A Psicologia e a doença crónica: Intervenção em grupo na diabetes Mellitus
A diabetes, também conhecida por diabetes mellitus, é um grave e crescente
problema de saúde pública, com inúmeras complicações, quer individuais, quer
comunitárias. A população que sofre deste problema tem vindo a crescer em
número mundialmente, facto que tem sido explicado em parte devido ao
envelhecimento e crescimento da população, assim como à obesidade, dietas pouco
saudáveis e a estilos de vida sedentários, factores associados ao incremento da
urbanização e industrialização (Medina, 2007; Silva, 2006).
Ainda que não contagiosas e não relacionadas com estigmas sociais particulares,
as complicações crónicas da diabetes (e.g. complicações cardiovasculares e/ou
neurológicas) podem conduzir a uma degradação progressiva e irreparável do
corpo e a uma gradual perda de dignidade do doente. Não existe praticamente
nenhum órgão ou sistema orgânico que não possa ser afectado por esta doença
(Silva, 2006).
A prevenção deve ser realizada nos diferentes níveis de cuidados de saúde,
mediante a identificação dos indivíduos em risco ' prevenção primária,
identificação de casos não diagnosticados ' prevenção secundáriae pelo
tratamento dos indivíduos já afectados pela doença, com o objectivo de prevenir
complicações agudas e crónicas ' prevenção terciária(Medina, 2007; Silva, 2006;
Trindade Teixeira, 2000). Um maior nível de conhecimento sobre a doença e as
suas complicações está relacionado com uma melhoria da qualidade de vida, com a
redução do número de crises de hipoglicemia, com o menor número de intervenções
hospitalares, com o melhor controlo metabólico e com uma maior aceitação da
doença.
Os estudos na área alertam para o facto do tratamento cuidado e disciplinado
permitir prevenir e retardar as complicações agudas e crónicas da doença (Maia
Araújo, 2002; Marcelino Carvalho, 2005; Medina, 2007; Pitts Phillips, 1998;
Silva 2006; Torres, Hortale, Schall, 2003). Neste sentido, a educação é parte
imprescindível do tratamento do paciente, associado ao controlo metabólico
adequado, à prática regular de exercício físico e a uma dieta alimentar
equilibrada.
Para isso, um envolvimento harmonioso entre pacientes, família e profissionais
de saúde na procura de atingir o equilíbrio biológico, psíquico e social do
indivíduo, revela-se um ingrediente fundamental.
Neste trabalho, procura-se fazer o enquadramento da intervenção psicológica ao
nível das doenças crónicas como é o caso da diabetes, que podem causar
importantes restrições físicas, emocionais e sociais, modificando profundamente
a vida das pessoas portadoras em várias dimensões. O crescente reconhecimento
da importância do trabalho em equipas de saúde multidisciplinares para a
educação do paciente diabético tem promovido o desenvolvimento de inúmeros
projectos de intervenção psicológica e programas educativos, individuais ou em
grupo, na área dos cuidados de saúde primários e secundários (e.g. Gallego,
2001; Heleno Antónia, 2004;Maia Araújo, 2002;Marcelino Carvalho, 2005; Silva,
2006; Torres, et al., 2003; Trindade Teixeira, 2000).
No âmbito do estágio complementar da Carreira dos Técnicos Superiores de Saúde
' ramo de Psicologia Clínica, realizado no Centro de Saúde de Alvalade (CSA),
em Lisboa, foi desenvolvido um projecto em equipa multidisciplinar de
intervenção em grupo (psicólogo, nutricionista e fisiologista do exercício),
que fosse ao encontro das necessidades dos utentes (grupo-alvo) e complementar
aos objectivos da Consulta de Vigilância da Diabetes já existente, a cargo de
um médico de família e da equipa de enfermagem, onde é feita a monitorização da
doença e aconselhamento ao doente. Esta proposta teve como objectivos gerais a
melhoria das condições de vida e adaptação à doença e não a cura, uma vez que
como já referido a diabetes mellitusé uma doença crónica incurável até ao
momento.
