Anecropolítica e as sombras na teoria feminista
Feminismos das sombras
Os feminismos têm sido fundamentais para a criação de conhecimentos
emancipatórios, para a libertação de grupos sociais de opressões e para a
construção de sociedades mais democráticas e mais inclusivas. Contudo, nem toda
a teorização feminista participa da mesma maneira para este esforço e, em
muitos casos, há a tendência para esquecer que os feminismos surgem em
determinados contextos, sob determinadas configurações e que são apropriados
pela formação social capitalista de modo a atingir determinados intentos. Desta
forma, os feminismos apresentam, a par de um esforço de reivindicação e de
construção teórica que visa expandir direitos, formulações que podem ser usadas
num sentido diferente do esperado.
Este texto visa situar alguns desses usos, mantendo sob atenção outras
formulações dos feminismos menos estudadas em Portugal, mas que podem ser úteis
como um antídoto a manipulações e usos dos feminismos dentro de um determinado
sistema capitalista, obedecendo a uma lógica neo-liberal. Irei proceder, num
primeiro momento, a uma enunciação dos feminismos enquanto espaço de
negatividade e enquanto instrumental teórico que servirá para a concretização
das restantes secções e desenvolvimento do argumento. Num segundo momento, irei
deter-me numa história de algumas teorias feministas contadas a partir das
coordenadas da lexicalização (Spivak, 2005) e da hifenização (Oliveira, 2010),
como forma de entendimento diferente do projeto feminista até aos anos 1980. Na
secção seguinte, deter-me-ei numa enunciação das necropolíticas e do papel que
os feminismos, nomeadamente os de matriz liberal ou cultural, revelam de
cumplicidade com o excecionalismo ocidental e a sua dimensão bélica. Este
trabalho permite-me chegar às formulações que apresento na última secção de
feminismos (de sombra) que denunciam estas cumplicidades com projetos
coloniais, racistas e de opressão, evidenciando o modo como é possível produzir
teorização feminista tendo em atenção outras hifenizações que a mesma apresenta
com outros projetos de libertação. Trata-se de entender os feminismos enquanto
um espaço em permanente atenção à situacionalidade e às contingências de um
sistema capitalista e imperialista que é global e que recorre a muitas maneiras
de domesticar os movimentos sociais e as suas formulações. Não se leia neste
texto uma crítica ao feminismo (ele não existe no singular), mas sim o produto
de uma reflexão negativa que permite escrutinar fragilidades, áreas de tensão e
de cumplicidade, que podem ser precisamente evitadas a partir deste tipo de
trabalhos. Reafirmo, aqui, a importância da teoria feminista como grelha de
leitura e a sua pertinência como ferramenta política. Contudo, tal como
qualquer grelha ou ferramenta, os seus usos estão sujeitos a interpretações,
apropriações e usos que podem ser utilizados de maneiras inesperadas e
contraditórias.
Começarei pela caracterização que Teresa de Lauretis (1987) oferece da teoria
feminista. A sua proposta consiste em redirecionar a atenção de um sujeito do
feminismo para lá de um sujeito. Lauretis considera que o feminismo não é nem
pode ser uma teoria sobre a opressão das mulheres. O feminismo condensa duas
tensões: a luta pela mudança de uma representação do género e subsequentemente
das mulheres tal qual é prescrita pelos cânones da construção de género, com a
necessidade de afirmar aquilo que é irrepresentável. Ou seja, o sujeito do
feminismo não são nem a Mulher, nem as mulheres, mas antes um movimento entre
uma representação de um sujeito que está construído a partir de uma matriz
misógina e uma reivindicação para representar as falhas nesse sistema
hegemónico de representação, incluindo as mudanças que o próprio feminismo
operou, no sentido de ampliar essa falha na representação hegemónica. Daí
Lauretis sugerir, como sujeito do feminismo, o movimento entre estas duas
representações do género, um movimento de contradição e ambivalência entre a
"negatividade crítica da teoria e a positividade afirmativa das suas
políticas"1 (1987: 26). É esta vocação crítica e negativa da teoria
feminista que encontramos cabalmente explicitada em J. Jack Halberstam (2011),
que a aplica igualmente à teoria queer e à teoria feminista. Para Halberstam,
em toda uma prática e teoria assentes no sucesso político, nos resultados, nas
conquistas, parecem haver fantasmas a que chama feminismos da sombra [shadow
feminisms] que continuam a assombrar a teoria feminista. Uma espécie de
assombrações concetuais que pretendem trazer uma certa negatividade, um traço
de memória que insiste em questionar criticamente os avanços, nomeadamente os
cantos de vitória do feminismo liberal ocidental, em que bastam algumas
mulheres no poder para mostrar que afinal a ordem capitalista liberal até pode
vir a ser igualitária.
