Controla e Punição: as Prisões para Mulheres
Controla e Punição: as Prisões para Mulheres
Punishment and Control: Prisons for Women
Contrôle et Punition: Prisons pour Femmes
RÉSUMÉ
Cet article consistera d'une analyse anthropologique féministe sur les régimes
pénitentiaires dans les prisons pour femmes, plus spécifiquement dans le
contexte portugais. En ce sens sera entreprise une réflexion sur les
perspectives féministes dans les études sur crime et punition de femmes, afin
de contextualiser les prisons pour femmes et les décurrents dispositifs de
contrôle et punition des régimes de détention dans les contextes occidentaux.
Ensuite, sera fait une brève approche au système pénitentiaire au féminin dans
le contexte portugais pour, enfin, proposer une anthropologie féministe de la
prison dans ce contexte.
Mots-clés: contrôle et punition, "domesticisation", féminilisation,
medicalization.
Os contextos que no ocidente (re)produzem a prisão penitenciária1 têm uma base
patriarcal que se impõe como um sistema genderizado, dicotómico, excludente e
repressor, manifesto nas várias dimensões sociais e culturais e nas ideologias
e práticas dos estados e decorrentes sistemas jurídico-penais e penitenciários.
O objetivo deste texto é analisar os dispositivos de controlo e punição nas
prisões para mulheres, tendo por base uma perspetiva antropológica feminista.
Para isso exige-se indagar, dentro dos referidos sistemas, acerca dos símbolos,
dos significados e das ideologias que configuram as construções sociais e
culturais sobre o sexo feminino e determinam formas específicas de punição
impostas às mulheres, como é sugerido pelas perspetivas feministas. Assim, este
artigo, começará por uma reflexão sobre as perspetivas feministas nos estudos
sobre crime e punição de mulheres de forma a contextualizar as prisões
femininas e os decorrentes dispositivos de controlo e punição dos regimes
prisionais nos contextos ocidentais. Seguidamente, será feita uma breve
abordagem ao sistema penitenciário no feminino no contexto português para, por
fim, desenvolver o que se entende por antropologia feminista da prisão no
contexto português.
Os feminismos no estudo do crime e punição de mulheres
Nos primeiros estudos sobre crime e punição, influenciados pelas teorias de
Cesare Lombroso e Gugliemo Ferrero, as conceções sobre a criminalidade feminina
refletem a ideologia masculina hegemónica da época que tinha a burguesia como
modelo social normativo (Smart, 1976). As mulheres, perscrutadas sob um olhar
patriarcal, foram classificadas e objetificadas nestes estudos, que atribuíam
as causas da criminalidade feminina a distúrbios emocionais e hormonais,
ignorando as dimensões económicas, sociais e culturais. Estas dimensões
começaram a ser debatidas e consideradas em estudos que surgem no século XX
sobre prisão e criminalidade masculinas, mas em relação às mulheres, a situação
manteve-se inalterada (Cunha, 2007).
Estes preconceitos sobre as mulheres incriminadas influenciaram os estudos e as
práticas penitenciárias até à atualidade e, como explicita Elisabet Almeda
(2002), somente após o desenvolvimento da criminologia feminista estas teorias
foram postas em causa. A subalternização e inferiorização subjacentes a estas
representações das subjetividades femininas, nos vários contextos ocidentais,
tiveram consequências perniciosas nas aceções e formas de controlo sobre as
mulheres. Assim, as novas formas de poder emergentes na modernidade
reproduziram as raízes patriarcais e a normatividade da masculinidade
hegemónica através de um sistema genderizado, complexificado pelos discursos
científicos sobre os corpos femininos, que legitimaram a diferença feminina
como patológica, subdesenvolvida e inferior.
