Perturbações da personalidade como expressão dimensional da personalidade em
mulheres idosas
A personalidade, a psicopatologia e, o processo de envelhecimento, podem
influenciar-se mutuamente de diversos modos. A ação recíproca da personalidade
e da psicopatologia tem despertado um interesse substancial, contudo, a relação
entre personalidade, saúde mental e psicopatologia, em populações envelhecidas,
permanece um assunto ainda por explorar e de grande interesse ao nível da
investigação (Widiger & Seidlitz, 2002).
Abrams e Horowitz (1999) conduziram uma meta-análise de 16 investigações e,
concluíram que a aproximadamente 20% da população com mais de 50 anos de idade
seria diagnosticada uma perturbação da personalidade, o que sugere uma taxa
mais elevada de um funcionamento não adaptativo da personalidade na população
em processo de envelhecimento do que na restante. Existem dados que sugerem que
as perturbações da personalidade podem constituir um fator de risco para
depressão major em idades mais avançadas, o que é consistente com os resultados
encontrados em amostras de diferentes idades (Dolan-Sewell, Krueger, &
Shea, 2001). Verifica-se, igualmente, uma percentagem mais elevada de idosos
com depressão major e perturbações da personalidade do que indivíduos com outro
tipo de perturbações mentais (Kunik et al., 1994). O estudo da importância da
personalidade na psicopatologia e no processo de envelhecimento deve assim,
incluir igualmente, o estudo das perturbações da personalidade descritas no
DSM-IV (Blatt & Luyten, 2009; Widiger & Seidlitz, 2002; Widiger &
Trull, 2007).
A partir de perspetivas dinâmicas e do desenvolvimento cognitivo, Blatt e
colaboradores (Blatt, 2004, 2008; Blatt & Luyten, 2009; Blatt &
Shichman, 1983) propuseram que o desenvolvimento da personalidade corresponde a
uma interação dialética complexa entre duas dimensões fundamentais do
desenvolvimento psicológico ' relacionamento (Dependência) e auto-definição
(Auto-Criticismo). Estas duas dimensões fornecem uma matriz teórica para a
classificação da psicopatologia, interligando conceitos de psicopatologia com
os processos de desenvolvimento da personalidade e variações na organização
normal da personalidade (Blatt, 2008; Skodol & Bender, 2009). As
perturbações do desenvolvimento definem duas linhas de desenvolvimento, estilos
de personalidade ou configurações psicopatológicas; anaclítica e introjectiva
(Blatt, 2006, 2008; Meyer & Pilkonis, 2005). A configuração psicopatológica
anaclítica é caracterizada por tentativas distorcidas e exageradas em manter
experiências interpessoais satisfatórias, refletindo um foco nas questões de
relacionamento. A configuração psicopatológica introjectiva é caracterizada por
tentativas distorcidas e exageradas em estabelecer e manter um sentido de
Selfem detrimento do relacionamento interpessoal e, em preocupações com aspetos
relativos à autonomia, controlo e identidade (Blatt, 2008).
A distinção entre estas duas dimensões psicológicas fundamentais permitiu aos
investigadores identificar e replicar uma taxonomia para as diversas
perturbações da personalidade descritas no Eixo II do DSM (Blatt, 2006; Blatt
& Luyten, 2009; Luyten & Blatt, 2011). Algumas perturbações da
personalidade (i.e., Histriónica, Dependente, Borderline) aparentam estar
focadas de diferentes modos e, possivelmente, em diferentes níveis de
desenvolvimento, em torno de questões da ordem do relacionamento interpessoal -
Dependência, Psicopatologia Anaclítica (Blatt & Levy, 2003; Luyten &
Blatt, 2011). E, outras perturbações da personalidade (i.e., Paranoide,
Esquizoide, Esquizotípica, Anti-Social, Narcísica, Evitante e, Obsessivo-
Compulsiva) em torno de questões da ordem do estabelecimento, preservação e
manutenção de um sentido de Self - Auto-Criticismo, Psicopatologia Introjetiva
(Blatt & Levy, 2003; Blatt & Shichman, 1983; Luyten & Blatt, 2011;
Shahar, Blatt, & Ford, 2003). Uma multiplicidade de dados e de
investigações apoiam, na generalidade, estas considerações (Morse, Robins,
& Gittes-Fox, 2002; Ouimette & Klein, 1993; Ouimette et al., 1994;
Wiggins & Pincus, 1989). Blatt também propôs dois subtipos da perturbação
de personalidade Borderline(Blatt & Auerbach, 1988; Ouimette et al., 1994):
Borderline Anaclítico, evidenciando perturbações primitivas na regulação da
dependência e dos afetos; e Borderline Introjectivo, apresentando conflitos ao
nível da autonomia e da autoestima.
