Resistências à Igualdade de Género na Política
Contextualização
As mulheres têm sido consideradas cidadãs de segunda (Nash, 2004/2005) ao longo
da História, sendo condenadas a viver uma "cidadania parcial"
(Voet, 1998: 11), nomeadamente, ao nível dos direitos políticos em praticamente
todo mundo (Inter-Parliamentary Union, 2011).
Nas últimas décadas, contudo, perante o reconhecimento de que a genderização
dos direitos humanos e da cidadania constitui um grave problema social e uma
séria ameaça à democracia, tem havido tentativas de romper o paradigma
existente, nomeadamente por parte das grandes instituições internacionais
(Procacci e Rossilli, 1997). Esta nova atitude tem conduzido à realização de
diversas ações e à adoção de medidas de ação positiva em contextos como o da
política (Baum e Espírito-Santo, 2009; Krook, 2009), para promover a
participação das mulheres. Porém, estas têm gerado controvérsia, assunto que
abordámos mais detalhadamente, para os casos da França e de Portugal, noutras
publicações (Santos, 2010, 2012).
Tomando como objeto de estudo a controvérsia em torno da Lei da Paridade,
aprovada em Portugal em 2006, a reflexão que iremos aqui realizar é baseada nos
resultados de uma investigação, realizada no âmbito de uma tese de doutoramento
(Santos, 2010), que pretendeu aprofundar o conhecimento sobre os fatores
explicativos da desigualdade de género na política e os obstáculos às medidas
destinadas a reduzi-la que estas controvérsias públicas tornam evidentes. A
escassez de investigações em Portugal sobre estas questões quer com
profissionais da política (salvo alguns casos com mulheres, como Baum e
Espírito-Santo, 2004, 2009 e Bettencourt e Pereira, 1995), quer com não
profissionais (Múrias, 2005; Santos, 2004) levou-nos também a procurar colmatar
esta lacuna.
A investigação que serviu de base a este artigo centrou-se no pensamento comum
sobre a desigualdade de género e nas formas de a combater, tanto de atores
diretamente envolvidos com a política, como de atores que lhe são exteriores,
no plano institucional (Santos, 2010). Desta forma, procurou-se perceber o que
pensam as mulheres em geral, enquanto grupo dominado, as mulheres políticas,
enquanto membros do grupo dominado que conseguiram ascender a uma nova posição
nas relações de género (i.e., tokens, mulheres álibi), e os homens,
profissionais e não profissionais da política, enquanto grupo dominante. Este
trabalho centrou-se na análise de três grandes questões: Qual a origem da
desigualdade de género na política? O que pensam da situação? Como se pode
resolver? A investigação pretendeu, especificamente, identificar: (1) a forma
como diferentes atores sociais percebem a desigualdade de género na política;
(2) os fatores que se constituem como obstáculos à redução desta desigualdade e
às medidas de ação positiva criadas para esse efeito; e (3) mostrar a
genderização da profissão de político/a.
O presente artigo pretende realizar uma reflexão crítica dos principais
resultados apurados no conjunto dos estudos efetuados. Para uma melhor
compreensão da estratégica empírica adotada, antes de mais, apresentamos uma
breve caraterização da população e do material utilizado. Em seguida, são
salientadas as principais dimensões temáticas identificadas e a consistência
entre a oposição às medidas de ação positiva e o "desrespeito" pela
Lei da Paridade. Na conclusão geral identificamos os fatores explicativos da
desigualdade de género e da resistência às formas ativas de a combater no
âmbito da política.
Estratégia empírica
Na primeira parte da tese, os estudos basearam-se em metodologias qualitativas,
combinando as técnicas da entrevista individual, no caso das/os deputadas/ os
(N = 20; 11 deputadas e 9 deputados, com idades entre os 28 e os 62 anos e em
atividade nos partidos políticos portugueses com representação parlamentar), e
da entrevista de grupo, no caso das/os estudantes universitárias/os (N = 51; 26
mulheres e 25 homens, com idades entre 18 e 41 anos e provenientes de diversos
cursos de uma universidade de Lisboa)2. Este conjunto de estudos destinavase a
analisar a argumentação discursiva comum aos dois grupos sociais sobre a
escassa participação das mulheres na política, as causas e consequências deste
fato social, assim como as opiniões sobre as medidas de ação positiva, em
particular a Lei da Paridade.
