Metamorfoses das relações entre o Estado e os movimentos de mulheres em
Portugal: entre a institucionalização e a autonomia
Introdução
É recorrentemente assinalado como traço destacado e inquietante da sociedade
portuguesa em matéria de igualdade de mulheres e homens a persistente disjunção
entre leis e práticas sociais, atribuída quer à incapacidade do Estado, quer a
fragilidades dos movimentos de mulheres (Ferreira, 2000b; Santos, 1993). Esta
disjunção tem sido apontada como uma marca do fracasso da utopia jurídica do
Estado neoliberal (Santos, 2005), ponto de tensão entre Estado e movimentos
sociais, que se verifica desde os anos 1970 até hoje.
A reflexão sobre a relação entre Estado e movimentos sociais e sobre os
processos de produção e implementação de políticas públicas de igualdade
(Ferreira, 2011; Monteiro, 2011a), com os seus avanços e paralisias, levou-nos
a questionar em que medida e grau a democracia criou condições para a
representação descritiva e substantiva1 dos "interesses das
mulheres" 2 nas políticas públicas, dando especial atenção à forma como a
democratização incorporou as representantes das mulheres em Portugal e as suas
reivindicações, designadamente os movimentos de mulheres3 e ao papel
desempenhado pelos mecanismos oficiais para a igualdade4. Interrogamo-nos ainda
sobre os condicionalismos que, nestes anos de democracia, têm constrangido as
oportunidades daquelas representantes, determinando as suas opções
estratégicas. Para enquadrar a reflexão de que aqui damos conta, mobilizámos a
abordagem do feminismo de Estado tal como tem vindo a ser trabalhada em vários
estudos comparativos (McBride e Mazur 1995, 2008; Mazur e McBride, 2010).
Grosso modo, esta abordagem estuda o nexo entre os mecanismos oficiais para a
igualdade e os movimentos de mulheres na produção de resultados políticos,
assumindo os primeiros como agentes decisivos de articulação entre movimentos e
Estado (McBride e Mazur 1995; 2008). Dorothy McBride e Amy Mazur definem o
feminismo de Estado como "as ações dos mecanismos para a igualdade no
sentido de incluir as reivindicações dos movimentos de mulheres no Estado, de
forma a produzir resultados feministas, quer em termos de processo político
quer de impacto social, ou ambos" (2008: 255). A abordagem assume que os
mecanismos facilitam a representação descritiva e a substantiva, constituindo-
se como potenciais aliados dos movimentos de mulheres para obter acesso à
decisão política (McBride e Mazur 1995, 2008). Inspirada nas teorias do
processo político (McAdam, 1998; Tarrow, 1998), esta abordagem assume também
que, mais do que as características do mecanismo ou dos próprios movimentos de
mulheres, são as características do sistema sociopolítico e as estruturas de
oportunidades políticas (Tarrow, 1998) que condicionam o sucesso do feminismo
de Estado (McBride e Mazur 1995, 2008).
Este artigo pretende contribuir para o conhecimento acerca das dinâmicas dos
movimentos de mulheres portugueses, da sua relação com as instituições, com os
partidos políticos e com o principal mecanismo oficial para a igualdade na
promoção da igualdade de mulheres e homens, atualmente designado Comissão para
a Cidadania e Igualdade de Género (CIG). A importância de estudar estes três
atores políticos, em Portugal, resulta da centralidade de que se reveste o
Estado, da fragilidade dos movimentos sociais e da influência que sobre ambos
exercem os partidos políticos.
A informação utilizada foi produzida no âmbito do primeiro estudo sobre
feminismo de Estado em Portugal, tendo sido realizadas 53 entrevistas
semiestruturadas (a técnicas/os e ex-técnicas/os da Comissão; antigas e atuais
dirigentes da Comissão; responsáveis política/os da tutela; peritas; dirigentes
de movimentos de mulheres; mulheres políticas), sobre as quais foi feita uma
análise de conteúdo temática, com recurso a software específico (NVivo 8-QSR).
Também foi feita análise documental de material de arquivo (atas e outros
documentos da Comissão), legislação, relatórios, publicações e artigos de
imprensa.
Para um melhor enquadramento da reflexão realizada, começaremos por expor
brevemente o processo de constituição do mecanismo para a igualdade português e
das redes de associações de mulheres que em torno dele se constituíram. Nas
duas secções seguintes, centramo-nos na análise dos principais fatores que nos
ajudam a denotar o papel do feminismo de Estado, e os seus sucessos e
insucessos. Terminaremos com breves observações finais.