Uma das componentes desta proposta é possibilitar o conhecimento objectivo e
científico sobre a diabetes e o processo de tratamento, privilegiando o recurso
a metodologias activas/reflexivas e dinâmicas de grupo na abordagem dos temas
(e.g. chuva de ideias, fotolinguagem, role-playing, uso de metáforas). A
preocupação base é a de implicar activamente os utentes nas experiências do
grupo, criando espaço para surgir naturalmente o que cada um conhece ou
desconhece sobre a problemática e problemas relacionados. De modo a aprofundar
os temas, foi igualmente pensado um conjunto de materiais informativos
complementar aos conteúdos a trabalhar nas sessões (e.g. o controlo do peso no
mundo moderno; a rotulagem; as principais barreiras no controlo da diabetes).
Ao longo do programa, com a duração de 2 meses em formato de sessões semanais,
é pedido à pessoa que se envolva totalmente no seu tratamento e que se assuma
como um agente activo (e.g. automonitorização semanal da actividade física e do
comportamento alimentar; aumento do controlo metabólico e vigilância periódica;
estabelecimento de objectivos de mudança concretos e realistas; aprender
respostas e estratégias de mudança no seio do grupo; substituição de padrões de
comportamentos sedentários/disruptivos por padrões de comportamento saudáveis e
respostas mais apropriadas; descoberta de pontos de vista, dificuldades e
sentimentos em comum; autonomia; aumento da auto-estima).
O objectivo último será fornecer aos utentes diabéticos os meios e as
ferramentas necessárias a uma gestão autónoma da sua doença enquanto um
continumna sua vida e não apenas em termos de sucesso ou insucesso, formato
característico de uma intervenção mais focalizada no sintoma (Basco, 1998,
citado por Silva, 2006). Este trabalho implica um contacto intensivo entre o
utente, a instituição de saúde e a equipa terapêutica, em horário pré-
determinado e regular ao longo do trajecto do programa, de forma a promover a
manutenção das relações interpessoais, a identificação de factores e situações
de risco e o desenvolvimento de estratégias de controlo dos impulsos e
comportamentos de risco face à doença. A ênfase é colocada no treino do auto-
controlo, auto-responsabilização e capacidade de escolha. É importante
compreender os determinantes que levam aos comportamentos de risco e utilizar
essas informações para aumentar a efectividade do tratamento e os benefícios da
auto-monitorização (Guerra Lima, 2005; Heleno Antónia, 2004; Silva et al.,
2003; Silva, Pais-Ribeiro, Cardoso, 2004; Silva, 2006). Certas situações podem
representar um menor ou maior risco, no entanto, a relevância não está tanto na
situação em si mesma, mas nas reacções cognitivas, afectivas e comportamentais
do indivíduo enquanto interage com essas situações. Por outro lado, o
desequilíbrio entre o dever e o prazer é potenciador de dificuldades na
gestão da doença porque promove sentimentos de privação e insatisfação que são
muitas vezes usados para justificar os comportamentos de risco (e.g. É só hoje
porque é o meu aniversário ; Eu devia a mim mesmo um doce depois de um dia
stressante de trabalho ) e para justificar a necessidade de gratificação
imediata. Neste sentido, os objectivos fundamentais do programa focalizam-se em
três dimensões principais: ao nível do auto-conhecimento de si próprio e do
problema, ao nível das estratégias de coping(ter ou não ter respostas/
estratégias para lidar com situações de risco) e ao nível da mudança do estilo
de vida (o desafio de uma nova relaçãoconsigo, com os outros e com o meio que
o rodeia).
O programa de intervenção em grupo proposto também se inspira no referencial
teórico dos grupos e seu manejo terapêutico. O grupo é um local de encontro em
que inevitavelmente se geram profundas trocas afectivas entre todos (Guerra
Lima, 2005; Kernberg, Chazan, 1992; Torres, et al., 2003; Yalom, 1995;
Zimerman, 1993). Uma sessão de grupo é sempre um desafio à nossa capacidade
empática de compreender, interpretar, metabolizar e transformar ansiedades e
comunicações paradoxais que ocorrem no aqui e agora da dinâmica grupal. Assim,
é fundamental o recurso constante aos modelos e referenciais teóricos
subjacentes à prática clínica individual, assim como ao gosto de trabalhar em
grupo (Kernberg Chazan, 1992; Sá, 2003; Yalom, 1995; Zimerman, 1993).
