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EuPTHUHu1645-00862010000100011

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variedadeEu
ano2010
fonteScielo

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Experiências adversas durante a infância e comportamentos de risco para a saúde em mulheres reclusas

As doenças estão cada vez mais controladas e com os rápidos avanços que se têm feito sentir nas ciências médicas, os tratamentos e a longevidade vão deixando de ser um mistério para se tornarem em realidades acessíveis a grande parte dos indivíduos. Porém, a prevalência da doença crónica tem aumentado e o tipo de doenças que mais têm vindo a colocar em causa a qualidade de vida dos indivíduo e, em última instância a sua própria vida, têm uma etiologia maioritariamente comportamental (Ogden, 1999; Ribeiro, 1998). Assim, mesmo havendo mais resposta para a doença, esta não deixa de ser uma condição ameaçadora, causadora de sofrimentos imensuráveis. Será então pertinente e urgente aumentar os esforços para permitir desenvolver o conhecimento acerca dos factores preditores dos comportamentos de risco para a saúde do indivíduo e, deste modo, possibilitar os avanços da promoção e protecção da saúde.

Pensando o indivíduo como um todo e tomando o seu desenvolvimento como contínuo e cumulativo, é inevitável considerar o comportamento humano como resultado de uma imensa interacção de factores externos e internos, passados e presentes.

Neste sentido, as experiências adversas durante a infância, têm vindo a ser consideradas como parte integrante desses factores que podem ter consequências a longo prazo no comportamento e no estado de saúde do indivíduo. Diversas linhas de investigação têm-se dedicado ao estudo da relação entre os diferentes tipos de experiências adversas, do seu impacto a nível físico, psicológico e social e das suas consequências no desenvolvimento do sujeito.

A ADVERSIDADE No início das investigações sobre experiências adversas, o estudo dos maus- tratos dirigidos ao indivíduo teve um significativo destaque, investindo-se assim no conhecimento relacionado com os abusos físicos, emocionas e sexuais.

No entanto, o domínio da adversidade tem vindo a ser alargado e, nos dias de hoje, consideram-se como experiências adversas as agressões directas ao indivíduo, mas também as omissões de cuidados e as condições gerais que afectam o ambiente e o equilíbrio familiar onde o indivíduo está inserido (Felitti et al., 1998).

Para além de se alargar o leque de experiências consideradas como adversas, tem-se também verificado o poder cumulativo dessas mesmas experiências. É sabido que estas experiências tendem a ocorrer em simultâneo e que quanto maior for o número de experiências adversas, maior é o seu efeito na vulnerabilidade do desenvolvimento do indivíduo (Dong, Anda, Dube, Giles, & Felitti, 2003; Dong et al., 2004).

Tal como Felitti e colaboradores (1998) afirmam, se não tivermos em consideração toda a adversidade que rodeia o ser humano, corremos o risco de atribuir as suas consequências a longo prazo unicamente a tipos isolados de abuso, e não estudar a influência cumulativa das múltiplas categorias da adversidade. Assim, é fundamental perceber a adversidade como um conceito amplo, abrangendo todas as a circunstâncias desfavoráveis para o desenvolvimento humano normativo (Rizzini & Dawes, 2001).

Na tentativa de atender ao poder cumulativo da adversidade e estudar os seus potenciais efeitos na saúde do indivíduo, Felitti e colaboradores (1998) têm-se dedicado ao estudo do impacto das experiências adversas durante a infância, considerando quer as experiências de que o sujeito é vítima directamente, nomeadamente abuso físico, abuso emocional, abuso sexual e negligência física e emocional, quer um conjunto de situações inadequadas que podem fazer parte do ambiente familiar, como por exemplo, mãe maltratada, familiares consumidores de substâncias, familiares com doenças mentais, pais divorciados e membros da família presos. Estes estudos têm vindo a verificar que as experiências adversas são simultaneamente comuns e destrutivas, o que as torna um fenómeno de extrema influência na saúde e no bem-estar dos indivíduos (Felitti, 2002).

EFEITOS DA ADVERSIDADE Considerando a infância uma fase de desenvolvimento fulcral para a construção e crescimento do ser humano, e sabendo que todas as vivências são integradas e têm uma influência significativa para toda a vida, tanto a nível físico, cognitivo, emocional, comportamental, como social, vários investigadores têm-se focado no estudo das experiências adversas durante a infância, no seu significado ao longo da vida e na sua influência ao nível da saúde física e mental do ser humano.

Neste sentido, diversos estudos têm comprovado os efeitos da adversidade durante a infância nos comportamentos relacionados com a saúde, no desenvolvimento de inúmeras patologias, como por exemplo doenças coronárias, doenças oncológicas e doenças infecciosas, e no estado de saúde mental dos indivíduos em idade adulta (Chapman et al., 2004; Dube et al., 2003; Felitti, et al., 1998; Rodgers et al., 2004; ). Os resultados destas investigações permitem concluir que a exposição à adversidade durante a infância contribui para precipitar ou exacerbar patologias do foro físico ou psíquico.

Adversidade e Psicopatologia São várias as evidências de que a adversidade é um preditor significativo, ao longo do desenvolvimento do sujeito, de psicopatologia. Ou seja, os efeitos dos traumas, essencialmente se estes forem múltiplos, podem ser tão severos que se prolongam por toda a vida, dando origem a problemas de origem psicológica (Krause & Shaw, 2004 in Maia & Seabra, 2007).

O efeito psicológico a longo prazo das experiências adversas durante a infância tem vindo a ser muitíssimo bem documentado na literatura, e são bastantes as evidências de que os problemas psíquicos desenvolvidos após tais experiências assumem graus de elevada severidade (Rodgers et al., 2004).