Sobre o nascimento do principal mecanismo para a igualdade e das redes de
associações de mulheres
O mecanismo constituído no espaço institucional do Estado português para as
questões da igualdade de mulheres e homens é a atual Comissão para a Cidadania
e Igualdade de Género – CIG (Decreto-Lei n.º 164/2007 de 3 de maio). Esta
Comissão resulta de uma série de sucessivas reformas de um primeiro Grupo de
Trabalho para a Definição de uma Política Nacional Global acerca da Mulher,
criado em 1970, que sobreviveu à Revolução de 1974. Em 1975, a sua presidente e
ao tempo Ministra dos Assuntos Sociais (Maria de Lourdes Pintasilgo) colocou-
a em instalação, dando-lhe o nome de Comissão da Condição Feminina (CCF).
Finalmente em 1977, o primeiro Governo Constitucional, um governo socialista,
institucionalizou-a através do Decreto-Lei n.º 485/77, de 17 de novembro. Em
1991, o Decreto-Lei n.º 166/91, de 9 de maio, reestruturou a CCF, dando-lhe a
nova designação de Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres
(CIDM), que vigoraria até 2007 (Monteiro, 2010). A Comissão (expressão usada
doravante) tem sido o mecanismo oficial para a igualdade com maior abrangência
de mandato e longevidade em Portugal, tendo a sua criação e evolução marcado de
forma decisiva o cenário composto pelas políticas de igualdade e pelo ativismo
dos movimentos de mulheres.
Foi em torno da Comissão que algumas redes de associações de mulheres se
constituíram. De facto, desde os anos 1970, a Comissão tem tido um Conselho
Consultivo com duas Secções, sendo um importante ponto de ligação com todos os
setores governativos, através da Secção Interministerial, e com as organizações
da sociedade civil, especialmente as associações de mulheres, através da Secção
das ONG. Ao longo do tempo, esta Secção foi sendo integrada por um número
crescente e bastante heterogéneo de associações (de 12, em 1975, passou a 54,
em 2007). A partir de 1991, as organizações que o integravam tiveram direito a
um subsídio anual para projetos, inscrito pelo Orçamento de Estado no orçamento
da Comissão, e tiveram inclusivamente até 2005-2006 uma sala e secretariado na
sede da Comissão, onde reuniam e trabalhavam em conjunto.
Estes são alguns sinais da aproximação ao Estado, iniciada logo em 1974, e do
privilegiar da plataforma comum estatal como estrutura de mobilização pelos
movimentos de mulheres, que só nos tempos mais recentes sofreu alterações
significativas, como veremos mais adiante. Tratou-se de uma institucionalização
política dos movimentos de mulheres portugueses, na definição de Edward Walker5
(2005), que resultou de opções estratégicas face às estruturas de oportunidades
políticas fechadas, profundamente marcadas pelo contexto de transição
democrática e pelas características da sociedade (Monteiro, 2011a; Monteiro e
Ferreira, 2012).
Sucessos e Insucessos do feminismo de Estado
Foi na segunda metade dos anos 1970 que se concentraram os casos em que a
Comissão e as suas redes conseguiram ser insiders, ou seja, em que conseguiram
inserir-se no processo de decisão política (representação descritiva) e também
fazer com que os conteúdos legislativos correspondessem às suas próprias
propostas (representação substantiva). São disso ilustração: a Revisão do
Código Civil, concretamente do Direito da Família, entre 1976-77 (Decreto-Lei
n.º 496/77, de 25 de novembro); a institucionalização da própria Comissão (DL
485/77, já referido); a Lei da igualdade no trabalho e no emprego (Decreto-Lei
n.º 392/79, de 20 de setembro); e o Código da publicidade (Decreto-Lei n.º 421/
80, de 30 de setembro). Correspondem, essencialmente, a políticas
antidiscriminação cujos fundamentos são convergentes com o quadro de
modernização e democratização do país.