Na segunda parte, e aproveitando o primeiro ciclo eleitoral, imediatamente a
seguir à aprovação da lei, foi realizado um estudo quantitativo das três
eleições (europeias, legislativas e autárquicas), destinado a medir o in/
cumprimento da Lei da Paridade. Este estudo foi, ainda, complementado com uma
análise da imprensa escrita nos períodos da campanha eleitoral e da
constituição das listas. Foram selecionados 206 textos (ver lista em Santos,
2010: 325)3. Entre estes, 119 são de 13 fontes de informação de nível nacional
(e.g., Jornal Público e Expresso) e 87 são de 35 fontes de informação de nível
regional (e.g., Correio da Beira Serra e Correio do Minho); 54 abordam
sobretudo as eleições europeias, 45 as legislativas e 107 as autárquicas.
O confronto destes dois conjuntos de resultados permitiu mostrar a forte
relação entre os argumentos usados no debate público e partidário e as práticas
dos partidos políticos face à participação das mulheres na política.
Dimensões temáticas identificadas
De entre os resultados obtidos nos estudos realizados no âmbito desta
investigação é possível identificar a repetição de algumas dimensões temáticas
que lhes são transversais.
A razão da desigualdade de género na política
Relativamente a esta dimensão os estudos qualitativos mostraram que à exceção
das deputadas, sobretudo de esquerda, que percebem a situação como um problema
de ordem social e política, o resto da população entrevistada considera que se
trata essencialmente de um problema de ordem social (para as/os não
profissionais da política também de ordem "natural"), revelando, em
geral, uma fraca sensibilidade relativamente à questão da qualidade da
democracia representativa. Uma análise comparativa entre profissionais e não
profissionais da política evidenciou que, enquanto que as e os não
profissionais da política percebem a situação como o reflexo da evolução
histórica "normal" da sociedade e do comportamento das próprias
mulheres, já as/os profissionais da política, sobretudo os deputados, percebem-
na como o reflexo de apenas mais uma das desigualdades existentes na sociedade.
As medidas de ação positiva – os argumentos do des/interesse e do des/mérito
Quanto às medidas de ação positiva, embora tenham surgido discursos
heterogéneos (favoráveis, desfavoráveis e ambivalentes), ao nível intra e
intergrupal, identificaram-se algumas semelhanças e diferenciações entre eles,
relativamente às suas explicações. Porém, o que importa realçar, em termos de
obstáculos, é a saliência transversal da relevância do critério meritocrático,
quando se trata da entrada das mulheres na política; o forte sentimento de
desconfiança quanto à competência política das mulheres; e o sentimento de
ameaça, sobretudo experimentado pelos homens. Com efeito, entre as/os
deputadas/os, verificaram-se diferenciações ao nível do sexo e da orientação
política, tendo este tipo de discursos surgido da parte dos deputados,
sobretudo de direita, que responsabilizaram as mulheres da situação e não tanto
a sociedade. Neste contexto, manifestaram-se contra a sua entrada na política
através das medidas, que, segundo eles, têm em consideração o critério do sexo
e não o do mérito, entendendo que são antes as mulheres que se devem empenhar
mais para lá chegar. Para as/os estudantes, a questão da in/competência
política é transversal aos discursos sobre as medidas de ação positiva,
consideradas discriminatórias e violadoras do princípio do mérito. Embora se
tenha verificado uma desconfiança generalizada, entre homens e mulheres, sobre
os efeitos destas medidas para a diminuição da qualidade da política, quem mais
contribuiu para o discurso da in/competência foram os homens. Na análise
comparativa entre as entrevistas individuais e coletivas, confirmou-se
claramente a relevância que o des/interesse e a in/competência assumem para as/
os não profissionais da política quando avaliam as medidas de ação positiva. No
caso das/os profissionais da política, destacaram-se os discursos desfavoráveis
às medidas, ora questionando a sua viabilidade, ora a sua justiça (e.g., por
considerarem o critério do sexo e não outros critérios, como o mérito, e por
retirarem liberdade aos partidos), ora defendendo um maior empenho na política
por parte das mulheres. Na análise da imprensa escrita também se identificaram