O estudo visa explorar, numa amostra não clínica de mulheres na idade adulta
avançada, as relações entre as perturbações da personalidade (Eixo II) (DSM-IV)
e as duas configurações primárias da personalidade - relacionamento
(Dependência) e auto-definição (Auto-Criticismo).
Coloca-se como hipótese que as perturbações da personalidade sejam preditoras
da Dependência e do Auto-Criticismo: Dependência predita pelas escalas de
perturbação da personalidade Histriónica, Dependente e, Borderline; Auto-
Criticismo predito pelas escalas de perturbação da personalidade Paranoide,
Esquizoide, Esquizotípica, Anti-Social, Narcísica, Evitante e, Obsessivo-
Compulsiva (Blatt & Levy, 2003; Blatt & Shichman, 1983; Luyten &
Blatt, 2011; Shahar et al., 2003).
MÉTODO
Participantes
Amostra constituída por 102 mulheres na idade adulta avançada, autónomas e
inseridas na comunidade, residentes em meio urbano. Apresentam idades
compreendidas entre os 60 e os 89 anos de idade (M = 72,07 anos de idade, DP =
7,04), caucasianas, com um nível de escolaridade compreendido entre os 4 e os
19 anos (M = 10,08 anos, DP = 4,99). Apresentam uma média de 2 filhos; quanto à
situação marital: 6.9% solteiras, 57.8% casadas, 28,l4% viúvas e 6,9%
divorciadas.
Material
Foi utilizada a versão Portuguesa (Henriques-Calado & Duarte-Silva, 2009)
do Personality Diagnostic Questionnaire (PDQ-4+; Hyler, 1994).Questionário de
self-report constituído por 99 itens, de respostas verdadeiro/falso, que gera
diagnósticos de personalidade compatíveis com os critérios diagnósticos do DSM-
IV para as perturbações da personalidade. Cada item do PDQ-4+ corresponde
diretamente a um critério diagnóstico do DSM-IV e, uma resposta verdadeira
indica que o item deve ser marcado como patológico. Na generalidade dos
estudos, a consistência interna das escalas que compõem o PDQ-4+ apresenta uma
média de 0,62 (Yang et al., 2000). No presente estudo o alpha de
Cronbachapresenta uma média de 0,60.
Utilizou-se a versão Portuguesa (Campos, 2000, 2009) doQuestionário de
Experiências Depressivas (Blatt, D'Afflitti, & Quinlan, 1976, 1979).
Questionário de self-report constituído por 66 itens, sendo os itens avaliados
numa escala tipo likert com 7 pontos, variando entre discordo totalmente(1) e
concordo totalmente (7). São obtidos resultados para três fatores: fator I
designado de Dependência(dimensão anaclítica); fator II designado de Auto-
Criticismo(dimensão introjectiva) e; fator III designado de Eficácia, que não
será utilizado neste estudo. No presente estudo o alpha de Cronbachapresenta
valores de 0,70 e 0,82, respetivamente.
Procedimento
Estudantes de graduação e pós-graduação em Psicologia contactaram os
participantes nas suas casas ou em Centros de Dia. Os participantes
disponibilizaram-se para participar, voluntariamente, num estudo alargado sobre
o processo de envelhecimento; com devido consentimento informado.
Foram apresentados um conjunto de questionários a preencher, de entre os quais
fez parte um questionário de dados sóciodemográficos e psicossociais, o PDQ-4+
e o QED. A aplicação dos instrumentos foi realizada, na generalidade, em regime
de autoaplicação (as instruções, apresentadas por escrito), excecionalmente em
aplicação oral, quando ocorriam dificuldades de leitura ou de compreensão. Foi
garantido aos participantes que qualquer dúvida seria esclarecida pelo
investigador.
Após verificação da normalidade da distribuição, recorreu-se ao teste
paramétrico do coeficiente de correlação de Pearsone, postumamente à análise de
regressão múltipla. Utilizou-se o software SPSS Statistics (v.18, SPSS Inc.
Chicago, IL). Consideram-se estatisticamente significativos os efeitos com p <
0,05.
RESULTADOS
A associação entre os fatores do QED e as escalas do PDQ-4+ foi avaliada como o
coeficiente de correlação de Pearson, verificando-se correlações positivas e
significativas entre a Dependência e as escalas Paranoide, Histriónica,
Evitante, Dependente, Obsessiva-Compulsiva e; correlações positivas e
significativas entre o Auto-Criticismo e todas as escalas de perturbação da
personalidade do PDQ-4+.
No Quadro_1 apresentam-se os resultados referentes à análise de regressão
múltipla. Utilizam-se as variáveis de critério Dependência e Auto-Criticismo,
tendo como preditores as escalas do PDQ-4+ correlacionadas significativamente
na análise anterior. A Dependência é predita pelas escalas Histriónica,
Dependente e Obsessivo-Compulsiva. O Auto-Criticismo é predito pelas escalas
Narcísica, Borderline e Evitante.
