Prostituição feminina, feminismos e diversidade de trajetórias
Prostituição feminina, feminismos e diversidade de trajetórias
Female prostitution, feminisms and diversity of trajectories
La prostitution féminine, les féminismes et la diversité des trajectoires
RÉSUMÉ
Cet article analyse les principales caractéristiques de la littérature sur la
prostitution, comprenant les perspectives féministes essentielles, en
soulignant les limites, les progrès et les complexités. Ensuite, il présente
des parties d'une recherche ethnographique sur la prostitution féminin de rue,
plus précisément à Porto, qui montre comment les experiences, les motivations,
les significations et les trajectoires de vie des travailleuses du sexe sont
diversifiés, mais sont également caractérisées par des régularités.
Mots-clés: prostitution, travail sexual, féminisme, ethnographie, trajectoires.
Introdução
Alguma literatura científica sobre a prostituição tem-se centrado em diversos
fatores negativos que associa ao comércio do sexo e aos/às seus/suas atores/as,
tais como a vitimização na infância e as doenças, designadamente a SIDA
(Vanwesenbeeck, 2001), abordagens que acentuam os aspetos morais de compra ou
venda de sexo, o estigma e a violência (Agustín, 2007) ou a necessidade de
controlo social (Egan e Frank, 2013). A prostituição tem ainda sido incluída no
âmbito dos comportamentos desviantes, o que tem como base a tradicional
estigmatização do trabalho sexual e salienta o controlo social e o tratamento
discriminatório a que atores e atrizes têm sido sujeitos, como refere Ronald
Weitzer (2009), destacando a reação social negativa ao ato e atores/as e a
etiquetagem de que estes/as são alvo.
O enfoque nos défices, na doença e na violência, e na necessidade de controlo
da ordem pública, como preocupações científicas predominantes relativamente à
prostituição, contribui para formar uma visão discriminatória, exclusora,
desempoderante e, antes de mais, simplista. Além destas abordagens, muito do
saber científico foca-se, ainda e apenas, nas características e motivações das
mulheres prostitutas de rua, tradição que remonta ao início do estudo da
prostituição, em meados do século XIX (Oliveira, 2011).
Há, no entanto, atualmente, um corpo crescente de literatura que aborda a troca
de sexo por dinheiro como um fenómeno social complexo que se alicerça em
relações sociais, económicas, políticas, criminais e sexuais que incluem
diversos atores/atrizes (Vanwesenbeeck, 2013). Muita da investigação recente
sobre o trabalho sexual tende a abarcar a complexidade do fenómeno e as
múltiplas variáveis e processos que o caracterizam (e.g. Ribeiro, Silva,
Schouten, Ribeiro e Sacramento, 2008, em Portugal, Handman e Mossuz-Lavau,
2005, em França, ou Riopedre, 2010, em Espanha). O que parece imperativo, hoje,
é, pois, a análise de novas variáveis e atores/atrizes e a utilização de novas
grelhas de interpretação. E, ainda, que os métodos sejam proximais, dando voz
às pessoas envolvidas, contribuindo para a desconstrução de mitos, estereótipos
e preconceitos relativos à prostituição e outros trabalhos sexuais e seus
atores/atrizes. Este é um fenómeno multiforme e complexo e que vai mostrando
novas configurações às quais a ciência deve adaptar-se.
As investigações nesta área têm ainda sido influenciadas pelas diferentes
visões feministas (Koken, 2010) e a tensão, enorme e duradoura, entre essas
diferentes correntes só pode, de acordo com Ken Plummer (2010), ser resolvida
através de trabalho etnográfico fundamentado. Para ir além desta tensão,
segundo este autor, é útil o recurso a este tipo de investigações, pois é aí
que algumas das contradições e subtilezas da prostituição emergem, na medida em
que elas permitem ver as complexidades nas observações fundamentadas
empiricamente no real, onde a vida é sempre mais desorganizada, contraditória e
ambígua.
A etnografia, ao ser fundamentada e ao conseguir uma visão próxima da dos/as
atores/atrizes sociais estudados, permite deslindar a complexidade,
nomeadamente das trajetórias humanas, dando foco aos caminhos diversos e
difíceis que elas podem tomar e tendo em conta a capacidade de agência
individual.
