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EuPTHUHu1645-37942011000200004

EuPTHUHu1645-37942011000200004

variedadeEu
ano2011
fonteScielo

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O que é que a Adivinhação Adivinha? O que é que a Adivinhação Adivinha? Paulo Granjo* *Instituto de Ciências Sociais ' Universidade de Lisboa paulo.granjo@ics.ul.pt

Abstract Although it is often assumed that the predominant southern African systems of misfortune interpretation are deterministic, the notion of "deterministic chaos" seems to be more accurate to understand the underlying principles of the Mozambican divination with tinhlolo. This divination practice does not foresee the future but both the past causes to the present situation, and how would be the future (assumed as mutable and dynamic) if the current conditions would remain unchanged. The aim is, however, to manipulate effectively such conditions, in order to achieve the most desirable result. This system is based on a deterministic structure, it seeks to explain and to regulate uncertainty, but its outcome is chaotic due to the complexity of the involved factors, unknowable in their totality and characterized by agency. To understand it as a "domestication of uncertainty" system legitimates new comparison fields worldwide (including with the probabilistic notion of "risk"), and refocus the study of Ngoma-like phenomena, from their reproduction mechanisms as "affliction cults" to their underlying logics and world views.

Keywords: divination; tinhlolo; deterministic chaos; risk; uncertainty; Mozambique

Quando percorremos a literatura antropológica acerca dos sistemas de adivinhação, parece ser ponto assente, embora de forma implícita, que aqueles praticados na África Subsariana têm um carácter determinista.

Nalguns casos e locais, poderá bem ser verdade. Tanto mais que essa questão raramente é equacionada enquanto tal e de forma explícita, faltando por isso aos leitores os dados necessários para a avaliarem por si próprios. No entanto, nem a forma de adivinhação predominante no sul de Moçambique, o tinhlolo, nem o sistema de interpretação do infortúnio e de "domesticação da incerteza" em que ela se baseia apresentam um carácter determinista. Ambos correspondem, antes, a uma lógica de "caos determinístico"1.

Para que o possamos verificar, apresentar-vos-ei em seguida esse conjunto de adivinhação, o contexto em que ele é usado, os seus utilizadores e o sistema de explicação do infortúnio que lhe está subjacente, confrontando esses dados com os princípios da determinação, da aleatoriedade e do caos determinístico.

Constatar que a utilização do tinhlolo corresponde a uma lógica de caos determinístico não é, contudo, uma mera curiosidade analítica. Essa constatação tem implicações relevantes para a forma como entendemos e abordamos os sistemas de adivinhação semelhantes a este. Afinal, eles não adivinham nem pretendem adivinhar o futuro mas sim, por um lado, as razões passadas subjacentes aos problemas presentes e, por outro, as condições presentes para aquilo que o futuro seria ' caso essas condições não fossem, conforme os adivinhos bem sabem e afirmam, alteradas a partir de agora pela complexa e permanente interacção entre factores materiais e a acção de inúmeros agentes sociais, vivos e mortos.

Ou seja, um sistema de interpretação da incerteza que procura ser determinista acaba por não o ser, ao reconhecer a complexidade e mutabilidade da realidade que pretende controlar.

Isto desloca, por sua vez, o foco da análise dos chamados fenómenos Ngoma (Dijk, Reis & Spierenburg, 2000; Janzen, 1992), entre os quais se inserem o tinhlolo e as práticas curativas e propiciatórias dos seus utilizadores. Se, na sequência da brilhante proposta de Victor Turner (1968) acerca dos "cultos de aflição", a atenção dos investigadores tem sido sobretudo atraída pela forma como o grupo de terapeutas assegura a sua continuidade através da integração de ex-pacientes, aquilo que passa a ser mais relevante, a partir da perspectiva que proponho, são os princípios e lógicas do sistema de interpretação da incerteza que subjaz à prática divinatória e curativa, e o estatuto epistemológico que lhe é atribuído pelos praticantes.