discursos heterogéneos por parte das/os profissionais da política relativamente
à Lei da Paridade. Entre as/os desfavoráveis, salientam-se os discursos do PSD
e da CDU. Concretamente, segundo os discursos do PSD, as pessoas devem entrar
na política por interesse e por mérito próprios e não por obrigação ou
imposição legal. Contudo, também é sugerido que as mulheres têm uma
"sensibilidade diferente" da dos homens e que o "PSD acredita
num papel diferente para a mulher". Assim, para além de ter surgido o
argumento (essencialista) do diferente papel que as mulheres têm na sociedade,
voltaram a destacar-se os argumentos do interesse e do mérito. Tal como já se
verificara nas entrevistas com os deputados, também aqui emergiu o sentimento
de ameaça do lado dos partidos de direita, sendo apontado que a "ideia
das quotas vai ser o fim dos homens". Por outro lado, as/os da CDU,
revelaram-se desfavoráveis à Lei da Paridade, também porque acreditam que esta
não vai resolver a situação das mulheres na sociedade, servindo apenas para
"maquilhar a situação" de desigualdade social e económica a que
estas estão sujeitas, o que as/os leva a sugerir que se adote antes outro tipo
de medidas que defenda os direitos das mulheres e seja transversal às diversas
dimensões da vida.
A competência política
Relativamente à questão da competência política, é bastante visível nos
resultados dos dois primeiros estudos que, à exceção das deputadas, que também
salientaram traços de personalidade altruístas, quando idealizaram um/a bom/boa
político/a (e.g., "deve promover o bem comum", ser "fiel às
necessidades das populações"), o resto da população salientou sobretudo
traços de personalidade associados a significados do masculino, como
"inteligência", "pragmatismo" e
"convicção".
No seu conjunto, os resultados apresentados nesta secção evidenciam uma
genderização da profissão de político/a (exceto por parte das deputadas), e
também tornam clara a relevância da ideologia meritocrática (Taylor e McKirnan,
1984), sobretudo quando está em causa a entrada das mulheres na política. O
facto de também ter surgido um forte sentimento de ameaça por parte dos homens
e uma desconfiança quanto à competência das mulheres para a política, em
especial por parte das/os deputadas/os de direita, sugere que a avaliação da
competência política é genderizada e assentam em expetativas de menor
competência das mulheres, a quem se exige prova dessa competência como nunca se
exigiu aos homens (Gaspard, Servan-Schreiber e Gall, 1992).
Consistência entre a oposição às medidas e o "desrespeito" pela Lei
da Paridade
Contrastando os discursos verificados ao longo desta investigação (Santos,
2010), sobre a Lei da Paridade, com o resultado final da sua implementação, no
ciclo eleitoral de 2009, encontrámos alguma consistência entre os argumentos
desfavoráveis às medidas e o "desrespeito" por esta lei.
De facto, os discursos desfavoráveis surgem, sobretudo, da parte do/as
deputado/as. Contudo, é possível verificar que há diferentes justificações para
essa oposição por parte dos deputados de direita e as/os de esquerda, como se
verifica no caso do PSD e da CDU, ou seja, embora haja políticas/os de esquerda
e de direita contra este tipo de medidas, as suas opiniões ancoram em razões
diferentes. O critério do sexo surge como o fator central para o/as deputado/as
discordarem destas medidas, tendo-o considerado cerceador dos partidos
políticos e de outros critérios fundamentais, como a competência. Já os
deputados de direita também argumentaram que estas medidas já não são
necessárias e responsabilizaram sobretudo as mulheres pela situação,
considerando que estas se devem empenhar mais e mostrar que têm competências.
Além disso, percebem-se algumas diferenciações entre as/os de direitas e as/os
de esquerda ao nível das sugestões para melhorar a situação de desigualdade. As
sugestões das/os profissionais da política vão no sentido de se procurar
resolver a situação, sobretudo ao nível do funcionamento dos partidos políticos
e da sociedade e não tanto por via de medidas de ação positiva, como a
paridade. Por último, as/os deputadas/os da CDU preferem antes políticas
defensoras dos direitos das mulheres que sejam transversais às diversas
dimensões da vida e não centradas na política.