O falar em grupo sobre a diabetes permite a troca entre iguais de dúvidas,
ansiedades, fantasias e inseguranças, o que favorece o sentimento de não se
estar sozinho e assim aprender a lidar e a conviver melhor com a doença (Maia
Araújo, 2002; Marcelino Carvalho, 2005; Yalom, 1995; Zimerman, 1993). Como já
referido, as sessões, conduzidas por um técnico (o psicólogo) da equipa
multidisciplinar, são baseadas numa perspectiva não directiva procurando
modelar a confiança, respeito e preocupação pelos outros. Cada sessão é
estruturada e tem a duração de 60 minutos.
No período inicial é feita uma exposição de informação pelo técnico da área,
que é seguido por períodos de discussão em grupo do tema apresentado, com o
recurso a técnicas/ferramentas de orientação cognitivo-comportamental (e.g.
folhas de registo, diário alimentar), técnicas de dinâmica de grupos (e.g.
fotolinguagem, linha do risco, chuva de ideias), partilha de sentimentos e
histórias pessoais e recurso a meios audiovisuais.
DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO ACTUAL DA DIABETES MELLITUS
A diabetes, também conhecida por diabetes mellitus, é uma doença crónica grave
conhecida há pelo menos 3500 anos, cuja característica principal é a
hiperglicemia (aumento da glicose no sangue), acompanhada de alterações do
metabolismo dos lípidos e proteínas e um conjunto de complicações neurológicas,
micro e macrovasculares relacionadas, cuja prevenção passa por um diagnóstico e
tratamento precoces. Na base destas alterações estão anomalias na secreção
pancreática de insulina, na sua acção ou ambas (Gallego, 2001; Hines, 2003;
Marcelino Carvalho, 2005; Silva, 2006; Medina, 2007 Taylor, 1995; Pitts
Phillips, 1998;). Os principais sintomas do diabético são: sede excessiva
(polidipsia), poliúria, polifagia, perda de peso, fadiga, formigueiros,
dormências e visão enevoada (Gallego, 2001; Hines, 2003; Leite, 2005; Medina,
2007). Como doença crónica que é, precisa de cuidados médicos continuados e de
educação terapêutica do doente de modo a prevenir complicações agudas e a
diminuir o risco de complicações tardias (Gallego, 2001; Leite, 2005; Medina,
2007; Silva, 2006). É importante motivar o doente para adquirir conhecimentos e
desenvolver habilidades para mudanças de hábitos, com o objectivo geral do bom
controlo metabólico e melhor qualidade de vida. O arsenal terapêutico hoje
existente e uma cuidada educação do paciente, permitem aos diabéticos aprender
a viver com a sua doença, a ter um quotidiano compatível com uma boa qualidade
de vida e a exercer uma profissão, seja ela qual for (Marcelino Carvalho, 2005;
Medina, 2007; Silva, 2006).
Actualmente na prática clínica adopta-se a nomenclatura diabetes mellitustipo 1
e tipo 2 para classificar a diabetes, nas duas formas mais frequentes da doença
(Gallego, 2001; Hines, 2003; Medina, 2007; Silva, 2006). Esta classificação
indica que as perturbações agrupadas sob o termo diabetes diferem na
patogénese, história natural, resposta à terapêutica e prevenção. A diabetes
tipo 1 (antigamente chamada diabetes juvenil ou insulinodependente) surge
geralmente na infância e adolescência e resulta da destruição das células
pancreáticas produtoras de insulina (as células beta), o que implica
deficiência absoluta de insulina; é uma doença auto-imune (Maia Araújo, 2002;
Marcelino Carvalho, 2005; Medina, 2007). A diabetes tipo 2 (antigamente chamada
diabetes do adulto ou não insulinodependente) resulta de uma anomalia
progressiva da secreção de insulina associada a um estado de resistência à
insulina, com a perda progressiva da função das células beta; é uma doença
relacionada sobretudo com os estilos de vida moderna, caracterizados por
ingestão exagerada de calorias e vida sedentária (Gallego, 2001; Hines, 2003,
Medina, 2007). A título informativo, a obesidade é o principal factor de risco
para a diabetes tipo 2 (Medina, 2007). Em indivíduos com antecedentes
familiares de diabetes tipo 2, deve existir o cuidado em manter um peso
correcto, cumprir uma alimentação saudável e praticar actividade física regular
(e.g. andar a pé todos os dias 30 minutos em terreno plano cerca de 3 kms)
(Marcelino Carvalho, 2005; Medina 2007; Pitts Phillips, 1998; Silva, 2006).