Para além da exposição à adversidade, o número de experiências adversas a que o indivíduo está sujeito torna-o mais vulnerável a desenvolver perturbações mentais ao longo da sua vida (Chapman et al., 2004). Chapman e colaboradores (2004) analisaram a relação entre adversidade durante a infância e o risco de depressão na idade adulta e, num estudo efectuado com 9460 clientes de uma clínica de cuidados primários, obtiveram resultados que mostram uma forte relação entre adversidade e depressão ao longo da vida.

Inúmeros estudos têm ampliado as consequências a longo prazo da adversidade para o nível físico, ou seja, a sua implicação na saúde do sujeito e nos comportamentos que têm impacto nos resultados de saúde (Rodgers et al., 2004).

Adversidade e Comportamentos de Risco para a Saúde A investigação tem-se debruçado sobre o impacto das experiências adversas durante a infância na saúde e nos comportamentos relacionados com resultados de saúde, como por exemplo, exercício, uso de substâncias, alimentação e comportamento sexual de risco (Rodgers et al., 2004). Os resultados destes estudos comprovam o efeito das experiências adversas ao longo da infância nos comportamentos relacionados com a saúde, considerados actualmente como sendo os principais potenciadores de doença e de morte (Felitti et al., 1998; Green, Miranda, Daroowalla, & Siddique, 2005).

Assim, os comportamentos que mais têm sido referidos como consequência de uma infância adversa são: inactividade física, consumo de álcool (Dube et al., 2006), abuso de substâncias (Dube et al., 2003), tentativa de suicídio (Dube et al., 2001), e comportamento sexual de risco (Hillis, Anda, Felitti, Nordenberg, & Marchbanks, 2001; Mullings, Marquart, & Brewer, 2000; Lewis, 2005).

Outros estudos apontam que, quando consideramos os efeitos das experiências adversas em conjunto, verificamos fortes relações com diversos comportamentos de risco para a saúde como fumar, consumo excessivo de álcool, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis e tentativas de suicídio (Anda et al., 1999; Dube et al., 2001; Felitti et al., 1998).

Para além dos comportamentos que põem em risco a saúde, numa revisão da literatura Maia (2004) conclui que a investigação tem vindo a provar que as pessoas com história de trauma têm mais doenças e mais queixas de saúde.

ADVERSIDADE, COMPORTAMENTOS DE RISCO E PSICOPATOLOGIA NA PRISÃO As mulheres reclusas são uma população onde a adversidade tem sido descrita como muito prevalente. Tendo-se vindo a verificar que as mulheres que se encontram detidas apresentam uma elevada taxa de exposição aos mais variados traumas, especialmente a abuso físico e sexual durante a infância (Green et al., 2005). Battle e colaboradores (2003, cit in Green et al., 2005) reforçam esta ideia demonstrando que a exposição a experiências traumáticas é praticamente universal na população prisional.

A partir do estudo da adversidade na infância em mulheres reclusas têm surgido evidências que apontam que tais experiências adversas aumentam a probabilidade de envolvimento em actos criminosos. A hipótese sobre o ciclo de violência, fundamentada pela Teoria da Aprendizagem Social de Bandura, vem de encontro a esta ideia, sugerindo que as crianças que são expostas a padrões de comportamento violento têm maior probabilidade de usar esses comportamentos no futuro, sendo a vivência de situações de abuso um risco acrescido para a perpetuação de actos violentos (Sani, 2004).

Um estudo efectuado por Mullings e colaboradores (2000) conclui que as mulheres que foram abusadas durante a infância são detidas em idades precoces, têm mais probabilidade de viver em condições de marginalidade, apresentam mais consumos de substâncias ilícitas, têm mais histórias de prostituição e envolvem-se num maior número de comportamentos de risco para a saúde. Assim, para além da ligação entre adversidade durante a infância e criminalidade, surge uma associação entre comportamentos de risco para a saúde e criminalidade.

Neste sentido, para além da elevada incidência de adversidade durante a infância, as mulheres ofensoras surgem, ao longo da literatura, como um grupo de alto risco, uma vez que frequentemente têm histórias de prostituição, consumo de substâncias intra-venosas e instabilidade sócio-económica (Fletcher, Shaver, & Moon, 1993; Mullings et al., 2000). Green e colaboradores (2005) focam a prevalência de perturbações mentais e de abuso de substâncias nesta população, tendo Teplin, Mericle, McClelland, e Abram (2003) salientado a elevada prevalência do Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH) em mulheres reclusas e apontado a importância e a pertinência de serem efectuados estudos para averiguar como é que o abuso sexual, a disfunção familiar, o trauma e as perturbações mentais afectam o comportamento sexual de risco.

Possivelmente devido ao número de mulheres que cometem crimes e que se encontram detidas ser ainda diminuto, também o número de investigações que lhes têm sido dedicadas é baixo, tendo vindo a ser dada pouca atenção a esta população (Green et al., 2005; Mullings et al., 2000). Todavia, o número de mulheres reclusas em Portugal tem vindo a estar em destaque nos últimos anos por ser dos mais elevados do panorama europeu (Matos & Machado, 2007) e, embora se possam encontrar investigações actuais acerca da reclusão feminina em território nacional (e.g. Cunha, 2002; Gonçalves & Lopes, 2004; Leal, 2007; Matos & Machado, 2007;Matos 2008), esta continua a ser uma população que necessita de ser mais e melhor caracterizada no sentido de aprofundar o conhecimento e aprimorar a intervenção, essencialmente no que diz respeito a aspectos de saúde. Deste modo, salienta-se a necessidade da investigação se debruçar sobre este grupo de alto risco no sentido de averiguar as relações entre adversidade, comportamentos de risco para a saúde, psicopatologia e criminalidade, para posteriormente se poder traçar planos de intervenção eficazes.

