Experiências relacionais precoces, vulnerabilidade ao stress, estratégias de
coping e adaptação à decisão e experiência de interrupção voluntária da
gravidez
Em Julho de 2007 entrou em vigor no nosso país a legislação que enquadra a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) por opção da mulher,
até às dez semanas de gestação, em estabelecimentos de saúde oficiais ou
oficialmente reconhecidos (Lei 16/2007 de 17 de Abril). De acordo com a
legislação em vigor, a mulher deve obrigatoriamente beneficiar de uma consulta
médica prévia à IVG, seguida de um período de reflexão de três dias, podendo,
se o desejar, solicitar acompanhamento psicológico antes, durante e após o
processo de interrupção da gestação (Direcção Geral de Saúde, 2007).
A decisão da IVG apresenta-se, assim, como uma resolução carregada de uma forte
dimensão moral e ética (Casey, Oates, Jones, & Cantwell, 2008), que ainda
muito recentemente foi alvo de discussão cívica e social no nosso país. Neste
contexto, a investigação existente demonstrou que as mulheres portuguesas que
se vêem confrontadas com esta decisão reprodutiva experienciam níveis elevados
de ansiedade e culpa, com expressão ao nível de sintomatologia psicopatológica
(somatização, ansiedade, hostilidade e depressão) (Guedes, Gameiro, &
Canavarro 2010). Embora se observe uma melhoria significativa do ajustamento
psicológico do período decisório para o período pós-IVG (particularmente nos
indicadores de ansiedade), Guedes et al. (2010) evidenciou que estas mulheres
tendem a experienciar menos felicidade e mais culpa, comparativamente com a
população geral, após a IVG.
Esta realidade não se limita ao nosso país. Com efeito, a literatura científica
da área tem demonstrado que a decisão de IVG constitui um acontecimento de vida
potencialmente stressante, exigindo, por isso, a mobilização de recursos
pessoais por parte da mulher (Adler et al., 1992). Desta forma, é crucial
identificar os factores psicológicos que podem condicionar a forma como as
mulheres lidam com a decisão e experiência da IVG (Major et al., 2009, 2010), a
fim que seja possível delinear estratégias de intervenção psicológica
adequadas.
A literatura tem vindo a sugerir que algumas variáveis psicológicas como a
recordação das práticas parentais na infância e na adolescência, os recursos
estáveis de personalidade definidores de maior ou menor vulnerabilidade ao
stresse os estilos de coping,ao condicionarem a forma como as pessoas lidam com
situações indutoras de stress, podem estar associadas a uma melhor ou pior
adaptação (Lazarus & Folkman, 1984). No contexto específico da IVG, estas
variáveis também têm sido investigadas, no entanto, os estudos têm-se focado
essencialmente no período pós-IVG (e.g. Cozzarelli, 1993; Cozzarelli, Sumer,
& Major, 1998; Major, Richards, Cooper, Cozzarelli, & Zubek, 1998),
negligenciando o período decisório. A investigação deste período parece-nos
essencial dado o cariz da decisão que a mulher tem de tomar e todas as
implicações futuras que esta poderá ter na sua vida.
As memórias das práticas parentais na infância e na adolescência têm sido
relacionadas com diferentes formas de lidar com os acontecimentos indutores de
stress e consequentemente com o ajustamento psicológico à experiência de IVG
(Cozzarelli et al., 1998). De facto, os estudos empíricos têm demonstrado que
as recordações das práticas educativas parentais (Gould, 1980; Payne, Kravitz,
Notman, & Anderson, 1976; Speckhard, & Rue, 1992) influenciam a
percepção de autoeficácia e de apoio social da mulher e, consequentemente, a
sua adaptação no período pós-IVG (Cozzarelli et al., 1998).
De forma consistente com esta linha de raciocínio, a investigação mostrou que
as mulheres que relatam memórias de rejeição parental (particularmente por
parte da mãe) evidenciam níveis mais elevados de sintomatologia psicopatológica
e reactividade emocional negativa no período pós-IVG (Cozzarelli et al., 1998;
Payne et al., 1976). Contrastadamente, as mulheres que recordam as figuras
parentais como provedoras de suporte emocional ou como sobreprotectoras tendem
a apresentar melhor adaptação após a IVG (Coleman, Rue, & Spence, 2007;
Cozzarelli et al., 1998).