As teóricas feministas empreenderam investigações no sentido de perceber como
foram, e são, incriminadas e punidas as mulheres. Na demanda por um
enquadramento histórico, político, económico e social das formas de prisão
aplicadas às mulheres, surgiram vários estudos, incluindo aqueles sobre as
origens das prisões femininas e os respetivos regimes prisionais. Estas
investigações lograram denunciar a ocultação das mulheres nos estudos teóricos
sobre crime e punição e a negligência por parte das instituições jurídicas,
penais e penitenciárias, justificadas por, historicamente, o número de mulheres
reclusas ser diminuto em comparação ao dos homens e devido ao androcentrismo
que domina as instituições e as academias. Estas análises começaram a
considerar as questões de género nas conceções e práticas penais e
penitenciárias, afirmando que estas reproduzem noções hegemónicas de feminino e
feminilidade, contribuindo, assim, para a desconstrução dos discursos da
criminologia tradicional ou malestream (Matos 2008: 89).
Neste sentido, Nicole Rafter (2004) assevera que as prisões femininas além de
exigirem obediência às regras prisionais e leis criminais, ambas em maior
número para as mulheres, também requerem obediência a padrões de feminilidade
intersectados pela raça e classe social.
Algumas investigações feministas sobre a história das prisões femininas
analisaram os reformatórios para mulheres em Inglaterra e EUA, com origem nos
séculos XVII e XVIII. Os regimes nestes espaços eram rígidos, consistindo num
programa de reabilitação de mulheres, que envolvia uma total vigilância e
disciplina que concorriam para a feminilização sob trâmites morais de
feminilidade burguesa. Este tipo de prisões foi implementado em vários
contextos ocidentais e recluíam, na maioria, mulheres pobres funcionando como
casas de correção e trabalho. Os regimes impostos eram diferentes dos aplicados
nas prisões masculinas, já que "o propósito do disciplinamento dos corpos
das mulheres no sistema de reformatórios não era para o trabalho remunerado no
mercado laboral mas para o trabalho reprodutivo na esfera doméstica (Mccorkel,
2003: 45)"2. Almeda (2002) refere que este tipo de prisões surge em
Espanha, a partir do século XVI, como casas galera e casas de misericórdia,
onde as mulheres eram submetidas à reclusão e a técnicas de punição, tais como
o castigo moral, a reabilitação espiritual e as disciplinas de feminilização e
domesticização.
Na atualidade, verificam-se nas prisões femininas dispositivos de controlo e
punição específicos. Assim, os regimes aplicados nas prisões femininas
consistem, segundo Pat Carlen e Anne Worral (2004), numa mistura de ideologias
que refletem a aceção de que as mulheres que cometem crimes são duplamente
desviantes, uma vez que transgridem a lei e o modelo de feminilidade normativo.
Estas ideologias sob pressupostos neo-lombrosianos concorrem para a
patologização e medicalização das mulheres, justificada pela sua suposta maior
debilidade física e psicológica, e demonstram uma preocupação de reabilitação
das mulheres reclusas, de acordo com o papel tradicional destas na família e na
sociedade. Assim, as mulheres, além de serem submetidas aos mesmos dispositivos
de controlo aplicados nas prisões masculinas, são também constrangidas
psicologicamente pela imposição de três tipos de disciplinas: a feminilização,
a domesticização e a medicalização, como vimos até aqui (Carlen e Worral,
2004).
Estes 3 tipos de disciplinas enquadram-se no que Michel Foucault designou de
docilização dos corpos (1993). Contudo como Foucault, na obra Vigiar e Punir:
Nascimento da Prisão (1993 [1975]), se refere exclusivamente ao corpo e à
história do sistema penitenciário masculinos (Howe, 1994), importa realizar uma
análise feminista a alguns pressupostos teóricos da sua obra, para a qual o
trabalho de Judith Butler (2006) confere importantes contributos.
O poder disciplinar e constitutivo na construção das subjetividades femininas,
veiculado na produção discursiva sobre a diferença sexual feminina, (re)cria
normas e regulações de feminilidade que participam nos dispositivos de controlo
e punição impostos às mulheres. Butler (2006) argumenta que o poder regulador e
normativo não só atua sobre um sujeito pré-existente, como também o constitui e
forma. Neste sentido, esta teórica considera que o género é regulado por
discursos específicos de género, discordando de Foucault, por este considerar o
poder regulador composto por vários tipos de regulação entre, os quais, o
género. Esta autora defende que o aparato regulador e disciplinar que governa o
género é específico deste. "Não tenciono sugerir que a regulação de
género é paradigmática do poder regulatório enquanto tal, mas sim que o género
requer e institui o seu próprio e distinto regime regulador e
disciplinar" (Butler, 2006: 10).
