófica nas neurologias e psicologias como nas
ciências sociais e humanas, é o recurso à noção de representação, isto é, a
presença do objecto exterior na interioridade do sujeito. Insidiosa, já que
esta oposição dentro/fora é uma das nossas evidências mais preciosas, e é por
isso que não é nada fácil pensar sem dualismo: não basta querê-lo ou dizê-lo,
já que este está em quase todos os conceitos do pensamento ocidental e sem eles
não sabemos pensar.
2. Uma das grandes importâncias do pensamento de Heidegger 2 é justamente a de
ter (quase) conseguido esse "salto" além do dualismo. No texto de
1927, o humano é caracterizado como "ser-o-aí" (Da-sein), como
"ser-no-mundo", como ex-, exterioridade do ex-sistente (o tal do
existencialismo). E também, em contraponto da imortalidade da alma, como ser
mortal,finito, cujo saber-se assim, "existencialmente", permite
acesso à sua autenticidade (termo que esteve muito em voga nos anos a seguir à
guerra). Ora bem, na citação inicial do texto de 1951, os termos
"ser" e "mortal" sugerem que definir o humano pela
habitação na terra é a maneira que Heidegger teve, 25 anos mais tarde, de
retomar as questões existenciais de Ser e Tempo deslocando-as para a história
ocidental do pensamento, do ser. Tentarei seguir essa sugestão por minha conta
e risco 3.
3. Habitar não é estar sem fazer nada, quer em casa quer no emprego fazemos
como aprendemos que se faz, desde pequenos e ao longo de toda a vida, segundo
osusos da nossa tribo (no sentido dos que nos rodeiam, nos ensinam a habitar).
E é quase sempre fazer com os outros, e como os outros fazem. Em comum, pois:
comunidade, em casa como no emprego. E este "em comum" repete-se
muito parecido em todo o lado da mesma sociedade, trata-se dum "em
comum"4 muito mais geral donde todos aprendem: "em comum"4 é
o que nos dá a aprender o que fazemos quando habitamos.
4. A dimensão social dos humanos (vistos como almas, sujeitos) é ignorada pela
maior parte da filosofia europeia até há pouco tempo; é certo que Heidegger não
fala de "sociedade", mas "habitar na terra" reenvia
para ela. Ora, o dualismo filosófico, no que ao social diz respeito na história
europeia recente, pegou em dois belos termos - "liberal",
meta da modernidade, e "(bem) comum", da tradição medieval -
e crismou-os com o sufixo "-ismo", opondo-os irreductivelmente,
como individualismo
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/colectivismo, cada um excluindo o outro. Pensar a habitação pode ajudar-nos a
sair dessa oposição tão trágica. O ser-no-mundo (ser na sociedade, digamos)
implica repensar o "sujeito": em vez de se partir da consciência do
adulto, há que pôr a questão da sua instituição como humano da nossa tribo pela
aprendizagemdos seus usos, que são a maneira própria dessa tribo habitar na
terra. Começar por aprender significa que se começa por se receber, por
acolher, por múltiplas doações sociais que de fora nos vêm. Da mesma maneira
que, em biologia, se começa por um ovo recebido de dois progenitores e se
seguem doações (alimentos e oxigénio) vindas de fora que permitem crescer; o
crescimento é o de quem (não ainda "alguém") aprendeu a saber, a
saber fazer, e daí a tornar-se "alguém", a poder dizer "eu
sei", "eu quero", "eu faço". De passivo, tornar-
se activo, um habitante da sua tribo. O que exige que progenitores e mestres
que ensinam, que doam língua e saber, se retirem para o deixar ser ele ou ela6.
Sem que se possa dissociar o que se recebeu "passivamente" e o que
se é "activamente": dizia o poeta Manuel Gusmão que o poeta só
dispõe para o seu poema das palavras dos outros. Como qualquer de nós, para
falar, para pensar. É aliás o que nos leva frequentemente a conflitos, a querer
ter razão, ser o mais hábil, e por aí fora: cada um de nós é indissociável e
inconciliavelmente individual e social7, por isso as sociedades são dinâmicas.
Seja, por exemplo, o sotaque da região ou da classe social numa voz que, ao
telefone, é identificável pelos seus conhecidos. Assim como o é pela habilidade
ou falta de jeito em tal ou tal uso social. O que "alma" e
"sujeito" não deixam ver é que só "somos" pelo que
crescemos e aprendemos, a diferença entre quem não sabe guiar um automóvel e
aquele em que se torna após ter aprendido: a aprendizagem altera o sujeito.
5. Passivos - activos, é também o lugar do enigma essencial de cada um:
nunca os outros sabem o que ele vai dizer ou fazer em resposta ao que se lhe
disse ou fez. Enigma como "liberdade", sem recurso a alma ou
espírito. Em resumo, cada humano recebe do "comum" social aquilo
que lhe dá liberdade, isto é, a possibilidade ou capacidade de ser alguém mais
ou menos valorizado. Sendo que o "próprio eu" é também doação
enigmáticaque se "apropria" esse "comum" que lhe é
doado, para se tornar "ele próprio", habitante da sua sociedade na
terra8.