Definida como o sentimento ou crença de não possuir aptidões ou recursos
pessoais e sociais para lidar com as exigências criadas por uma situação
(Vaz-Serra, 2000a), a vulnerabilidade ao stressnão tem sido estudada, de uma
forma explícita, no seio da literatura do domínio. Contudo, a investigação da
área tem identificado algumas dimensões estáveis de personalidade definidoras
de menor “resistência” mediante os acontecimentos indutores de stress(i.e.,
baixos níveis de autoestima, optimismo e locus de controlo; sentimentos de
alienação; neuroticismo) (Major et al., 2009, 2010). Estas características de
personalidade tendem a conduzir a avaliações mais negativas do acontecimento
indutor de stresse dos recursos pessoais disponíveis para lidar com o mesmo,
traduzindo-se na mobilização de estratégias de copingmenos adaptativas e,
consequentemente, em níveis mais elevados de perturbação emocional (depressão,
ansiedade, hostilidade e somatização) no período pós-IVG (Athanasiou, Oppel,
Michaelson, Unger, & Yager, 1973; Cozzarelli, 1993; Major et al., 1998;
Rizzardo, Magni, Desideri, Consentino, & Salmaso, 1992). Embora não exista
uma correspondência conceptual perfeita, estas dimensões estáveis de
personalidade parecem, em certa medida, espelhar parte do perfil do indivíduo
vulnerável ao stress, descrita por Vaz Serra (2000a).
Por fim, as estratégias de coping, mobilizadas pelas mulheres no período pós-
IVG, têm sido descritas como determinantes proximais do ajustamento pós-IVG
(Major et al., 1998). Com efeito, as mulheres que recorrem preferencialmente a
estratégias de evitamento e negação ou à ventilação emocional tendem a
apresentar níveis mais elevados de ansiedade e depressão após a IVG; por sua
vez, as mulheres que lidam com as emoções despoletadas pela IVG, com recurso as
estratégias de confronto activo, aceitação e reenquadramento positivo ou de
procura de apoio instrumental ou emocional apresentam maior bem-estar e
satisfação, bem como níveis mais diminutos de perturbação emocional, no período
pós-IVG (Cohen, & Roth, 1984; Dagg, 1991; Major et al., 1998). Embora
relativamente infrequente entre as mulheres que enveredam por esta resolução
reprodutiva, Major et al. evidenciaram que o copingreligioso parece associar-se
a reduzida satisfação com a decisão de interrupção, embora não sejam notórias
diferenças significativas ao nível do ajustamento psicológico.
A presente investigação teve como principal objectivo o estudo da relação entre
os estilos educativos parentais na infância e na adolescência, a
vulnerabilidade ao stress, os estilos de copingpós-IVG e a adaptação da mulher.
A adaptação da mulher em ambos os momentos de avaliação foi operacionalizada em
relação a dois eixos: a reactividade emocional e a sintomatologia
psicopatológica.
De forma mais específica, investigámos a relação entre: (1) a recordação de
práticas educativas de suporte emocional, rejeição e sobreprotecção por parte
do pai e da mãe e a adaptação da mulher, no período decisório e após a IVG; (2)
a vulnerabilidade ao stress e a adaptação da mulher, no período decisório e
após a IVG; (3) os estilos de coping (i.e. estratégias de procura de suporte
emocional, procura de suporte instrumental, ventilação emocional, negação,
distracção mental, aceitação, reenquadramento positivo, copingreligioso)
avaliados no período pós-IVG e a adaptação da mulher após a IVG.
Deste modo e tendo em conta a revisão apresentada, hipotetizamos que as
mulheres que percepcionam maior rejeição na infância e na adolescência
(particularmente por parte da figura materna) e que se auto-descrevem como
mais vulneráveis ao stress, tenderão a apresentarem níveis aumentados de
reactividade emocional negativa e psicopatologia, no momento da decisão e após
esta experiência reprodutiva. Por outro lado, esperamos que as mulheres que
percepcionam maior suporte emocional na infância e na adolescência
(particularmente por parte da mãe) e que se autodescrevem como menos
vulneráveis ao stress, tenderão a experimentar níveis mais baixos de
reactividade emocional negativa e psicopatologia, no momento da decisão e após
esta experiência reprodutiva. Hipotetizamos também que as mulheres que
mobilizam estratégias de ventilação emocional e negação tenderão a
experimentarem níveis aumentados de reactividade emocional negativa e
psicopatologia, após a IVG. Esperamos ainda que as mulheres que mobilizam
estratégias de aceitação e reenquadramento positivo ou procura de suporte
emocional e instrumental tenderão a experimentar níveis mais baixos de
reactividade emocional negativa e psicopatologia, após a IVG.