O estudo que é aqui apresentado corresponde à primeira fase de um projecto mais amplo que visa caracterizar o estado de saúde de mulheres reclusas em estabelecimentos prisionais Portugueses, dando assim resposta ao desafio reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (2009) que enfatiza o desconhecimento desta realidade e a inadequação dos programas de intervenção.

Por outro lado procura relacionar os comportamentos de saúde com as características psicossociais de mulheres reclusas e compreender de que modo a sua história de vida, nomeadamente a exposição a experiências adversas durante a infância, se relaciona com padrões comportamentais actuais, com um foco nos comportamentos de risco para a saúde.

Neste sentido propomos efectuar uma caracterização das mulheres reclusas, conhecer a sua história de vida e os comportamentos de risco para a saúde, assim como a sintomatologia psicopatológica. Pretendemos ainda perceber se existe relação entre experiências adversas durante a infância, como abuso físico, abuso emocional, abuso sexual, negligência física, negligência emocional e disfunção familiar, os comportamentos de risco para a saúde, e a sintomatologia psicopatológica.

MÉTODO Participantes Este estudo foi realizado com 42 indivíduos do sexo feminino que se encontram institucionalizados num estabelecimento prisional do norte do país.

Uma vez que nos comprometemos a não interferir na rotina quotidiana do estabelecimento prisional, os horários possíveis para entrevistar as reclusas foram muito limitados. Este facto, aliado aos prazos limite para término da investigação, não nos permitiram alcançar uma amostra mais numerosa. É ainda de salientar que das 50 mulheres entrevistadas, oito não terminaram de responder aos questionários, cinco delas devido a terem sido chamadas para cumprir tarefas da sua responsabilidade no estabelecimento prisional e três devido à desistência justificada pela dificuldade emocional para responder às questões, dando origem a uma taxa de adesão de 84%.

No que concerne à informação sócio-demográfica, as mulheres que participaram no estudo apresentam idades compreendidas entre os 17 e os 51 anos e a média de idades é de 32 anos, com um desvio padrão (DP) de 8.26. Relativamente à etnia 62% (n=26) das mulheres estudadas são de origem caucasiana, 2% (n=1) são afro- americanas, 7% (n=3) hispânicas e 29% (n=12) são de etnia cigana. Uma percentagem significativa das mulheres é casada (n=15, 36%) ou vive em situação de união de facto (n=11, 26%). Das restantes, uma está separada (2%), sete divorciadas (17%) e oito são solteiras (19%). No que diz respeito ao local de residência, antes de serem detidas, 71% (n=30) das mulheres viviam numa residência fixa pelo menos dois anos. As habilitações académicas destas mulheres são, na sua generalidade, baixas, uma vez que 79% não tem a escolaridade mínima obrigatória, pois 19 % (n=8) frequentou a escola menos do que quatro anos, 24% (n=10) tem o ano, e 36% (n=15) o ano. Apenas 7% (n=3) completou o ano de escolaridade, 10% (n=4) tem o 12º ano e 5% (n=2) tem formação universitária. Analisando a ocupação destas mulheres, verifica-se que antes de serem detidas, 52% (n=22) das mulheres estavam empregadas a tempo inteiro, 7% (n=3) tinham emprego em parttimee 41% (n=17) encontravam-se desempregadas. Porém, é importante salientar que doze das reclusas entrevistadas são de etnia cigana, logo, o conceito de emprego é diferente do conceito legal, devido à actividade de feirante. Destas doze mulheres, seis indicaram estarem desempregadas, mas depois referiram que faziam feiras, as outras seis identificaram-se como empregadas, sendo a actividade profissional ser feirante.

Relativamente à informação familiar, seis mulheres (14%) nunca tiveram contacto com a figura parental masculina, deste modo, apenas 36 participantes puderam responder à questão relativa à escolaridade do pai e esta é extremamente baixa, sendo que 41% (n=17) dos pais frequentaram menos do que quatro anos a escola, 29% (n=12) completaram o ano, 12% (n=5) o ano, 2% (n=1) o ano e 2% (n=1) o 12º ano. Do mesmo modo, duas das mulheres inquiridas (5%) nunca tiveram contacto com a sua mãe. A escolaridade das mães das reclusas é igualmente baixa, 41% (n=17) tem menos do que o ano, 41% (n=17) tem somente o ano, 5% (n=2) o ano, 3% (n=1) o ano, e 7% (n=3) formação universitária.

Durante a maior parte da infância, 52% (n=22) das famílias das reclusas eram donas da casa onde moravam.

Instrumentos Questionário Sócio Demográfico e História de Vidatraduzido de Family Health History(Felliti & Anda, 1998; traduzido por Alves, Silva, Maia 2006).Avalia factores demográficos, factores sociais de risco, comportamentos de risco e experiências adversas durante a infância.

Os comportamentos de risco para a saúde considerados foram a inactividade física, o consumo de tabaco, álcool e drogas, as relações sexuais desprotegidas e a tentativa de suicídio. As respostas a estas questões permitem obter um índice de comportamentos de risco para a saúde, que pode variar entre 0 e 6.