Dois dos nossos objetivos enquanto cientistas devem ser contrariar as aceções
redutoras sobre a prostituição e adotar uma atitude compreensiva. Há que eleger
uma visão da realidade que mostre a diversidade de atores/atrizes, de práticas,
de motivações, de experiências de vida, de contextos e de condições de
trabalho, entre tantos outros aspetos que caracterizam a vida humana na sua
totalidade e, em particular, daquelas e daqueles que fazem trabalho sexual.
Desta forma, poderemos dar um contributo para a desconstrução de discursos
redutores, nomeadamente o discurso miserabilista vitimizante, evidenciando a
enorme diversidade de experiências e de condições de exercício do trabalho
sexual e de como estas não são compagináveis com visões deterministas e
simplistas.
Assim, neste artigo, propomos apresentar uma investigação efectuada sobre
prostituição de rua urbana, com recurso ao método etnográfico, em que
analisámos um vasto conjunto de variáveis, reconhecendo os constrangimentos,
nomeadamente estruturais, que sustentam muito do envolvimento no comércio do
sexo2, mas também salientando as capacidades de autodeterminação das pessoas
que fazem sexo comercial. Antes, porém, expomos brevemente as duas posições
dominantes das abordagens feministas no que concerne à prostituição.
Feminismos e prostituição, reducionismos e complexidades
As abordagens feministas à prostituição têm vindo a sofrer mudanças desde que o
debate se instalou no seio deste movimento. Se, nas fases iniciais da análise
feminista da prostituição, esta foi tratada de forma reducionista como uma
actividade desviante, mais recentemente passou a ser encarada como uma resposta
compreensível e razoável às necessidades socioeconómicas entendidas num
contexto de cultura consumista e num enquadramento social que privilegia a
sexualidade masculina, como fica patente no trabalho de Maggie O'Neill (2001).
A discussão sobre a prostituição é um dos mais antigos debates no âmbito dos
feminismos, tendo surgido logo na 1ª vaga deste movimento com as perspetivas
marxista-socialista e radical e evoluindo com este, quando, a 2ª vaga do
feminismo, a partir dos anos 70 do século XX, começou a desmontar as
representações tradicionais da prostituição, nomeadamente com a teoria liberal
feminista a salientar a livre escolha e a responsabilização de cada mulher
sobre as suas decisões (Pinto, Nogueira e Tavares, 2010).
Apesar de se encontrarem na literatura diversas visões sobre as abordagens
feministas relativas à prostituição, podemos considerar que existem duas
perspectivas feministas dominantes sobre este tema3.
Uma destas perspetivas encara a prostituição como uma forma de opressão da
mulher, concebendo esta atividade como vitimizante per se e advogando que a
exploração e a violência são intrínsecas e inextricáveis do comércio do sexo.
Assim, de acordo com esta conceção, habitualmente denominada de abolicionista,
toda e qualquer forma de prostituição deve acabar. Esta corrente tem entre as
suas mais conhecidas defensoras Kathleen Barry (1984, 1995), Andrea Dworkin
(1987), Sheila Jeffreys (1997), Catherine MacKinnon (1987), Julia O'Connell-
Davidson (1998) e Carole Pateman (1988) que argumentam que não há escolha na
prostituição e que esta é uma forma de escravatura feminina. Este modelo é
também chamado de opressivo e é definido como a quinta-essência da expressão
das relações de género do patriarcado e da dominação masculina (Weitzer, 2010),
o que faz da prostituição um mecanismo fundamental da opressão masculina (Pinto
et al., 2010).
Ao conceber todas as situações e experiências de prostituição como
vitimizantes, ao dirigir o seu discurso apenas às mulheres, ao aplicar os seus
princípios a qualquer experiência de trabalho sexual, não interessando se se
trata de prostitutas de rua ou de acompanhantes, de atrizes de filmes
pornográficos ou de web cam girls e, ainda, ao veicular o viés da
exemplificação dos casos mais extremos e graves de exploração e vivência
negativa da atividade, esta abordagem demonstra como é simplista e não atende à
multiplicidade de situações e experiências.