Existem ainda outros tipos específicos de diabetes devido a outras causas (e.g.
anomalias genéticas, doenças do pâncreas exócrino, acção de fármacos ou agentes
químicos) e a diabetes mellitusgestacional, diagnosticada durante a gravidez. A
diabetes tipo 1 é cerca de 10% da diabetes tipo 2. A maior parte dos diabéticos
diagnosticados são do tipo 2, o que significa que em 100 doentes, 90 podem ser
do tipo 2 (Medina, 2007).
Dimensão do problema a nível mundial
A diabetes afecta cerca de 2% da população mundial, prevendo-se que ultrapasse
os 3% na próxima década (Surgenor et al., 2000, citados por Silva, 2006). Em
1995, os países em que existia maior número de pessoas com diabetes, prevendo-
se que em 2025 ainda o sejam, eram a Índia (19 milhões), a China (16 milhões) e
os EUA(14 milhões) (Silva, 2006). Em 2000, a Organização Mundial de Saúde (OMS)
estimava que o número de pessoas com diabetes no mundo atingisse os 177 milhões
e adiantava que, a manter-se a tendência em relação à estrutura etária da
população, em 2025 a maioria das pessoas com a doença nos países desenvolvidos
terá 65 ou mais anos de idade, enquanto nos países em desenvolvimento se
situará na faixa etária entre os 45 e os 64 anos. Esta estimativa significa que
cerca de 170 milhões de mulheres e homens que vivem em partes do mundo em
desenvolvimento, em menos de trinta anos, estarão a sofrer de diabetes em anos
que deveriam ser os mais produtivos da sua vida. A OMS considera ainda que, no
mundo, o número de mortes relacionado com a diabetes é de, aproximadamente, 4
milhões de pessoas por ano, sendo provável que este número de mortes se
encontre subestimado (Silva, et al., 2004).
Na Europa, a prevalência da diabetes em 2003 era de 7,8%, o que correspondia a
48 milhões de pessoas diagnosticadas (Medina, 2007).
Dimensão do problema em Portugal
A diabetes constitui uma das principais causas de morte em Portugal e é uma
doença, que quando mal gerida, parece provocar ainda mais sequelas. Portugal
tem desde 1992 um programa de saúde para este problema ' o DiabCare, baseado na
Declaração de St. Vincent,que garantia uma avaliação contínua da qualidade dos
cuidados prestados. Em 1997 foi introduzido o Guia do Diabético, que passa a
promover o papel activo do cidadão portador da doença no autocuidado (Gallego,
2001). Segundo a estimativa da InternationalDiabetes Federation(IDF), calcula-
se que no país existam entre 500 a 800 mil diabéticos (cálculos que incluem
apenas a população entre os 20 e os 79 anos) e estima-se que este número
continue a aumentar drasticamente.
O Inquérito Nacional de Saúde publicado em 1998 refere uma prevalência estimada
entre 3% e 5% da população e o 4º Inquérito Nacional de Saúde do Instituto
Ricardo Jorge e do Instituto Nacional de Estatística refere que a diabetes
afecta 6,5% da população residente no continente. Nos Açores a taxa sobe para
6,7% e na Madeira desce para 4,6%. A prevalência aumentou 2% em sete anos. Isto
significa que, em média, em cada 100 portugueses 5 serão diabéticos.Amaioria
dos indivíduos diagnosticados atinge ou ultrapassa a década dos 60 anos. As
mulheres são as mais afectadas e, à semelhança do que acontece nos outros
países, a doença aumenta a sua prevalência com a idade (Gallego, 2001; Medina,
2007; Silva, Pais-Ribeiro Cardoso, 2004; Silva, 2006). Quando o diagnóstico é
feito por volta dos 40 anos, bastante comum na diabetes tipo 2, o doente terá
de fazer a gestão da doença durante cerca de 20 ou 30 anos.