MÉTODO
Participantes
A amostra foi constituída por 53 mulheres que procuraram a Consulta de
Aconselhamento Reprodutivo da Maternidade Doutor Daniel de Matos dos Hospitais
da Universidade de Coimbra para interromper a gravidez, entre Dezembro de 2007
e Março de 2008. 105 mulheres foram recrutadas consecutivamente para colaborar
no presente estudo, tendo-lhes sido feito um pedido de colaboração voluntária.
Destas, 53 (taxa de não resposta de 49.5%) acederam participar no estudo no
primeiro momento de avaliação. Das 53 mulheres que acederam colaborar no
momento da decisão, 21 (39.6%) também concordaram participar no período pós-
IVG.
Quadro 1
Dados sócio-demográficos da amostra
As idades das participantes oscilavam entre os 17 e os 43 anos (M= 26.68, DP=
5.57), observando-se uma preponderância de mulheres (43.4%) com idade
compreendida entre os 25 e os 29 anos (n = 23). Relativamente ao estado civil,
54.7% eram solteiras (n = 29), 30.2% eram casadas/unidas de facto (n = 16) e
15.1% eram separadas/divorciadas (n = 8). A maioria das participantes (71.7%)
residia numa área predominantemente urbana (n = 38) e no distrito de Coimbra
(83.0%; n = 44). No que diz respeito às habilitações literárias, 41.5%
apresentava um nível de escolaridade equivalente ao ensino secundário (n = 22),
32.1% ao ensino básico (n = 13), 24.5% ao ensino superior (n = 8).
Relativamente à situação profissional, mais de metade das participantes (54.7%)
estava envolvida numa actividade profissional (n = 31), sendo que das restantes
24.5% eram estudantes (n = 13), 15.1% estavam desempregadas (n = 8) e 1.9% não
tinha actividade profissional (n = 1). De acordo com a categorização de Simões
(1994), cerca de metade das participantes (51.9%) apresentava um nível sócio-
económico baixo (n = 28), sendo que as restantes participantes (47.2%) auferiam
um nível sócio-económico médio (n = 25).
Material
No primeiro momento de avaliação, para efeitos de caracterização amostral,
incluímos uma ficha de dados sócio-demográficos e clínico. Recorremos
igualmente ao EMBU – Memórias da Infância para avaliar as memórias das práticas
educativas parentais ocorridas durante a infância e a adolescência. De facto,
além de ser um dos questionários mais referidos na literatura para avaliar esta
variável, as dimensões por ele contempladas (suporte emocional, rejeição e
sobreprotecção) de forma separada para o pai e para a mãe são também aquelas
que têm merecido a atenção dos investigadores que se têm debruçado sobre a
relação entre a recordação dos estilos educativos parentais e a adaptação à
IVG. Para avaliar a vulnerabilidade ao stress, incluímos o 23 QVS, uma vez que
este instrumento de avaliação proporciona uma medida global sumária da
vulnerabilidade ao stress de um indivíduo. Além disso, as diferentes subescalas
do 23QVS avaliam um conjunto de dimensões (e.g. percepção de controlo,
tolerância à frustração, autoa-firmação, perfeccionismo, emocionalidade, etc.)
que tendem a corresponder às dimensões de personalidade definidoras de maior ou
menor resistência ao stress(e.g. autoestima, optimismo e locus de controlo,
etc.) apontadas na literatura.
No segundo momento de avaliação, recorremos a uma versão do COPE Inventory,
especificamente adaptada à experiência de IVG, de modo a contemplar os estilos
de copingmais comummente identificados (i.e. procura de apoio emocional,
procura de apoio instrumental, ventilação emocional, negação, distracção
mental, aceitação, reenquadramento positivo, copingreligioso) entre esta
população clínica, no período pós-IVG.
Em ambos os momentos de avaliação, para avaliação da adaptação das
participantes, recorremos à Escala de Avaliação das Emoções – Emotional
Assessment Scale e ao Inventário de Sintomas Psicopatológicos – Brief Symptom.
Com efeito, a decisão e experiência de IVG têm sido conceptualizadas como
acontecimentos indutores de stress, susceptíveis de gerar uma vasta constelação
de manifestações de reactividade emocional positiva e negativa, com expressão
ao nível da sintomatologia psicopatológica.