A outra grande perspetiva feminista no debate sobre a prostituição, também
designada de pró-prostituição, inclui-se na teoria liberal feminista e advoga,
por oposição, que a prostituição não é inerentemente exploradora e que o que a
torna abusiva são as condições em que é exercida. Para os/as defensores/as
desta corrente, a prostituição é livremente escolhida por muitas mulheres como
uma forma de trabalho e as mulheres que estão na indústria do sexo merecem os
mesmos direitos a liberdades que os/as outros/as trabalhadores/as (O'Neill,
2001). A prostituição é aqui entendida como um direito de cidadania (Pinto et
al., 2010). Assim, para que os direitos possam ser assegurados, argumentam pela
descriminalização de todos os aspetos da prostituição e pelo seu enquadramento
legal. De acordo com esta abordagem, as mulheres devem poder dispor livremente
do seu corpo, incluindo para prestar serviços sexuais remunerados se por isso
optarem. Desta forma, tal como defende Annette Jolin (1994), a prostituição é
concebida como um ato de autodeterminação sexual, expressão do estatuto de
igualdade das mulheres e não um sintoma da sua subjugação.
Uma conhecida defensora desta segunda perspetiva feminista é Camille Paglia
(1997) para quem a prostituta é dona da sua esfera sexual e representa a mulher
libertada cuja sexualidade não pertence a nenhum homem. Algumas autoras, muitas
delas trabalhadoras ou ex-trabalhadoras do sexo, que partilham desta posição,
defendem ainda que esta atividade é empoderante para as mulheres (e.g.
Delacoste e Alexander, 1987; Chapkis, 1997). Ora, aqui, impõe-se algum cuidado
no sentido de evitar um romantismo apologético igualmente estereotipado e
simplista. A prostituição tanto pode ser apresentada como a expressão máxima da
exploração e vitimação da mulher como da sua libertação, mas, em qualquer um
destes extremos, está uma visão parcelar da realidade baseada nos piores e nos
melhores casos. Se a vitimação não é intrínseca ao trabalho sexual, também não
é verdade que todas as mulheres se sentem libertadas pela prostituição. Seria
muito injusto, irresponsável e desonesto ignorar aquelas e aqueles que se
sentem vitimadas/os e oprimidas/os no comércio do sexo.
A investigação de que agora damos conta foi realizada no centro do Porto e o
seu propósito foi fazer um estudo intensivo que permitisse conhecer o mundo
social da prostituição de rua em contexto urbano e, em particular, as
prostitutas que o vivem. Designadamente, partimos para o trabalho de campo com
a finalidade de caracterizar, compreender e interpretar vários aspetos do mundo
social da prostituição de rua e dos/as atores/atrizes que o compõem. Deste
modo, os objetivos do trabalho foram definidos como o conhecimento das
trajetórias de vida das pessoas que se prostituem, os processos subjacentes ao
seu envolvimento nesta atividade e os significados que lhes atribuem4.
Quanto ao método utilizado, a etnografia, ele tem tradição no estudo dos
objetos designados de ocultos, marginais ou desviantes e obtém, pela sua
abordagem proximal, uma visão dos/as atores/atrizes sociais estudados que
dificilmente se alcança pelo recurso a outras metodologias (Oliveira, 2011).
Tal assenta na conceção de que a observação, a interação e a experiência
pessoal diretas são a melhor forma de obter um conhecimento preciso sobre o
comportamento desviante (Adler, 1993). A etnografia caracteriza-se por ter como
principal instrumento de pesquisa o próprio investigador e como procedimentos
centrais a presença prolongada no contexto em estudo e o contacto direto com as
pessoas, as situações e os acontecimentos (Costa, 1986). Trata-se de ir ao
encontro das pessoas no seu ambiente e isso implica a imersão no terreno e a
utilização da observação naturalista.
A observação que efetuámos foi bastante estendida no tempo, tendo abarcado
cinco anos, mas foi entre Outubro de 2004 e Outubro de 2005 que a observação
participante se desenrolou de forma intensiva e sistemática, abrangendo todos
os dias da semana e horas do dia. A nossa permanência no terreno fez-se a uma
média de três dias por semana e durando entre 15 minutos e 12 horas, tendo nós
contabilizado, apenas nos anos de 2004 e 2005, um total de 422 horas. Durante
todo este período de tempo, concentrámo-nos em ver o que as pessoas faziam,
ouvir o que elas diziam e experienciar os fatores que influenciam as suas vidas
(Adler, 1993). Em variados locais de prostituição de rua, sobretudo aquela que
se pratica em pensões na zona central da cidade do Porto5, fizemos parte de
todas as atividades diárias e rotineiras, excepto trocar sexo por dinheiro.