O aparato, regulador e disciplinar, que governa o género consigna a dominação
masculina sob o feminino, incitando à docilização diferenciada dos corpos
femininos. Este aparato é manifesto nas prisões femininas gerando regimes de
vigilância intensiva e disciplina, centrados em normas hegemónicas de
comportamento feminino, através da imposição de modelos de feminilidade e
domesticidade.
Desta forma, a análise de Angela Davis (2001) permite perceber que o poder
regulador que opera a diferenciação sexual feminina inerente às estruturas
políticas, sociais e culturais patriarcais é reprodutor de formas de punição,
controlo e violência diferenciadas para as mulheres em relação aos homens e
entre as mulheres, se considerarmos as suas diferenças de raça, status
económico, sexualidade, etnia, idade e outras. As estruturas patriarcais e as
decorrentes formas de punição e violência sobre as mulheres manifestam-se,
segundo Davis (2001), tanto no espaço negligenciado do doméstico como no espaço
público ' nas prisões. Esta autora refere que as mesmas estruturas patriarcais
se manifestam em ambos os espaços, levando a que as mulheres sejam mais
severamente punidas. Este maior controlo, punição e violência a que são
informalmente submetidas, com a conivência dos poderes públicos, é uma das
causas para o menor número de mulheres reclusas.
As feministas pós-estruturalistas, inspiradas nas teorias foucauldianas,
colocam em causa as categorias mulher e mulher criminal, tal como afirmou
Carlen "as mulheres criminosas não apresentam uma essência" (1985
cit. em Howe, 1994: 145). Estas perspetivas criticam também os estudos
feministas, de criminologia e sobre as prisões, que usam a categoria universal
"mulher", não intersectando raça, status económico ou outras
diferenças entre as mulheres.
Estes posicionamentos feministas permitem também refletir e dar visibilidade às
agencialidades das mulheres quando cometem crimes. O que contraria os discursos
malestream sobre criminalidade feminina, já referidos, e vai de encontro
"( ) [aos] discursos emergentes em abordagens recentes à transgressão
feminina, de enquadramento feminista, [que] revelam agência e também
racionalidade por parte das mulheres que cometem crimes" (Matos, 2008:
125).
As abordagens feministas no estudo do crime e punição caracterizam-se,
atualmente, por uma pluralidade de objetos, métodos, posturas epistemológicas e
diversas perspetivas sobre crime, explorando questões de ordem social, tais
como a marginalização económica e social das mulheres, o poder patriarcal e os
dispositivos informais de controlo das subjetividades e corpos femininos,
(Matos, 2008) que são fulcrais para o entendimento da criminalidade feminina e
das práticas penitenciárias nas prisões femininas.
As prisões femininas nos contextos neoliberais
A partir dos anos 70 do século XX, observa-se um aumento exponencial das
populações prisionais nos países ocidentais. Uma das causas para este aumento
decorre da adoção, por parte destes Estados, de políticas neoliberais que
vieram perseverar as diferenças socioeconómicas entre grupos, o aumento da
pobreza e a criminalização das/os mais pobres. Assim, de acordo com a
perspetiva de Carlen (2007: 1006) sobre "a economia cultural do
imprisionamento" ' que descreve como o "estatuto icónico dos
poderes míticos da prisão para proteger governos e cidadãos de quaisquer
ameaças ao corpo político resultantes de infrações à lei, desemprego,
imigração, marcas visíveis de exclusão de cidadania e outras" ', a prisão
serve como forma de contenção dos indivíduos que, em situações socioeconómicas
precárias, são considerados um perigo para a segurança estatal. Lorna Rhodes
(2001) refere-se a este fenómeno como a "magia da prisão" face ao
desaparecimento de milhares de pessoas através da reclusão, explicitando:
"através do desaparecimento de largos números de pobres, ( ) as prisões
exercem um tipo de magia social que produz "invisibilidades
múltiplas". (Rhodes, 2001:25)
As políticas neoliberais caracterizam-se, entre outros aspetos, pelo declínio
do Estado social, cada vez menos regulador da esfera socioeconómica e pelo
reforço do aparelho punitivo do Estado, que se restringe à manutenção da ordem
impondo a gestão policial e judiciária da pobreza (Wacquant, 2000). Estas
políticas são, assim, geradoras de injustiças e desigualdades socioeconómicas
que, no geral, afetam mais as mulheres, provocando a feminização da pobreza,
isto porque nos contextos neoliberais e patriarcais verifica-se estratificação
económica e de género.