Quando, na sequência disso, encaramos este tipo de fenómenos como uma variação particular dos sistemas de domesticação da incerteza que existem por todo o mundo (em vez de como um objecto de estudo isolado nas suas próprias características particulares e exóticas), tornam-se evidentes as suas similitudes gritantes com outros sistemas aparentemente tão diferentes deles como, por exemplo, o tecnocientífico risco probabilístico (Granjo, 2008). E com isso, proponho-o, todo um novo e promissor campo de estudo se abre.

O tinhlolo O conjunto de adivinhação mais comummente utilizado no sul e centro de Moçambique, o tinhlolo, não é de forma alguma imutável, ou sequer estável na sua composição. Se compararmos aqueles hoje existentes com as descrições escritas mais antigas e cuidadosas (Earthy, 1933; Junod, 1897; Junod, 1996 [1912]), é evidente que as suas peças se alteraram ao longo do tempo; mas também os conjuntos actualmente utilizados por diferentes adivinhos apresentam diferenças entre si (ver fig. 1 e Anexo).

Figura_1: Conjunto completo de tinhlolo de Job Massinge, Matola, 2005

A variabilidade decorre, em parte, do facto de não serem reconhecidos ao tinhlolo poder ou vida próprios, por muito habituados que estejamos a que o contrário aconteça e seja enfatizado noutros contextos2.

De facto, a natureza do tinhlolo pode ser expressa pelos adivinhos segundo um leque amplo de metáforas, que não são mutuamente exclusivas, mas antes complementares e enfatizando diferentes características atribuídas a esse conjunto de adivinhação e ao seu contexto de utilização3. Uma dessas explicações classifica-o como um amplificador de percepção que permite detectar dados que caberá ao adivinho interpretar, à imagem do que acontece com um estetoscópio ou com o tchova4, um instrumento feito com cauda de gnu e pelos de cauda de hiena, que ajuda a localizar espíritos que possuam o cliente: "O tinhlolo é como o tchova no kufemba (...) ajuda a encontrar; não encontra nada e não me diz onde tenho que procurar os espíritos [do cliente]. Os meus espíritos é que dizem".

É também apresentado como um instrumento para pressionar os espíritos do adivinho a cumprirem os seus deveres profissionais, uma vez passado o seu entusiasmo inicial: "Quando eu pego nos ossos e chamo, eles sabem que é trabalho, não é brincadeira. Se não estão zangados comigo, têm que vir e fazer o trabalho; foram eles que escolheram para eu ser médica tradicional".

Num terceiro sentido, o tinhlolo é referido como o ponto de partida e catalisador da relação de comunicação entre adivinho, cliente e espíritos que constitui a consulta: "A consulta é uma carta com muitas páginas, que precisa de ler e responder. O tinhlolo é o começo de cada página. O cliente tem que responder, para os meus espíritos e os defuntos dele poderem procurar mais".

Pode ainda ser descrito como um sistema de encriptação a descodificar pelos especialistas: "É como as letras. Os ossos juntam e dizem coisas. Mas a kuvumbata (profecia) do que dizem é muito complicada, é trabalho dos espíritos". Ou, então, como uma voz que permite aos espíritos expressarem-se junto dos vivos, que "para falar, os espíritos têm que "sair" ou que explicar no tinhlolo. Assim, falam mais certo e cansa menos". Por fim, este conjunto de adivinhação pode mesmo ser apresentado como um espaço de demonstração de poder e de diversão para os espíritos: "Numa consulta "daquelas", eu sei o que as peças vão dizer antes de tocar na esteira. Os espíritos sabem e mostram, quando querem".

Não obstante essa aparente variabilidade, as peças do tinhlolo são assumidas, em última instância, como "coisas que representam coisas", funcionando eficazmente "desde que o nyanga5 e os espíritos saibam que peça representa o quê". Consequentemente, é aceitável utilizar um novo objecto para representar uma entidade habitualmente simbolizada por outra peça, ou então introduzir no conjunto de adivinhação novas entidades e situações, que se tornem necessárias em virtude da especialização do adivinho na resolução de determinados casos ou doenças, ou em resultado de mudanças nas condições sociais, que tornem relevantes novas personagens ou locais.

