Fazendo género no recreio: A negociação do género em espaço escolar
Pereira, Maria do Mar (2012), Fazendo género no recreio. A negociação do género
em espaço escolar, Lisboa, ICS ' Instituto de Ciências Sociais, 231 páginas.
Sofia Almeida Santos
CIIE e FPCE/Universidade do Porto, Portugal
Acaba de ser lançado pelo Instituto de Ciências Sociais ' Lisboa, o livro
"Fazendo género no recreio" de Maria do Mar Pereira, como mais uma
estimulante obra no panorama da Sociologia e dos Estudos sobre as Mulheres e,
atrevo-me a dizer, da Educação em Portugal. Tomando como ponto de partida um
intenso estudo etnográfico com jovens do 8º ano de uma escola lisboeta,
explora-se a dimensão performativa de género no contexto escolar, isto é, os
modos como as masculinidades e feminilidades são (re)construídas e negociadas
na interação quotidiana.
Começando pela análise do próprio título, considero que este foi muito bem
conseguido, pelo facto de nos situar desde logo na problemática que está em
discussão. Não só nos permite antever que se trata de um estudo de género
realizado numa escola, como ficamos a saber que este é perspetivado como algo
que se vai fazendo e condicionando dentro dos muros e limites do recreio.
O livro organiza-se em 10 capítulos, que compõem 4 secções mais amplas. Os três
capítulos iniciais posicionam a perspetiva da autora face aos debates teóricos
da área, aos quais se seguem dois capítulos de apresentação metodológica e de
contextualização da pesquisa. Os quatro capítulos seguintes dedicam-se à
análise crítica dos discursos jovens, sendo que o capítulo final articula todas
estas secções e lança pistas para (re)pensar género. É um livro de leitura
fácil, que evidencia uma grande clareza em torno do argumento construído e no
modo como os diferentes capítulos se encaixam e completam. O modo cativante
como as questões são formuladas revela um olhar assumidamente pós-
estruturalista, num caminho de questionamento constante, que nos acaba por
despertar para uma outra reflexão face à investigação etnográfica com jovens em
contextos escolares. Com este enfoque, proponho- me sublinhar os principais
desafios que sobressaem da leitura desta obra.
O primeiro desafio é lançado e anunciado logo no prefácio, quando a autora
assume a sua intensa vontade de "expandir as conversas sobre género
dentro e fora da academia" e "estreitar diálogos entre cientistas
sociais e as pessoas que fazem género todos os dias" (p. 16). O desejo de
alargar a discussão a outros públicos orienta a escrita deste texto, segundo
"dois mapas de navegação" e leitura, consoante o interesse do/
a leitor/a seja saber mais sobre relações entre adolescentes nas escolas
portuguesas (cap. 6, 7, 8 e 9) ou sobre as teorias de género e performatividade
(cap. 1, 2 e 3). Esta originalidade e preocupação evidencia um forte
compromisso ético com os/as participantes da pesquisa e com a procura de formas
mais abrangentes de divulgar e produzir conhecimento.
Um segundo desafio emerge nos primeiros três capítulos, quando a autora
questiona os recursos teóricos, metodológicos e discursivos usados pelas
ciências sociais na construção do objeto de estudo de género, para reclamar o
lugar da performatividade no debate. Para tal, o capítulo 1 apresenta uma
sofisticada revisão das linhas orientadoras que têm estruturado a investigação
de género nas últimas décadas, com predominância no espaço português e anglo-
saxónico. É de salientar o cuidado e imparcialidade com que a autora reviu toda
a produção nacional, mostrando um grande domínio das publicações e das
pesquisas realizados de norte a sul do país. Realço ainda o rigor em atualizar
a reflexão até à data da publicação do livro, com a inclusão de artigos que
datam de Dezembro de 2012. Nesta parte, a autora não nega o valor que as
perspetivas naturalistas e da socialização tiveram no avanço dos estudos
sociológicos, mas alerta para as fragilidades destes discursos científicos e
para as novas problemáticas de género. Na verdade, pensar-se género na
contemporaneidade é pensar-se na pluralidade das masculinidades e feminilidades
e libertar-se das amarras e limites que os olhares dualistas e deterministas
tendem em manter. Sob este argumento, propõe a abordagem performativa no 2º
capítulo como meio de explorar novas formas de pensar e escrever sobre género,
enquanto algo que se negoceia, constrói e aprende nas interações quotidianas.
Isto traz novos focos de análise, centrados na agência e criatividade dos
sujeitos para criarem performances e brechas na estrutura social. A sustentar
esta abordagem, destaca a proposta de reconceptualização performativa do género
de Judith Butler, entre diversos/as autores/as, como marco histórico nos modos
de pensar as masculinidades e feminilidades. Esta última questão é aprofundada
no 3º capítulo, com particular destaque da escola como contexto dominante na
construção das relações jovens.