De seguida, apresentamos sumariamente os instrumentos de avaliação, incluídos
no nosso protocolo de investigação:
Ficha de dados sócio-demográficos e clínicos: é uma ficha informativa
constituída por um conjunto de itens singulares, destinados a avaliar: (1) as
características sócio-demográficas da mulher (idade, estado civil,
habilitações literárias, situação profissional); (2) a história médica da
mulher (problemas médicos/psicológicos anteriores, acompanhamento psicológico/
psiquiátrico prévio); (3) o percurso reprodutivo da mulher (número de
gestações/filhos anteriores; idade da menarca; idade de início da vida sexual
activa; número de companheiros sexuais até ao momento; problemas/complicações
ginecológicos/obstétricos anteriores; contracepção prévia; história de IVG
anteriores).
EMBU – Memórias da infância (Perris, Jacobsson, Lindstrom, Von Knorring, &
Perris; 1984; Versão Portuguesa: Canavarro, 1996): é uma escala de auto-
resposta que pretende avaliar a percepção dos adultos acerca das práticas
educativas parentais (sobreprotecção, rejeição, suporte emocional) na infância
e adolescência, em relação ao pai e à mãe separadamente. Para cada um dos 23
itens que compõem a escala, o sujeito deve posicionar-se numa escala de tipo
Lickert (desde “não, nunca” a “sim, a maior parte do tempo”), assinalando a
opção que mais se adequa ao seu caso. A versão portuguesa da escala (Canavarro,
1996) apresenta, no seu conjunto, níveis adequados de consistência interna,
embora os valores de alpha se encontrem ligeiramente abaixo do indicado, quer
para o total dos itens (.54 para o pai e .66 para a mãe), quer para os itens
considerados individualmente (entre .50 e .56 para o pai e entre .64 e .69 para
a mãe). Foram igualmente encontrados dados abonatórios de boa estabilidade
temporal e validade de constructo.
23 QVS (Vaz Serra, 2000): é um instrumento de autoavaliação constituído por
23 itens, que se destina a avaliar a vulnerabilidade que um determinado
indivíduo tem ao stress, de forma global e em função de sete dimensões
(perfeccionismo e intolerância à frustração; inibição e dependência funcional;
carência de apoio social; condições de vida adversas; dramatização da
experiência; subjugação; deprivação de afecto e rejeição). Para cada um dos
itens, o sujeito deve posicionar-se numa escala de Lickert (desde “concordo em
absoluto” a “discordo em absoluto”), assinalando a opção que mais se aproxima
da sua maneira de ser habitual. Os estudos psicométricos da escala (Vaz Serra,
2000b) revelaram que a escala apresenta níveis adequados de consistência
interna, com um valor de alpha para todos os itens de .82 e um coeficiente de
testereteste de .82. Foram igualmente encontrados dados abonatórios da
validade de constructo e da validade discriminativa do instrumento.
COPE Inventory adaptado à experiência de IVG (Carver, Scheier &
Weintraub, 1989; Versão Adaptada: Major et al., 1998; Tradução: Carvalho &
Maia, 2007): É um questionário de auto-resposta, constituído por 33 itens,
adaptado do original de Carver et al. (1989), para a experiência de IVG. Avalia
as estratégias de copingdos indivíduos no período pós-IVG, de acordo com oito
subescalas (procura de apoio emocional, procura de apoio instrumental,
ventilação emocional, negação, distracção mental, aceitação, reenquadramento
positivo, copingreligioso) e um item referente ao abuso de substâncias,
organizados em função de cinco dimensões (procura de apoio, ventilação,
evitamento/negação, aceitação/reenquadramento e copingreligioso). Os
respondentes devem indicar a forma como cada um dos 33 comportamentos descritos
os tem ajudado a lidar com a IVG, numa escala de tipo Lickert (desde
“definitivamente eu não fiz isto” a “fiz isto muitas vezes”). As
características psicométricas da versão original e da versão portuguesa da
escala adaptada à experiência de IVG não foram explicitadas pelos respectivos
autores.
Escala de Avaliação das Emoções [EAS; Emotional Assessment Scale] (Carlson et
al., 1989; Versão Portuguesa: Moura-Ramos, Araújo Pedrosa, & Canavarro,
2005): É uma escala de auto-resposta que tem como principal objectivo medir a
reactividade emocional, sendo especialmente útil na medida de níveis
momentâneos e de mudança de emoções. Esta escala é constituída por 24 itens que
correspondem a descrições de emoções consideradas fundamentais (medo,
felicidade, ansiedade, culpa, cólera, surpresa e tristeza). Para cada um dos
descritores indicados, o indivíduo deve posicionar-se no local da escala
analógica visual (“o menos possível” ao “o mais possível”) que melhor
representa a forma como se sente no momento actual. A versão portuguesa
apresenta boas características psicométricas (Moura-Ramos, 2006), sendo
sensível a variações na reactividade emocional em populações não clínicas. A
análise factorial evidenciou sete dimensões principais, relacionadas com sete
emoções fundamentais (ansiedade, felicidade, medo, culpa, cólera, surpresa e
tristeza), com valores de alpha entre os .73 (cólera) e os .88 (felicidade),
abonatórios de boa consistência interna. A escala revelou igualmente boa
validade de constructo.