O TRATAMENTO DA DIABETES
A mudança de comportamentos relacionados com a saúde é geralmente um processo
difícil e complexo, que implica que o sujeito tome a decisão de mudar, faça uma
mudança efectiva de comportamento e mantenha este novo comportamento a longo
prazo (Prochaska DiClemente, 1982; Rogado Teixeira, 1997; Silva, 2006; Trindade
Teixeira, 2000). Estes objectivos não são geralmente conseguidos em
intervenções exclusivamente baseadas nomodelo biomédico, uma vez que a relação
entre doença crónica e comportamento é dupla. Ou seja, para além da importância
da adopção de comportamentos preventivos para evitar o aparecimento da doença,
quando o indivíduo é portador da doença, também o comportamento continua a ser
relevante, designadamente na prevenção de complicações e evoluções
desfavoráveis, na adesão aos tratamentose às actividades de auto-cuidados
necessárias para o seu controlo e que contribuem, em última análise, para a
melhoria da qualidade de vida (Heleno Antónia, 2004;GuerraLima, 2005; Silva,
2006;MaiaAraújo, 2002; TrindadeTeixeira, 2000). Este facto, chama a atenção
para a importância das variáveis psicológicas (e.g. emoções, sentimentos,
crenças, representações, interacções) implicadas nos processos de saúde e de
doença, quer ao nível dos cuidados de saúde primários, quer nos cuidados
diferenciados (Rogado Teixeira, 1997; Silva, 2006; Trindade Teixeira, 2000).
Como já referido, o tratamento da diabetes é extremamente exigente, complexo e
implica grande responsabilidade por parte do doente, durante toda a vida a
partir do momento do diagnóstico. Requer um cuidadoso equilíbrio entre
alimentação, exercício físico e injecções de insulina e/ou anti-diabéticos
orais, assim como uma frequente auto-monitorização do nível de glicose no
sangue, auto-cuidados que variam com o tipo de diabetes e de doente para
doente. Por outro lado, requer ajustamentos psicológicos, sociais e até mesmo
laborais (Marcelino Carvalho, 2005; Medina, 2007; Pitts Phillips, 1998; Silva,
2006; Taylor, 1995).
Uma abordagem educativa deverá acontecer de forma integrada entre os
profissionais de saúde, pois o enfoque exclusivo nos processos cognitivos não é
por si só suficiente para atingir a totalidade dos problemas vivenciados pelo
paciente diabético. É preciso abordar, para além dos aspectos relacionados com
uma alimentação cuidada e a prática regular do exercício físico, também os
factores emocionais e a sua influência na adesão ao tratamento (Guerra Lima,
2005; Heleno Antónia, 2004; Silva et al., 2003; Silva, et al., 2004; Silva,
2006; Trindade Teixeira, 2000). Nesta perspectiva, o trabalho estruturado em
equipas multidisciplinares formadas por médicos, enfermeiros, psicólogos,
nutricionistas, assistentes sociais, fisiologistas do exercício, revelam-se
fundamentais para o desenvolvimento de programas de educação e promoção da
saúde dos pacientes e familiares.
Como não existem duas pessoas iguais, o plano de tratamento para cada doente é
necessariamente individualizado, embora possam distinguir-se algumas regras
gerais no tratamento dos diferentes tipos de diabetes. Por exemplo, no âmbito
da intervenção psicológica, assumem particular importância a caracterização da
experiência de doença (discurso, percepções, significados), a influência das
percepções de doença sobre os estados emocionais associados e sobre os
comportamentos de adesão e de procura de cuidados, bem como as relações entre
as estratégias de confronto, o controlo dos sintomas, a evolução da doença e a
prevenção das recaídas (Marcelino Carvalho, 2005; Rogado Teixeira, 1997; Silva,
2006; Trindade Teixeira, 2000).
Após o diagnóstico, é frequente ocorrer uma série de crises pessoais. Num
primeiro momento, muitos doentes experimentam sintomas de depressão e de
ansiedade, angústia, stress, isolamento social, raiva, apreensão,
irritabilidade, frustração e pessimismo em relação ao futuro (Marcelino
Carvalho, 2005; Pitts Phillips, 1998; Silva, 2006). Num segundo momento, são
frequentes as reacções de negação, de catastrofização da situação ou ênfase nos
piores aspectos da doença. Ao longo do desenrolar da progressão da doença
parecem predominar reacções de medo relacionado com as crises de hipo ou
hiperglicemia ou com as sequelas crónicas (Marcelino Carvalho, 2005; Pitts
Phillips, 1998; Silva et al., 2003; Casalenuovo, 2002, Jacobson, 1996, 2002,
citados por Silva, 2006). Neste sentido, o psicólogo pode desempenhar um papel
importante na equipa de saúde, trabalhando com o doente os processos
psicológicos associados às alterações do seu estado de saúde, às crises
pessoais e às mudanças de comportamentos de risco necessárias. Este apoio
técnico (e.g. psicoterapia de apoio, entrevistas motivacionais de modificação
de comportamentos, aconselhamento psicológico, intervenção psicológica em
grupo, projectos de cuidados continuados), constitui um suporte adicional para
a prevenção de implicações agudas, para a educação e a promoção de estilos e
comportamentos saudáveis, a fim de diminuir o risco de complicações futuras da
doença e promover uma melhor adaptação dos sujeitos diabéticos à doença
(Marcelino Carvalho, 2005; Silva, 2006; Trindade Teixeira, 2000).