No que concerne às experiências adversas de vida, estas organizam-se em dez categorias, nomeadamente: abuso físico, abuso emocional, abuso sexual, negligência física, negligência emocional, consumo de substâncias em ambiente familiar, prisão de um membro da família, doença mental ou suicídio na família, divórcio ou separação parental e mãe vítima de violência doméstica (Anda et al., 2006; Chapman et al., 2004; Felitti et al., 1998).

Este questionário permite o cálculo do valor da adversidade totalcom o objectivo de analisar o efeito cumulativo que advém da co-existência de diferentes experiências adversas durante a infância e a sua relação com os comportamentos de risco, uma vez que esta tem sido apontada como bastante forte por diversos autores (Anda et al., 2002).

É importante salientar que a variável adversidade totalé resultado do somatório das diferentes categorias de adversidade acima descritas. Foi atribuído o valor 0 caso a adversidade não tenha sido relatada e o valor 1 caso a adversidade tenha sido relatada. Note-se que as categorias de abuso físico e emocional e todas as de negligência são consideradas como ocorrentes (valor 1) caso tenham sido experienciadas muitas vezes ou muitíssimas vezes. O valor total desta variável pode oscilar entre 0 e 10.

Pode-se ainda calcular um índice de adversidade, composto pelo somatório de todos os casos de adversidade, mesmo os que ocorreram raramente ou algumas vezes, que não são tidos em consideração na variável adversidade total. Este índice pode variar entre 0 e 30. Este questionário demonstrou boas características psicométricas (Felitti et al., 1998).

Inventário de Sintomas Psicopatológicos (Brief Symptoms Inventory' BSI; versão de Canavarro, 1999), uma vez que nos permite avaliar os sintomas psicopatológicos em termos de nove dimensões básicas (Somatização, Obsessões- Compulsões, Sensibilidade Interpessoal, Depressão, Ansiedade, Hostilidade, Ansiedade Fóbica, Ideação Paranóide e Psicoticismo) e três índices globais (índice geral de sintomas - tem em conta o número de sintomas psicopatológicos e a sua intensidade, total de sintomas positivos - reflecte o número de sintomas assinalados e o índice de sintomas positivos - combina a intensidade da sintomatologia com o número de sintomas presentes). O instrumento tem revelado boas características psicométricas.

Salientamos que este inventário não foi aplicado na totalidade às participantes deste estudo. Foram retiradas três afirmações, nomeadamente Medo na rua ou praças públicas., Medo de viajar de autocarro, comboio ou metro. e Sentir- se mal no meio das multidões como lojas, cinemas ou assembleias, devido ao facto de não se adequarem à condição de vida actual destas mulheres por estarem detidas.

Procedimento Após concedida a autorização para elaboração do estudo no Estabelecimento Prisional, foi-nos facultada uma listagem de todas as reclusas que estariam disponíveis para nele participar.

No início de cada entrevista com as reclusas foi esclarecido o teor do estudo e o facto de a investigação ser efectuada em total confidencialidade, respeito pelos direitos humanos e pela saúde física, mental e social dos indivíduos que nela participarem, não colocando em causa nenhuma questão ética. Foi ainda pedido o consentimento informado às participantes e estas foram avisadas que poderiam abandonar o estudo, a qualquer momento, se assim o desejassem. No decorrer da entrevista foram administrados os instrumentos atrás descritos.

RESULTADOS Experiências adversas na infância Relativamente à experiência de abuso físico, 32 (76.2%) mulheres estiveram expostas a abuso físico durante a infância. As experiências de abuso emocional foram referidas por 21 (50%) mulheres. E o abuso sexual foi relatado por 11 mulheres (26.2%). Concretamente no que diz respeito à tipologia de abuso sexual, verificamos que a média de idades das participantes que referiram que algum adulto tocou ou acariciou o corpo delas de forma sexualizada (n=10) é igual a 9.6 (DP=3.53); a média de idades das participantes que referiram ter tocado o corpo de um adulto de uma forma sexualizada (n=4) é igual a 7.25 (DP=3.30); as participantes que disseram que algum adulto tentou ter algum tipo de relação sexual com elas (n=5) apresentam uma média de idades de 11.0 (DP=2.92); e, por fim, apenas uma participante referiu que teve algum tipo de relação sexual com um adulto e tal aconteceu aos sete anos de idade. Analisando o tipo de abusadores, apenas uma participante referiu ter sido vítima de abuso sexual por parte de um estranho, as restantes disseram que os abusos foram da parte de familiares ou amigos da família. Todas relataram ter sido vítimas de engano, persuasão verbal ou pressão para obter a sua participação nos actos abusivos. Nenhuma destas mulheres tinha, até à data, falado destas experiências sexuais com médicos, enfermeiros ou profissionais de saúde.

As participantes que relataram experiências de negligência física foram 38 (66.7%) e as que relatam experiências de negligência emocional foram 19 (45.2%). Relativamente às dimensões de disfunção familiar, 26 (61.9%) mulheres viveram com familiares consumidores de álcool e/ou drogas; 21 (50%) tiveram um familiar na prisão; 23 (54.7%) viveram com familiares com doença mental e/ou com familiares que tentaram o suicídio; 12 (28.6%) viveram, durante a infância, o divórcio ou separação dos seus pais; e 19 (45.2%) presenciaram a mãe a ser vítima de violência doméstica.

Quanto à adversidade total, resultado do somatório das diferentes categorias de adversidade relatadas pelas reclusas, podemos verificar que apenas uma mulher não apresentou qualquer tipo de adversidade, ou seja, 97.6% das participantes deste estudo tiveram pelo menos uma experiência adversa na infância (tabela 1).