Isto quer dizer que, entre outras atividades, permanecemos na rua com elas,
esperámos com elas que os clientes se lhes dirigissem e observámos e
participámos da interação que tinham com estes e que conversámos com as donas e
as empregadas das pensões.
Além da observação participante, realizámos entrevistas aprofundadas. Assim, a
juntar às 108 mulheres, homens e transgéneros com quem fizemos observação6 e a
quem dirigimos entrevistas informais7, realizámos 32 entrevistas aprofundadas a
trabalhadoras do sexo, totalizando 28 mulheres e quatro transgéneros. Destas,
23 são portuguesas e nove são estrangeiras ' sendo seis brasileiras, duas
romenas e uma espanhola. As idades deste conjunto de mulheres e transgéneros
variaram entre os 21 e os 60 anos, distribuídos da seguinte forma: oito entre
os 21 e os 30 anos; 14 entre os 31 e os 40 anos; nove entre os 41 e os 50 anos;
e uma mulher com mais de 50 anos. Deste grupo, constavam três
toxicodependentes, duas ex-toxicodependentes e duas com problemas de
alcoolismo.
A quantidade e profundidade de dados que obtivemos, tanto pela observação,
incluindo as entrevistas informais, como pelas entrevistas aprofundadas,
permitiu conhecer as trajetórias de vida das pessoas envolvidas no trabalho
sexual de rua e que participaram no nosso estudo8. Pela análise destas
trajetórias, percebemos a sua diversidade e o modo como surge a prostituição na
sua vida e os sentidos que atribuem aos seus atos; e compreendemos se existem,
quais são e como se qualificam os pontos de inflexão da trajetória individual
que podem desencadear o início do trabalho sexual.
Vejamos, então, estes aspetos.
Diversidade e regularidades das trajetórias:
' Prévias à prostituição
Os tipos de trajetórias de vida das prostitutas de rua que analisámos são
distintos entre si. Igualmente as suas características biográficas são
diferentes em todas as dimensões. O enquadramento familiar, as relações com
progenitores/as e irmãos/ãs, o percurso escolar e a relação com a escola, as
experiências profissionais, a idade e os motivos de entrada na prostituição, as
relações de conjugalidade e as relações com os/as filhos/as são muito variados.
A ideia de uma trajetória tipo que prediz a entrada na prostituição e define as
pessoas que se prostituem não é sustentada empiricamente. A diversidade de
experiências, de percursos e de aspirações não se coaduna com a definição de
tipos. Especificamente, a existência de uma trajetória única que se caracteriza
por ambientes de privação e abuso na infância é negada por casos de mulheres
que qualificam a sua infância como tendo sido feliz, dizendo ter boas
recordações e descrevendo de forma positiva esse período. Embora muitas refiram
a pobreza como uma marca distintiva, algumas delas não deixam de salientar como
viviam num bom ambiente familiar, tendo pais e mães apoiantes e empenhados e
ainda um bom relacionamento com os/as irmãos/ãs. Tal é o caso de Ingrid, uma
brasileira, de 24 anos:
[Tenho recordações] tristes e felizes. Tive uma infância muito pobre,
mas em relação a amor pelos pais eu tive muito, dos irmãos,
brincávamos muito, somos quase todos da mesma idade, sabe, então eu
lembro de muita coisa boa, muita coisa boa e a nossa infância foi
assim na roça, onde não tinha luz, não tinha televisão.
É verdade que o oposto também ocorre: prostitutas cujas trajetórias de vida são
marcadas por infâncias pobres e infelizes, em relação às quais dizem não ter
boas recordações, em que a violência, o abuso, o abandono, a negligência e o
alcoolismo por parte dos/as progenitores/as estiveram presentes. As
trabalhadoras do sexo têm, pois, passados distintos entre si.
Se existem singularidades nas trajetórias, existem igualmente fatores
regulares. Não no sentido de serem características generalizáveis, que possam
diferenciar este grupo e servir como variáveis preditoras, mas de aspetos que
se verificaram comuns a um subgrupo de pessoas entre as que praticam
prostituição de rua.