A intervenção psicológica
Na assistência à saúde tem sido dado progressivamente enfoque ao trabalho
multidisciplinar. No âmbito da psicologia da saúde têm vindo a desenvolver-se
vários modelos teóricos (e.g. Modelo da Crença na Saúde de Rosenstock, 1966;
Teoria da Acção Racional e do Comportamento Planeado de Ajzen e Fishbein, 1975,
1985; Modelo Transteórico de Prochaska e DiClemente, 1982; Teoria do Processo
de Acção na Saúde de Schwarzen, 1992) para explicar os comportamentos
relacionados com a saúde que mostram que a relação do sujeito com a sua saúde é
complexa e mediada por variáveis muito diversas, entre as quais se destacam
vários atributos psicológicos (e.g. a percepção de controlo ' locusde controlo,
o optimismo, a auto-eficácia), estilos de confronto com o stress, estratégias
de coping, crenças de saúde, estados emocionais, crenças e atitudes, normas
subjectivas, apoio social, entre outras (Pitts Phillips, 1998; Silva et al.,
2003; Taylor, 1995; Trindade Teixeira, 2000).
No caso específico da diabetes mellitus, a abordagem psicológica torna-se
necessária, uma vez que a integridade biopsicossocial do paciente é condição
decisiva para favorecer os cuidados com a doença, resultando em níveis maiores
de qualidade de vida (Silva et al., 2003; Silva, 2006). Vários autores apontam
para a necessidade de considerar a influência dos factores psicossociais na
evolução da diabetes, tanto na abordagem individual como na grupal (e.g.
Gallego, 2001; Heleno Antónia, 2004;Maia Araújo, 2002; Torres, Hortale Schall,
2003;Marcelino Carvalho, 2005; Silva, 2006; Trindade Teixeira, 2000).
Como temos vindo a referir, uma abordagem educativa com ênfase apenas nos
processos cognitivos revela-se insuficiente para atingir a totalidade dos
problemas, uma vez que os factores emocionais desempenham grande influência na
adesão ao tratamento. (Guerra Lima, 2005; Heleno Antónia, 2004; Pitts Phillips,
1998; Silva et al., 2003; Silva, et al., 2004; Silva, 2006; Taylor, 1995;
Trindade Teixeira, 2000). Neste sentido, a intervenção psicológica ao nível da
prevenção primária, nomeadamente ao nível da promoção de estilos de vida
saudável, mas sobretudo ao nível da prevenção secundária, intervindo na
prevenção e gestão dos efeitos da diabetes, constitui na actualidade um grande
desafio para os psicólogos que trabalham nos centros de saúde e em unidades
hospitalares distritais (Rogado Teixeira, 1997; Teixeira Trindade, 2000)
No âmbito da prevenção primária, o psicólogo deve participar em delinear e
executar actividades de educação terapêutica intersectoriais, levando em
consideração os determinantes psicológicos dos comportamentos de risco para a
diabetes (e.g. dieta alimentar rica em calorias, vida sedentária, baixa adesão
à prática de exercício físico regular) nas escolas e na comunidade em geral, em
grupos de risco (e.g. idosos e obesos) e em crianças e adolescentes familiares
de diabéticos. No âmbito da prestação de cuidados, deve realizar actividades
que permitam o confronto e a adaptação à diabetes, o aumento do controlo sobre
a doença e a vigilância periódica, a adesão do sujeito diabético a programas de
auto-cuidados. Estas tarefas implicam que o psicólogo conheça bem as
necessidades psicológicas do doente diabético que assiste e reconheça que cada
indivíduo é sempre único e apresenta diferentes necessidades em relação ao seu
bem-estar psicológico (Pitts Phillips, 1998; Rogado Teixeira, 1997; Taylor,
1995; Trindade Teixeira, 2000).
