Políticas Públicas para a Igualdade: Uma reflexão a partir do Guia para o
combate à discriminação nos Municípios
Aménager la durabilité et la diversité des territoires. Une réflexion partant
du Guide pour l’égalité de genre dans les municipalités.
Résumé
En tant que plans stratégiques pour se charger aux inégalités et outils pour
résoudre des problèmes communs dans les territoires municipaux, les plans
municipaux pour l’égalité de genre, PMIG, soulignent la responsabilité de la
planification stratégique municipal de la pensée "relationnelle" de
l’espace, comme un produit d’interventions et de (re)construction des identités
– l’espace actif – et d’anticiper et de réagir aux besoins et aux choix pendant
toute la vie, dans l’amélioration des relations sociales, la qualité de la vie
et la compétitivité des territoires – l’espace ergonomique. Le choix pour un
territoire qui abrite toutes les personnes de la meilleure façon que le monde
contemporain permet implique une réflexion sur le territoire et ses qualités:
la propriété, l’accès et l’utilisation.
Mots-Clé: Plans Municipaux pour L’égalité de Genre, planification stratégique,
territoire actif, territoire ergonomique, acupuncture territorial.
Introdução
Por toda a Europa, nos finais do século XX, assistiu-se a uma mudança nos
processos e nos conteúdos do planeamento, em que os lugares e territórios
ganharam proeminência enquanto foco da atenção política (Davoudi e Strange,
2009). Davoudi e Strange (2009) e Rydin (2011) afirmam que, à escala local,
esta mudança no "fazer planeamento" tem vindo a explorar formas
mais complexas de ver os lugares e de construção de redes de parceiros e a
caracterizar-se por atuações cada vez menos "normalizadas" sobre o
território.
Estas mudanças recentes observam-se nas estratégias de ordenamento do
território e da gestão urbanística que procuram criar consensos, desenvolvem
noções partilhadas de comunidade, a par da integração da experiência de quem
planeia com o conhecimento experienciado da sociedade civil. As preocupações
procuram enquadrar a incerteza do futuro, o que explica grandemente o
surgimento dos temas ambientais, no centro dos quais, se coloca a agenda das
alterações climáticas (Agendas 21 Locais, Planos Estratégicos Locais para as
Alterações Climáticas, Pactos de Autarcas para a Sustentabilidade Energética,
Redes de Cidades Saudáveis, etc.) e espelham os desafios do presente, como a
busca da qualidade de vida das populações. Aquilo que se entende por qualidade
de vida não é igual para todos, seja pela idade, sexo, etnia, deficiência,
orientação sexual, rendimento, ou local de residência, cada grupo tem
necessidades e aspirações específicas e diferentes possibilidades de acesso a
elas ao longo do seu ciclo de vida. Esta perspetiva, cada vez mais presente na
gestão municipal, mostra que o planeamento territorial evoluiu, assumindo um
olhar dirigido às necessidades e aspirações diferenciais para proporcionar uma
distribuição adequada de bens e recursos e conceber instrumentos adequados que
levem à prática essas políticas.
Políticas públicas municipais
O território municipal, intensamente urbanizado, fragmentado e difuso, é hoje
um produto de um crescimento urbano acelerado, marcado por vastas manchas
construídas e de elevado custo de manutenção. François Ascher (2010) menciona a
emergência da globalização e da "sociedade hipertexto",
profundamente marcada pelo aparecimento do telemóvel, internet e alta
velocidade, inovações tecnológicas criadoras de vastas e descontínuas áreas
urbanas e de injustiças espaciais. Perante estas transformações recentes, que
afetam a qualidade de vida e o "sentido de lugar", o planeamento
municipal é chamado para definir novas leituras sobre a evolução do território.