Tal não impede que, de momento, exista um tendencial padrão básico de tinhlolo no sul de Moçambique. Na sua versão completa, ele inclui na verdade três conjuntos diferentes (figura_1).

Dois desses conjuntos são considerados pelos seus utilizadores como sendo variantes do mesmo método e conjunto de adivinhação, que existiriam antes da invasão do sul de Moçambique pelos vaNguni, no século XIX6. Ambos são compostos por seis elementos semelhantes entre si: no caso do chamado tinguenha, as peças são escamas dorsais de crocodilo; o outro, chamado thiakata, é composto por cascas de sementes da árvore nulu, que desempenha um papel importante no tratamento das pessoas a quem tenha sido diagnosticada uma possessão por espíritos. Nessa situação, as folhas da árvore são piladas e maceradas em água, sendo a mistura resultante batida até se obter uma grande quantidade de espuma.

O paciente deve ingerir essa espuma três vezes ao dia, de forma a apaziguar a impaciência dos espíritos que o possuem, ao longo do seu processo de aprendizagem para se tornar um nyanga (figura 2).

Figura 2: Aprendiz de nyanga comendo espuma de nulu, Maputo, 2010

Estes dois conjuntos têm também em comum a classificação das suas peças como três machos e três fêmeas, partilhando ainda os mesmos princípios de leitura divinatória. Esta baseia-se no número e género das peças que caem com o lado de "cima" ou de "baixo" visível, nas direcções geográficas para que apontam e no agrupamento e combinações lineares que entre si desenham.

São descritos como "os mais tradicionais" e é comum um adivinho afirmar que os seus antepassados " precisavam de um destes para fazer uma consulta". Não é contudo consensual que tipo de adivinhos usava cada um dos conjuntos, no passado. Alguns dizem que apenas guerreiros usavam o tinguenha, enquanto outros o consideram ligado à possessão por espíritos "de água" e um terceiro grupo afirma que a razão era sobretudo geográfica e pragmática: se um adivinho vivesse junto de um rio, utilizaria o tinguenha; caso contrário, as nozes de nulu.

Conforme em breve explicarei, estes conjuntos têm hoje duas diferentes utilizações: como forma redundante de confirmação, durante os primeiros lançamentos de consultas consideradas importantes, e enquanto conjuntos independentes e isolados, para responder a perguntas directas do cliente. Neste último caso, o conjunto a utilizar ' nulu ou escamas de crocodilo ' depende das preferências do espírito que "está a trabalhar" com o adivinho, naquela sessão particular.

O terceiro conjunto parcial do tinhlolo, o maior e mais diversificado, é aquele que apresenta mais semelhanças com as descrições de Junod e de Earthy. É por vezes referido como "tinhlolo Nguni", pois assume-se que terá uma origem zulu e que terá sido introduzido na região pelos invasores vaNguni.

Também este conjunto é sobretudo composto por casais de macho e fêmea, podendo incluir um número variável de conchas (mas obrigatoriamente uma de maior dimensão e espécie particular), moedas, pedras, a parte inferior da carapaça de dois cágados, duas sementes deformadas de canhu ou a sua representação esculpida na madeira dessa árvore7, e os astrágalos de vários animais, domésticos e selvagens. Os ossos de animais domésticos provêm de um carneiro ' que é único porque representa o chefe e apenas um chefe ' e de nove cabras, cabritos e bodes que correspondem a pessoas de diferente idade, género e estatuto. Os de animais selvagens serão provenientes de macacos, leões, kudus, gnus, impalas e cabritos monteses. Para além destes objectos, é bastante comum a inclusão de dados, para além ' conforme referi ' de objectos exclusivos de cada nyanga, em função das suas preferências e especialidade (figuras_8_a_11, em anexo).