Tabela 1 Frequências e percentagem dos valores de Adversidade Total

É ainda de salientar que destas, 64.3% relataram cinco ou mais experiências adversas na infância. Para a adversidade total obtivemos uma média de 5.05 e desvio padrão 2.63.

Foi ainda estudado o índice de adversidade, composto pelo somatório de todos os casos de adversidade, mesmo os que ocorreram raramente ou algumas vezes, que não são tidos em consideração na variável adversidade total. Este índice apresenta uma média de 9.31 (DP=7.15).

Comportamentos de Risco para a Saúde na Idade Adulta A inactividade física antes do momento da detenção verificou-se em 31 (73.8%) mulheres; 29 (69.0%) fumam regularmente, sendo a média de cigarros por dia de 16.86 (DP=10.61) e a média de idades em que iniciaram o consumo de tabaco de 15.55 anos (DP=3.69). Nove mulheres (21.4%) afirmaram que, antes da detenção, consumiam bebidas alcoólicas um número de vezes considerado excessivo, a média de idades em que as participantes consumiram álcool a primeira vez é igual a 17.1 (DP= 5.26) e apenas duas se consideram dependentes do álcool; 21 (50%) mulheres consumiram substâncias ilícitas e 16 (38.1%) relataram que foram dependentes, a média de idades em que estas mulheres tiveram o primeiro consumo de substâncias ilícitas é de 19.1 (DP=6.66). Relativamente ao comportamento sexual, 24 (57.1%) mulheres envolveram-se em relações sexuais desprotegidas, a média de idades da primeira relação sexual é igual a 15.8 anos (DP=1.96), 83.3% das mulheres mantém vida sexual activa, 66.7% afirmaram não ter vontade de usar preservativo, 73.8% disseram que os companheiros também não têm vontade de usar preservativo, e as 36 mulheres que foram mães tiveram o seu primeiro filho com uma média de idades igual a 18.1 anos (DP=3.27).

Por fim, relativamente à tentativa de suicídio, 35.7% (n=15) das inquiridas tentaram pôr fim à sua vida e dez necessitaram de cuidados médicos devido a lesões provocadas pela tentativa de suicídio. A média de idades em que ocorreram as últimas tentativas de suicídio é 22.9 anos (DP=6.26).

Índice de Comportamentos de Risco para a Saúde Através do somatório dos comportamentos de risco acima apresentados foi calculado um índice de comportamentos de risco para a saúde apresentado na tabela número dois. Amédia do índice de comportamentos de risco para a saúde é de 2.6 (DP = 1.27). Como se pode observar, 73.8% das reclusas relataram entre dois e quatro comportamentos de risco, sendo a moda três.

Tabela 2 Frequências e percentagens no Índice Comportamentos de Risco para a Saúde

Sintomas Psicopatológicos Verificamos que as participantes do presente estudo apresentaram médias superiores às da população geral para todas as dimensões de psicopatologia avaliadas (cf. tabela 3).

Tabela 3 Sintomas Psicopatológicos (BSI) dos participantes do estudo por referência à populaçãogeral

Associação entre experiências adversas durante a infância, comportamentos de risco para a saúde e sintomatologia psicopatológica A realização de correlações de Spearmanentre adversidade, comportamentos de risco e psicopatologia deu origem aos valores expostos na tabela número quatro.

A adversidade total e o índice de comportamentos de risco para a saúde não apresentam qualquer tipo de relação, porém, se considerarmos o índice de adversidade, encontramos uma correlação significativa com o índice de comportamentos de risco para a saúde. Verifica-se também uma relação significativa entre a adversidade total e o índice de adversidade com o índice geral de sintomas (BSI).

Tabela 4 Resultados da Correlação de Spearman entre as diferentes variáveis

Observando a forte relação entre a adversidade total e o índice geral de sintomas (BSI), foi realizada uma correlação de Spearmanentre a variável adversidade total e as diferentes dimensões de psicopatologia. Assim, como podemos verificar na tabela número cinco, existem relações significativas entre a adversidade total e todas as dimensões de psicopatologia do BSI que foram alvo de estudo.

Tabela 5 Resultados da Correlação de Spearman entre Adversidade Total e os Índices de Psicopatologia

Na sequência das análises de correlações apresentadas, e uma vez que se verificaram algumas correlações significativas entre adversidade, comportamentos de risco e sintomas psicopatológicos, realizamos análises de regressão linear no sentido de perceber quanto o índice de adversidade explica a variância dos comportamentos de risco para a saúde e dos sintomas psicopatológicos (BSI) e quanto a adversidade total explica a variância dos sintomas psicopatológicos (BSI).

A análise de regressão para predizer os comportamentos de risco para a saúde utilizando o índice de adversidade como preditor deu origem a um modelo significativo, (F(1,41) = 4.50, p<.05). O mesmo preditor igualmente origem a um modelo altamente significativo (F(1,41) = 28.25, p=.000) para explicar os sintomas psicopatológicos. Constatou-se que o índice de adversidade explica cerca de 7.8% da variância do total dos comportamentos de risco para a saúde e cerca de 40% da variância dos sintomas de psicopatologia.

Para além de averiguar possíveis relações entre a soma das experiências adversas e comportamentos de risco, utilizamos o teste de independência do Qui- quadrado para estudar a possibilidade de associações entre tipos específicos de adversidade na infância e os comportamentos específicos de risco para a saúde.

Encontramos valores marginalmente significativos no que se refere às relações entre inactividade física e prisão de um membro da família (÷²(1)= 3.079; p<.10), consumo de tabaco e abuso emocional (÷²(1)= 2.785; p<.10) e relações sexuais desprotegidas e divórcio ou separação parental (÷²(1)= 3.889; p<.10).