Uma das regularidades encontradas no passado das trabalhadoras do sexo de rua
liga-se com a origem em níveis socioeconómicos desfavorecidos. Uma percentagem
não negligenciável das prostitutas da rua provém de meios sociais empobrecidos
e de famílias com baixos recursos económicos. Das 32 entrevistas aprofundadas
do nosso trabalho, 12 diziam respeito a mulheres ou transgéneros que afirmaram
ter tido uma infância pobre. Entre estas, encontra-se a Darcília (35 anos,
portuguesa, toxicodependente), de cuja entrevista se segue um trecho:
' Com que idade é que começou a trabalhar?
' Ai, foi muito nova, não sei, agora não me lembro. Sei que foi muito
nova. ( )
' Mas andou na escola?
' Andei.
' Até que ano?
' Quarta.
' Até à quarta, e depois foi logo trabalhar?
' Fui. ( ) tinha necessidade porque os meus pais eram pobres, eram
pobres eu tinha que ajudar em casa.
Articulada com a pobreza, encontra-se, frequentemente, a pouca escolaridade. A
baixa formação escolar será outra das regularidades. É frequente que as
mulheres possuam um baixo grau de escolaridade, tal como o 4º ano ou menos.
' À entrada na prostituição
Se nos centrarmos agora no momento de entrada na prostituição, todos partilham
uma característica: o desejo de ganhar dinheiro, de forma mais rápida e em
maior quantidade. A antecipação de que poderão atingir este objetivo com o sexo
comercial é-lhes, frequentemente, sugerida por amigas, conhecidas, vizinhas ou
colegas com experiência na prostituição, que as ajudaram a perceber as
vantagens, dando com isso um contributo para a sua decisão de iniciarem a
atividade. Num momento de dúvida sobre o rumo a dar à sua vida e na presença de
dificuldades económicas, cerca de metade das mulheres a quem realizei
entrevistas aprofundadas refere esta influência. Fosse porque uma mulher com
quem se relacionavam lhes salientou o aspeto mais positivo do trabalho sexual,
dinheiro rápido e em quantidade como solução para os seus problemas, fosse
porque ao observarem a forma como essa pessoa vivia puderam perceber a alta
rentabilidade do negócio. Veja-se, a este propósito, o seguinte exemplo:
' É assim: eu na altura separei-me, tinha um filho, eu tenho um filho
de 12 anos, separei-me e tinha uma amiga que trabalhava na vida ( )
E então as pessoas diziam tinha pessoas amigas que diziam:
"Ai, esta vida é fácil, vou para uma boîte e tal. O quê?
Trabalhas todo o mês para receber 60 contos?"
' Onde é que a Clara trabalhava?
' Num restaurante. E eu num dia fui, experimentei e, só num dia, fiz
70 contos. No primeiro dia fiz 70 contos. ( ) comecei a pensar: vou
trabalhar todo o mês para ganhar 60, se eu num dia posso ganhar 70?
(Clara, 27 anos, portuguesa)
No que concerne às influências exercidas por terceiros na entrada na
prostituição, existe um estereótipo que é infirmado neste trabalho: o de que as
mulheres entram na prostituição sempre pela influência nefasta de um
explorador. Apenas três das mulheres entrevistadas referem a interferência
decisiva de um namorado aquando do início da sua atividade, não tendo sido
relatada, em nenhum dos casos, a existência de coação, mas sim de persuasão. A
influência de outras trabalhadoras do sexo suas conhecidas parece mais evidente
do que a influência de um homem com objetivos de exploração.
Outra regularidade consiste na passagem pelo alterne ou pela prostituição de
interior, em bares ou em apartamentos, antes do ingresso na prostituição de
rua. Metade das trabalhadoras do sexo que entrevistei trabalhou em contextos de
interior antes de se decidir pela prostituição de rua. Esta passagem por outros
tipos de trabalhos sexuais, com posterior opção pela rua, dá-se pelo
reconhecimento das vantagens deste tipo de prostituição, nomeadamente pela
probabilidade de fazerem mais dinheiro por não terem que repartir lucros, pela
liberdade de horários e dias de trabalho e pelo facto das relações sexuais
serem habitualmente rápidas e desprovidas de afeto, e não por degradação
pessoal ou despromoção na carreira.
A Sónia (30 anos, portuguesa), por exemplo, começou a fazer alterne por
sugestão duma vizinha sua que o praticava e, mais tarde, passou para a
prostituição de rua.