Uma explicação do sentido atribuído a cada peça do tinhlolo e dos seus princípios de leitura exigiria, por si , um artigo muito mais longo do que este. Não quero, contudo, deixar de sublinhar que a maioria dos adivinhos está plenamente consciente da variabilidade destes elementos. Com estas palavras ou outras, foi recorrente ouvir que: Estes ossos não são realmente o que deviam, porque cada coisa destas está ligada a um certo animal. Veja: nos tempos antigos, se era o muluve, o antepassado, tinha que se usar o javali [farocero]. Mas hoje usamos símbolos [textual] e juntamos as peças como as conseguimos encontrar. Depois, damos o nome conforme as necessidades.

Portanto, se é assumido que mudar as peças não é grande problema (e que, no limite, não importa realmente que objecto é utilizado), é pressuposta e evocada uma era arquetípica, em que havia alguma ligação natural ou sobrenatural entre o tipo de animal que fornecia o osso e a entidade social que esse osso representava durante o processo de adivinhação.

O(a) adivinho(a) e os seus espíritos O leitor terá certamente reparado que, em tão poucas páginas, mencionei por diversas vezes os espíritos dos adivinhos. Tal aconteceu porque eles são uma referência incontornável em qualquer conversa acerca deste assunto, visto a possessão por espíritos ser localmente uma condição sine qua non para a capacidade e prática de adivinhação.

De facto, não é suposto escolhermos ser nyanga; somos escolhidos para essa tarefa por espíritos que "querem trabalhar" através de nós, por um acto de possessão. Os espíritos escolhem o indivíduo entre um conjunto de familiares possíveis e podem ser herdados de ambos os lados da família ' o que é, afinal, paralelo à situação social, em que os princípios de descendência agnática são predominantes mas não exclusivos (Webster, 2009), coexistindo com sentimentos e deveres que resultam das alianças matrimoniais e perduram por várias gerações, a par de outros factores comuns como irregularidades de lobolo8 (Granjo, 2005) ou a herança do nome próprio9.

Em casos excepcionais, que apenas detectei em famílias onde um dos pais herdou uma grande quantidade de espíritos, a escolha destes pode ser anunciada ' através de adivinhação ou de transe ' mesmo antes do nascimento da criança, juntamente com o género e o nome a atribuir ao bebé10.

Normalmente, contudo, a exigência de trabalho por parte dos espíritos assumirá a forma de uma "doença de chamamento" que, a par de sintomas individualizados, incluirá uma fraqueza geral, fragilidade nas articulações e fortes dores, para as quais a biomedicina não encontrará aparente explicação. Se a pessoa não reconhece a presença dos espíritos, recusa ou tenta adiar a chamada, espera-se que sistemáticas doenças, desgraças e mortes a venham a atingir a si e à sua família.

Este comportamento violento por parte dos espíritos não é atribuído a maldade, mas antes às limitações que eles enfrentam na sua actual forma de existência.

Embora poderosos, os espíritos são "o que sobra" da pessoa que em tempos foram.

Não são, por isso, capazes de comunicar aos vivos o que querem, vendo-se limitados a chamar a atenção deles de forma indirecta, propiciando acontecimentos anormais e indesejados até serem ouvidos através da adivinhação ou transe de especialistas. Para além disso, é esperado dos espíritos que de momento não possuam ninguém que se comportem "como crianças", de forma caprichosa e impaciente (Honwana, 2002), sobretudo quando se sentem impotentes para transmitir o que desejam.

Daqui resulta uma dinâmica que corresponde bastante à noção de "culto de aflição" (Turner, 1968), mesmo se "culto" não é uma palavra que eu escolhesse para a descrever. A pessoa que é vítima de uma "doença de chamamento" procurará solução junto de um(a) nyanga e, uma vez que lhe seja diagnosticada uma possessão por parte de espíritos legítimos que "querem trabalhar", poderá superar o problema aceitando tornar-se ela própria nyanga. O paciente tornar- se-á então um terapeuta, e o vago crente, frequentemente semi-céptico acerca de tais assuntos, tornar-se-á um divulgador e reprodutor da crença11.

Tenho vindo a referir "espíritos legítimos" e factores familiares, temendo induzir o leitor a pensar que a legitimidade das exigências de um espírito decorra do seu estatuto de antepassado, ou que cada antepassado seja um espírito. Neste contexto, nenhuma das hipóteses é verdadeira.