Encontramos valores estatisticamente significativos entre o consumo de tabaco e a negligência física (÷²(1)=3.857; p<.05), tentativa de suicídio e abuso sexual (÷²(1)=5.061; p<.05), tentativa de suicídio e negligência física (÷²(1)= 4.200; p<.05), tentativa de suicídio e familiares consumidores de substâncias (÷²(1)= 6.067; p<.05), tentativa de suicídio e divórcio ou separação parental (÷²(1)= 7.010; p<.05), tentativa de suicídio e mãe vítima de violência doméstica (÷² (1)= 7.435; p<.01) e consumo de álcool e doença mental na família (÷²(1) = 5.385; p<.05).

Depois de verificada a relação entre diversos tipos de adversidade na infância e tentativas de suicídio, tentamos compreender até que ponto adversidade total prediz o comportamento suicida realizando para tal uma análise de regressão logística. O modelo obtido é significativo (÷²(1)= = 7.469; p ˂.05), sendo que o aumento de um ponto na adversidade é acompanhado por um risco aumentado de 1.462 das tentativas de suicídio. Os resultados são apresentados na tabela número seis.

Tabela 6 Resultados da análise de regressão logística utilizando como preditor a adversidade total e como variável predita as tentativas de suicídio

DISCUSSÃO Efectuando uma comparação do grupo em estudo com os dados relativos ao trimestre do ano de 2008, divulgados pela Direcção Geral dos Serviços Prisionais, no que diz respeito à idade das reclusas portuguesas, o escalão etário dos 30 aos 39 anos é o mais prevalente (34%), e a média de idades das participantes do nosso estudo é de 32 anos (DP=8.26), correspondendo assim às idades mais prevalentes da população presa em geral.

Não encontramos estatísticas sobre o número de mulheres de etnia cigana detidas no nosso país mas, tal como nos trabalhos de Matos e Machado (2004) e de Matos (2008), salientamos que, também no nosso estudo, a percentagem de reclusas de etnia cigana (29%) é bastante expressiva. no que diz respeito à percentagem de reclusas de raça negra (2%) no nosso estudo, esta revelou-se bastante inferior aos estudos acima citados.

No que refere ao estado civil, a percentagem de reclusas casadas (36%) e em união de facto (26%) são as mais expressivas, porém estes resultados não vão de encontro aos dados publicados em outras investigações efectuadas no nosso país que têm apontado para uma percentagem mais elevada de reclusas solteiras (Matos & Machado, 2004; Matos, 2008).

Relativamente à escolaridade das mulheres das prisões portuguesas (Direcção Geral dos Serviços Prisionais, 2008), 73,5% frequentaram a escola, sendo que 29.4% concluíram o ciclo, 13.8% o ciclo, 15.8% o ciclo, 9.5% o ensino secundário, 4.7% o ensino superior e 0.3% apresentam outros cursos, 12% sabem ler e escrever mas nunca foram à escola, 11.4% são analfabetas e 3.1% não responderam. Verificamos deste modo que as habilitações académicas das mulheres da nossa amostra vão ao encontro dos dados da população feminina presa em Portugal, e que a baixa escolaridade é coincidente com o que tem vindo a ser descrito em outros estudos sobre mulheres reclusas (Matos & Machado, 2004; Matos, 2008).

Um dos grandes objectivos deste estudo era conhecer a prevalência de adversidade durante a infância, dos comportamentos de risco para a saúde e da psicopatologia na idade adulta, em mulheres reclusas.

No que diz respeito à prevalência das categorias de adversidade isoladamente, verificamos que, na amostra em estudo, as dimensões de abuso activo voltado para o sujeito são bastante prevalentes. Assim, 76.2%das mulheres relataram ter sido alvo de abuso físico, 50%de abuso emocional, 26.2%de abuso sexual. A negligência aparece também com uma taxa de prevalência elevada uma vez que 66.7% das mulheres relataram ter sido negligenciadas fisicamente e 45.2% ter sido negligenciadas emocionalmente.

Paralelamente aos abusos voltados para o sujeito, no que concerne à disfunção familiar, 61.9% das mulheres viveram com familiares consumidores de substâncias, 50% tiveram um membro da família preso, 54.7% tiveram um familiar com doença mental ou com história de tentativa de suicídio, 45.2%presenciaram a mãe a ser maltratada e 28.6% relataram divórcio ou separação parental. A prevalência destas experiências adversas no seio familiar pode advir da elevada co-morbilidade entre abuso dirigido ao indivíduo e disfunção familiar, ou seja, uma dinâmica familiar desajustada incrementa a presença de maus-tratos dirigidos ao sujeito. Isto leva-nos a realçar, mais uma vez, a importância de considerar as experiências adversas como um todo, tendo em atenção o seu carácter cumulativo (e.g. Felitti et al., 1998; Rodgers et al., 2004).

Relativamente à adversidade total, 97.6% das mulheres inquiridas neste estudo relataram pelo menos um tipo de experiência adversa durante a infância. Destas, 73.8% relataram quatro ou mais tipos de experiências adversas, sendo a média destas experiências de 5.05 (DP=2.63).

Estes números vão de encontro a estudos que referem que as mulheres que cometem crimes têm passados com história de abusos, essencialmente abuso físico e sexual (Fletcher et al., 1993; Green et al., 2005; Lewis, 2005; Mullings et al., 2000); e que estar exposto a violência parental e/ou viver em famílias abusivas, aumenta a probabilidade de ter problemas comportamentais e agressividade (Sani, 2006). No que diz respeito aos comportamentos de risco verificamos que 73.8% das mulheres não fazem exercício físico, 69% fumam, 21.4% consomem álcool em excesso, 50% consomem substâncias ilícitas, 57.1% envolveram-se em relações sexuais desprotegidas e 35.4% tentaram o suicídio.