Num tempo de incerteza e de dificuldade (resultantes do cenário da crise
financeira e política), rever como nos relacionamos com o território e combater
a injustiça espacial constituem simultaneamente um desafio e uma oportunidade
para as políticas públicas municipais (Rio Fernandes, 2011). A atribuição de
uma importância acrescida à dimensão espacial das políticas aumenta a liberdade
de escolha e diminui potencialmente a desigualdade entre as pessoas.
Para um território coeso, equitativo, diverso e inclusivo
A Constituição da República Portuguesa expressa o princípio da igualdade e a
necessidade da luta contra as diferentes formas de discriminação nos Artigos
13.º e 26.º. A partir de então, a igualdade tornou-se formalmente um desígnio
nacional. Mas será desde meados dos anos 2000 que se inicia uma alteração
profunda no sentido da formulação de políticas e de uma convergência
legislativa impulsionadora da igualdade, fruto de compromissos assumidos nas
várias instâncias internacionais e do processo integrador europeu, bem como de
decisões políticas relativas ao modelo social dos governos nacionais.
Por um lado, um conjunto de documentos formais lança um olhar transversal sobre
as políticas de igualdade entre homens e mulheres ao nível nacional, dos quais
se distinguem, por um lado, os Planos Nacionais para a Igualdade (PNI), que já
vão em quatro edições. Outros planos, de certo modo complementares, estão em
vigor, como o IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica 2011-2013 (RCM n.º
100/2010, de 17 de dezembro), e o II Plano Nacional contra o Tráfico de Seres
Humanos (RCM n.º 94/2010, de 29 de novembro).
Por outro lado, refiram-se figuras legais como a Lei Orgânica da Comissão para
a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) (Decreto-Lei n.º 164/2007, de 3 de
maio), a Lei n.º 14/2008, de 14 de março, que proíbe e sanciona a discriminação
em função do sexo no acesso a bens e serviços, a RCM n.º 161/2008, de 22 de
outubro, que adota medidas de promoção da transversalidade da perspetiva de
género na Administração Central e cria a figura das Conselheiras e dos
Conselheiros para a Igualdade. Mais recentemente, o Quadro de Referência do
Estatuto das Conselheiras e dos Conselheiros Locais para a Igualdade (RCM n.º
39/2010, de 25 de maio) estabelece, no seu artigo 2.º, que as conselheiras e os
conselheiros locais para a igualdade têm por atribuição acompanhar e dinamizar
a implementação das políticas locais para a cidadania e a igualdade de género.
Este foi um importante passo dado para a promoção da igualdade a nível da
administração pública local, referindo a RCM 39/2010 que a missão das
conselheiras e os conselheiros locais será mais eficaz com o apoio dos
parceiros sociais.
Hoje assiste-se a uma multiplicação de entidades que, à escala local, assumem
um papel fundamental na ação e implementação de projetos inclusivos e
promotores de qualidade de vida. Ora, assumindo-se os governos locais como
"organizadores" coletivos, o desafio de uma melhor e mais clara
integração de políticas com as entidades da sociedade civil, será certamente
dirimido ao nível local – buscando a colaboração com outros níveis da
administração, bem como com outras entidades que operam ao nível local.
O que é sobretudo importante é que estas estruturas locais estão mais fortes e
essa capacidade advém-lhes, quer do enquadramento formal da Administração
Central que descentraliza progressivamente medidas de política, quer das
dinâmicas das associações sem fins lucrativos e organizações não-
governamentais, isto é, dos parceiros sociais. Estes encontram-se em grande
parte relacionados através da Rede Social, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º
115/2006, de 14 de junho, que desempenha um papel fundamental na construção de
políticas públicas locais de igualdade, inclusão e de luta contra a
discriminação.
Formalizados no III Plano Nacional para a Igualdade – Cidadania e Género (III
PNI), e financiados pelo Quadro de Referência Estratégico Nacional, os Planos
Municipais para a Igualdade de Género (PMIG) consistem num instrumento de
planeamento estratégico de apoio à ação das conselheiras e dos conselheiros
locais e apresentam-se num quadro de governança ativa para o combate à
discriminação, promoção da igualdade e inclusão dos grupos mais desfavorecidos.
