Introdução: Políticas Feministas nas Artes Visuais e Performativas
Introdução. Políticas Feministas nas Artes Visuais e Performativas
Cristiana Pena*1, João Manuel de Oliveira*2 e Teresa Furtado*3
CEMRI da Universidade Aberta, Portugal; Goldsmiths, Universidade de Londres, RU
/ CP da Universidade do Porto, Portugal / CHAIA da Universidade de Évora,
Portugal
A última década foi bastante importante para o reconhecimento da influência dos
feminismos na arte contemporânea já que alguns dos museus com maior notoriedade
' MoMa (Nova Iorque), Centro Pompidou (Paris), Museu de Arte Contemporânea (Los
Angeles), entre outros ' albergaram exposições dedicadas a esta temática e o
mesmo aconteceu com algumas das principais revistas da especialidade e com
publicações de editoras especializadas. Apesar de terem passado mais de 40 anos
sobre o início duma vaga de artistas ' Judy Chicago, Mary Kelly, Suzanne Lacy,
Catherine Opie, Valie Export, Barbara Kruger, etc. ' que produziu
intencionalmente trabalho influenciado pelas políticas dos movimentos
feministas que invadiam as ruas e se instalavam na academia, nunca antes lhes
havia sido concedido espaço onde as suas obras pudessem ser vistas pela
generalidade dos públicos.
O feminismo pós-estruturalista e queer privilegiou muitas vezes as artes
visuais e performativas como meio para representar as problemáticas
relacionadas com a mulheres e com os feminismos. Como sugere Peggy Phelan
(2001), as artes visuais e performativas passam a significar uma forma de ação
e o feminismo uma forma de linguagem, ou seja, de atos de linguagem através dos
quais se colocam questões e se procede a uma revisão de questões quer políticas
quer pessoais.
Durante os anos 1990 o feminismo iniciou uma fase de políticas de aliança
porque outros projetos políticos, para além do combate contra o patriarcado e a
opressão sexista, foram inseridos na agenda feminista. Devido à crise da SIDA
que estigmatizou brutalmente as comunidades LGBT em todo o mundo, as feministas
viram-se confrontadas com novas realidades que contribuíram para problematizar
as políticas de género de uma forma mais complexa enriquecendo o debate
feminista. Para além das questões relacionadas com a sexualidade e o género,
autoras feministas negras, latino-americanas e asiáticas ajudaram igualmente a
reconfigurar o discurso feminista trazendo para o debate uma perspetiva pós-
colonial que denunciava a hegemonia branca e ocidental do movimento. Durante
este período o corpo sexualizado e racializado passava a ser o lugar a partir
do qual, artistas e ativistas, excluídas pelas feministas heterossexuais
brancas, passavam a falar.
É importante mencionar também a relevância da teoria queer, em particular a
publicação da obra de Judith Butler (1990) que marcou toda uma linha de
pensamento pelas suas propostas de reposicionamento conceptual do género como
performatividade e pelas implicações desta posição para pensar as questões
ligadas à sexualidade, a partir de uma perspetiva crítica, simultaneamente
feminista e queer.
A teoria queer e os estudos de género trouxeram determinados grupos marginais
para o centro da academia criando uma fonte de material discursivo extremamente
útil para que artistas, ativistas e audiências possam, ainda hoje, falar sobre
si mesmos na sua própria linguagem. Um dos vocabulários utilizados por
ativistas feministas e queer para reclamar direitos e visibilizar grupos
excluídos das representações e dos discursos dominantes foram denominados por
Butler de "enraged public queerness happenings" que poderíamos
traduzir como "happenings públicos queers enraivecidos" (Butler,
1993: 23).