O confronto destes discursos com a aplicação da lei quer na fase da
constituição das listas para as três eleições, quer nos resultados finais das
mesmas, tornou salientes algumas consistências entre os argumentos
desfavoráveis à paridade e o "desrespeito" por esta lei. Com
efeito, verificou-se, desde logo, que relativamente às eleições europeias,
todos os partidos políticos cumpriram a lei na constituição das listas
eleitorais. O resultado só não foi mais bem sucedido devido à estratégia,
utilizada por todos os partidos, de colocarem "um nome feminino" em
terceiro lugar das listas (i.e., no último lugar obrigatório, segundo a lei).
Por essa razão, foram eleitas menos mulheres. Os casos dos dois partidos de
direita são ilustrativos: o PSD, só elegeu três eurodeputadas, no total de oito
membros, e o CDS/PP não elegeu nenhuma mulher, porque só elegeu dois homens.
Nesta altura das eleições europeias, salienta-se a polémica sobre o eventual
incumprimento da Lei da Paridade por parte do PSD Madeira na constituição da
lista, acusado de tentar contornar a lei, ao integrar duas candidatas na lista
(em terceira e sexta posições), seguindo o preceito legislativo, mas com o
intuito subjacente de, após as eleições, elas renunciarem aos mandatos para
assegurar a eleição de um candidato.
Nas eleições legislativas todos os partidos políticos voltaram a cumprir a lei
na constituição das listas eleitorais. Contudo, isso já não se refletiu de
forma tão positiva na percentagem final de deputadas (27,4%), ficando aquém da
requerida pela lei (33%). Foram o PSD, a CDU e o CDS/PP os partidos que ficaram
mais distantes dessa percentagem. Apesar deste resultado, a Lei da Paridade
conseguiu trazer mudanças, em particular aos dois partidos políticos de
direita, no aumento da representação das mulheres, relativamente a eleições
anteriores.
Nas eleições autárquicas houve violação da lei na constituição das listas
eleitorais por todos os partidos políticos. Pelos dados disponíveis, ao nível
das presidentes de câmara, a lei não foi bem sucedida, tendo ocupado este cargo
apenas mais quatro mulheres do que em 2005, entre as raras cabeças de lista
femininas. O caso do PSD é flagrante. De facto, neste partido, em que o número
de mulheres presidentes de câmara tinha vindo a aumentar desde 1993, nas
últimas eleições não só não estabilizou, como diminuiu, apesar da coligação com
o CSD/PP, passando de nove para oito mulheres presidentes de câmara. Estes
resultados, juntamente com as diversas polémicas sobre a violação da lei, ou
com as estratégias globalmente adotadas para procurarem cumprir a lei ao
mínimo, ou até para a procurarem contornar, revelam bem as fortes resistências
que existem à entrada das mulheres na política e a este tipo de medidas, em
especial por parte do PSD e do CDS/PP, mas também da CDU, embora, como
verificámos, por razões diferentes.
Apesar de tudo, já se verificaram algumas consequências positivas da
implementação da Lei da Paridade. Desde logo, a informação que surgiu na
imprensa escrita, sobre a sua aplicação na fase da constituição das listas e
das polémicas daí decorrentes, parece ter servido para despertar as
consciências das pessoas, em geral, para o problema da desigualdade de género,
podendo ainda ter servido para pressionar os partidos para constituírem listas
mais "paritárias". Com efeito, não obstante as enormes polémicas
verificadas, constatámos que a aplicação desta lei foi bem sucedida nas
eleições europeias e, embora menos, também nas legislativas. Apesar das
resistências, houve melhorias visíveis nos partidos de direita, sobretudo no
PSD, que mais do que triplicou o número de deputadas naquelas eleições.
Conclusão geral
Os resultados desta investigação (Santos, 2010) revelam alguns fatores
explicativos da desigualdade de género na política e da resistência ao seu
combate, que merecem enquadramento na teoria já existente.