Entretanto a vida complicou-se: pagava 12,5 euros por dia na pensão e
sentia dificuldades em fazer face às suas despesas porque só fazia
alterne. Uma das pessoas que morava na pensão era prostituta e dizia-
lhe quanto ganhava: "foda-se e eu estou ali e não faço
nada ", pensava. Além disso, não gostava de ter que ser
apalpada para poder fazer algum dinheiro. Diz que o sistema do
alterne não dá com o seu feitio ( ). Perguntou ao Sílvio [o namorado]
o que é que ele achava e ele disse-lhe que não achava bem. Face a
esta oposição, ela esperou mais uns dias, mas depois decidiu-se a ir.
Na primeira noite, entre as 22.30h e as 2h fez 80 contos. Foi ter com
o Sílvio, que saía às duas e meia, e mostrou-lhe o que tinha ganho.
"Comecei e aí estou "
Quanto aos aspetos singulares: há mulheres que entraram no trabalho sexual com
pouca idade, entre os 16 e os 20 anos, mas outras que o fizeram mais tarde,
depois de terem passado por um casamento e quando já têm filhos; algumas
ingressaram na prostituição porque estavam desempregadas, outras desempregaram-
se para entrar na prostituição; ainda outras nunca tiveram um emprego sem ser
na área do trabalho sexual. A maior parte tem filhos e marido, companheiro ou
namorado, com quem formam uma família, mas nem todas preenchem estas duas
características. Certas, por exemplo, moram sós, em pensões.
Pontos de inflexão e mudança
Quando se analisam os percursos individuais das prostitutas, tomando em
consideração as variáveis contextuais, familiares e sociais que caracterizam
tanto o seu passado como o momento presente, os recursos psicológicos,
económicos, escolares e profissionais que possuem e a altura da vida em que se
encontram, percebe-se que houve uma rutura que implicou uma modificação na sua
trajetória. Esta noção de rutura ou inflexão na trajetória de vida destas
mulheres e transgénero, quando iniciam o trabalho sexual, parece-nos importante
para a compreensão da sua entrada no comércio do sexo. O ingresso no trabalho
sexual faz-se através dum processo de corte num momento crítico ou com um
passado problemático que rejeitam.
As circunstâncias que estão subjacentes a esse processo são variadas, mas
observámos duas formas que surgem com mais frequência: a presença dum
acontecimento marcante que provoca alterações drásticas na vida da pessoa e a
fuga à violência familiar.
A presença dum acontecimento marcante que provoca alterações drásticas na vida
da pessoa é observada em várias das histórias de mulheres e transgéneros.
Trata-se duma ocorrência relevante, como o divórcio, a prisão do cônjuge, a
expulsão de casa pelos familiares ou a perda do emprego ' acontecimentos de
vida importantes que obrigam a mudanças profundas na existência individual.
Nestas situações, muitas delas vêm as suas necessidades financeiras aumentar
exponencialmente, pois ficam sozinhas com os filhos a seu cargo, não podem
dividir despesas, passam a ter que pagar uma renda de casa, podendo igualmente
haver uma diminuição repentina dos seus rendimentos. Face a estas
circunstâncias, o trabalho sexual surge como uma opção válida, no qual elas
poderão auferir a quantia de dinheiro de que necessitam. Mostrei já um exemplo,
o da Clara (27 anos, portuguesa), em que esta situação surge evidente: ela
refere o pós-divórcio e a existência do filho, aos quais se pode associar a
influência do grupo de amigas, como tendo sido decisivos para a sua entrada na
prostituição.
A outra circunstância que aparece com frequência relevante é a fuga à violência
familiar continuada. Esta motivação, presente em muitas das histórias de vida,
está associada quer à violência conjugal, quer à violência parental. Assim,
existem mulheres que ingressaram na prostituição na sequência da fuga dum
casamento no qual eram vítimas de violência por parte do marido. Por exemplo, a
Joana (44 anos, portuguesa) fugiu de um marido agressor com a filha menor. Ela
exercia a sua profissão com ele, pelo que, após a fuga, ficou sem meios de
subsistência. Começou a procurar emprego tendo respondido a um anúncio para
trabalhar numa pensão, sem ter percebido do que se tratava. Uma vez lá e
perante a oferta de trabalhar como prostituta, começou por recusar, mas acabou
por ceder e entrou no trabalho sexual.