Inventário de Sintomas Psicopatológicos [BSI; Brief Symptom Inventory]
(Derogatis, 1993; Versão Portuguesa: Canavarro, 1999): É um inventário de
autoresposta, constituído por 53 itens, que avalia sintomas psicopatológicos
em termos de nove dimensões de sintomatologia (somatização, obsessões-
compulsões, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade,
ansiedade fóbica, ideação paranóide e psicoticismo) e três índices globais
(índice geral de sintomas, total de sintomas positivos, índice de sintomas
positivos), que funcionam como avaliações sumárias de perturbação emocional. A
avaliação da sintomatologia psicopatológica, através deste inventário,
restringe-se a um período temporal específico, devendo o sujeito assinalar “a
forma como aquele problema o afectou nos últimos sete dias”, numa escala de
tipo Lickert, cujas alternativas se dividem entre os extremos “Nunca” (0) e
“Muitíssimas vezes” (4). Os estudos psicométricos efectuados na versão
portuguesa (Canavarro, 1999) revelaram que a escala apresenta níveis adequados
de consistência interna para as nove escalas, com valores de alpha entre .62
(psicoticismo) e .80 (somatização) e coeficientes de testereteste entre .63
(ideação paranóide) e .81 (depressão). Foram igualmente encontrados dados
abonatórios da validade de constructo e da validade discriminativa do
instrumento.
Procedimentos
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Conselho de Administração
dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Previamente à recolha de dados foi
pedida a colaboração voluntária no estudo, sendo explicado às participantes a
natureza e os objectivos do estudo, garantida a confidencialidade e anonimato
das respostas e assinado o consentimento informado.
Procedemos à recolha de dados em dois momentos de avaliação distintos: o
primeiro, no momento da decisão de IVG, coincidente com a primeira Consulta de
Aconselhamento Reprodutivo; o segundo, duas a quatro semanas após a experiência
de IVG, na terceira Consulta de Aconselhamento Reprodutivo.
Tendo em conta as contingências da lei em vigor, o acesso às utentes foi feito
indirectamente, com a colaboração das funcionárias da secretaria da Maternidade
Doutor Daniel de Matos e dos médicos obstetras que constituem a equipa da
Consulta de Aconselhamento Reprodutivo deste estabelecimento de saúde. Assim, a
recolha de dados foi realizada através da entrega dos protocolos
correspondentes, em envelope fechado, por parte das funcionárias da secretaria,
a todas as utentes que procuravam este serviço de saúde. A entrega dos
protocolos preenchidos pelas participantes era feita no gabinete médico no
final da consulta, ou por correio, num envelope selado e endereçado para o
efeito, caso não tivessem concluído o seu preenchimento durante a consulta.
Tratamento estatístico dos dados
Numa primeira fase, para a caracterização sócio-demográfica da amostra e dos
diferentes grupos que a compõem recorremos à estatística descritiva
(frequências relativas, médias, desvios-padrão). Com o objectivo de averiguar
a associação entre as variáveis em estudo, que são de natureza contínua,
calculámos coeficientes de correlação de Pearson e de Spearman (quando as
variáveis em análise não seguiam uma distribuição normal), considerando um
nível de significação igual ou inferior a 0.05. Para o tratamento estatístico e
análise dos resultados, utilizámos a versão 15.0 do programa estatístico SPSS
(Statistical Package for the Social Science).
RESULTADOS
Estilos educativos parentais na infância e na adolescência e adaptação da
mulher no momento da decisão e após a IVG
No momento da decisão de IVG, verificámos correlações positivas entre a
sobreprotecção materna e com as dimensões de culpa, medo, ansiedade, cólera e
surpresa da reactividade emocional. Ao nível da sintomatologia
psicopatológica, observámos uma associação positiva entre a rejeição paterna e
a ideação paranóide, enquanto o suporte emocional paterno revelou
correlacionar-se negativamente com a mesma dimensão de sintomatologia
psicopatológica (cf. Quadro 2).