Para as mulheres, a esfera da política tem funcionado como um contexto restrito
e discriminatório, designado por Kanter (1977) por tokenism. Trata-se de um
contexto ambíguo, porque não é totalmente fechado, nem totalmente aberto. Nesse
sentido, a exclusão das mulheres (e de outros grupos sociais) pode ser vista
sob diferentes interpretações e consequências, dada a incerteza gerada nas
pessoas que olham esse contexto, quer sejam do grupo dominado, ou tokens, quer
sejam do grupo dominante (Wright, 2001). Um dos efeitos da ambiguidade deste
tipo de contextos é a tolerância à discriminação e à injustiça (Major e
Crocker, 1993).
Na investigação aqui em análise, de facto, verificou-se que, em geral, há uma
ausência de consciência da discriminação e, consequentemente, de sentimentos de
injustiça que alimenta uma certa tolerância social à ausência das mulheres na
política. Desde logo, identifica-se o efeito de negação da discriminação
pessoal (Crosby, 1982), ainda que menos acentuado entre as mulheres/tokens,
sobretudo de esquerda, que se manifestam mais conscientes relativamente à
existência do problema da desigualdade de género. Apesar disso, coexistem
discursos algo contraditórios também entre as mulheres, no sentido em que se,
por um lado, demonstraram ter a noção de que são exceções, numa atividade que
consideram visível, exigente e stressante, parecem querer afirmar a sua
singularidade, por outro, ao tenderem a negar que elas próprias já foram
discriminadas, embora reconheçam que as mulheres em geral o são. Este tipo de
discursos, geralmente adotado pelas mulheres tokens (Kanter, 1977), vai ao
encontro dos discursos já identificados por Nogueira (1996) em mulheres
profissionais qualificadas, e faz parte das estratégias individuais de
sobrevivência em contextos hostis à feminilidade (Rodrigues, 2001). Resultados
deste tipo podem estar relacionados com o que alguns autores e autoras atribuem
ao síndroma da abelha rainha (Kanter, 1977) ou à dupla pressão para a
normatividade, a que o modelo masculino, universal, sujeita as mulheres nestes
contextos (Amâncio, 2003). De facto, elas sentem-se obrigadas a recorrer a uma
permanente negociação identitária (Amâncio, 1994, 2003; Rodrigues, 2001), entre
o modelo de referência, masculino e universal, e o modelo feminino. Este tipo
de pressões pode ter consequências negativas, nomeadamente aumentando a
probabilidade de elas fracassarem ou desistirem (Ryan, Haslam, Hersby, Kulich e
Wilson-Kovacs, 2009). Num contexto como o político, onde já existe grande
imprevisibilidade e visibilidade pública, esta é superior no caso das mulheres,
dada a sua condição de tokens. Assim, atualmente, as expetativas sobre as
mulheres políticas fazem com que elas carreguem mais a pressão de deverem
servir de bons exemplos/modelos. Além disso, como também são percebidas como
uma ameaça, a pressão exercida sobre elas e os riscos que correm podem ser
ainda mais fortes.
Segundo Lígia Amâncio (e.g., 1994, 2003), a assimetria simbólica que atravessa
a ideologia de género, e que está subjacente à dupla pressão exercida sobre as
mulheres nestes contextos, pode ser uma das explicações para este tipo de
discursos contraditórios, assim como para a escassa mudança que se tem
verificado nas relações entre os sexos, neste caso, na política. Embora, a
curto prazo, este tipo de estratégias de autoproteção tenha uma função
paliativa (Jost e Hunyady, 2002), ao procurar prevenir eventuais custos
psicológicos (Ruggiero e Taylor, 1997), ela também pode impedir a deteção do
preconceito ou da discriminação, sobretudo se este/a for subtil (Barreto e
Ellemers, 2005). Consequentemente, pode levar a que, neste caso, as mulheres
políticas não contestem a ordem social, ou se envolvam apenas em ações
individuais para procurarem melhorar a sua situação pessoal. Assim, estão a
contribuir para perpetuar a ideologia dominante (Amâncio, 2003). Apesar de
tudo, as deputadas, sobretudo de esquerda, revelaram-se mais conscientes da
situação e mais favoráveis às medidas de ação positiva, mas estão isoladas seja
face às outras mulheres, seja face ao campo da esquerda. Por outro lado, no
caso dos deputados, sobretudo de direita (Santos e Amâncio, 2011) e no caso
das/os jovens universitárias/os, sobretudo os homens (Santos e Amâncio, 2010b),
ambos menos favoráveis a este tipo de medidas, parece mesmo existir um maior
sentimento de injustiça face a medidas, como a paridade, do que à situação de
sub-representação das mulheres na política, sendo que um dos discursos mais
expressivos se prende com a responsabilização das mulheres pela situação.