Dando continuidade ao debate iniciado nos anos 1970, por feministas e artistas
norte-americanas e inglesas sobre o "sexo", a sexualidade, o
género, a "raça"/etnia, classe, público/privado e reconhecendo a
sua atualidade decidimos organizar este dossier para que as práticas
artísticas, as teorias feministas, os estudos queer e de género continuem a ser
um espaço de questionamento, de ação política e de reflexão pessoal. Sendo
assim, neste número, para além do habitual pedido de submissão de artigos
lançámos também o desafio a artistas ' Carla Cruz e Miguel Bonneville
(Portugal), Emilie Jouvet (França), Kathryn Fisher (Alemanha/ EUA) e Sophia
Wallace (EUA) ' que consideramos importantes por representarem uma nova geração
que integra as políticas feministas e queer no seu trabalho artístico.
As artes influenciadas pelos feminismos e pelas posições queer aparecem assim
como espaços de ação onde a intenção de intervir para transformar a sociedade
patriarcal, sexista, classista, racista e homofóbica são um dos objetivos que
artistas e coletivos têm quando criam ou exibem as suas obras. Uma das
contribuições mais relevantes do feminismo foi precisamente a elaboração de
instrumentos conceptuais críticos e de uma prática social ativista, partindo de
um modo não dualista de pensar corpo e mente, como entidades inter-
relacionadas, uma vez que os sujeitos pensam e experienciam a vida através dos
seus corpos. Sendo assim, nas artes visuais, inúmeras mulheres utilizaram os
seus corpos como condutores de mensagens políticas, críticas e reivindicativas,
rompendo e questionando os discursos sociais onde se constrói a diferença, a
hierarquia e a dominação entre os indivíduos.
O recente caso das Pussy Riot é perfeito para ilustrar como as políticas
feministas, as artes visuais e performativas podem desestabilizar as estruturas
de poder instituídas (ver http://freepussyriot.org/). Este coletivo feminista
russo que usa a performance pública como meio e a cultura punk/riot grrrl como
forma conseguiu em 2012 criar não só uma ato de protesto contra a reeleição
fraudulenta de Vladimir Putin, a relação do Estado com a igreja Ortodoxa e a
detenção de vários/as ativistas políticos como também projetar
internacionalmente o feminismo como forma de ação política rebelde, determinada
e inconformada que consegue estremecer uma das menos democráticas democracias
do hemisfério norte.
Neste dossier interessa-nos sobretudo debater a relação entre artes feministas
ou queer e a transformação social, política e cultural, operada ao nível das
representações de género, dos corpos e das sexualidades na atualidade por
considerarmos que existem determinadas práticas artísticas subversivas que são
estigmatizadas como "abjetas" no quadro heteronormativo e
consequentemente silenciadas. Os efeitos, os modos de ver, e as subjetividades
facultadas aos espectadores pelas imagens, nas narrativas, nos olhares e nos
espaços da composição produzem masculinidades, feminilidades e outras
sexualidades que se constituem como lugares de resistência e desafio ao sistema
escópico dominante e à própria hierarquia de género da ordem patriarcal (ver
anexo_Carla_Cruz).
Pretendemos destacar reflexões e obras que proponham novas formas de
sensibilidade e afeto; refletir sobre as categorias de masculinidade e
feminilidade através de representações onde a plasticidade tecnológica do
género possibilita a constituição de multitudes de corpos que questionam os
limites discursivos do sexo e da sexualidade (ver anexo_Miguel_Bonneville).
As representações criadas sobre e por estas subculturas feministas e queer
revelam o que Beatriz Preciado (2002, 2004) denominou como hipermodernidade
punk, visto que denunciam os processos técnicos, culturais e políticos através
dos quais o corpo visto como objeto atinge o seu estatuto natural. Através de
imagens e performances podemos não só observar como os géneros são
tecnologicamente produzidos e reconhecidos como corpos e simultaneamente
perceber o modo artistas feministas e queer criticam a domesticação dos corpos
e a ficção somato-política do binarismo hegemónico de género. A criação de
obras conscientemente críticas e conceptualmente informadas pela teoria
feminista e pela teoria queer constroem outras representações com as quais
públicos habitualmente excluídos conseguem estabelecer relações de
identificação e empatia.