Nancy Fraser (2013) denunciou igualmente estas alianças inesperadas entre o
feminismo e a ordem neoliberal. Este trabalho evidencia que muitas das
reivindicações feministas entraram garantidamente nos discursos sociais como
seja a luta contra a violência de género, salário igual para trabalho igual,
tráfico de mulheres, entre outros. Apesar dessa mudança cultural, estes
fenómenos não se reduziram. Fraser (2013) demonstra igualmente como aquilo que
caracteriza como o discurso feminista de 2ª vaga foi apropriado pelo
neoliberalismo e até lhe deu oportunidades de ideologizar algum discurso
feminista. A tendência da autora em desvalorizar a dimensão das mudanças
culturais pelo foco no dimensão económica e a homogeneização daquilo a que
chama o feminismo de 2ª vaga, sem atender à imensa diversidade interna do
movimento, levam-na contudo a um discurso generalista, que não permite
especificar que aspetos ou configurações feministas é que contribuíram para a
ressignificação que o projeto neoliberal operou sobre as reivindicações
feministas. Correndo o risco da fragmentação, esta abordagem de Fraser a traços
largos do "feminismo" singular necessita de ser matizada com as
coordenadas culturais e da diversidade interna do movimento. Como mostra Lynne
Segal (2013), uma das contradições do feminismo foi o de permitir a entrada de
mais mulheres nas elites, enquanto mantinha aquelas marcadas pela classe social
mais baixa e pela raça' com os mesmos problemas que sempre tiveram. A meu ver,
o que observamos é o triunfo do feminismo liberal sobre outras formas de
feminismos, como sejam o feminismo negro e o feminismo socialista, sendo que
esta corrente liberal do feminismo se coaduna de forma muito mais evidente com
o regime capitalista neoliberal. É preciso então não só olhar para os sucessos,
mas sobretudo para as contradições.
Essa marca de desconfiança nos sucessos ecoa até aos tempos da teoria crítica e
das conceções de Walter Benjamin (2010) de como a história só nos dá o sentido
de quem saiu vitorioso. Ora, é precisamente no espaço do que falha que o livro
de Halberstam nos situa. Essa marca crítica orientará este texto, que tenta
evidenciar as vantagens de uma teorização negativa e contestatária de algumas
das promessas dos feminismos, entendendo-os como espaços de cruzamento e
interseção de múltiplas matrizes, logo espaços hifenizados (Oliveira, 2010).
Histórias e teorias feministas
As teorias feministas remontam ao século XVIII, profundamente implicadas nos
movimentos progressistas da época e de aí em diante. O movimento questionou a
fundo as raízes sexistas dos sistemas políticos modernos e denunciou a
desigualdade entre homens e mulheres. Basta para tal lembrar Olympe de Gouges e
Mary Wollstonecraft e a sua incessante necessidade de estabelecer comparações
com esse único humano que a Modernidade conhecia, o homem, como bem mostra o
trabalho de Isabel do Carmo e Lígia Amâncio (2004). Joan Scott (1996), quando
se dedica ao estudo do discurso feminista francês pós-Revolução, explicita a
questão do paradoxo dos universalismos da República francesa: uma coexistência
entre a universalidade dos direitos e a universalidade de uma diferença sexual.