Esta situação política e económica globalizada é uma das causas para o aumento
das populações prisionais femininas desde os anos 70, em vários contextos
geográficos (Sudbury, 2005). Os números de mulheres reclusas rondam,
globalmente, entre os 2% e 9% das populações prisionais (Carlen, 2012). Algumas
similaridades nos diferentes contextos prisionais femininos são explicitadas
por Carlen e Worral (2004: 56):
( ) acomodação inapropriada, distanciamento das famílias, números
desproporcionais de presas indígenas, estrangeiras e de minorias
étnicas, negligência no provisionamento das mães e bebés e nos
cuidados de saúde, problemas com drogas e trabalho prisional (Worral,
1998). A maioria das mulheres nas prisões pelo mundo estão lá por
crimes de pobreza ou crimes relacionados com drogas e grande parte
dos crimes violentos estão relacionados com retaliações a anos de
abuso.
Almeda (2002), com base na investigação que realizou sobre prisões femininas em
Espanha, constata que a maioria das mulheres é incriminada por crimes
relacionados com o tráfico de droga e têm menos recursos económicos, laborais e
educativos que os homens reclusos. Refere, ainda, a falta de espaços prisionais
femininos o que comporta condições mais deficitárias e um maior distanciamento
das pessoas relativas levando ao isolamento das reclusas. Aponta, também, a
pouca oferta de atividades laborais e educativas, que se caracterizam por
ocupações "tipicamente femininas", "cursos de costura,
auxiliar, limpeza a seco, bordado, cozinha, estética e cosmética, cabeleireira,
puericultura, etc." (Almeda, 2002:229). Estas problemáticas, segundo a
autora, constatam-se nos restantes contextos europeus e ocidentais.
Os regimes nas prisões femininas são mais rígidos, o que decorre das conceções
e estereótipos de feminino reproduzidas pelas/os guardas, que têm condutas mais
rígidas em relação às mulheres reclusas, às quais exigem trâmites mais
rigorosos de comportamento (Almeda, 2002, Carlen, 2012). É ainda importante
referir a maior medicalização a que são sujeitas as mulheres reclusas.
Os regimes penitenciários nas prisões femininas, nos contextos ocidentais
neoliberais, concorrem para a patologização das mulheres incriminadas que são
sujeitas à medicalização e para a imposição de regimes mais rígidos, que
veiculam conceções hegemónicas de feminino e feminilidade o que poderá provocar
um maior sofrimento para as mulheres reclusas.
O sistema penitenciário no feminino em Portugal
Os estudos sobre as prisões femininas em Portugal e as conceções sobre a
criminalidade feminina, ao longo da história, são relativamente escassos.
As formas de enclausuramento de mulheres, na maioria pobres, consistiram na
reclusão em casas da Misericórdia. Estas instituições surgem nos séculos XVI e
serviam segundo Maria Araújo (2008:3),
Para manter o seu bom nome e guardar a sua honra ( ) as mulheres eram
afastadas da corrupção através do internamento em conventos ou
recolhimentos ( ) Nos recolhimentos aprendiam a ser boas esposas, a
fazer trabalhos manuais, como bordados, costura e fiação e a viver
para Deus.