A intervenção em grupo
O grupo ou pequeno grupo, composto por um número de participantes que pode
variar entre 5 a 25 membros, é um contexto psicossocial rico de estímulos e
potencialidades, particularmente indicado para favorecer o desenvolvimento de
alguns processos psicológicos, tais como o crescimento pessoal, o
amadurecimento e a aprendizagem (Santoni, 2003; Yalom, 1995; Zimerman, 1993).
Para Abduche Silveira e colaboradores (1999, 2002, citados por Torres et al.,
2003), aprender em grupo significa fazer uma leitura crítica da realidade, em
que cada resposta obtida se transforma numa nova pergunta, permitindo assim aos
participantes trocar e construir conhecimentos, elaborar conceitos, redefinir
ou anular normas, demarcando outros espaços e construindo outras possibilidades
de ser, de saber e saber fazer o processo educativo.
A formação do grupo, com regras específicas de funcionamento, que o
caracterizam como terapêutico, possibilita um espaço de mudança e transformação
para todos os seus participantes (Anzieu et al., 1978; Bion, 1975;Yalom, 1995;
Zimerman, 1993). Neste sentido, a organização clara do contexto grupal (e.g.
dia, hora, local de encontro, disposição da sala, normas de funcionamento) é um
requisito base para o desenvolvimento deste sentimento de segurança, uma vez
que transmite uma mensagem de limite, integração e tranquilidade aos elementos
do grupo. À medida que o grupo se constrói e integra, ele próprio passa a ser
um importante constituinte do enquadramento grupal e cumpre a importante função
de se comportar como um adequado continente das necessidades e angústias de
cada um e de todos. O sentimento de reciprocidade leva a um aumento do
sentimento de competência, tanto ao nível individual, quer ao nível grupal
enquanto unidade (Kernberg Chazan, 1992; Zimerman, 1993).
Diferentes perspectivas teóricas têm orientado e consolidado o estudo dos
grupos, no âmbito dos fenómenos psíquicos, relacionais e de conduta que
comportam. Entre as abordagens mais importantes destacam-se a Sociometria de
Moreno, a Dinâmica de Grupo de K. Lewin, a Abordagem Não Directiva de Rogers, a
Abordagem Cognitivista e a Abordagem Psicanalítica (Sá, 2003). No contexto da
assistência em cuidados de saúde, vários têm sido os programas de intervenção
em grupo descritos na literatura para pacientes portadores de doenças crónicas,
tendo como denominador comum perspectivas ecléticas, combinando diferentes
abordagens com o objectivo de potenciar os seus efeitos positivos (Guerra Lima,
2005).
Em países como os EUA, Brasil ou o Canadá, há muito que é reconhecida a
importância e a utilidade de grupos de apoio aos portadores de doenças
crónicas, como é o caso da diabetes mellitus. Na Europa e em Portugal em
particular, começa também a afirmar-se a necessidade de desenvolver este tipo
de intervenções, que devem ter sempre como ponto de partida o levantamento de
necessidades dos doentes e/ou das instituições que necessitam de apoio. A
intervenção em grupo neste contexto tende a trazer vantagens para as
instituições e utentes ao nível da redução de custos, quer em termos de
recursos humanos e económicos, quer em termos da quantidade de tempo investido
(Guerra Lima, 2005; Silva 2006). A título de exemplo, nos EUA, Canadá,
Austrália, Brasil e outros países da América Latina, organizam-se com
frequência desde há vários anos colónias educativas (e.g. Diabetes Weekend),
que ao permitir aliar lazer e cultura, proporcionam ao diabético a aquisição de
conhecimentos, o aumento do controlo sobre a doença e o aprender a conviver
melhor com ela, através do trabalho em grupo supervisionado por uma equipa
multidisciplinar. Os resultados deste tipo de intervenção são reveladores de
uma ampliação dos conhecimentos sobre as complicações agudas e crónicas
decorrentes da diabetes, uma maior consciencialização da importância do
controlo metabólico, assim como uma melhoria da qualidade de vida dos
indivíduos (Maia Araújo, 2002).