DISCUSSÃO
De forma consistente com a literatura (Blatt & Levy, 2003; Blatt &
Shichman, 1983; Luyten & Blatt, 2011; Morse et al., 2002; Ouimette &
Klein, 1993; Ouimette et al., 1994; Shahar et al., 2003; Wiggins & Pincus,
1989) os resultados demonstram a utilidade das duas dimensões principais da
personalidade ' relacionamento (Dependência) /auto-definição (Auto-Criticismo),
na descrição e organização das perturbações da personalidade do Eixo II (DSM-
IV), conduzindo a uma melhor compreensão das perturbações da personalidade numa
amostra não clínica de mulheres na idade adulta avançada.
Conforme esperado e proposto neste estudo, a Dependência foi prevista pelas
escalas de perturbação da personalidade Histriónica e Dependente e, o Auto-
Criticismo pelas escalas de perturbação da personalidade Narcísica e Evitante
(Blatt & Levy, 2003; Blatt & Shichman, 1983; Luyten & Blatt, 2011;
Shahar et al., 2003).
Contrariamente à hipótese que a perturbação da personalidade Obsessivo-
Compulsiva se encontra relacionada com a linha de desenvolvimento de auto-
definição (Auto-Criticismo) (Blatt & Levy, 2003; Blatt & Shichman,
1983; Luyten & Blatt, 2011; Shahar et al., 2003), o presente estudo vai no
sentido de outras investigações (e.g., Desmet et al., 2009; Morse et al., 2002)
que indicam que esta perturbação da personalidade necessita ser melhor avaliada
na sua relação com os fatores do QED. A escala Obsessivo-Compulsiva foi apenas
preditora da Dependência. Desmet et al. (2009) verificaram a existência de uma
convergência entre o fator Dependência e os resultados no estilo histérico/
anaclítico numa amostra geral, bem como em amostras de mulheres e homens
separadamente. Mas a convergência entre o fator Auto-Criticismo e os resultados
no estilo obsessivo/introjectivo foi apenas observado em homens e não em
mulheres ' sugerindo que mais investigação é necessária para avaliar a validade
da especificidade ao nível de género para estes fatores. Igualmente Morse et
al. (2002), verificaram que os traços da perturbação de personalidade
Obsessivo-Compulsiva, não eram relatados de modo consistente nos resultados da
sociotropia (ligada à Dependência) ou autonomia (ligada ao Auto-Criticismo).
Este estudo é também contrário à hipótese de que a perturbação de personalidade
Borderline está associada à Dependência (Blatt & Levy, 2003; Blatt &
Shichman, 1983; Luyten & Blatt, 2011; Shahar et al., 2003). Neste estudo, a
escala Borderline foi preditora do fator Auto-Criticismo. Decorre igualmente no
sentido de Ryder et al. (2008), Ouimette & Klein (1993), Ouimette et al.
(1994) e também de Blatt (Blatt & Auerbach, 1988), que propôs dois subtipos
da perturbação de personalidade Borderline. Os resultados apoiam a
possibilidade de um subtipo Borderline Introjectivo, enfatizando a autopunição
e, a necessidade de separação e autonomia na psicopatologia borderline(Blatt
& Auerbach, 1988).
As perturbações da personalidade parecem refletir extremos de dimensões
subjacentes a configurações normais da personalidade, o que também se verifica
em populações idosas. O processo de envelhecimento torna-se numa integração de
experiências do passado e eventos presentes, no enquadramento de um Self
contínuo. Os indivíduos idosos lidam com os constrangimentos da velhice e
respondem aos acontecimentos de vida através de formas que se enquadram no seu
estilo de personalidade. Tal como Blatt e colaboradores propuseram (Blatt,
2008; Blatt & Luyten, 2009; Blatt & Shichman, 1983), o desenvolvimento
da personalidade ocorre, da infância à senescência, através de uma dialética
complexa entre duas dimensões fundamentais do desenvolvimento psicológico '
relacionamento e auto-definição.
O presente artigo contribui para a crescente investigação que documenta as
relações sistemáticas entre uma perspetiva dimensional e as perturbações da
personalidade do Eixo II, apoiando o alargamento do estudo da psicopatologia ao
desenvolvimento da personalidade. Estes dados sugerem um continuum entre as
dimensões da personalidade e a psicopatologia ao longo do ciclo de vida.
Contudo, com duas propostas específicas para mulheres na idade adulta avançada,
características de perturbação da personalidade Borderline relacionadas com
Auto-Criticismo (introjectivas) e, características de perturbação da
personalidade Obsessivo-Compulsiva associadas com Dependência.