Assim, 95.2% das mulheres em estudo apresentam pelo menos um comportamento de risco para a saúde e 54.8% apresentam três ou mais comportamentos de risco para a saúde. A média dos comportamentos de risco de 2.6 (DP=1.27).

Embora não tenhamos conferido estatísticas actuais referentes a este tipo de comportamento de risco no nosso país sabemos, pela literatura, que a prática de exercício físico tem vindo a aumentar na população em geral, o consumo de tabaco, segundo o Anuário Estatístico de Portugal de 2007, tem vindo a diminuir, o consumo de álcool e de drogas é muito pouco prevalente junto dos jovens portugueses (Matos et al., 2006), o uso de preservativo aparece ainda como uma prática muito inconsistente e o número de suicídios aparecem numa taxa inferior a 1% no ano de 2007 (Anuário Estatístico de Portugal de 2007).

Assim, ficamos com a ideia de que, embora a população portuguesa em geral mantenha comportamentos de risco que põem a sua saúde em causa, estes não são tão prevalentes como na população estudada.

Para além de termos verificado na nossa amostra a elevada prevalência dos comportamentos de risco para a saúde nas mulheres reclusas, tal facto também aparece documentado na literatura como uma prática comum. Nas prisões dos Estados Unidos o número de mulheres infectadas com VIH é muito superior ao dos homens, o que indica que estas mulheres têm elevada prevalência de comportamentos sexuais de risco (Lewis, 2005).

Green e colegas (2005) citam estudos que indicam que o aumento de mulheres nas prisões está relacionado com o consumo de drogas e com comportamentos relacionados com substâncias ilícitas. No estudo destes autores com 100 mulheres detidas, o abuso de substâncias aparece como muito prevalente, 32% bebiam álcool em excesso e 72% consumiam substâncias ilícitas. Neste estudo também foram encontrados níveis de comportamentos sexuais de risco acima dos encontrados na população em geral, como por exemplo 36% das mulheres nunca tinham usado preservativo.

Em Portugal, segundo as Estatísticas Prisionais do terceiro trimestre de 2008, os crimes mais comuns na população feminina das prisões portuguesas estão relacionados com estupefacientes (59.2%). Pensamos que uma parte significativa da nossa amostra corresponde a este perfil, indo ao encontro do estudo de Matos e Machado (2004) que aponta para a elevada prevalência de consumos de substâncias ilícitas e de detenções devidas a tráfico de droga, demonstrando que as detenções de mulheres em Portugal parecem ter a "droga como pano de fundo" (p. 329). Matos (2008; p.211), considerando crimes e consumos, reforça a ideia da droga como "elemento de relevo" junto da população reclusa feminina, porém chama à atenção para o facto destes consumos serem inferiores aos da população reclusa masculina e desta centralidade das drogas na criminalidade feminina não se reduzir a uma relação causal unívoca entre droga e crime.

Paralelamente ao objectivo descritivo deste estudo, procuramos também verificar a qualidade da relação entre as experiências adversas durante a infância e os comportamentos de risco e a psicopatologia na idade adulta, em mulheres reclusas, uma vez que, como foi referido, a adversidade durante a infância tem vindo a ser considerada um importante factor preditor dos comportamentos de risco para a saúde (Felitti et al., 1998) e de psicopatologia (Rodgers et al., 2004).

Assim, no nosso estudo, embora a taxa de adversidade durante a infância seja muito elevada, assim como a taxa de comportamentos de risco para a saúde, apenas encontramos uma relação significativa entre a adversidade total e tentativa de suicídio, não se verificando tal relação para os restantes comportamentos estudados. Ou seja, na nossa amostra apenas a tentativa de suicídio poderá ser explicada pelo efeito cumulativo da adversidade.

A relação entre os comportamentos de risco para a saúde e a adversidade acaba por se evidenciar quando consideramos o índice que inclui todo o tipo de experiências adversas e não apenas as mais graves. Assim, se ao invés de considerarmos a adversidade como um fenómeno que é constituído por experiências frequentes ou muito frequentes (um indicador de gravidade), considerarmos a presença de qualquer tipo de adversidade, mesmo que menos frequente, verificamos que este índice de adversidade explica cerca de 7.8% da variância do total dos comportamentos de risco para a saúde, sendo este modelo significativo. Tal condição pode ser compreendida, mais uma vez, pelo potencial cumulativo das diferentes formas de adversidade, mesmo que menos frequentes.

Para além de estudarmos a adversidade em conjunto, foi também analisada a relação entre as diferentes categorias de adversidade e os diferentes comportamentos de risco para a saúde. Neste caso, verificamos que existem associações significativas entre prisão de um membro da família e inactividade física, divórcio ou separação parental e prática de relações sexuais desprotegidas, abuso emocional e consumo de tabaco, negligência física e consumo de tabaco e doença mental do seio familiar e consumo de álcool. O comportamento de risco que aparece associado a um maior número de categorias de adversidade isoladamente é a tentativa de suicídio. O abuso sexual, a negligência física, familiares consumidores de substâncias, divórcio ou separação parental e mãe vítima de violência doméstica, estão associados ao comportamento suicida.