As casas da Misericórdia, na sua maioria, recluíam mulheres órfãs, viúvas e
pobres. Contudo existiam as casas de correção que recluíam mulheres
incriminadas e acusadas "por terem cometido o pecado da carne, eram
consideradas moralmente perigosas, não apenas por terem perdido a sua honra,
mas sobretudo por cometerem pecados públicos visíveis por todos" (Araújo,
2008: 6). A organização destas casas era protagonizada por religiosas sob um
regime rígido e repressivo. As regras impostas e a vigilância a que eram
submetidas as mulheres recluídas, o isolamento, o silêncio, o trabalho e a
penitência através da oração, assemelhavam-se aos modelos de prisão
penitenciária defendidos e aplicados no século XIX. Neste sentido, concordando
com Almeda (2002), estas instituições dos finais do século XVI, que se
estenderam por toda a Europa, são os antecessores mais diretos das novas formas
de punir e castigar inerentes ao sistema penitenciário. Apesar dos regimes
repressivos que exerciam, as resistências femininas nestes espaços estavam
presentes, tal como demonstra Maria Lopes (2005: 227):
[o]s dirigentes da Misericórdia ( ) [eram] incapazes de as controlar,
de as corrigir ( ) falam alto, gritam, cantam, jogam, insultam-se,
rogam pragas, batem-se, desrespeitam as autoridades, comunicam com o
exterior, adornam-se, polvilham-se, apaixonam- se, tocam-se.
Este tipo de instituições foram implementadas em vários contextos ocidentais, e
são reflexo do controlo e punição sob normas de feminilidade que, apesar de
tomarem diferentes expressões, regiam-se por valores patriarcais e
moralizadores ocidentais que, na modernidade, começam a exercer um maior
controlo sobre as mulheres.
Os pressupostos da prisão moderna refletiram-se nas reformas penais e
prisionais em Portugal no período do liberalismo, durante o século XIX. Estes
pressupostos consubstanciaram o estado moderno que, através de uma
racionalidade legal, desenvolveu um sistema jurídico-penal que instituiu o
sistema penitenciário.
Nesta época, Maria Santos (1999) assevera que se denotava a falta de
preocupação com as condições prisionais das mulheres, apesar do crescente
interesse pela criminalidade feminina, nomeadamente nas áreas da criminologia e
antropologia criminal, cujas problemáticas principais eram a sub-
representatividade feminina nos índices de criminalidade e a relação entre a
natureza feminina e a sua delinquência. Dos vários autores3 da época que
retrataram as mulheres "criminais", "a especificidade
biológica e social das mulheres condicionava as motivações destas para o
crime" (Anica, 2005: 369).
Os crimes imputados às mulheres, identificados por Santos (1999), no estudo que
realizou sobre a Cadeia da Relação do Porto, na segunda metade do século XIX,
contrariamente ao estabelecido, não correspondiam ao ideal de mulher emergente
na modernidade, nem se remetiam apenas aos chamados "crimes
femininos" como o aborto, o infanticídio e a prostituição. As mulheres
adotaram estratégias de sobrevivência, imiscuindo-se em práticas ilegais, como
roubo e participação em quadrilhas.
As conceções patriarcais sobre as mulheres manifestaram-se nos regimes
aplicados nas casas de correção do século XIX. Como são exemplos a "Casa
de Força" em Lisboa "com uma repartição feminina, para mulheres
dissolutas e vadias que se ocupavam a fiar algodão e a fazer costura"
(Santos, 1999: 37). A Casa de Correção do Porto, que recluía mulheres acusadas
de vadiagem e prostituição e que se situava numa ala da prisão de Aljube, desta
cidade, contendo esta uma sala de trabalho para a fiação (Santos, 1999). A
Cadeia das Mónicas que, segundo Isabel do Carmo e Fernanda Fráguas (2002), a
partir de 1904 funcionava como casa de correção de raparigas com sala de
costura, lavandaria e engomadoria. Estes exemplos de prisões femininas
denunciam regimes de controlo e punição que, através da imposição de atividades
"tipicamente femininas", usavam a feminilização e domesticização
como técnicas disciplinares.
Além dos referidos espaços, as mulheres eram recluídas em prisões masculinas
que, só a partir da primeira metade do século XIX, começam a ter alas femininas
separadas e, tal como refere Aurízia Anica (2005: 440) "a cadeia pelas
deficientes condições ( ) continuou a ser para as mulheres, ainda mais do que
para os homens, um lugar de doença e morte".