Assim, a consciência da discriminação apenas existe claramente entre as
deputadas de esquerda, no sentido em que os homens não se diferenciam muito em
função da posição ideológica e as mulheres de direita aproximam-se dos homens,
numa visão que parece ignorar a assimetria nas relações de género (i.e., é uma
visão "neutra", centrada no indivíduo – abstrato). Daí o peso que
atribuem ao critério do mérito. Esta genderização dos direitos fundamentais e
da cidadania surge como a forma moderna da cidadania de segunda, que, como
vimos, foi historicamente reservada às mulheres (Nash, 2004/2005). De facto, o
levantamento dos impedimentos legais do acesso à cidadania foi substituído por
uma visão de cidadania condicionada (Oliveira e Amâncio, 2002) que se revela
particularmente eficaz. Esta visão só é quebrada pela direita e os homens para
convocar o "feminino" para a política, na lógica das novas formas
de sexismo (e.g., Swim, Aikin, Hall e Hunter, 1995; Tougas, Brown, Beaton e
Joly, 1995). Portanto, mais conscientes da discriminação, as deputadas,
sobretudo de esquerda, não só concordaram mais com as medidas para se procurar
eliminar o problema, como também se revelaram defensoras de causas e de medidas
promotoras da igualdade de género (como verificaram Bettencourt e Pereira,
1995), numa democracia que consideram inacabada. Já os deputados, sobretudo de
direita, e as/os jovens universitárias/os, praticamente não questionaram a
qualidade da democracia representativa. Assim, pelo menos as deputadas de
esquerda parecem concordar com a ideia de que esta lei pode ser uma correção
legítima para o sistema promover a igualdade e a justiça enquanto o sistema
democrático funcionar mal (Meier, 2008). Contudo, enquanto essa consciência não
se estender a todas as mulheres e homens e à direita, o obstáculo é apenas
amenizado.
Corroborando a literatura (e.g., Taylor e McKirnan, 1984), a ideologia
meritocrática revelou-se fundamental para a população analisada (Santos, 2010),
exceto no caso das deputadas, sobretudo de esquerda, que se manifestaram mais
conscientes de que o mérito não é neutro ao nível do sexo, numa democracia que
permanece androcêntrica. De facto, embora se tenham identificado algumas
diferenciações entre os grupos ao longo desta investigação, verificou-se uma
constante saliência do argumento meritocrático que traz consigo a
responsabilização das mulheres pela situação, contribuindo, assim, para a
manutenção da ideologia dominante. Este tipo de discursos, que responsabilizam
as mulheres pela situação e assentam numa análise negacionista da
discriminação, a que as mulheres estão efetivamente sujeitas, enquanto fenómeno
social, muito na linha do sexismo moderno (Swim et al., 1995; Tougas et al.,
1995), da ilusão da meritocracia (Ellemers e Barreto, 2009) e das teorias da
justiça (e.g., Lerner, 1980), emerge como um obstáculo à entrada das mulheres
na política, nomeadamente, porque serve a ideia de que as medidas de ação
positiva já não são necessárias. Aliás, os deputados de direita consideram que
já existem condições na sociedade para que as mulheres entrem na política.
Vários autores e autoras (e.g., Barreto e Ellemers, 2005; Tougas et al., 1995)
têm alertado para este tipo de pensamentos, como formas de resistência à
mudança, porque, embora, por vezes, estas crenças sejam subtis, elas legitimam
a manutenção e a reprodução da desigualdade, contribuindo para a justificação e
manutenção do sistema (Jost e Banaji, 1994).