Noutros casos, raparigas bastante jovens fogem ao seu meio familiar por serem
vítimas de agressões físicas, psicológicas ou sexuais, por assistirem a maus-
tratos conjugais ou por desejarem escapar à rigidez e desadequação das normas
impostas pelos progenitores9. Em algumas destas situações, as raparigas ficam
sozinhas e, sem outras formas de sustento, a prostituição pode, então, aparecer
como a alternativa mais realista para poderem sobreviver. Para algumas, o
ingresso na prostituição faz-se de forma progressiva. Elas começam por mendigar
ou aceitar que lhes ofereçam algo e, logo, alguns homens mais velhos trocam
essas ofertas por pequenas permissões de carácter sexual. Depois disto, acabam
por se envolver em práticas de prostituição.
Estas duas formas de entrar no trabalho sexual, a que decorre de um
acontecimento drástico e a que ocorre por fuga à violência, são os percursos de
entrada na prostituição que surgiram mais frequentemente nas trajetórias que
estudei, embora não esgotem a totalidade das situações.
Para terminar, resta reiterar que as trajetórias de entrada no trabalho sexual
de rua são todas diversificadas sendo caracterizadas quer por particularidades
individuais, quer por pontos que podem ser comuns a várias delas.
Notas finais
As perspetivas feministas relativas à prostituição têm, ao longo do tempo,
passado por mudanças, sendo que, atualmente, a abordagem vitimizante, aquela
que mais fortemente é associada com "o" feminismo, encontra-se a
par de uma outra visão sobre a prostituição que encara esta como uma opção e um
trabalho. Ainda assim, mesmo esta corrente deve estar vigilante sobre as formas
que a sua conceção pode tomar para que, ao tentar fugir de uma visão simplista,
o determinismo abolicionista, não caia numa outra abordagem simplista, aquela
que glorifica o trabalho sexual, esquecendo que nem sempre este é vivido e
percecionado de forma positiva.
De qualquer forma, quaisquer leituras feministas que possam ser efetuadas serão
sempre parciais, pois partem da realidade social e política que as enquadra,
tal como cada prostituta terá a sua própria subjetividade (Pinto et al., 2010).
Porém, se assumirmos a tradição interpretativa da conceção construtivista da
ciência (Denzin, 1998), reconhecendo que a interpretação assenta no
conhecimento de dentro e que os objetos da sua análise são as experiências
vividas pelas pessoas (Charmaz, 1995), esta dualidade entre perspetivas
feministas e subjetividades das prostitutas deixa de ter lugar. Aliás, como
referem Pedro Pinto et al. (2010), é preciso ouvir as vozes das prostitutas e
aquilo que elas nos contam para lá das cegueiras ideológicas, considerando a
subjetiva especificidade das múltiplas experiências. Até porque os
conhecimentos científicos e empíricos têm mostrado isso mesmo, que a realidade
do comércio do sexo é multifacetada e as motivações, experiências e
significados dos/as trabalhadores/as do sexo são diversificados.
Ouvir as vozes de quem faz prostituição afigura-se como uma aplicação do que
aqui enunciamos e resolve, a nosso ver, parte da contenda ideológica. Tomar a
perspectiva de quem faz prostituição de rua foi o que fizemos no trabalho de
que agora apresentamos uma parte. Apesar de se tratar de uma investigação sobre
um pequeno segmento do comércio do sexo, aquele que se pratica na rua, o que, à
partida, reduz já o leque de características e experiências pessoais, as
trajetórias dos/as trabalhadores/as do sexo que encontrámos mostraram ser
diferentes entre si. Os percursos das pessoas que se prostituem são diversos e
não são lineares, nem pré-determinados por qualquer destino ou especificidade.
A maioria dos comportamentos humanos são complexos e este, em particular, pelas
suas características e implicações, é-o de sobremaneira, pelo que deve ser
apreendido de forma complexa. Só poderemos compreender a prostituição na
articulação da multicausalidade (tendo em conta variáveis de diversa ordem '
psicológicas, sociais, culturais, económicas, de género), na apreensão dos
processos e na análise dos sentidos e significações que o sujeito atribui aos
seus atos e às suas inter-relações; sem grelhas ideológicas que espartilhem as
múltiplas realidades e experiências, mas partindo dessa mesma realidade para
fundamentar as nossas interpretações.