Na emergência do sistema penitenciário em Portugal salienta-se a defesa de um
projeto penitenciário para as mulheres que promovesse a sua regeneração e
reeducação, de acordo com os trâmites de feminilidade dominantes (Santos,
1999). O sistema penitenciário, no contexto português, foi efetivado no regime
do Estado Novo. Apesar de já consagrados na lei os princípios desta forma
moderna de punição, foi só com a implementação da Reforma prisional de 1936 que
se estabeleceram "os métodos com que já no século XIX se aperfeiçoavam as
tecnologias de correção em alguns países da Europa e EUA" (Cunha, 1994).
Neste período, sob o sistema ditatorial, formularam-se dispositivos de controlo
mais estruturados e eficazes, que às mulheres impuseram modelos de
domesticidade e feminilidade difundidos nas figurações da "mulher
mãe" e "mulher pátria". "Salazar dirigia-se à mulher-
mãe', à mulher-pátria' e comparava o zelo do governo doméstico aos cuidados do
governo do país" (Neves, 1999, cit. Tavares, 2011: 62). Este modelo
poderá ser considerado como um aparato de controlo, regulação e punição que
serviu para a docilização dos corpos e subjetividades femininas.
Não existem estudos aprofundados sobre as prisões femininas durante o Estado
Novo. Porém, existe bibliografia4 que retrata mulheres combatentes contra o
regime que passaram pela tortura e prisão e permite aferir sobre as
experiências de prisão e tortura, bem como a vigilância e censura nos vários
setores socioculturais. A prisão e as torturas, a que foram sujeitas as
mulheres antifascistas, não inviabilizaram formas de resistência dentro das
prisões. Vanda Gorjão (2002) descreve estratégias de resistência de mulheres
prisioneiras políticas: recriação de redes políticas, organização de debates,
reuniões e tarefas entre mulheres militantes partidárias que, apesar das
dificuldades, mantinham contactos permanentes entre as celas e ainda incitavam
à politização de outras mulheres presas.
As mulheres de baixos estratos socioeconómicos eram perseguidas e punidas,
jurídica e moralmente, pelo regime. Algumas das formas de prisão para as
mulheres, quando incriminadas de delitos comuns, como mendicidade, vadiagem e
prostituição, foram a reclusão nas alas prisionais femininas das cadeias
regionais, nas casas de correção e, para as mais jovens e órfãs, o recolhimento
em colégios de freiras com regimes que se pautavam pela "repressão
violenta, o puritanismo sexual, o menosprezo pelo ensino e o cultivo dos
trabalhos de mãos, chamados femininos" (Carmo e Fráguas, 2002: 226).
Todas estas formas de reclusão têm como base um aparato disciplinar e de
punição conformado a modelos de feminilidade e domesticidade.
A primeira prisão penitenciária feminina em Tires, construída em 1954, aplicava
a ideologia do Regime cujos princípios normativos deduziam que a reabilitação
das reclusas deveria consistir na aprendizagem e inculcação de valores morais e
dos papéis sociais que lhes consignavam, o de boas mães e domésticas (Cunha,
1994). Estas aceções refletiram-se na conceção arquitetónica da prisão e na
gestão prisional levada a cabo por uma congregação religiosa. Só em 1980 é que
esta prisão deixa de ser dirigida por freiras, contudo, ainda em 1987 persistia
um modelo "doméstico autoritário" (Cunha, 2002).
Recentemente, em relação aos dispositivos de controlo, disciplina e punição e à
reprodução de representações de feminino e feminilidade na prisão de Tires, o
estudo de Raquel Matos (2008) permite concluir que as mulheres reclusas
reproduzem representações de feminino e feminilidade nos processos identitários
e na construção narrativa da história de vida, ao certificarem a normatividade
jurídica e penitenciária, associada à normatividade da feminilidade, expressa
na preocupação de se apresentarem em conformidade com as noções hegemónicas de
feminino e pela reapropriação estratégica destas representações, o que poderá
ser justificado, em parte, por se encontrarem em contexto prisional. E, ainda,
a reportação à medicalização e o alto número de sanções disciplinares, revelada
por Matos (2008), permite concluir que, tal como em outros contextos
ocidentais, também nas prisões portuguesas, se repetem os dispositivos de
controlo e punição através da feminilização, "domesticização" e
medicalização como formas disciplinares.