A partir daí a ação e os ganhos começaram a revelar-se mais difíceis, oscilando
o papel da Comissão entre o marginal e a intervenção persistente mas
essencialmente formativa. Por papel marginal consideramos as situações em que a
Comissão procurou intervir e se envolveu numa determinada agenda (em termos da
sua discussão interna, de produção de conhecimento sobre a questão, de
elaboração de propostas, etc.) mas não conseguiu participar na produção
política porque o sistema se fechou. Traduz também o desrespeito pelas suas
atribuições como organismo consultivo e da obrigatoriedade de participar em
toda a legislação relevante, especialmente a emanada pelo Governo. Por
formativa consideramos as situações nas quais a ação da Comissão se destacou
por um papel persistente ao nível da educação e consciencialização da sociedade
e dos agentes políticos relevantes, através de práticas discursivas
(conferências, publicações), mas cujo impacto político é indeterminável e
diferido no tempo.
Constatamos, assim, que a Comissão e suas redes de organizações tiveram um
papel central na proposta de políticas e sua divulgação, no lançamento de
agendas, na produção de conhecimento e na tentativa de influenciar a decisão
política, mas que a sua capacidade efetiva de influência foi bloqueada e
limitada por fatores exógenos, tal como sugerem as abordagens do feminismo de
Estado (McBride e Mazur, 1995, 2008; Mazur e McBride, 2010). Ela foi marginal
porque excluída, e formativa, porque a essa função foi remetida pela
desconsideração que lhe votou o poder político (Monteiro, 2011a). Do espectro
de fatores obstaculizadores da eficácia do feminismo de Estado em Portugal
destacaram-se, na revisão da literatura realizada e no estudo empírico
realizado, os seguintes:
– Características do processo legislativo, em especial o seu centralismo e
fechamento a grupos externos (Aguiar, 1987; Cardoso, 2000; Ferreira, 2000b;
Mozzicafredo, 1997; Nicholls, 2007; Santos, 1993). Este fechamento traduziu-se,
por exemplo, na reduzida participação na produção de legislação em matéria
específica da sua área de intervenção entre 1970 e 2007 – apenas 53% das
disposições legais contabilizadas (Monteiro, 2011a).
– A falta de reconhecimento das desigualdades entre os sexos, o peso de uma
normatividade social distante do espírito igualitário da Lei e a concomitante
limitada relevância e prestígio político da área (Braithwaite, 2005; Monteiro e
Ferreira, 2009; Nogueira, 2009). Para tal contribui certamente o facto já
estudado de os media não terem sido aliados das mulheres e suas representantes
(Peça, 2010; Silveirinha, 2004).
– O formalismo jurídico, que não conduz a uma efetividade significativa, e a
não implementação da legislação pelos próprios departamentos estatais e
governativos, que tendem a marginalizar as questões da igualdade. Isto reforça
a constatação da incapacidade do Estado como traço do nosso sistema político-
administrativo (Cardoso, 2000, 2006; Santos, 1993). A ineficácia
sistematicamente detetada na implementação dos três primeiros Planos Nacionais
para a Igualdade é disso a ilustração clara (Cardoso, 2000; Ferreira et al.,
2007a, 2011). Entre outros fatores, o departamentalismo desresponsabilizador, o
imobilismo e a rigidez das burocracias têm bloqueado a estratégia de
"mainstreaming da igualdade de género" (Romão, 2006).
– A resistência, inconsistência e fechamento dos partidos às questões da
desigualdade sexual originaram estruturas de input relativamente fechadas ao
feminismo de Estado. Nas discussões sobre a paridade na política, por exemplo,
que atravessaram mais de duas décadas, a Comissão e as suas redes só foram
chamadas a participar em 1997-98, apesar de esta ter sido a agenda mais
consensual e investida do feminismo de Estado em Portugal (Monteiro, 2011b). O
limiar de 33% estabelecido na designada Lei da Paridade (Lei n.º 3/2006, de 21
de agosto), que declara que "as listas para a Assembleia da República, o
Parlamento Europeu, e autarquias devem assegurar uma representação de pelo
menos 33% de cada sexo", é uma consequência deste fechamento às
reivindicações das representantes das mulheres (Monteiro, 2011b).