Quadro 2
Associação entre os estilos educativos parentais na infância e na adolescência
e o ajustamento psicológico, no momento da decisão
No período pós-IVG, destacaram-se os estilos educativos maternos,
particularmente a sobreprotecção, que revelou associar-se positivamente com as
dimensões de ansiedade, surpresa, culpa e medo da reactividade emocional. Do
mesmo modo, a rejeição materna evidenciou correlações positivas com as
dimensões de ideação paranóide, psicoticismo e sensibilidade interpessoal da
sintomatologia psicopatológica, enquanto o suporte emocional materno revelou
associações negativas com as mesmas dimensões de sintomatologia
psicopatológica.
No que respeita aos estilos educativos paternos, a rejeição revelou associações
positivas com alguns indicadores de reactividade emocional negativa (tristeza e
ansiedade) e associações negativas com a dimensão de felicidade da
reactividade emocional. Do mesmo modo, a sobreprotecção paterna evidenciou
correlações positivas com as dimensões de ansiedade da reactividade emocional e
da sintomatologia psicopatológica (cf. Quadro 3).
Quadro 3
Associação entre os estilos educativos parentais na infância e na adolescência
e o ajustamento psicológico, no período pós-IVG
Vulnerabilidade ao stress e adaptação da mulher no momento da decisão e após a
IVG
No momento da decisão de IVG, não observámos associações significativas entre a
vulnerabilidade ao stresse a reactividade emocional. No que diz respeito à
sintomatologia psicopatológica, verificámos correlações positivas entre a
vulnerabilidade ao stresse o índice geral de sintomas e total de sintomas
positivos, bem como com todas as dimensões de sintomatologia psicopatológica, à
excepção da ansiedade (cf. Quadro 4).
Quadro 4
Associação entre a vulnerabilidade ao stress e o ajustamento psicológico, no
momento da decisão e no período pós-IVG
No período pós-IVG, não observámos associações significativas entre as
dimensões da reactividade emocional e a vulnerabilidade ao stress. No que diz
respeito à sintomatologia psicopatológica, verificámos associações positivas
entre a vulnerabilidade ao stresse as dimensões de sensibilidade interpessoal
e ideação paranóide (cf. Quadro 4).
Estratégias de coping e adaptação da mulher à IVG
No período pós-IVG, destacaram-se as estratégias de copingreligioso e de
ventilação emocional que revelaram associações positivas com várias dimensões
de reactividade emocional negativa (ansiedade, cólera, culpa medo). Ao nível
da sintomatologia psicopatológica, observámos correlações positivas entre o
copingreligioso e o índice geral de sintomas, o total de sintomas positivos e
as dimensões de ansiedade fóbica, psicoticismo e ideação paranóide, enquanto a
ventilação emocional revelou associarse positivamente com o índice geral de
sintomas e a dimensão de hostilidade (cf. Quadro 5).
Quadro 5
Associação entre as estratégias de coping e o ajustamento psicológico pós-IVG
DISCUSSÃO
Os resultados do presente estudo demonstraram que existem factores
psicológicos que podem condicionar a forma como as mulheres lidam com a
decisão e experiência de IVG e, consequentemente, a sua adaptação a esta
experiência. Mais especificamente, a recordação de práticas educativas maternas
de rejeição e sobreprotecção, a vulnerabilidade ao stresse o recurso ao
copingreligioso, à ventilação emocional e à negação estão associados a uma pior
adaptação à IVG, quer durante o período da decisão, quer após a IVG.
Ao nível da recordação de práticas educativas parentais, os resultados
apresentados corroboram apenas parcialmente as hipóteses de investigação
estabelecidas. Com efeito, verificámos que as mulheres que recordam práticas de
rejeição materna apresentam níveis mais elevados de sintomatologia
psicopatológica ao nível interpessoal (ideação paranóide, sensibilidade
interpessoal e psicoticismo), particularmente no período pós-IVG. As
associações negativas verificadas entre o suporte emocional materno e os mesmos
indicadores de psicopatologia parecem reforçar a ideia de que as práticas
educativas parentais poderão ser factor protector (quando são suportivas) ou
de risco acrescido (quando se caracterizam pela rejeição) para a adaptação das
mulheres após a IVG, não parecendo, no entanto, influenciar o momento da
decisão.