O III PNI reforça o papel das Autarquias Locais propondo o desenvolvimento de
estratégias para o envolvimento da sociedade civil, nomeadamente, de
associações locais e apoiando mecanismos de proximidade entre o poder local e
os cidadãos e as cidadãs, divulgando as boas práticas existentes neste domínio.
As/Os Conselheira/os são as/os dinamizadoras/es do processo de elaboração e
desenvolvimento de PMIG, planos estratégicos da nova geração, de gestão
relacional, reconhecendo a Rede Social como parceira, acompanhando e
influenciando a transformação do planeamento e das políticas públicas
territoriais.
Em finais de 2011 (dados não publicados fornecidos pela CIG) contavam-se cerca
de 70 municípios com Conselheiras/os Locais para a Igualdade, 6 diagnósticos
municipais realizados e 5 planos municipais para a igualdade de género,
aprovados na medida 7.2 do POPH, 55 planos municipais para a igualdade e,
ainda, 79 protocolos de colaboração com a CIG. Anteriormente a CIG ainda
promoveu estudos2 para apoiar a administração pública local neste desígnio,
sensibilizando para a importância da igualdade de género e a eliminação de
estereótipos no desenvolvimento local, e apontando linhas orientadoras para a
elaboração de diagnósticos e planos municipais para igualdade de género, a
empreender pelas Autarquias. No entanto, nenhum dos estudos efetuados sobre o
tema se centra na análise espacial e no planeamento do território municipal,
colocando sobretudo o enfoque na elaboração de diagnósticos sobre o quadro
social das autarquias3.
Aqueles que estudam e trabalham sobre o território sabem que este apenas pode
providenciar um ambiente seguro, saudável, inclusivo, comunicativo e
sustentável se for sensível às necessidades e aspirações de toda a população
(Greed et al., 2003; Oxfam 2007a e 2007b). O espaço condiciona fortemente o que
as pessoas podem fazer, como interagem e vivem nas suas comunidades e, por sua
vez, é também moldado pela sociedade. O planeamento é por isso também pensar a
criação e gestão de melhores lugares e implica fornecer respostas inclusivas
que exprimam as carências e ambições da população e eliminem as desigualdades
derivadas de usos, experiências e perceções distintas sobre o espaço e os
lugares (Queirós, Marques da Costa et al., 2010). Importa, portanto, que os
Planos Municipais para a Igualdade de Género (PMIG) constituam um instrumento
para mudar as geografias injustas nas quais vivemos.
Para um território ativo
O território define como as pessoas e as instituições interagem nos seus
quotidianos, por isso precisa ser interpretado; não é apenas "local de
receção", como uma variável de descrição das diferenças na repartição
socioeconómica. É interveniente nos processos que se pretende analisar,
conferindo-lhes uma natureza incerta e contingente, e definindo a morfologia
das relações de poder (Reis, 2005).
Planear o território é criar melhores espaços e lugares e eliminar – tanto
quanto possível – as desigualdades derivadas de experiências, perceções e usos
diferenciados. Avaliando as diferenças e semelhanças entre mulheres e homens
nos seus vários papéis e ambições, no trabalho e na família, na esfera pública
e privada, o desenvolvimento territorial deverá assegurar um ambiente saudável,
seguro e inclusivo em todos os domínios da vida local e fases da vida familiar
e profissional.
No desempenho das suas competências e atribuições, as Autarquias Locais
concebem políticas e ações que afetam onde e como se vive, se fazem compras, se
procura um serviço, se trabalha e passeia. Estas decisões geram desigualdades
que afetam mulheres e homens de diversas origens, idade, deficiência ou com
diferente orientação sexual. É no reconhecimento das diferenças e das
semelhanças entre os sexos nos seus papéis e ambições, que o território
potencia a qualidade de vida, melhorando a vida quotidiana, criando lugares que
favoreçam a proximidade (Madariaga, 2004). Esta abordagem global e transversal,
acarreta um esforço de mobilização de todas as políticas municipais de melhoria
da vida quotidiana.