– O concomitante reduzido peso e poder dos departamentos de mulheres dos
partidos portugueses (Jiménez, 2009) e, ao contrário do que se passa em
Espanha, a ausência de um "feminismo de partido" relevante têm
feito com que o debate no seio dos partidos seja um debate essencialmente
masculino. Na verdade, apenas o Partido Socialista (PS) tem tido e mantido um
departamento de mulheres formal com visibilidade pública. Ao contrário do
congénere espanhol, porém, este nunca foi muito forte, levando-nos a pensar que
apenas é mantido como resposta a uma exigência da Internacional Socialista. A
comparação com Espanha é aqui interessante, porque apesar de terem existido
relações igualmente intensas entre algumas técnicas e dirigentes da Comissão e
algumas ativistas dentro do partido, em Portugal estas alianças eram alianças
de "elos fracos", ao passo que no país vizinho estavam envolvidas
mulheres poderosas que proporcionaram alianças e canais influentes para o seio
do Partido Socialista Obrero Español, como, por exemplo, Carlota Bustelo
(Threlfall, 2009). As mulheres do departamento do PS português parecem ter tido
um espaço decisivo de militância na Comissão, ao nível do CC, e das ONG que
criaram em torno dele, como foi o caso de Maria Alzira Lemos e de Ana Coucello.
Ora isto confirma que não é o pertencer a um departamento feminino que confere
às mulheres maior capacidade política nos partidos portugueses (Jiménez, 2009),
apesar de globalmente isso ser apontado como uma vantagem (Lovenduski, 1993).
– A resistência da Assembleia da República às problemáticas da desigualdade
sexual caracteriza-a como uma estrutura de oportunidades políticas fechada.
Encontramos os fundamentos do seu fechamento no predomínio dos partidos
políticos e respetivas prioridades que, com exceções pontuais da parte do
Parido Socialista e do Partido Comunista, não têm passado pelo combate das
desigualdades sexuais6. Também os modelos de funcionamento e procedimentos
parlamentares formalizados se mostram pouco permeáveis a grupos exógenos. As
Comissões Parlamentares para as questões da igualdade de mulheres e homens e o
desenvolvimento de redes com mulheres ligadas aos partidos políticos foram
formas que o feminismo de Estado encontrou para estabelecer pontos de acesso
àquele forum. Essas redes foram usadas na apresentação de propostas como a da
atribuição de um subsídio às ONG do CC (em 1989) ou na pressão pela introdução
das políticas de ação positiva. As dificuldades de atrair deputados para estas
Comissões, as polémicas aquando das suas não renomeações, e o sistemático
desrespeito e desconsideração de que se queixaram várias das suas ex-
presidentes atestam, no entanto, a pouca capacidade de influência destes
organismos (Monteiro, 2011a).
– A resistência dos atores políticos portugueses à normatividade internacional,
nomeadamente à que pressupõe maiores reformas dos sistemas, como foi o caso das
ações positivas, e também da criação de instrumentos de mainstreaming, como os
Planos. A título de exemplo:
* primeiro Plano para a Igualdade (PNI) apenas surgiu, em 1997, 9 anos depois
de ter sido proposto pela Comissão e organizações de mulheres;
* gender budgeting nunca foi implementado, apesar de ter sido incluído no II
PNI, em 2003, e desde então constar em todos os PNI;
* a questão da paridade na política só foi apoiada pelo Partido Socialista e
pelo Bloco de Esquerda (criado em 1999), e só em 2006 foi aprovada a
autodesignada "Lei da Paridade".
– A fraca capacidade de mobilização e a falta de autonomia, que, em geral,
caracterizam as associações de mulheres portuguesas, fazem com que estas
dificilmente consigam ser fonte de pressão sobre o poder político e sobre o
Estado. A maior parte das análises conhecidas apontam, quando muito, a
mobilização assinalável conseguida em torno da legalização do aborto (Amâncio,
1998; Canotilho et al., 2006; Ferreira, 2000b; Magalhães, 1998; Tavares, 2000,
2011). Estas fragilidades são denunciadas no lamento "elas não pedem
contas, não há pressão da base!", escutado em tantas das entrevistas
realizadas. Assim, a análise que fizemos das principais ações conjuntas das ONG
do CC põe claramente em evidência as limitações da ação de lobbying
desenvolvida, uma vez que, durante a CCF, apenas 42,5% das ações conjuntas
consistiram na apresentação de propostas de legislação ou de protesto e lobby
institucional, e durante a CIDM apenas 46,8% (correspondendo estes números a 17
ações em 15 anos da CCF e a 22 em 16 anos da CIDM) (cf. Monteiro, 2011a).