No que diz respeito à última delas, podemos dizer que, se todos os espíritos são antepassados de alguém (desde que lhes tenham sobrevivido descendentes), poucos antepassados se tornam espíritos. É pressuposto que toda a gente tem uma parte espiritual que sobrevive à sua morte e se mantém na Terra, protegendo e corrigindo os seus descendentes ' que, por seu lado, têm o dever de os honrar e se submeter a eles, tal como deve acontecer relativamente aos seus parentes vivos mais velhos. Não obstante, alguns desses "restos" espirituais adquirem poderes excepcionais, em resultado do estatuto, acções ou excepcional força espiritual que tiveram em vida, ou devido a circunstâncias negativas na sua morte. esses são, em sentido estrito, espíritos.

Quanto à eventual necessidade de um espírito ser antepassado da pessoa que quer possuir para que tal exigência seja considerada legítima, deveremos estar cientes de que, pelo contrário, o acesso ao conjunto completo de capacidades a que um(a) nyanga pode aspirar implica a sua possessão por espíritos de três diferentes origens:

Conforme Alcinda Honwana sugere (2002), esta divisão12 reproduz em termos "étnicos" as representações socialmente partilhadas acerca das guerras e ascensão do Império de Gaza, instalado em princípios do século XIX e desmantelado pela ocupação efectiva do território por parte dos portugueses, em 1895.

Olhando este quadro a partir do ponto de vista sul do país, temos de um lado o invasor Nguni que se tornou governante, de cujas técnicas de guerra e adivinhação perdurou uma imagem de superioridade que o faz corresponder, em referências populares e dos tinyanga, ao leitmotiv mitológico do herói civilizador; temos depois os "donos da terra", vencidos e assimilados pelo invasor, devendo à sua submissão o estatuto e nome que vieram a ter; temos por fim o Ndau, lembrado como o rebelde resistente às invasões e guerras que lhe foram movidas pelos anteriores, sob comando dos vaNguni, e cuja determinação e resiliência poderiam ser explicadas pela posse de um forte poder espiritual13.

Não obstante o que acabei de expor, a família também fornece, num sentido diferente, o princípio legitimador para a integração de espíritos exteriores ' e isto de acordo com uma lógica de culpa e de dever. De facto, a legitimidade da exigência de um espírito "estrangeiro" para possuir alguém e "trabalhar" deriva da relação que terá mantido com antepassados da família, quando todos eles estavam vivos. Normalmente, os espíritos vaNguni seriam senhores ou amigos de um antepassado que auxiliaram a família e não têm descendência, enquanto no caso dos vaNdau poderá tratar-se de uma mulher trazida da guerra como escrava e concubina, dos seus parentes chacinados (a cujos espíritos ela mostrou o caminho para a casa da família que a manteve cativa), ou de um guerreiro morto antes de casar, que por isso exigiu à família do seu oponente uma esposa viva e acabou por decidir "trabalhar", quando a sua raiva se apaziguou ao longo do tempo14.

Independentemente da origem do espírito, as consequências ontológicas da possessão são no essencial as mesmas. Embora um espírito não possua o corpo da pessoa de forma contínua, tanto ele quanto o indivíduo possuído deixarão de ser as entidades separadas e independentes que antes eram, para se tornarem num ser simbiótico, com uma identidade nova e comum. Cada um influencia o comportamento e a identidade do outro, adaptando-se a essa coexistência durante o seu processo de preparação para se tornarem um nyanga ' podendo até, por exemplo, o homem vivo ter que mudar de religião, caso o seu espírito principal professasse em vida uma religião diferente da sua. De facto, um dogma local afirma que é o espírito (e não a pessoa que o hospeda) quem é treinado para trabalhar, pois o seu conhecimento foi em grande parte esquecido desde a morte do(a) hospedeiro (a) anterior; se a pessoa também aprende ao longo desse processo, diz-se, tal resulta da simbiose entre os dois.