Contudo, observámos também que as mulheres que relatam memórias de
sobreprotecção materna (i.e. com memórias de contacto excessivo e
intrusividade por parte da figura materna na infância e na adolescência;
Canavarro, 1996) tendem a experienciar maior reactividade emocional negativa,
quer no período decisório, quer no período pós-IVG. Sugerimos que, ao
condicionar a aquisição/promoção da autonomia (Canavarro, 1996), a
sobreprotecção materna pode contribuir para que a mulher se percepcione como
mais dependente dos outros e como provida de menos recursos pessoais para lidar
autonomamente com os acontecimentos indutores de stress, associando-se, por
isso, a maior reactividade emocional negativa perante a decisão e experiência
de IVG. Do mesmo modo, estas mulheres podem experienciar maior dificuldade no
processo gradual de integração do significado da decisão de IVG nos esquemas
cognitivos pré-existentes (Horowitz, 1986), experienciando maior reactividade
emocional negativa, no confronto imediato com este acontecimento indutor de
stress.
No entanto, ressalvamos a necessidade de análises mais específicas da relação
entre estas variáveis, para confirmar esta associação e possibilitar o
estabelecimento de um nexo de causalidade entre elas. Do mesmo modo, convém
realçar que os estilos educativos parentais são avaliados retrospectivamente,
estando sujeitos a enviesamentos da memória, e as reacções parentais a esta
decisão reprodutiva podem ter uma influência sobre essa avaliação. Desta forma
estes resultados devem ser analisados com a devida reserva.
A vulnerabilidade ao stresstem sido comummente associada a níveis acrescidos
de sintomatologia psicopatológica (Vaz-Serra, 2000b), pelo que os resultados
obtidos eram altamente expectáveis tendo em conta a situação vivenciada por
este grupo de mulheres, corroborando a hipótese de investigação estabelecida.
Embora não seja possível estabelecer nexos de causalidade, a vulnerabilidade ao
stressmostrou ser especialmente importante no momento da decisão, estando
associada a diferentes formas de sintomatologia psicopatológica, o que sugere
que este momento poderá ser especialmente exigente. No período pós-IVG, as
associações mais fortes verificaram-se em relação às dimensões de ideação
paranóide e sensibilidade interpessoal, sugerindo uma reacção a um ambiente
social e cultural adverso (e.g. receio de estigma/condenação social) que
circunda esta decisão reprodutiva (Major & Gramzow, 1999), numa fase ainda
muito próxima à alteração da legislação que enquadra a IVG por opção da mulher
em Portugal, que se revelou polémica e geradora de opiniões marcadamente
divergentes.
Relativamente às estratégias de coping, o recurso à negação e à ventilação
emocional associaram-se a pior ajustamento psicológico no período pós-IVG,
corroborando a hipótese de investigação estabelecida. Todavia, o coping
religioso revelou ser a estratégia de copingcom associações mais fortes com
indicadores de reactividade emocional negativa e de sintomatologia
psicopatológica. Embora contrastem com a investigação existente ao nível das
formas de lidar (Major et al., 1998), estes resultados parecem reforçar a
relevância da religiosidade ao nível do ajustamento psicológico pós-IVG
destacada pelos autores da área (Adler, 1975; Congleton, & Calhoun, 1993;
Osofsky, & Osofsky, 1972; Payne et al., 1976). Todavia, ressalvamos a
necessidade de análises mais específicas da relação entre estas variáveis,
para confirmar esta associação e possibilitar o estabelecimento de um nexo de
causalidade entre elas.
Apesar dos resultados apresentados destacarem as estratégias de
copingdesadaptativas, nenhuma forma de lidar revelou associarse com
indicadores de melhor ajustamento psicológico. De facto, embora tenhamos
observado associações negativas entre os índices de reactividade emocional
negativa e psicopatologia e as estratégias de copingde aceitação e
reenquadramento positivo, estas correlações não atingiram significância
estatística na nossa amostra. Apesar de reflectirem formas de processamento
cognitivo e emocional facilitadoras do ajustamento à experiência de IVG (Major
et al., 1998), a aceitação e o reenquadramento positivo implicam um processo de
integração gradual dos significados desta experiência reprodutiva nas grelhas
anteriores de leitura da realidade da mulher (Horowitz, 1986). Sugerimos assim
que as variáveis temporais (i.e. tempo decorrido desde a IVG) podem
influenciar a observação dos efeitos salutares destas estratégias de coping,
ao nível do ajustamento psicológico. Nesse sentido, os efeitos benéficos
destas estratégias de copingpoderão apenas ser visíveis a médio e longo prazo.