Este paradoxo da modernidade francesa é aliás reflexo de um zeitgeist obcecado
com a ideia de diferença sexual, consubstanciada nos modelos de corpo humano,
na medicina e na ciência, como mostra Thomas Laqueur (1990).
Esta diferença foi usada para muitos fins nesse período, e por vezes ainda tem
ressonâncias politicamente perigosas, nomeadamente para restringir direitos.
Repare-se que se trata de uma diferença sexual pensada dentro dos limites
pesados impostos pela ordem de género, não a diferença sexual no sentido que
lhe irão dar as feministas pós-estruturalistas francesas, da diferença sexual
pensada enquanto multiplicidade, como faz Luce Irigaray (1985). Trata-se, pelo
contrário, da subjugação de uma representação do feminino, pensado a partir do
prolífero pensamento misógino, que estrutura todo o sistema de género.
Os feminismos vão nascer com a marca de uma fragilidade concetual que só mais
tarde vai ser pensada e respondida, pelas mãos de Joan Scott: "O
feminismo foi um protesto contra a exclusão política das mulheres, mas teve que
fazer as suas reivindicações em nome das "mulheres" (que foram
discursivamente produzidas através da diferença sexual)" (1996: 3). É
possível entender estes feminismos antes da 2ª Guerra Mundial2 como uma
produção de pensamento sobre as mulheres e a necessidade da sua inclusão na
esfera pública.
Contudo o marcador ou sujeito que estava a ser usado, mulheres ou mulher,
traduz antes de mais o pensamento da diferença sexual, no âmbito da
representação hegemónica da diferença sexual. O pós-guerra determinará outras
preocupações e outras abrangências, não incluídas neste esforço de
lexicalização (para usar um termo a que Gayatri Spivak (2005) recorre noutro
contexto), na tentativa de separar um item linguístico (mulher) do seu sistema
gramatical (diferença sexual) para o inscrever nas convenções de outra
gramática (os direitos e a relação com o Estado). Este primeiro momento
feminista procede a uma lexicalização das mulheres, um esforço de as retirar de
um contexto específico ' o discurso da diferença sexual que as mantinha na
esfera do privado e da reprodução (Joaquim, 1997). Sorrimos ao pensar no que
dizia Olympe de Gouges: "Oiça a lição que lhe dou: homens da sua espécie
há muitos, mas são precisos séculos para fazer mulheres da minha têmpera"
(citada in Carmo e Amâncio, 2004: 91). Lexicalizadas, podem começar uma
inscrição demorada na esfera pública.
Os feminismos contemporâneos ocidentais (e a marca da sua ocidentalidade é
fulcral para os entendermos) começam, no entanto, a produzir teoria com a
publicação de O Segundo Sexo em 1949. Gostaria pois de me focar nesse momento
em que Simone de Beauvoir (1975) enuncia o projeto de um "novo"
feminismo: a denúncia do androcentrismo, essa sinédoque que toma o masculino
pelo todo, confundindo o geral humano com o específico masculino, sem nunca ver
as Outras, que até então não tinham sido pensadas como humanas, sempre como
particulares (sobre-)sexuadas.
O que Beauvoir inicia é um pensamento sobre um humano incompleto sem essa outra
parte. Este pensamento responde a uma importante necessidade de cortar com a
ideologia da diferença sexual enquanto imposição de um pensamento hegemónico:
eliminar a inexorabilidade da ideia da biologia como destino para as mulheres.
De certa forma e apesar de Beauvoir usar a terminologia das relações sociais de
sexo, é possível afirmar que se inscreve numa tradição a que hoje chamamos
Estudos de Género (Oliveira, 2012). Essa operação, a que Beauvoir procede,
permite por um lado fazer uma separação com a subjugação das mulheres a um
destino social retoricamente mascarado de biológico e, por outro lado,
consagrar as relações sociais como o domínio onde esta representação (mulheres)
é constituída. Trata-se de descolonizar o pensamento sobre
"mulheres" ' essa representação hegemónica ' desse peso de uma
diferença sexual que, no caso das "mulheres", se traduz por um
investimento simbólico na biologização.