– A força dos legados conservadores e familialistas nas e sobre as instituições
portuguesas (Portugal, 2000), especialmente obstaculizantes nas agendas
doutrinais, como a do aborto e da saúde sexual e reprodutiva. A agenda do
aborto foi uma bandeira dos movimentos de mulheres, apoiados, ainda que de
forma tímida e errática, por parte de alguns partidos de esquerda contra os
partidos e os setores mais conservadores da sociedade portuguesa (Tavares,
2003, 2011; Prata, 2010). A Comissão abandonou essa agenda, deixando-a à
militância autónoma dos movimentos, argumentando com o seu estatuto de entidade
pública e com a inexistência de consenso por parte das ONG do seu CC, à qual
não é alheia o peso neste órgão das associações de mulheres ligadas à Igreja.
Quanto aos partidos políticos, apesar de podermos dizer que foram da iniciativa
dos partidos de esquerda as principais propostas legislativas em matéria de
aborto e de educação sexual e planeamento familiar, o facto é que mesmo eles
revelaram receio de afrontarem os setores mais conservadores da sociedade e
instituições portuguesas, até à década de 2000. Foi a partir desta altura, que
coincide com o período mais intenso (2001-2007) da agenda da interrupção
voluntária da gravidez em Portugal, que se vislumbrou uma clara diferenciação
na atitude de apoio dos partidos de esquerda (nomeadamente do Bloco de
Esquerda, do Partido Socialista e do Partido Comunista Português) e de oposição
do Partido Social Democrata (PSD) e do Centro Democrático Social/Partido
Popular (CDS/PP). Antes desse período, mulheres dos setores femininos de
partidos políticos denunciavam contenções e mesmo traições dos líderes
políticos à causa do aborto (no PCP, a subordinação da questão à causa maior da
luta de classes até aos anos 1980; no PS, o acordo com o PSD para a realização
do Referendo de 1998 e a vitória do Não, pela fraca mobilização deste partido,
claramente imputável à falta de apoio do líder do partido, António Guterres,
publicamente assumido como católico).
Em síntese, verificamos que, até à década de 1990 e face a esta condição
marginalizada no seio do Estado, a Comissão desenvolveu, como estratégia
compensatória, uma atitude de proatividade, até à sua transformação em CIDM
(1991), e que gradualmente se foi vendo mais limitada na sua adoção.
Complementarmente teceu redes e congregou mulheres de diversas proveniências
(partidos, função pública, associações, etc.), para a mobilização de contactos
e espaços informais no sistema político-partidário. Estas constelações,
adaptando-se de forma flexível a cada contexto e momento político, facilitaram
o acesso à decisão política e foram permitindo a construção de narrativas
comuns que se ligam às biografias da Comissão e das organizações. O seu caráter
informal tem acabado, contudo, por reproduzir o traço marginal das questões das
mulheres e da igualdade no nosso sistema político, não tendo conseguido, como
mecanismo informal e horizontal, alavancá-la para níveis significativos e
visíveis de eficácia. Por isso mesmo, as designamos de redes ou "alianças
de marginalizadas", como as classifica Judith Squires (2007: 131).
O feminismo de Estado e as políticas de igualdade tiveram em Portugal momentos
mais favoráveis, como os de modernização legislativa no pós-revolução e os de
viragem governativa para partidos de centro-esquerda. Em Portugal, os partidos
têm feito alguma diferença, apesar das teses de indiferença governativa
(Marques, 2001), num sistema marcado pela alternância governativa ou
"majoritarian shift" entre dois partidos ao centro, maioritários
(Jalali, 2007; Lobo, 1996). Por essa razão, os Governos apoiados nas maiorias
parlamentares do PS (I, XIII, XIV, e o XVII) foram considerados nas entrevistas
como os mais ativos nas políticas de igualdade. Tal como em Itália (Del Giorgio
e Lombardo, 2009) ou Espanha (Jiménez, 2009), em Portugal assinalaram-se
maiores progressos vindos de partidos de centro esquerda do que de centro
direita (Monteiro, 2011a). Isto confirma a tese encontrada na literatura de que
partidos de esquerda são estruturas facilitadoras, e que viragens governativas
à esquerda constituem momentos em que as estruturas de oportunidades políticas
se abrem e são mais favoráveis às reivindicações dos movimentos de mulheres e
ao feminismo de Estado (Lovenduski, 2007; Valiente, 2007).