As tendências do planeamento derivadas dos princípios modernistas, a
massificação e utilização continuada do automóvel e a formação de subúrbios,
traduzem um zonamento territorial, separando as residências dos espaços de
trabalho e de lazer, criando fragmentações espaciais, complicando a vida das
pessoas e das cadeias de deslocações associadas à vida profissional (casa-
trabalho) e à vida familiar (casa-trabalho-escola), sendo as mulheres aquelas
que têm um padrão mais diversificado de deslocações diárias relacionadas com o
trabalho e apoio à família.
O paradigma socioeconómico dominante levou as mulheres para o mundo laboral e
tem funcionado sem as adequadas estruturas públicas de apoio à família, o que
também tem tido custos elevados, como a baixa taxa de natalidade e o acelerar
do envelhecimento. Um bom exemplo disto deriva da análise do conceito de
infraestrutura (Queirós, Marques da Costa et al., 2010). As infraestruturas
estão vinculadas à engenharia e ao design (redes de transporte, saneamento,
água, telecomunicações, etc.), implicando a parte técnica e física do urbanismo
para atender à satisfação das necessidades públicas, ao desenvolvimento social
e competitividade económica. Precisamente por isto, as infraestruturas,
especialmente as de transporte rodoviário e de apoio à produção, aparecem em
lugares privilegiados entre as prioridades políticas e a partir das quais, se
definem os planos territoriais e urbanísticos. Se o conceito de
"infraestruturas para a vida quotidiana", proposto por Inés Sánchez
Madariaga (2004) e adiante explicado, for adotado como prioridade política,
significa que o trabalho reprodutivo será valorizado nos mesmos moldes do
trabalho produtivo e que os espaços urbanos contribuirão para sustentar essa
valorização.
É todavia relevante lembrar que as prioridades políticas influenciam os
processos de planeamento, dissipando-se frequentemente a visão da totalidade da
cidade ou do território, sobretudo quando o setor público perde o papel direto
na condução da mudança urbana, porque esta também ocorre através da interação
com o setor privado. Como consequência dos interesses dos diversos atores, além
do favorecimento dos interesses privados em detrimento de outros, produz-se um
território fragmentado (Rydin, 2011). Na história das cidades, há escolhas e
processos que devem ser conhecidos e questionados pois, por exemplo, a
segregação socioespacial, a carência de habitação e de equipamentos sociais, ou
as insuficiências das ofertas de transporte urbano são também produtos de usos
que competem no território (http://territorioativo.blogspot.com/, consultado em
dezembro 2011).
Enquanto planos estratégicos para o combate às desigualdades e instrumentos
para a resolução conjunta dos problemas, os PMIG acentuam a responsabilidade do
planeamento estratégico municipal para pensar relacionalmente o território,
enquanto produto de intervenções e de (re)construção de identidades – segundo
Doreen Massey (1991), considerando o espaço ativo –, na melhoria das relações
sociais, na qualidade de vida e na competitividade dos territórios (Queirós,
Marques da Costa et al., 2010). Segundo Carmona et al. (2010: 137), a escolha
consciente por um território, que abrigue todas as pessoas do melhor modo que o
mundo contemporâneo permite, implica uma profunda reflexão sobre o território
municipal em termos das suas qualidades: pertença (ou seja, se o espaço é de
propriedade pública ou privada e em que sentido constitui uma base neutra);
acesso (ou seja, se a população pode aceder a ele, o que coloca a questão sobre
quando um local se torna privado); e utilização (ou seja, se é usado e
partilhado por diferentes indivíduos e grupos).
Para um território ergonómico
O sentido de pertença, o acesso e a utilização, referidos na secção anterior,
merecem uma reflexão sobretudo no que respeita aos espaços do domínio público.