Ora, há também no pensamento de Simone de Beauvoir um outro pressuposto
fulcral, a ideia de que a mulher é um devir, um processo em permanente
construção. Como mostra Judith Butler (1986), esta proposta é a base para a
construção teórica do género dentro do feminismo, que resulta num primeiro
colapso do poder explicativo do sexo biológico, que não é, à partida,
determinante.
Uma outra leitura possível do pensamento beauvoiriano consiste em reler a
premissa de que se trata de um pensamento que visa alargar os horizontes de
possibilidade de pensamento sobre "mulheres". Antes, podemos olhar
para o modo como também alarga os limites estritos da compreensão do humano,
permitindo uma maior abertura deste conceito, que nunca é um dado, mas antes
uma categoria de inclusão ou de exclusão. Ao estabelecer e lançar a sua crítica
ao androcentrismo, sinédoque de um humano confundido com o masculino, Beauvoir
(1975) está a criticar um humano estrito e, ao mesmo tempo, a reclamar uma
abertura do horizonte de possibilidade do humano enquanto categoria. É
fundamental não confundir tal proposta com o humanismo que trata o humano como
um dado, algo fixo. A proposta de Beauvoir é bastante mais radical do que essa,
implica ver no humano uma categoria e não uma fundação, pois não fosse a
instabilidade do seu significado, não teria sentido estabelecer esta crítica à
equação humano-homem. A alteridade, com que Beauvoir (1975) descreve a posição
das "mulheres", é pois espaço de representação hegemónica, mas que
pode no entanto servir para começar a discutir o campo de fuga desta
representação, aquilo que o discurso hegemónico não representa.
São precisamente estas linhas que irão ser aprofundadas na aparição dos
feminismos dos anos 1970 no Ocidente. Esta estridência tem sobretudo a ver com
uma nova era do ponto de vista político e social. Descrita por Boaventura de
Sousa Santos (2005) como uma crise do contrato social e, simultaneamente, uma
crise da democracia, com as crescentes demandas dos movimentos sociais por
maior inclusão e mais direitos, este período é marcado pela simultaneidade das
reivindicações dos movimentos estudantis, feministas, antirracistas, LGBT,
ecologistas, entre outros. O pensamento feminista, profundamente marcado também
pelo seu envolvimento em várias causas da esquerda global, vai sair fortemente
imbricado noutras questões que extravasam em muito o âmbito original dos
primeiros feminismos.
Mal eclodem nos anos 1960 e 1970, os grupos feministas começam de imediato a
confrontar-se com os múltiplos interesses das suas múltiplas pertenças (Segal,
2013). Um feminismo que "não é um sonho de uma linguagem comum, mas de
uma poderosa e infiel heteroglossia" (Haraway, 2003: 250). Dessa
heteroglossia, ficaram as designações de correntes dos feminismos: feminismo
socialista, feminismo lésbico, feminismo negro, feminismo chicano, feminismo do
3º mundo, um pot-pourri de designações que estilhaçam uma suposta unidade
inicial que nunca existiu. Tal espartilhar de designações afasta-nos no entanto
do processo. A hifenização (Oliveira, 2010), uma possibilidade de hibridizar
conhecimentos provenientes de várias tradições, é uma marca do pensamento
feminista ocidental dos anos 1970. Vários coletivos produziram textos, zines,
panfletos que foram fundamentais para reconhecer esta hibridização, como o
manifesto feminista negro do Combahee River Collective (2003) ou o manifesto
das Radicalesbians (1970). Estes trabalhos foram vitais para o desenvolvimento
posterior de discursos teóricos que tratavam essas dimensões de hifenização,
tratando conjuntamente o racismo e o sexismo ou o sexismo e o heterosexismo.
Tais esforços que começam a partir dos movimentos sociais vão rapidamente
chegar à academia na década de 1980 e 1990.