Manuela Cunha e Rafaela Granja (2012) verificaram, recentemente, nos regimes
das prisões femininas de Tires e de Santa Cruz do Bispo, a persistência de um
modelo de domesticidade e, a um nível informal, a imposição de valores de
responsabilização maternal. Revelam, ainda, a conformidade com noções
hegemónicas de feminino por parte de reclusas mães, verificando, contudo, que a
maternidade pode ser utilizada, pelas mesmas, como "técnica de
neutralização genderizada" (Cunha e Granja, 2012: 13) para a rejeição de
uma identidade desviante.
Através da análise da atual população prisional feminina (DGSP, 2012), conclui-
se que a maioria das mulheres detém poucas condições económicas, menos
habilitações escolares que os homens reclusos e são, na maioria, condenadas por
crimes relacionados com o tráfico de droga a altas penas de prisão. Estes dados
são similares aos referidos por Cunha (2002), que constata ainda a alta taxa de
pobreza e o tráfico como estratégia de sobrevivência, tal como Anália Torres e
Maria Gomes (2005: 26) que, em 2001, certificaram uma situação análoga
descrevendo:
[as mulheres] estão detidas fundamentalmente pelo crime de tráfico de
drogas (53,3%), têm penas mais longas, são menos reincidentes e
tendem a consumir muito menos substâncias ilícitas. Revela-se assim
um perfil que associa as mulheres a práticas criminais como modo de
vida alternativo e de obtenção de recursos financeiros em contextos
sociais desfavorecidos.
As mulheres reclusas nas prisões em Portugal detêm condições socioeconómicas
precárias, o que se pode considerar como sinónimo da feminização da pobreza,
fruto do sistema político e económico neoliberal que concorre para a
estratificação socioeconómica e sexual e impõe, ainda, um modelo de
domesticidade. Aqui as mulheres continuam a ser duplamente exploradas, no
trabalho e no designado espaço doméstico: as responsabilidades familiares e
domésticas são-lhes incutidas e, ainda, a necessidade de sustentar a família
através do trabalho, que as constrange através da precariedade e de condições
de acesso e remunerações menores. Neste sentido, Cunha (2002: 155) constatou,
nas mulheres reclusas na prisão de Tires,
[que] como outras mulheres de baixos estratos sociais, as atuais
reclusas sempre investiram na esfera do trabalho, não enquanto opção
"emancipatória" ou "resistência contra-
hegemónica", mas como condição e estratégia de sobrevivência.
Nas classes populares as definições culturais dos papéis de género
também remetem para as mulheres as responsabilidades familiares e
domésticas. Contudo não lhes vedam o papel extradoméstico de
providenciadora de recursos.
Em relação às prisões femininas, e como vimos ao longo desta exposição, a
literatura permite concluir que existe, no contexto português, tal como noutros
contextos geográficos, um sistema genderizado que reproduz formas de poder e
dispositivos de controlo e punição específicos. As políticas económicas,
laborais e jurídico-penais perpetuam, ainda, formas de discriminação sobre as
mulheres através da imposição de constrangimentos socioeconómicos e penais que
resultam numa maior pobreza, desemprego e más condições de trabalho e numa
maior punição através de uma normatividade minada por representações
hegemónicas de feminino e feminilidade que julga e sanciona duramente as
mulheres que transgridem as normas sociais e as leis.
Por fim, constata-se que as problemáticas aferidas sobre os contextos
prisionais femininos em Portugal são alvo de poucas investigações sob uma
perspetiva feminista, pelo que finalizo este artigo com a reivindicação de uma
antropologia feminista da prisão no contexto português.