Estes incluem os locais de residência, de lazer e de trabalho, supostamente
articulados por redes de relações sociais, favorecendo, ou não, a criação de um
"sentido de lugar" (Massey, 1991). Ora os lugares são influenciados
por muitas coisas, entre elas, o sexo e a idade: o grau com que cada um se pode
movimentar entre países, passear nas ruas à noite, ou aventurar-se em cidades
estrangeiras, não é apenas resultado da capacidade socioeconómica.
O incremento da insegurança relaciona-se com algo profundo que tem que ver com
a alteração do padrão de relações de vizinhança sobretudo nas cidades e nas
periferias urbanas: a separação entre os usos e a necessidade de deslocações a
lugares distantes aumenta a necessidade de usar o transporte individual, tendo
reduzido a utilização pedonal do espaço público. Segundo Carmona et al. 2010, o
espaço público relaciona-se com as partes do ambiente construído ou natural
onde a população tem livre acesso. Neste quadro, as ruas perdem a sua
diversidade de ofertas e de usos, reduzindo também a vigilância informal e as
relações de sociabilidade e aumentando o sentimento de insegurança (Madariaga,
2004). A segurança individual no espaço público afeta sobretudo as mulheres, as
crianças e as pessoas idosas.
No que respeita ao desenho e funcionalidades dos espaços públicos lúdicos (os
espaços de lazer, de jogos ao ar livre, etc.) há que atender às diferentes
necessidades das raparigas e rapazes e em função das respetivas idades
(Queirós, Marques da Costa et al., 2010). As crianças são potencialmente as
grandes utilizadoras do espaço público (para socializar, brincar, jogar, tomar
contacto com o mundo real) mas, por questões de insegurança, estão limitadas no
seu usufruto pleno. O transporte privado, ao ser utilizado para os percursos
casa-escola, priva cada vez mais as crianças de lidarem com outras, no domínio
público, social e cultural, para além de limitar a apreensão do território e o
"sentido do lugar".
As diferenças culturais que separam as/os jovens, imigrantes ou as minorias
étnicas são um desafio à interculturalidade, já que aqueles se confrontam
frequentemente com a sociedade de acolhimento e a "ordem" pública.
Assim, à medida que as comunidades foram afirmando a diversidade étnica, a
noção de diferentes culturas colidindo no espaço público poderá ser alargada
para "como os grupos étnicos usam o espaço"; porém, os seus padrões
de uso do território são inadequadamente reconhecidos no planeamento do espaço
urbano (Queirós, Marques da Costa et al., 2010).
O envelhecimento demográfico está em crescimento, colocando o desafio da
valorização do quadro de vida da população idosa, indissociável da sua
integração num território adaptado e adaptável às suas necessidades e
expectativas de envelhecer com qualidade. O envelhecimento tende a ser
observado como um processo biológico que colide com valores e elementos
estruturantes das sociedades modernas que valorizam a autonomia, mobilidade,
produtividade e a celeridade dos seus indivíduos; por isso o envelhecimento
corresponde também a um processo cultural.
Quando se envelhece, a habitação é um fator referenciado à pessoa, faz parte da
sua identidade. Mas a maioria das residências foi construída para pessoas que
nunca serão idosas ou nunca necessitarão de alojar familiares idosos/as e/ou
com necessidades especiais. Porém, a conceção, planeamento e intervenção no
espaço habitacional raramente se orienta para a criação de lugares de vida e de
trocas estruturantes dos laços sociais e da preservação da identidade das
pessoas que neles vivem e habitam. No que se refere às tipologias residenciais,
existe hoje um grande desfasamento entre os diversos tipos de família, a
pessoa, a evolução dos ciclos de vida e a organização interna das habitações. A
indústria imobiliária e o normativo legal reproduzem tipologias convencionais
do tipo habitação "Peter Pan" privilegiando formatos adaptados a
famílias convencionais esquecendo o aumento das pessoas que vivem sós,
maioritariamente mulheres idosas, que necessitam de casas adaptadas às suas
necessidades.