Contudo, é precisamente neste período, auge dos feminismos radicais, que uma
corrente feminista ligada ao feminismo cultural (Nogueira, 2001) começa o seu
trabalho. Inspirados em modelos que assentam a cultura feminista precisamente
nessa representação hegemónica da mulher, começam a produzir-se trabalhos que
reforçam o essencialismo da categoria mulher, de que são exemplo autoras como
Mary Daly (1978) e as suas teorias da proximidade das mulheres com a natureza,
ou Catherine MacKinnon (1993) e Andrea Dworkin (1987) e as suas teses sobre a
criminalização da pornografia, assentes numa ótica de perpétua vitimização da
mulher, quase entendida de forma caricatural, como se lhe fosse apenas possível
ocupar uma posição de "vítima" sem mais nenhuma nuance ou
possibilidade de representação. O essencialismo das propostas radica noutra
tentativa de simplificar ou de reduzir as possibilidades de pensar fora deste
espartilho de representação hegemónica. Na secção seguinte, mostrarei como
estas formas de feminismos são cúmplices com outras dimensões de opressão.
Feminismos e necropolítica
Regresso a 2001, aos tempos da invasão do Afeganistão pelas tropas da coligação
liderada pelos Estados Unidos. Lila Abu-Lughod (2002) contestou o uso das
categorias feministas (como a ideia de direitos das mulheres) para legitimar
uma invasão, oficialmente justificada como uma importante contribuição para a
libertação e igualdade das mulheres. O mesmo pode ser observado em relação à
descontextualização cultural do véu. Este passa a ser, no Ocidente, símbolo de
opressão (um horror do qual é urgente libertar as mulheres), quando esse véu,
no contexto cultural afegão, apresenta outras e mais variadas formas de
leitura. Abu- -Lughod (2002) evidencia a forma como certos feminismos do
Ocidente são usados para impor um modelo único para pensar a
"libertação" das mulheres, sendo importados para contextos onde são
completamente deslocalizados e onde se apresentam como uma forma de missão
civilizadora do Ocidente. Diz-nos Deepika Bahri: "A opressão é assim
vista como uma reserva do "Terceiro Mundo", e as "mulheres do
Terceiro Mundo" reduzem-se a objetos de consumo para um mundo
desenvolvido que pode reafirmar implícita e complacentemente a sua
superioridade em relação ao restante como padrão ou referência" (2013:
674).
A ideia de um feminismo que pode ser usado para fins bélicos e coloniais,
feminismo colonial portanto, mostra como a transposição simples de conceitos de
um contexto para outro pode servir para alimentar outros interesses e
propósitos, como o da guerra da Administração Bush contra o terrorismo'.
Conforme se pode constatar, para além da excecionalidade ocidental, em
particular estado unidense, há uma excecionalidade de género também ela
ocidental (Puar, 2007). Em comparação com esta excecionalidade, há um Oriente
sexualmente reprimido, com mulheres oprimidas a precisarem de um Ocidente que
as salve e as transforme em mulheres libertadas mesmo que essa libertação seja
a custo de invasões, danos, mortes, pessoas feridas. Não será isto uma forma de
necropolítica em nome (de uma determinada versão) do feminismo? Uma versão
bélica e colonial do feminismo liberal, ancorado no excecionalismo ocidental e
missionário, que pretende salvar as mulheres de todo o mundo do seu contexto
"opressor", sem ter em conta que o "salvamento" é ainda
pior do que o "estado" em que se encontram. E no entanto, quantas
não morreram em nome da sua "libertação"?
Achille Mbembe (2002) cunha o termo necropolítica, uma versão da biopolítica
foucaultiana, o reverso da medalha: a necropolítica é uma forma de soberania
assente na "instrumentalização generalizada da existência humana e na
destruição material de corpos humanos e populações." (Mbembe, 2003: 14).
O necropoder está profundamente implicado no poder de gestão das vidas das
populações e é parte integrante do mesmo, como alertava Michel Foucault (2006).