Os grupos homogéneos por diagnóstico parecem assim funcionar como agentes
facilitadores do processo de mudança, na medida em que aproximam pessoas que
estão a vivenciar situações vitais semelhantes e que partilham uma identidade
grupal. Este tipo de grupo de pares parece potenciar a emergência de factores
terapêuticos para a mudança tais como a universalidade (e.g. Afinal estamos
todos no mesmo barco), a aprendizagem interpessoal, a coesão grupal, o
altruísmo, a solidariedade e a esperança (Kernberg Chazan, 1992; Yalom, 1995;
Zimerman, 1993). Os doentes têm a oportunidade de se sentirem valorizados ao
apoiar e dar sugestões a outros elementos do grupo e de se sentirem apoiados e
aprender a lidar melhor com os obstáculos (Guerra Lima, 2005; Marcelino
Carvalho, 2005; Rogado Teixeira, 1997; Brannon, et al., 1997, Osório, 1986,
citados por Silva, 2006). Por exemplo, Polonsky (1999, citado por Silva, 2006)
baseado na sua experiência clínica, refere que um em cada três diabéticos sente
que se encontra isolado com a sua doença e que não existe ninguém com quem
possa conversar sobre os sentimentos que tem em relação a esta. Outros autores
também têm encontrado as mesmas necessidades junto da população diabética e,
tal como Polonsky, afirmam que mesmo no caso dos doentes que possuem bom apoio
familiar, ainda que importante, não é suficiente, principalmente ao nível da
população adolescente e idosa (e.g. Cheng Boey, 2000, Handson, Henggeler,
Burghen, 1987, citados por Silva et al., 2003).
No âmbito do trabalho das equipas de saúde multidisciplinares para a educação
do paciente diabético, os grupos de apoio e intervenção psicoeducativa têm-se
focalizado, a par dos diversos aspectos psicológicos envolvidos no tratamento,
na máxima fundamental do tratamento: alimentação, medicação e actividade
física.A grande maioria das intervenções documentadas na literatura tem tido
como objectivos gerais a criação de um espaço de partilha que facilite a troca
de experiências e que constituía uma fonte de apoio social específica face à
diabetes, de forma a promover um maior ajustamento psicológico dos doentes e
melhorar a adesão ao tratamento e suas complicações agudas e crónicas, levando
os participantes a alcançar a manutenção dos autocuidados (e.g. Heleno Antónia,
2004; Almeida Oliveira, 2000, Silva Ribeiro, 2000 citados por Silva, 2006;
Torres et al., 2003).
CONCLUSÃO
Ao considerar os diversos aspectos inerentes à complexidade da diabetes
mellitus, tais como as restrições alimentares necessárias, o tratamento com
medicamentos, a alteração da função de diversos órgãos e segmentos do
organismo, o impacto pessoal, familiar e social da doença, os profissionais de
saúde têm sentido cada vez mais a necessidade de desenvolver acções psico-
educativas voltadas para os doentes portadores, recorrendo para isso ao
trabalho das equipas multidisciplinares numa perspectiva de promoção da saúde.
Esta abordagem multidisciplinar do doente diabético remete para uma visão
holística do processo saúde-doença, reconhecendo a complexidade do seu sistema
psíquico e somático e a necessidade de informações complementares, por parte
dos seus profissionais de saúde, sobre o controlo, a prevenção e as
complicações futuras da doença. No trabalho psicológico a realizar,
individualmente ou em grupo, o objectivo principal é a elaboração e aceitação
da doença para conseguir uma melhor qualidade de vida. Para muitos diabéticos é
fundamental sentir que existe um espaço em que podem conversar com outros que
se encontram na mesma situação, que partilham os mesmos medos, preocupações,
problemas, ansiedades e dificuldades e aprender estratégias para lidar com as
situações mais difíceis com que se confrontam no seu quotidiano. Estimular a
construção de conhecimentos por meio de uma perspectiva relacional e
interactiva em que os problemas e as soluções são partilhados num ambiente
empático, seguro e contentor, tem mostrado ser uma estratégia efectiva de
promoção da saúde, ao mesmo tempo que dá resposta a um maior número de pedidos,
optimizando os recursos técnicos das instituições.
Em suma, na abordagem multidisciplinar ao doente diabético no contexto dos
cuidados de saúde primários, a participação do psicólogo terá como finalidade
última a promoção de uma maior aceitação pelo paciente da doença e do
tratamento, a modificação de hábitos e estilos de vida, a promoção do vínculo
relacional com a equipa de cuidados, o aumento da adesão aos autocuidados e o
potenciar dos recursos pessoais para enfrentar a doença. Este trabalho
relacional supõe tempo(s), continuidade, espaços diferenciados e flexíveis e
elos, vínculos, ligações ' relações humanas.