Margarida Queirós e Nuno Marques da Costa et al. (2010) e Queirós e Marques da
Costa (2011), usando os indicadores de mobilidade fornecidos pelo INE (para
2001), mostram que a mobilidade e acessibilidade de mulheres e de homens, tempo
e padrões de viagem, são resultantes dos seus diferentes papéis sociais. As
responsabilidades reprodutivas das mulheres originam padrões de viagem, por
vezes condicionadores da sua plena integração no mercado de trabalho. No seu
quotidiano, as mulheres não efetuam deslocações a grandes distâncias, e as
disponibilidades oferecidas pelos operadores dos serviços de transporte não
estão adequadas às suas necessidades, em termos de horários, percursos,
segurança e tarifas. Os referidos autores demonstram ainda que, por isso,
caminhar a pé – na maior parte dos casos, em percursos superiores a 800 metros
– e esperar pelo transporte público, são condicionantes que afetam
especialmente as mulheres, sendo que as cadeias de deslocação diárias dos
homens são, na maior parte das vezes, mais simples (por exemplo, casa-local de
trabalho-casa), e as das mulheres mais complexas (por exemplo, casa-escola-
local de trabalho-supermercado- casa).
Estes são exemplos que elucidam algumas dificuldades colocadas às pessoas no
seu quotidiano, em grande parte resultantes dos modelos de ordenamento do
território e de urbanismo que permitiram que a residência se separasse dos
equipamentos, do comércio e do trabalho, configurando zonas mono-funcionais;
este modelo atinge, embora diferenciadamente, as mulheres e os homens,
prejudicando todos por ser ineficiente e insustentável.
Para finalizar, uma referência à incorporação das mulheres no mercado de
trabalho que tem sido acompanhada muito lenta e deficitariamente por serviços
que facilitem a conciliação da vida laboral com a familiar. O zonamento
territorial produziu também ofertas de trabalho mono-funcionais, como as
cidades da justiça, parques empresariais ou centros comerciais, limitando as
ofertas próximas dos locais de residência, sendo estes alguns dos fatores que
limitam seriamente as opções laborais das mulheres (Queirós e Marques da Costa,
2011). Associada a este problema está a oferta de equipamentos – é preciso
valorizar as "infraestruturas para a vida quotidiana" que procuram
a facilitação da vida diária, familiar e laboral, através do agrupamento
espacial de equipamentos numa lógica de proximidade, podendo um mesmo
equipamento desempenhar várias funções (por exemplo, bibliotecas e mercados de
bairro que propiciam a vida cultural e social numa lógica de proximidade e de
relação de vizinhança), tanto em áreas urbanas como nas rurais (Madariaga,
2004). Oriundo do contexto escandinavo dos anos 1970 e desenvolvido pela
EuroFEM durante a década de 1990, o conceito de infraestruturas para a vida
quotidiana pode revelar-se uma ferramenta útil para pensar de que modo a ação
pública, em todas as suas escalas, pode contribuir para reduzir os problemas
que a estrutura atual das cidades gera na vida quotidiana das pessoas
(Madariaga, 2004: 64).
Estas são razões fortes para a promoção, num sentido organizacional, do
território "ergonómico", isto é, que interage, se adapta, capaz de
responder às necessidades e escolhas ao longo da vida, incluindo a perspetiva
de género, conectando os mundos do trabalho e da família, que dá resposta às
necessidades dos grupos vulneráveis, e promovendo a sua inclusão em todas as
áreas da vida em comunidade, otimizando o bem-estar individual e coletivo.