É Jasbir Puar (2007) que, ao reler Mbembe (2003), propõe a ideia de
necropolíticas queer para pensar as implicações destas políticas fora da
heteronormatividade. O exemplo da pandemia do HIV é uma possível forma de
ilustração, com vidas e pessoas queer (e outras) a serem destruídas e a demora
dos governos e da ciência em contribuir para tentar acabar com a mortandade que
se espalhou de forma impressionante.
Ao contrário de Foucault (2006), que desvaloriza esta dimensão da morte porque
a encara como estando progressivamente privatizada e escondida, Puar (2007)
afirma a necessidade de lidar simultaneamente com a biopolítica e a
necropolítica, entendendo-as como duas operações concomitantes. Para além dessa
dimensão, Puar (2007) pensa esta tensão a partir de pessoas queer que são
racializadas: é igualmente possível entender que enquanto para alguns/algumas
se reserva o casamento e a família, outras pessoas são aguardadas num campo de
refugiados/as, e enviadas para os seus países de origem quando pedem asilo
político por conta da sua sexualidade onde podem acabar inclusivamente nas
garras desse necropoder, ou seja, mortas.
Pensamos em Gisberta Salce Junior, mulher trans assassinada no Porto em 2007 e
entendemos como a nossa exclusão lhe reservou o efeito do necropoder: a morte.
Sem-abrigo, portadora de HIV, brasileira, trans, trabalhadora sexual, emigrante
' um emaranhado de matrizes de opressão que a tornaram vulnerável a tal ponto
que um grupo de jovens (na sua maioria institucionalizados numa instituição
ligada à Igreja Católica) a torturou, violentando-a e penetrando-a com um pau,
até que foi atirada para dentro de um poço, onde acaba por morrer afogada.
Alguns jornais "matam-na" outra vez, tratando-a como
"um" transexual. O masculino usado post-mortem é outra forma de
erradicá-la como pessoa da esfera pública. É importante entender que não
estamos a dizer que são estes jovens que exercem o necropoder. Antes, trata-se
de reconhecer como o próprio Estado cria as condições para esta necropolítica
com a conivência de toda uma sociedade e dos movimentos sociais que permitem
que isto aconteça: institucionalização de crianças, tratamento xenófobo
dispensado a emigrantes, negar condições para vidas viáveis, a transfobia
pública que existe em Portugal, o racismo, as normas de género. Ao não intervir
sobre estas dimensões, o Estado está a exercer as suas necropolíticas,
dividindo-nos entre quem pode e tem condições para viver e quem
"merece" morrer. E não é este um assunto feminista?
Deixo um exemplo esclarecedor. O posicionamento de Janice Raymond (2006)3 sobre
a presença de mulheres trans no movimento feminista que as trata como
usurpadores e invasores (no masculino, apesar de estarmos a falar de mulheres
trans) de um espaço que deveria permanecer no feminino, ou seja, exclusivo a
mulheres biológicas. A base para tal diatribe transfóbica consiste na
manipulação da autenticidade do sexo como tropos para lançar ataques sobre
mulheres trans feministas, como nos mostra este excerto: "A violação
[rape], seguramente, é uma violação [violation] masculinista da integridade
corporal. Todos os transexuais violam o corpo das mulheres pela redução da
forma real feminina a um artefacto. Contudo, uma lésbica-feminista construída
transexualmente viola a sexualidade e o espírito das mulheres. A violação
[rape], embora seja muitas vezes conseguida à força, também pode ser conseguida
através do engano". (Raymond, 2006: 134).