As transformações no feminismo de Estado
A década de 1990 marca o início de uma transformação no feminismo de Estado que
sugere balanços contraditórios. Por um lado, os ecos nacionais da mais intensa
pressão internacional decorrente da Plataforma de Ação de Pequim, em 1995, e a
viragem governativa para um governo de maioria do PS no mesmo ano resultaram no
aumento da visibilidade e da atenção política às questões da igualdade. Por
outro lado, regista-se um crescente sentimento de instrumentalização política e
transformação do perfil da Comissão. Esta vai deixando de ser o dito
"antro de militância" que enfrenta um Estado desinteressado,
começando a funcionalizar-se, aproximando-se gradualmente de uma burocracia de
Estado, mais executora do que proponente de políticas. Lemos este ceticismo no
contexto de uma perceção mais global que denuncia uma institucionalização das
ideias de "género" como norma e política internacional e global
(faz-se porque é legitimado pela Europa, por exemplo), muitas vezes com efeitos
de lip service (Ferreira, 2000a; Squires, 2007).
Em termos da relação com as ONG do CC, surgem os sinais de esgotamento da
relação sinergética anterior, e da Secção de ONG do CC como plataforma de
suporte das organizações de mulheres. Na década de 1990, sobressaem os excessos
e limites da institucionalização política. As associações de mulheres quase
esqueceram que eram sociedade civil, fechando-se na integração da estrutura
estatal. Fatores internos e externos intensificaram-se desde então acentuando o
referido esgotamento, a nível interno:
1. O aumento em número e heterogeneidade das associações que integravam a
Secção de ONG do CC (mais de 50), e sua consequente descaracterização;
2. A intensificação de clivagens e conflitos, resultante das divisões
político-partidárias e das rivalidades pelos financiamentos;
3. A perceção dos limites contestatários daquela plataforma, evidenciados
pelo caso da descriminalização do aborto;
4. Intervenções da tutela ministerial no sentido de uma autonomização
induzida e de maior regulação estatal da Secção;
5. Alterações no tipo de relação, que passa a orientar-se pelo contrato e
pelo partenariado (Rodrigues e Stoer, 1998), bem como pela projetificação
do financiamento, que obriga as organizações a criarem sistemas
temporários para o desenvolvimento de projetos específicos.
Com o acentuar das tendências neoliberais a marcarem as dinâmicas de governação
e de gestão pública a partir de 2002, acentua-se o gradual afastamento entre
movimentos de mulheres e Estado/Comissão. Classificámos esta nova relação como
de autonomia induzida e de partenariado (Monteiro, 2011a).
Usando os argumentos da eficiência e racionalização da gestão da relação com a
sociedade civil, do accountability e do partenariado, tributários da nova
lógica de gestão pública e de governação, as tutelas da Comissão impuseram uma
regulação mais formal, apertada e burocrática da Secção das ONG. A Comissão
elaborou um novo Regulamento da Secção, novos critérios de reconhecimento das
ONG, e determinou a extinção de uma Comissão de Gestão e do secretariado que
estas tinham criado. Em 2005, a Presidente da Comissão retirou-lhes a sala que
tinham nas instalações da Comissão, cortando simbólica e fisicamente com um
passado de estreita convivência.
Grandes alterações tecnocratizantes ocorreram também ao nível dos apoios
concedidos pelo Estado via Comissão, com a projetificação e os financiamentos
de curto prazo, uma tendência também observada em outros contextos (Outshoorn e
Kantola, 2007). A partir de 2002, as verbas do OE para subsídio às ONG foram
drasticamente reduzidas7
, sendo os apoios canalizados pelos Programas financiados pelos fundos
estruturais (principalmente, o Fundo Social Europeu)8
, aos quais as organizações de mulheres deviam concorrer apresentando projetos.
Estas mudanças foram bastante contestadas pelas ONG de mulheres. O Estado
passava a solicitar-lhes:
1. – Acomodação às prioridades e scripts que ele próprio definia (os projetos
deveriam corresponder às prioridades definidas pelo Estado);
2. – Contratualização para a prestação de serviços especializados,
especialmente na área da violência, onde esta contratualização se
desenvolveu de tal maneira que algumas associações de mulheres passaram a
gerir casas-abrigo financiadas pelo Estado;
3. – Territorialização da sua ação, com menor elitismo e maior imersão no
tecido social;
4. – Prestação de contas e enormes cargas administrativas e burocráticas;
5. – Competição com outras organizações da sociedade civil, como as
associações de desenvolvimento local (ADL) e as instituições particulares
de solidariedade social (IPSS), entre outras, ao ponto de as ONG de
mulheres representarem menos de um terço das organizações financiadas ao
abrigo de um programa que lhes era inicialmente dedicado (SATF-ONG);
6. – Legitimação e priorização das políticas estatais.