Uma ideia fundamental está na forma como tudo isto pode ser feito: a utilização
dos recursos locais que deve ser privilegiada relativamente aos programas
municipais "intensivos em capital", promovendo a instalação e
desenvolvimento das intervenções através das próprias comunidades, focando-se
em pequenas operações, "de baixo para cima". O urbanista Jaime
Lerner (http://edition.cnn.com/video/?/video/business/2010/11/29/
fc.curitiba.sustainable.city.cnn, consultado em dezembro 2011) propõe este tipo
de intervenção (a que chama acupuntura urbana)4, como solução dos problemas
urbanos contemporâneos, enfatizando a importância do desenvolvimento da
comunidade através de intervenções cirúrgicas no desenho urbano. Em tempo de
crise económica e financeira esta é uma alternativa às mega intervenções que
obrigam a grandes investimentos com base em fundos municipais.
Considerações finais
Num quadro de globalização, a vida quotidiana exige lugares diversificados e
multifuncionais, onde a surpresa ainda seja possível, mas o risco minimizado
(Queirós e Marques da Costa, 2010). Os grandes projetos e infraestruturas só
servem um único objetivo, todavia, a vida local necessita de espaços públicos
multifuncionais, inclusivos e seguros porque vividos, onde a hierarquia da rede
viária se subordine ao espaço público e estes preferencialmente pulverizados de
pequenos equipamentos, comércios e serviços de proximidade. O conceito de
acupuntura territorial, intervencionando a cidade de uma forma seletiva e
sustentável, numa coexistência pacífica sociedade-ambiente, encaixa na visão da
diversificação e multifuncionalidade do território.
Tendo como certo que o espaço é "ativo" na sociedade e na economia,
o planeamento estratégico municipal tem a missão de formular políticas
dirigidas para as relações sociedade-território, que dão voz às populações na
sua diversidade e lhes devolvem a confiança nas instituições (Queirós e Marques
da Costa, 2010). Assim, o planeamento estratégico para a igualdade deve encarar
o desafio de planear espaços "ergonómicos".
Os PMIG, enquanto instrumentos estratégicos, servem um propósito: estimular
mulheres e homens para os lugares das distâncias curtas, com usos do solo
mistos e centros múltiplos, reduzindo a necessidade de deslocações, mais
acessíveis para todos, criando melhor qualidade de vida e recriando um sentido
de urbanidade. Sob este desígnio, as Câmaras Municipais, os parceiros da rede
Social, as ONG e os cidadãos e as cidadãs são a "energia"
necessária para recriar os territórios de 3.ª geração (pós-industriais, no
sentido que lhes deu François Ascher).
Sendo que em Portugal se estão a desenvolver esforços entre a administração
central e a local, os seus parceiros sociais e as organizações da sociedade
civil para a inclusão das análises sensíveis ao género, aqueles desenrolam-se e
concentram- se sobretudo nas esferas da ação social. Ora, se o espaço é o nível
mais abrangente para a aplicação do contexto e direção de um planeamento para
um território inclusivo, então os domínios do ordenamento do território e do
urbanismo, como, por exemplo, os espaços públicos, habitação, equipamentos e
transportes devem ser abordados segundo lógicas promotoras da igualdade e não
de discriminação e injustiça – afinal o ordenamento territorial como atividade
facilitadora da organização espaço-tempo das famílias. E o sucesso da política
para a igualdade de género depende, por sua vez, da integração em níveis mais
abrangentes, tais como a sustentabilidade, o desenvolvimento económico e a
inclusão social. Para tal, basta encorajar as/os atores públicos e privados
para a intervenção cirúrgica e seletiva – mais próxima das populações e
ajustada às suas especificidades. Se os PMIG souberem aproveitar este
potencial, confirmam que os conteúdos e os processos de planeamento são hoje
muito diferentes do passado, pertencem seguramente a uma nova geração de
planos.
Pedindo emprestada a ideia de Edward Soja (2010), temos o dever de abordar o
futuro com um otimismo estratégico, com uma abertura radical a novas ideias, e,
se há uma lição a ser aprendida a partir do que aqui ficou escrito, é a da
necessidade de uma reflexão que vem da perspetiva crítica espacial.