Neste contexto, importa salientar que, exceto no caso das deputadas, se
verificou uma genderização da profissão de político/a, tendo-se destacado, na
definição do perfil, atributos ligados a significados masculinos, o que
significa que, em Portugal, a política continua a ser vista como um domínio dos
homens. O facto de as deputadas também terem salientado atributos mais ligados
a significados associados ao feminino significa que as mulheres procuram
introduzir mudanças ao nível da cultura política (Lovenduski e Norris, 2003).
Porém, também verificámos que, pelo menos aos olhos das deputadas, sobretudo de
esquerda, a organização da política é vista criticamente como demasiado
masculina (Santos e Amâncio, 2011), nomeadamente no modo como os partidos estão
estruturados e funcionam. Tal facto contribui para a dificuldade de integração
das mulheres/tokens, mesmo quando o seu número aumenta, constituindo já uma
"massa crítica", como aconteceu com a implementação da Lei da
Paridade, ou seja, contribui para que elas sejam obrigadas a negociações entre
atividades, sendo-lhes pedido mais do que aos homens. Todavia, as deputadas de
direita não parecem estar conscientes desta dupla discriminação.
Note-se que entre as competências fundamentais na "profissão" de
político/ a, foram sobretudo apontados traços de personalidade, revelando a
enorme dificuldade de se avaliar o "mérito" das pessoas de uma
forma "objetiva" e "equitativa" (Crosby e Clayton,
2001). Na realidade, a meritocracia, geralmente considerada fundamental, só é
possível em sistemas imparciais (Clayton e Tangri, 1989), como não é o caso,
visto que o atual sistema de avaliação do mérito não é equitativo (Son Hing,
Bobocel e Zanna, 2002), a sua avaliação pode ser influenciada por diversos
fatores, nomeadamente de natureza ideológica. Tanto mais que a política é um
mundo tradicionalmente masculino e um contexto subjetivo (Agacinski, 1998/
1999), onde continua a existir um "jardim secreto da nomeação"
(Dahlerup e Freidenvall, 2008: 17) e o convite é muito utilizado (Santos e
Amâncio, 2011). A constante saliência da relevância do mérito, quando se trata
da entrada das mulheres na política, é ilustrativa da existência de uma
genderização do mérito na política. Esta constitui uma estratégia cognitiva
para acomodar a mudança, que a entrada das mulheres na política representa, à
permanência da ideologia de género (Bourdieu, 1998/1999), de acordo com a qual
a política é o meio natural dos homens. Seguindo a lógica da assimetria
simbólica, no plano dos significados associados aos grupos de sexo (Amâncio,
1994), é evidente que existem expetativas de menor competência por parte das
mulheres para exercerem a atividade política eficazmente. Assim, tal como já se
verificou noutros contextos (e.g., o exercício da autoridade, Amâncio, 1996),
também a competência política parece ser percebida como um atributo
"naturalmente " masculino. Esta assimetria, em que as mulheres
continuam a ser percebidas como "o outro" na política, constitui um
dos principais obstáculos, de natureza ideológica, à entrada e permanência das
mulheres na política. Seguindo a linha de pensamento daquela autora, este
obstáculo a que as mulheres estão sujeitas, e para o qual muitas vezes
contribuem, deverá permanecer enquanto também permanecer a assimetria nos
significados associados aos grupos de sexo. Como tal, elas terão enormes
dificuldades tanto em ver reconhecida, como a reconhecer, a sua competência
para a política.
Em síntese, de entre os vários fatores explicativos da desigualdade de género e
da resistência ao seu combate apontados, consideramos fundamentais os fatores
de natureza ideológica e contextual, prendendo-se com a organização político-
partidária e com a persistência de uma visão social que considera que a esfera
privada é um mundo feminino e que a política é um mundo masculino, tanto em
termos das competências que exige, como da sua organização interna. A
persistência da ideologia de género revela-se, assim, um permanente obstáculo
aos efeitos positivos, que seriam de esperar face ao progresso do estatuto e
das qualificações das mulheres, nas últimas décadas em Portugal, bem como um
poderoso instrumento de controlo social da mudança nas relações de género que
aquelas transformações sociais permitem potenciar.