Sendo pioneiro no nosso país, este estudo não se encontra isento de limitações,
que implicam alguns cuidados na interpretação dos resultados apresentados.
Das utentes que procuraram este serviço de saúde no período referenciado,
apenas cerca de metade (50.5%) aceitou colaborar no nosso estudo. Do mesmo
modo, verificámos uma elevada taxa de atrito experimental (60.4%) no segundo
momento de avaliação. Além de condicionar o tamanho do subgrupo (n < 30)
considerado no segundo momento de avaliação, esta elevada taxa de atrito
experimental limitou as análises estatísticas passíveis de serem realizadas e
pode ter influenciado os resultados obtidos. No entanto, não observámos
diferenças significativas entre as respondentes que colaboraram em ambos os
momentos de avaliação e as que participaram apenas no primeiro momento de
avaliação, ao nível das características sócio-demográficas e do ajustamento
psicológico no momento da decisão. Desta forma, os resultados referentes ao
período pós-IVG parecem-nos válidos e representativos do grupo de mulheres que
opta pela IVG, neste estabelecimento de saúde.
Por outro lado, a recolha da amostra restringiu-se às utentes de um único
estabelecimento de saúde nacional, na sua maioria oriundas do distrito de
Coimbra, o que compromete a generabilizidade dos resultados, a nível nacional.
Por último, embora a natureza prospectiva do estudo tenha permitido investigar
o papel das variáveis em estudo em dois momentos distintos, o período temporal
decorrido entre o primeiro e o segundo momento de avaliação não foi definido
com base em critérios fixos e pré-definidos. Com efeito, a avaliação no
período pós-IVG foi determinada em função da marcação da consulta médica de
controlo (i.e. duas a quatro semanas após a IVG), o que pode ter condicionado
os resultados obtidos no segundo momento de avaliação.
Não obstante estas limitações, o presente trabalho reveste-se de algumas
implicações para a investigação e prática clínica. Embora os nossos resultados
tendam a ser consistentes com a literatura da área, consideramos que estes
dados necessitam de replicação em virtude dos constrangimentos resultantes do
tamanho da nossa amostra. Assim, consideramos que as investigações futuras
devem averiguar a influência directa e interactiva destas e outras variáveis
psicológicas na adaptação à decisão e à experiência de IVG. Entre elas,
destacamos a saúde mental prévia, o processo de tomada de decisão, os recursos
de personalidade prévia (considerando as dimensões de auto-estima, locus de
controlo e optimismo) e a autoeficácia, destacada como moderadora das
relações entre o apoio social, os recursos de personalidade, as estratégias de
copinge o ajustamento psicológico no período pós-IVG (Major et al., 1998). De
igual forma, consideramos que maior atenção deve ser dada pela investigação ao
período decisório, de forma a optimizar e definir estratégias de intervenção
dirigidas para este período que facilitem o processo de tomada de decisão.
Ao nível da prática clínica, as fortes associações entre a vulnerabilidade ao
stresse a sintomatologia psicopatológica observadas não apenas no período pós-
IVG, mas também no período decisório evidenciam a necessidade de conceptualizar
o momento da decisão como um período exigente e, por isso, igualmente merecedor
de atenção clínica. Tendo em conta que o contacto dos profissionais da área da
Psicologia com as mulheres que procuram esta resolução reprodutiva se encontra
restringido pelos termos da lei em vigor, parece-nos importante fomentar a
colaboração com as equipas médicas responsáveis pelas Consultas de
Aconselhamento Reprodutivo dos estabelecimentos de saúde nacionais e de as
sensibilizar para as questões de saúde mental e da sua relevância no contexto
específico da IVG.
A intervenção psicológica, no momento específico da decisão da IVG, o processo
decisório deverá ser trabalhado através de estratégias adequadas (e.g.
resolução de problemas), de forma a possibilitar que estas mulheres tomem
decisões informadas e coerentes com o seu sistema de valores. Esta intervenção
poder-se-á tornar especialmente pertinente nos casos em que os profissionais
de saúde identifiquem factores que podem complicar a adaptação, neste momento
específico (e.g. vulnerabilidade ao stresse recordação de práticas educativas
parentais de sobreprotecção).
Consideramos que uma intervenção precoce no momento da decisão de IVG deverá
contribuir para uma melhor adaptação no momento pós-IVG. Contudo, é também
importante atender à recordação de práticas educativas parentais de rejeição
materna e à utilização de estratégias de copingreligioso, ventilação emocional
e negação, como potenciais factores de risco para dificuldades de adaptação no
período pós-IVG.