Esta projetificação dos apoios disponíveis, já observada desde a década de
1990, enquanto dispositivo inerente ao paradigma da nova governação pública,
tem sugerido críticas das organizações de mulheres, que se queixam não apenas
da falta de apoios relativamente a outros setores da sociedade civil (Ferreira
et al., 2007b; Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, 2008), mas
também da instrumentalização dos apoios existentes9
.
Alterações do modelo de funcionamento do CC, em consequência da reestruturação
da Comissão em 2007, acentuaram ainda mais as tendências apontadas. Ao nível da
composição, e numa ótica de interseccionalidade, o Conselho foi aberto à
representação de outros eixos de desigualdade (orientação sexual;
transsexualidade; religião; migração; deficiência), o que suscitou controvérsia
denotando uma espécie de "olimpíadas de opressão", nas quais os
grupos competem pelo título de "os mais discriminados" para obterem
atenção e apoios políticos. A contestação prendeu-se também com o afastamento
de associações desde sempre representadas, como os departamentos de mulheres de
partidos políticos e de sindicatos. Ao nível do modelo de funcionamento as
alterações têm também suscitado uma perceção, da parte de algumas dirigentes
das ONG entrevistadas, de que aquele é nesta nova fase um espaço mais formal,
menos potenciador de discussão e participação, constituindo-se antes como mais
uma estrutura de legitimação política. Quando os desígnios políticos se dizem
de criação de espaços de diálogo e de aposta em políticas de mainstreaming da
"igualdade de género", a perceção algo paradoxal produzida na
sociedade civil é a de que a comunicação é absolutamente unilateral e top-down.
É denunciada a incapacidade de intervir diretamente nos conteúdos políticos,
que passam a ser deliberados com muito maior mediação e controlo por parte das
hierarquias políticas, em consequência da maior governamentalização da ação da
Comissão. Ilustrativo desse processo é o modo de produção dos Planos de
Igualdade (I, II e III) em que a tutela, apesar de solicitar propostas a
algumas técnicas e dirigentes da Comissão e até de ONG, desenha ela mesma as
medidas de acordo com os seus objetivos políticos, tornando as propostas
iniciais irreconhecíveis (Ferreira et al., 2007a e b; Monteiro, 2011a).
Considerações finais
Estes traços, que caracterizam a atual relação dos movimentos de mulheres com o
Estado, expõem uma das principais fragilidades/inconsistências das políticas de
mainstreaming da "igualdade de género" em Portugal. Com efeito,
esta forma de reformismo estatal (Ferreira, 2000a) implica novas conceções de
democracia e de governação, com a adoção de lógicas bottom-up, de práticas de
monitorização e avaliação, de prestação de contas e de transparência, que
requerem, como salientam Outshoorn e Kantola (2007), movimentos fortes de
mulheres, capazes de pedir contas pela falta de integração do princípio da
igualdade nas políticas públicas. A transversalização obriga o Estado central a
repensar a sua centralidade e (in)dependência relativamente a outros atores
(nomeadamente, os da sociedade civil) e a outros níveis de governação, como
sejam as agências internacionais às quais presta contas, os níveis locais com
os quais tem que trabalhar, ou as burocracias e mecanismos que tem de manter na
coordenação do processo.
Concluímos que o feminismo de Estado – esta articulação precoce dos movimentos
de mulheres com a Comissão – foi pouco efetivo na conquista de resultados
políticos significativos em Portugal, apesar da sua longa e densa história. A
nossa conclusão é que ele foi mais importante pela criação de uma rede em seu
torno e pelas biografias comuns que consubstanciou. Desde a emergência deste
fenómeno de feminismo de Estado, que se fundou a matriz de relacionamento entre
atores (Estado, partidos, associações de mulheres e Comissão) para a promoção
de políticas de igualdade entre os sexos em Portugal. Um relacionamento em que
a Comissão será uma intermediária frágil e marginalizada, mas persistente e
militante, entre fracos e dependentes movimentos de mulheres, que ela apoia mas
que pouco a reforçam, e um Estado centralista, juridista, clientelista e
conservador que lhe dá pouco espaço, recursos e relevância política, mas que a
mantém em resposta às pressões do feminismo transnacional.