Uma última característica a reter é que, conforme Harry West (2006) eloquentemente aponta para o caso do norte de Moçambique, os adivinhos- curandeiros não estão manietados por um quadro de práticas e de discursos tradicionalistas e repetitivos. Pelo contrário, a sua prática inclui experiências, especulações e inovações, estando eles, regra geral, bastante interessados tanto no reconhecimento externo do seu trabalho, quanto nas explicações e práticas curativas vigentes noutros contextos ' explicações e práticas que apresentam para eles o interesse suplementar de poderem vir a ser reapropriadas em benefício do seu prestígio profissional e da atracção e fixação de clientes.

A "consulta" De acordo com este quadro conceptual, a "consulta" ' conforme é designada a sessão de adivinhação, em deliberada analogia com a terminologia biomédica ' é vista como uma relação de comunicação entre quatro diferentes agentes: o(a) adivinho(a), os seus espíritos, o(a) cliente e os seus antepassados15.

Não obstante, do ponto de vista do adivinho a consulta não é apenas uma questão de informação, mas também de credibilidade junto dos seus clientes. Por essa razão, as suas atitudes e estilos de leitura variam consoante o nyanga e a ocasião, de acordo com o seu grau de confiança e as estratégias que utiliza para se salvaguardar e transmitir confiança. A sequência dos acontecimentos é, no entanto, basicamente a mesma em qualquer consulta.

Quando o cliente chega, limita-se a pedir uma consulta, sem especificar os seus motivos. Algum tempo depois, será convidado para a cabana pertencente ao espírito que liderará o trabalho nesse dia, pois o nyanga deve chamá-los a trabalhar de forma rotativa, ou alguns "vão ficar zangados de ciúme, por pensar que o trabalho deles é desprezado".

O adivinho vestirá então a capulana16 desse espírito e, virando-se para os pertences dele, chamá-lo-á para trabalhar, informando-o que alguém pede a ajuda de ambos (figura 3). É essencial que o espírito concorde participar, pois caso contrário o adivinho "olha e ossos; não consegue ler nada".

Figura 3: Job Massingue, chamando um dos seus espíritos para "trabalhar"17

Depois desta invocação do espírito (pois eles gostam de passear e de conversar à sombra de algumas árvores, ou de brincar na praia, podendo não estar por ali), um nyanga alfabetizado tomará nota, numa agenda semelhante às utilizadas nos hospitais, do nome oficial do cliente, da sua genealogia e do seu "nome tradicional" ' ou, na ausência deste, da sua alcunha ou diminutivo dentro da família. Este acto ' cuja similitude com a rotina médica é evidente ' é normalmente praticado com alguma circunspecção e solenidade.

O espírito é então convidado a fazer kuvumbata (profecia) para o cliente, que é identificado pelo seu nome e pelos seus ascendentes nas últimas duas ou três gerações. Em seguida, o adivinho morde um ramo de manono, uma madeira muito amarga que o ajudará a induzir aquilo que é normalmente designado por "transe ligeiro", ou "leve" (figura 4).

Figura 4: Mordendo madeira de manono, para auxiliar a indução de "transe ligeiro"

Quando utilizada de forma isolada, a palavra "transe" é de facto reservada para as ocasiões em que um espírito assume o controlo total da pessoa e dos seus movimentos, fala através dela e ' de acordo com uma crença popular a que muitos tinyanga negam veracidade ' a faz perder a percepção daquilo que se passa à sua volta18. Este estado é necessário para a realização de várias cerimónias e do mais espectacular tipo de tratamentos por kufemba (exorcismo de espíritos). No caso das consultas, contudo, a incorporação do espírito no adivinho é antes descrita como "um arrepio, e depois como um tecido fino sobre os ombros".

A partir do momento em que o adivinho sente a sua presença, poderá "bater" (lançar) o tinhlolo (figura 5). Se está familiarizado com o cliente, poderá utilizar apenas o tinhlolo Nguni; mas se se trata de uma primeira consulta ou se espera que ela venha a ser importante (devido ao estatuto elevado do cliente ou à expectativa de um problema particularmente complicado), será de esperar que o nyanga "jogue seguro", atirando também as escamas de crocodilo e as nozes de nulu. A ideia é poder comparar os padrões desenhados pelos dois conjuntos mais pequenos com aquele em que caíram as muitas peças do tinhlolo mais complexo: numa consulta promissora, os três conjuntos deverão fornecer basicamente a mesma informação; se tal não acontece, algo está mal. Para além disso, os conjuntos de seis peças, mais simples, podem ajudar o adivinho a focar a sua atenção na mais pertinente de entre as várias linhas de leitura proporcionadas pelo conjunto maior.