Para uma antropologia feminista da prisão no contexto português
A partir do cruzamento interdisciplinar entre a antropologia e as teorizações
oferecidas pelos feminismos pós-estruturalistas, defendo uma antropologia
feminista da prisão para a análise do sistema penitenciário no feminino em
Portugal. Considerando fundamentais as seguintes questões: a necessidade de
incorrer em análises fora das conceções patriarcais advogando a desconstrução
da noção patriarcal de "mulher"; o desenvolver de estudos sobre
mulheres que as compreendam como (inter)subjetividades incorporadas,
identidades múltiplas e agentes, defendendo a urgência de genealogias
alternativas no feminino como prática discursiva e teórica de contra memória e
de subversão aos regimes de verdade impostos (Braidotti, 1994).
As ideias emergentes na modernidade complexificaram as noções patriarcais sobre
as mulheres e tentaram confiná-las ao espaço doméstico, desenvolvendo discursos
acientíficos que promoveram a dicotomização das mulheres ora como mães,
sensíveis, frágeis e dóceis, ora como potenciais criminosas, devido à natureza
e sexualidades femininas consideradas patológicas e perigosas. Noções como
transgressão, ilegalidade e violência remetem para práticas, tidas como
masculinas, mas que são reproduzidas também por mulheres, o que contraria a
noção hegemónica de "mulher" como prática discursiva do patriarcado
(Braidotti, 1994). Assim, um olhar antropológico feminista sobre as mulheres,
incriminadas e submetidas à reclusão, deve percecioná-las como
(inter)subjetidades femininas, dotadas de agência, e não como vítimas passivas
coagidas ao crime, ou como detentoras de uma natureza feminina patológica que
as levaria a tomar comportamentos considerados irracionais e desviantes. A
rejeição das categorias "mulher", "mulher criminal" ou
"mulher ofensora" é fulcral para um entendimento das mulheres
incriminadas e sujeitas à reclusão, o qual também deverá ter em conta as
agências e resistências femininas.
Para interceder pela ação antropológica feminista da prisão considero fulcral a
análise das formas de punição específicas impostas às mulheres, no sentido de
dar visibilidade às experiências femininas de reclusão, entendendo os discursos
das mulheres reclusas como os discursos à margem e as resistências em relação
aos discursos de poder inerentes às políticas e práticas penitenciárias. Tal
como afirma Lila Abu-Lughod (2006), devemos escrever contra a cultura, enquanto
hegemonia cultural reproduzida por várias instituições que a significam e a
impõem dessa forma repercutindo práticas políticas, económicas, sociais e
culturais de dominação que silenciam e marginalizam experiências de resistência
e realidades socioculturais, particularmente, as intrínsecas às mulheres nas
prisões femininas.
A proposta de uma antropologia feminista da prisão no contexto português
reivindica um posicionamento reflexivo e crítico, através da adoção de
epistemologias e metodologias antropológicas feministas, como a autobiografia e
a reflexividade, concorrendo para que não se estabeleça a relação hierárquica
investigadora/ outra ou self/outra para permitir, assim, uma melhor aproximação
e compreensão das causas e das consequências da reclusão para as mulheres
considerando as suas agências e resistências. Esta postura epistemológica
possibilita a produção de saberes localizados (Haraway, 1988) onde a
investigadora se assume enquanto subjetividade, rejeitando um posicionamento
neutro e objetivo. Este posicionamento terá de ser consciente das consequências
políticas do conhecimento produzido, que se reivindica como motor de
transformação social e que se propõe como ferramenta de emancipação dos
sistemas de dominação, quer no plano epistemológico quer no plano político,
económico, social e cultural.
As prisões femininas são espaços que concorrem para o silenciamento, a
marginalização e a segregação de mulheres que são submetidas a formas
específicas de punição nos contextos prisionais. Não é meu objetivo defender
uma melhor prisão, mas sim apelar à urgência de questionar diretamente as
políticas que a (re)produzem, ao mesmo tempo que perpetuam as desigualdades e
injustiças sociais, promovendo a exclusão e marginalização de grupos sociais
que os sistemas políticos persistem em designar de "classes
perigosas" ou "grupos de alto risco" ou ainda provenientes de
"bairros problemáticos", motivando a perseguição, a violência e a
reclusão destes grupos em prisões.