Esta obra mostra um dos maiores perigos do feminismo radical cultural: a total
exclusão de qualquer humano que não seja bio-mulher (para usar uma expressão de
Preciado, 2008), recorrendo, para tal, ao sexo como marcador privilegiado da
feminilidade. Este centramento na categoria biológica irá originar uma série de
respostas ao longo dos anos 1980 e 1990, que visam a recusa deste
fundacionalismo. Este esforço teórico pode ser visto como um modo de retomar a
proposta de Simone de Beauvoir de ver no género um devir. Contudo, este exemplo
é notório na recusa de solidariedade e de identificação com os problemas
colocados a pessoas que não são inteligíveis à luz do dimorfismo de género,
apesar de autoidentificadas como mulheres. Estas correntes feministas culturais
apresentam-se como garantes da manutenção do discurso biologista, valorizando
uma feminilidade essencial. Tratar a transexualidade como uma ameaça ao
feminismo, permitida pela continuidade de um discurso essencialista e unívoco
sobre o feminino, corresponde a relegar as pessoas trans para fora da alçada da
intervenção e reivindicação feminista. Isto não só reduz a amplitude do
discurso feminista, mas também relega as pessoas trans para o espaço das
reivindicações sexuais, quando se trata de discriminações assentes no
cumprimento da normas de género e não necessariamente do âmbito da sexualidade
num sentido estrito.
A preocupação com a necropolítica não é, no entanto, nova e encontra
ramificações anteriores na teoria feminista. Pensemos em Judith Butler (1992) e
no seu trabalho constante sobre as questões do luto. Aí encontramos este traço
necropolítico já presente, sob outras palavras, quando mostra que as mesmas
tecnologias que permitem preservar a vida são usadas para separar quem pode
morrer e quem pode ficar vivo, na soberania bio e necropolítica sobre os nossos
corpos. Encontramos esse traço igualmente na sua atenção a quem pode ser objeto
de choro, a quem se presta luto público e a quem não o merece, interrogação que
vai nortear a sua produção filosófica e que lhe permite mostrar os limites do
reconhecimento do humano. Ao evidenciar esses limites, esta interrogação faz
uma importante contribuição pois demonstra que o humano prefigurado nos
direitos humanos é, na verdade, ainda inaplicável a tantas pessoas.
Outros feminismos
Este trabalho de repensar os feminismos por via da negatividade deve bastante à
obra de Gayatri Spivak. Irei reportar-me ao seu trabalho como forma de concluir
esta reflexão. Spivak (1993) apresenta o caso do sati (imolação ritual de
viúvas na pira funerária do marido) na Índia colonial, mostrando como a lei
colonial inglesa de proibição do sati tentou eliminar aquela prática. Em nome
da civilização, a lei foi promulgada de maneira colonial para acabar com a
"barbárie". Alguns nativistas, no entanto, apresentavam os
argumentos de que as mulheres queriam mesmo morrer. A subalterna nunca chega a
falar. Dela pouco se sabe, entre a barbárie que ela significa para o
colonizador e o silêncio que simboliza para o colonizado. Num texto fulcral
para pensar o feminismo e epistemologia, Spivak (1993) apresenta-nos este caso
como uma forma negativa de ler as propostas feministas. Sem defender o sati,
Spivak mostra que uma lei colonial (uma boa lei) que impede o sati sem no
entanto mudar o processo de formação dos sujeitos, é igualmente uma marca do
papel do colonialismo e da sua intenção de levar colonizados/as para o caminho
da civilização e da boa sociedade. A semiose que usa para questionar este
texto, "homens brancos a salvar mulheres pardas de homens pardos"4
(1993: 94), é habitualmente entendida como uma crítica ou como uma solução. No
entanto, a frase é um questionamento do papel ambíguo que a colonização pode
exercer, quando pretende impor determinados modos de ser mulher, consentâneos
com o Ocidente.