J. Jack Halberstam (2005, 2011) introduz novas formas de pensarmos as
temporalidades e geografias queer tal como nos convida a refletir sobre o papel
da tecnologia na transformação das representações ao nível dos discursos
visuais sobre o corpo, o género e a sexualidade (ver anexo_Kathryn_Fisher). Se
considerarmos os desenvolvimentos ocorridos na última década ao nível dos meios
de comunicação, em particular das redes sociais, poderemos compreender melhor
as transformações nas relações entre as práticas artísticas, as políticas
feministas e queer, a constituição de diversos públicos e o aparecimento de
subculturas que se vêm representadas em discursos visuais reconfigurados.
Os textos deste dossier consubstanciam uma relevante contribuição para esta
área, mostrando a forma como as políticas radicais do pensamento feminista
polinizaram as artes contemporâneas e nos proporcionaram outras legibilidades
para compreender a própria teoria feminista. Este dossier apresenta quatro
contributos vindos de vários países ' Portugal, Reino Unido, Espanha e França '
mostrando que esta investigação sobre estes objetos de estudo ainda é
incipiente no nosso país. É, contudo, importante salientar que estes
contributos têm em comum uma aplicação das teorias e movimentos feministas numa
lógica política de questionamento radical e de crítica que muito nos satisfaz.
No texto de Armando Pinho e João Manuel de Oliveira são traçadas algumas das
principais coordenadas teóricas da relação entre teorias feministas e a
performance artística autobiográfica. Um texto de síntese que mostra como
determinados aspetos de uma política radical feminista são incorporadas na
performance. Este trabalho articula as várias mudanças dentro deste diálogo com
o trabalho da performer Carlota Lagido, analisando o modo como a autora recorre
à sua autobiografia como manancial criativo para o seu trabalho. Igualmente
este texto é uma referência importante por traçar a história deste diálogo,
mostrando o efeito de diferentes correntes feministas na análise que é feita da
performance e nas próprias práticas artísticas.
No artigo de Giulia Casalini, a autora convoca o trabalho da artista
guatemalteca Regina José Galindo para entender o modo como a performance
recorre ao trauma e ao silêncio como forma de dar testemunho da violência
política. Através do recurso a obras muito significativas, quer da teoria
feminista, quer da teoria crítica, a autora constrói um texto que analisa o
modo como o silêncio é utilizado como uma importante arma no trabalho de
Galindo, evidenciando o modo como a performance permite uma visibilidade ao que
é inaudível ou dificilmente expresso por palavras. Assim, Regina José Galindo
faz da sua performance um modo de suscitar reações no público, pela via do
silêncio, como maneira de ativar determinadas memórias traumáticas que assim
podem ser partilhadas.
O trabalho de Veronica Perales procede a um reposicionamento do conceito de
amor. Tentando pensar o amor para lá da sua aceção romântica, a autora analisa
o conceito em diversas fontes, aproximando-se do objeto de estudo através do
ecofeminismo e da crítica ao antropocentrismo. A autora percorre uma série de
obras e de artistas, cujo trabalho é relevante para proceder a uma abertura
deste conceito, reposicionando-o. Assim, esse trajeto que o texto percorre
permite revisitar outras maneiras, mais livres, de pensar o amor fora dos
limites impostos pelas ideologias de género e do antropocentrismo hegemónico.
O texto de Marie-Emilie Lorenzi foca um happening feminista queer em Lille, na
França, que envolveu a estátua equestre de Joana d'Arc. A autora procede a uma
análise do modo como este happening permite detetar linhas de fratura entre
ativismos mais tradicionais LGBT e ativismos queer, enunciando como este
happening pode ser lido a partir de diferentes posicionamentos militantes.
Particularmente, a cor rosa com que a estátua foi pintada é alvo de uma análise
que evidencia as diferentes apropriações desta cor por parte dos movimentos
LGBT e queer. Esta análise aborda também a formação de um Pink Bloc, que
recorrendo a pressupostos feministas queer, baseia a sua intervenção política
na performance de rua e happenings.
Este dossier reforça a importância da investigação na área da arte
contemporânea sob influência das políticas feministas. Estes artigos permitem
traçar alguns desses percursos e entender os modos de incorporação dessas
influências.