6. Ora, é óbvio que não se habita na rua: uma sociedade não é, como se crê
muitas vezes, um conjunto de indivíduos, a população dum território, mas a rede
organizada de unidades sociais de habitação, o sistema complexo dos usos que
nessa terra se transmitem de geração em geração. "Terra" aliás é
melhor do que "território", porque tem em conta a agricultura e o
gado, tem em conta que ao nível biológico também vimos de inúmeras doações, e
justamente a refeição - festas são almoços - é um dos momentos
fortes das unidades sociais de habitação a que chamamos família, em que os seus
vários membros se encontram como unidade social que se apropria do
"comum". Uma família é uma unidade social em propriedade privada: é
o "comum" que é privado duma potência sua para que a unidade social
- sistemas regrados de usos - se possa reproduzir. O que lhe dá
unidade é o próprio sistema dos usos quotidianos que encaixam uns nos outros,
em que todos fazem parte desse sistema de usos, dessa unidade social. A palavra
habitação usa-se correntemente para a família, mas as unidades sociais de tipo
económico, em que se trabalha 8 horas por dia, são igualmente apropriações do
"comum", recebido dos antepassados (e dos contemporâneos), também
aqui é o "comum" que é assim "privado", apropriado: com
efeito, tudo - capital, máquinas, matérias primas, saber técnico do
pessoal - vem de "doações" do comum (de antepassados e
contemporâneos).
7. Mas é claro que tudo isto só funciona se as doações múltiplas, incessantes,
forem "esquecidas", ignoradas enquanto tais, pelos
"próprios"9. Para eu dizer o que quero dizer, não posso lembrar-me
da voz daqueles com quem aprendi as palavras que digo (se as ouvisse, seria
alucinado, louco). Numa fábrica "privada", é necessário que se
pense em "propriedade", mas, aquém do carácter jurídico do capital,
o ponto essencial é a comunidade privada dos que trabalham, os seus usos
sociais competentes coordenados uns aos outros; "privado" significa
também que quem é "estranho" ao fabrico, a multidão dos que passam,
tem que estar fora da fábrica para que ela possa funcionar. Por exemplo, nas
lojas há sempre uma zona "privada", interdita a estranhos, como nas
nossas casas há zonas mais "privadas" do que outras, sempre a
defenderem-se do colectivo.
8. É às doações apropriadas por privação do "comum" que
correspondem, não só os impostos, como a chamada "função social"
das empresas (e famílias). Há uma ética da habitação ligada ao seu carácter
"comunitário", para a qual chamava a atenção um antigo jornalista
do Público, Joaquim Fidalgo: a confiança imensa que nos é pedida constantemente
na qualidade do trabalho dos outros, anónimos, desconhecidos, cujos produtos
usamos e consumimos quotidianamente. Se nos dermos conta de como, em relação a
familiares, amigos e colegas, estamos constantemente na oscilação de sabermos
se podemos, e até que ponto, fiarmo-nos neles, percebe-se que no "con-
" deste confiarmos em quem não conhecemos, quantas vezes estrangeiros,
percebe-se mais claramente como a habitação nos é "comum". E a
ética essencial dos humanos em sociedades tão interdependentes é a da respostaa
essa confiança anónima, da responsabilidade no que fazemos em relação ao comum
que nos faz doação, resposta a pedir confiança por sua vez. Fazer bem o seu
trabalho, no emprego como em casa, é o primeiro imperativo ético.
9. Termino regressando a Heidegger, à sua meditação do verso de Holderlin
citado em epígrafe, em "…l'homme habite en poète…" (Heidegger,
1958). "Cheio de méritos, mas como poeta, o humano habita nesta
terra". Quando a sua vida é penosa, ele olha acima de si e diz:
"também eu, é assim que eu quero ser". Esse "olhar acima de
si" é o olhar do poeta, para quem o sol e o azul da luz do dia, a lua e
as estrelas recortadas na escuridão da noite, são o que apela ao habitar, poeta
que escuta o apelo da língua culta - passivo e activo por excelência,
lembre-se o tema romântico da "inspiração" -; a poesia mede o
humano acima do que ele pode e abre a habitação a ir mais além do que, na
grande literatura, nos foi doado pelos antepassados. Como outrora os mitos do
divino, Heideggeer convida-nos a entender que "a poesia é o habitar
inicial", o que "edifica o ser da habitação". Como quem ama e
sonha a futura morada, como o arquitecto enquanto artista, diria eu correndo o
risco de psicologizar, "a poesia é a potência fundamental da habitação
humana". "Cheios de méritos": catedrais góticas e palácios
reais de outrora, a Ilíada, a Bíblia e a Divina Comédia, é este passado altivo
com suas obscuridades e claridades, fonte de grande espanto, que, "em
primeiro lugar, faz da habitação uma habitação; a poesia é o verdadeiro
"fazer habitar"". Nós, altivos e mortais, em comum.