Igualmente as propostas de Spivak (1993, 2005) mostram'nos um caminho diferente
para pensarmos os feminismos. A marca de um pensamento que tenta analisar a
subalternidade da mulher colonizada implica também uma práxis e uma ética
política. As subalternas são aquelas que não acedem à mobilidade social, nem à
possibilidade de representação política. Contudo, como diz a autora, a
subalternidade tem em relação à classe social uma relação homológica. Na
definição marxista, a classe não é definida como uma identidade, mas antes como
uma marca de diferença. Ou seja, a subalternidade, como defende Spivak (1993),
não é uma questão de consciência de classe; trata-se antes de uma estruturação
diferencial pela total diferença em relação às outras classes. Quando abordamos
a subalternidade colonial, falamos de pessoas que estão há milénios excluídas
das linhas de acesso à mobilidade social e à própria possibilidade de
representação: são sempre representadas, no sentido de substituídas. Quando o
género é tomado em consideração, entramos ainda mais numa lógica de absoluta
subalternidade. Deste modo, as subalternas, ainda mais nas sombras do que os
subalternos, ficam de fora de qualquer possibilidade de representação, marcadas
pela heteronormatividade reprodutiva (Spivak, 2011). Esta dupla marca '
subalternidade e género ' vai etiquetá-las de forma inexorável e faz com que
determinadas situações que implicam por vezes a autodestruição, seja pela via
do sati ou por outras formas de suicídio, possam ser lidas de outros modos que
não apenas as formas clássicas dos feminismos ocidentais, ou seja, opressão da
mulher/barbárie da sociedade.
Spivak (1993) dá-nos um espelho dos feminismos salvíficos e missionários que
pretendem espalhar a boa nova da libertação das mulheres por todo o mundo sem
ter em conta o contexto e o privilégio de quem pode falar, sem pretender sequer
falar para estes sujeitos, destinadas a serem salvas para grande descarga de
consciência de algum feminismo liberal ocidental (nem que para isso uma guerra
tenha matado muitas das que se destinava a libertar. Entendamos, pois, a nossa
posicionalidade e a deste Ocidente, bem como a de um feminismo que precisa,
antes de salvar, de entender a sua cumplicidade com uma série de outros
sistemas políticos.
Como mostra Shadh Wadi (2010) num ensaio sobre as mulheres palestinianas e as
suas estratégias de resistência, elas estão entre um sistema que as coloniza e
um contexto de uma sociedade marcadamente sexista, mas isso não significa que
possam ser lidas apenas como vítimas. A análise de Wadi (2010) evidencia que,
pelo contrário, os seus corpos são resistências e arma nesta ocupação. Mesmo os
véus são vistos como algo que facilita os seus movimentos e as suas reuniões '
prisões libertadoras, como lhe chama a autora. Ora é precisamente este tipo de
análise que não faz as subalternas falar nem pretende escutá- -las, antes se
interessa em aprender com elas (Spivak, 2005). Feminismos que, em vez de
quererem libertar e salvar, se dispõem a entender-se como contradição:
"em vez disso, ela [Spivak] imagina um feminismo nascido de uma luta
intelectual dinâmica com o facto de que algumas mulheres podem desejar a sua
própria destruição por muito boas razões políticas, mesmo que essas políticas e
essas razões estejam para lá da amplitude de entendimento da versão de
feminismo que queremos". (Halberstam, 2011: 128).
Um feminismo que recusa ser usado nas necropolíticas, que se recusa a
cumplicidades com o racismo, o colonialismo, o neo-liberalismo, a
heteronormatividade, a transfobia, é o único que pode ser viável num mundo
permanentemente ameaçado por tantas formas de discriminação. Precisamos de
teorias feministas que repensem o político como um todo e não apenas que se
destinem ao papel de salvar mulheres. O feminismo precisa de se distanciar
desta cumplicidade com as múltiplas formas de opressão. Como espero ter
mostrado, é necessário contrariar estas lógicas, produzir espaços alternativos
de representação, fora dos fluxos hegemónicos da representação sexista, mas que
não sejam cúmplices com outras opressões. É nessa falha e simultaneamente
política de aliança que mulheres e queers parecem caber melhor, dado que a
representação hegemónica do humano continua branca, masculina, colonial. É
necessário entender que a inclusão de algumas pessoas implica a exclusão e o
extermínio de outras, e que as conceções de cidadania assentam em critérios de
exclusão com relação com necropolíticas (Haritaworn, Kuntsman e Posocco, 2013).
Certos feminismos das sombras, como os feminismos-pós-coloniais, continuam a
lutar para alargar esta falha, afinal a representação do humano. Estes
feminismos são assim negativos nas interrogações e críticas, fazendo-nos
repensar a política de forma afirmativa e integrada.