Toda esta reflexão reconhece as limitações da perspetiva performativa para
analisar aspetos essenciais das pesquisas de género, nomeadamente as dimensões
estruturais e simbólicas. Por isso, estando atenta às relações de poder e às
desigualdades que marcam os processos quotidianos, a autora salienta o
potencial de se cruzar esta abordagem com outras dimensões analíticas, de modo
a traçar novos rumos na investigação.
No capítulo 4 é explorada a pertinência da realização de uma "etnografia
performativa" para captar o carácter de continuidade do objeto de estudo.
Voltando à ideia inicial de que todos os dias fazemos género na forma como
comunicamos, olhamos, tocamos e nos afirmamos publicamente enquanto mulheres e
homens, a permanência do/a investigador/a, no tempo e no espaço, torna-se
essencial para conhecer as nuances desses processos. Por isso, o objetivo da
autora passa por observar in loco "os modos, em que contextos e com que
objetivos é que as/os jovens marcam e demarcam, reforçam e contestam diferenças
e semelhanças de género nas suas relações entre si na escola" (p. 74).
Este posicionamento conduz-nos, no capítulo 5, ao trabalho de campo na
"Escola Azul", bem como aos obstáculos e implicações no
"ganhar acesso". Somos aqui apresentadas à escola pública de 2º e
3º ciclo e aos 23 alunos/as da turma de 8º ano que a autora acompanhou
diariamente.
Esta secção, sustentada na reflexão anterior, levanta igualmente um desafio que
merece atenção e que se liga à possibilidade de identificar performances de
género no contexto escolar. Tendo em conta que a escola não é um campo neutro
nem assexuado, esta é uma investigação vinculada a discursos e interações que
ocorrem num "regime de género" com regras, estruturas e códigos
próprios que, por si só, limitam o modo como as culturas sexuais e de género
jovens se exprimem. Mas é exatamente nas limitações deste espaço que a pesquisa
ganha riqueza, ao confrontar-se com as performances que rapazes e raparigas
usam para manter ou transgredir os rótulos de "bom rapaz",
"boa rapariga", "populares", "pitas" ou
"normais". Nesse sentido, as reflexões desta etnografia desafiam a
escola a questionar- se enquanto espaço de expressão, construção e influência
social.
Esta discussão sobre a negociação coletiva e performativa de género torna- -se
central nos quatro capítulos de análise empírica (6, 7, 8 e 9), cujo foco não é
observar a vida da escola em função do eixo da diferença de género mas das suas
semelhanças, bem como "dar conta da pluralidade de feminilidades e
masculinidades que se fazem na escola e demonstrar a importância da marcação de
diferenças entre pessoas do mesmo sexo" (p. 75). O capítulo 6 realça o
modo como o eixo de diferenciação é frequentemente convocado pelos/as jovens,
para justificar separações e desigualdades no acesso a recursos e espaços.
Nomeadamente, a coscuvilhice e a retórica da imaturidade aparecem como exemplos
de características genderizadas (a primeira associada às raparigas e a segunda
aos rapazes), que ao longo do texto vão sendo desmistificadas e evidenciando
proximidades de género. Contudo, a naturalização da diferença parece estar de
tal modo enraizada, que as transgressões a estas "geografias de
género" são constantemente desvalorizadas nos discursos, por processos de
invisibilização das semelhanças.
Ao invés, nos capítulos 7 e 8, a autora procura destacar as fragilidades destas
fronteiras e materializar as diferenças existentes dentro de cada sexo. Acaba
assim por constatar que o carácter dinâmico e situacional das feminilidades e
masculinidades aproxima jovens e desconstrói a ideia inicial de clara separação
entre géneros. Ainda que esta referência às semelhanças de género não seja nova
nos estudos portugueses, na minha opinião, torna visível uma outra dimensão de
comparação entre sexos que relativiza a centralidade da diferença e requer uma
análise cuidada. A fechar esta secção, o capítulo 9 explora os discursos jovens
sobre género para perceber se reconhecem esta heterogeneidade e perfomatividade
ou se continuam a falar de grupos opostos e homogéneos. De realçar a
preocupação da autora no uso de uma linguagem mais acessível, que permite ao/
a leitor/a entrar nas "conversas de recreio".
No fim deste percurso, as principais ideias aparecem reunidas e articuladas no
capítulo final. Neste, a autora reafirma como os jogos de poder, as dinâmicas
de auto e heteromonitorização e as incoerências presentes nos discursos jovens
ilustram a dimensão (per)formativa enquanto "espaço de construção ativa e
contínua dos discursos e identidade." Resta-me afirmar que esta obra
apresenta um diálogo a três vozes (entre jovens e comunidade científica),
mediado e apropriado por Maria do Mar, que também desempenha uma performance
enquanto investigadora que: ora se aproxima da intimidade do mundo adolescente,
ora se afirma entre os seus pares no campo científico da especialidade. Fazendo
minhas as suas palavras, este livro define-se como "um instrumento para
formular novas questões e experimentar modos diferentes de pensar sobre velhas
questões" (:60), cuja leitura vivamente aconselho.