Dube e colaboradores (2001), num estudo sobre abuso infantil, disfunção familiar e tentativa de suicídio ao longo da vida, encontraram resultados que apontam que cada uma das categorias de adversidade potencia o risco de suicídio. Estes autores também encontraram uma relação entre a adversidade global e a tentativa de suicídio, concluindo que à medida que o número de experiências vividas por um determinado sujeito aumenta, também aumenta o risco de tentativa de suicídio. Tal resultado foi igualmente verificado no nosso estudo.

Em termos de sintomatologia psicopatológica, as mulheres da nossa amostra apresentam uma média de sintomas superior à população em geral em todas as dimensões avaliadas pela BSI (com excepção da dimensão ansiedade fóbica que não foi avaliada).

Como foi anteriormente descrito, a adversidade durante a infância deteriora a saúde mental dos sujeitos e potencia o risco de psicopatologia durante a idade adulta (Chapman et al., 2004; Figueiredo, Fernandes, Matos, & Maia, 2002; Rodgers et al., 2004). No nosso estudo verificamos que a adversidade total explica cerca de 29% da variância dos sintomas psicopatológicos (BSI), sendo este modelo altamente significativo. E, se considerarmos o índice de adversidade, verificamos que este explica cerca de 40% da variância dos sintomas de psicopatologia, sendo este modelo altamente significativo.

Assim, ao analisarmos a relação entre as experiências adversas durante a infância e o índice geral de sintomas da BSI, podemos comprovar que a adversidade durante a infância constitui um factor de risco para o aparecimento e evolução de psicopatologia no estado adulto.

Foi ainda estudada a relação entre o total da adversidade e as diferentes dimensões de psicopatologia do BSI e verificamos que todas as dimensões que foram alvo de estudo aparecem relacionadas com uma infância adversa. Estes resultados vão ao encontro de numerosos estudos. Tal como Felliti e a sua equipa sugerem (Anda et al., 2002; Felitti et al., 1998; Felitti, 2002), em situações de maior adversidade durante a infância são relatadas mais tentativas de suicídio, para as quais a psicopatologia constitui um factor de risco, mais depressão, e maior número de problemas de ansiedade ou dissociação.

Dube e colaboradores (2001) reforçam esta ideia defendendo a forte relação entre a adversidade na infância e a presença de humor deprimido na idade adulta. Chapman e colaboradores (2004) também encontram resultados que vão neste sentido, referindo que as mulheres que relatam mais do que cinco categorias de adversidade, quando comparadas às mulheres que não relatam qualquer tipo de adversidade, têm um risco acrescido de história de perturbação depressiva ao longo da vida. Face a estes resultados, os autores sugerem que experimentar múltiplas formas de abuso durante a infância pode levar a consequências devastadoras na saúde mental dos indivíduos em idade adulta.

Para além da adversidade na infância outras circunstâncias adversas ao longo da vida são factores de risco para a saúde mental. A circunstância de reclusão pode contribuir de um modo relevante para os níveis de sintomatologia psicopatológica encontrados neste estudo (Plugge, Douglas, & Fitzpatrick, 2006).

Verificamos que a prevalência de adversidade durante a infância nas mulheres reclusas, tanto em termos de factores relativos como considerando a acumulação de experiências, é elevada. Paralelamente a uma infância adversa, na idade adulta estas mulheres envolvem-se num elevado número de comportamentos de risco para a saúde, havendo várias relações entre a adversidade relatada e comportamentos de risco para a saúde. Para além da elevada prevalência destes dois fenómenos, também a sintomatologia psicopatológica é exacerbada nestas mulheres, sendo tal facto explicado, em grande parte, por uma infância adversa.

Como conferimos neste estudo e na literatura, as experiências adversas durante a infância são uma realidade comum nos estabelecimentos prisionais, podendo mesmo ser responsáveis pelos comportamentos delinquentes dos sujeitos que neles se encontram.

Assim, reconhecer que estas experiências influenciam de forma negativa o desenvolvimento do indivíduo, estão associadas à elevada prevalência de comportamentos de risco para a saúde e à elevada presença de psicopatologia, e acarretam consequências nefastas ao nível da saúde do indivíduo, aponta para a necessidade de elaborar planos ao nível da intervenção e do acompanhamento psicológico desta população.

Por outro lado, é fundamental realçar a importância de criar planos de prevenção primária ao nível da infância, no sentido minimizar a probabilidade da adversidade vir a acontecer; e planos de prevenção secundária no sentido de prevenir a adopção de comportamentos de risco para a saúde como estratégias para lidar com a adversidade, e plano de prevenção terciária no sentido de alterar os comportamentos de risco existentes e diminuir os seus efeitos na saúde do indivíduo.

Alguns programas de intervenção prisional têm falhado por se focarem apenas nas problemáticas actuais dos reclusos, como a toxicodependência e as doenças sexualmente transmissíveis, e não considerarem o seu desenvolvimento global, a sua história de vida e os contextos em que eles estão inseridos (Mullings et al., 2000).

Green e colaboradores (2005) falam acerca da necessidade de implementar mais programas de intervenção nas prisões com o objectivo quebrar o ciclo da violência junto das mulheres criminosas e ter em consideração a sua história de vida adversa, sendo esta uma arma fundamental para o seu sucesso. Em suma, apesar das limitações deste estudo, nomeadamente o número muito reduzido de participantes, pode-se concluir que as experiências adversas durante a infância tomam formas de memórias difíceis de reconhecer, dolorosas de relembrar e muito difíceis de lidar, afectando toda a vida as suas vítimas. Assim, toda a comunidade deve trabalhar no sentido de as minimizar e criar mecanismos para ajudar as crianças que delas sofrem, no sentido destas não terem um impacto tão negativo ao longo do desenvolvimento do ser humano.


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