Figura 5: Lançando o tinhlolo completo, de uma bolsa sipatsi

Antes de mais, o nyanga deverá identificar o motivo da visita do cliente. Se não o conseguir fazer correctamente, o cliente recolherá o seu dinheiro e ir- se-á embora. Por essa razão, os adivinhos tendem a ser muito cuidadosos nesta fase, falando por metáforas ou recitando mesmo a "canção do tinhlolo", uma história vaga acerca do passado e família do cliente que, no essencial, se adequa a quase toda a população e lhe foi ensinada pelo seu mestre, durante o processo de aprendizagem profissional. Depois, em função das reacções do cliente, aproximar-se-ão progressivamente daquele que julgam ser o problema.

Esta insegurança é legítima, mesmo de acordo com os seus próprios critérios. De facto, para além da incorporação do espírito, uma boa consulta requer também que este esteja de bom humor e que a sua interacção com os antepassados do cliente seja mutuamente aceite. Por isso, mesmo um bom adivinho pode por vezes sentir-se inseguro ou incapaz de fornecer informações correctas; mas, como a sua reputação está em jogo, tentará utilizar a sua experiência e capacidade de observação para descobrir o assunto que preocupa o cliente.

Se tudo correr pelo melhor, contudo, a situação é descrita de uma forma bem diferente. A interacção do nyanga com o espírito não é como "alguém soprando nas orelhas o que dizer", mas antes como uma orientação interna, como "coisas que vêm à sua mente", "pensamentos que fluem na sua cabeça". Quando esta simbiose entre o adivinho e o seu espírito é particularmente bem conseguida, sendo também assegurada a harmonia e a comunicação entre este e os antepassados do cliente, então o tinhlolo quase se torna secundário e pode não ser necessário voltar a lançá-lo.

Conforme refere o Eng.º Job Massingue, que dirigiu a consulta cujas fotos ilustram este artigo: Quando isso acontece, não me vem sequer à cabeça nenhuma preocupação de estar certo ou errado, de convencer ou não. Passado um bocado, nem sequer olho para os "ossos". O cliente pensa que eu estou a lê-los, mas eu estou a falar, a falar, falar, e sem mesmo notar estou de olhos fechados e continuo a falar, a falar, até não ter mais nada para dizer. E quando me calo, normalmente não mesmo mais nada para dizer, ou para atirar.

Situações como esta não são, contudo, frequentes. Habitualmente, o nyanga encontrará o problema, explicará as razões que lhe estão subjazentes de uma forma mais directa ou mais metafórica, de acordo com o seu estilo pessoal e com a confiança que sente (figura 6), e esperará pela reacção e comentários do cliente. Far-lhe-á então várias perguntas que julga pertinentes, levando as respostas e comentários do cliente à realização de um novo lançamento ' desta vez, no entanto, apenas o tinhlolo Nguni será atirado, das mãos do adivinho e não da bolsa de palha onde é guardado e transportado19, conforme acontecera no primeiro lançamento.

Figura 6: Explicando o problema que aflige o cliente

Aquilo que surge, aos olhos de um observador exterior, como uma interacção terapêutica que lhe recorda vagamente a psicanálise ' e simultaneamente fornece ao nyanga dados essenciais para a sua interpretação e intervenção ' é objecto de duas explicações paralelas, dentro da profissão divinatória: Em primeiro lugar, é dito que, enquanto os assuntos levantados num lançamento não forem completamente respondidos, os lançamentos subsequentes apenas irão repetir a mesma informação, sem nada trazer de novo. Esta redundância deriva de uma das principais características do tinhlolo, a de ser um meio de comunicação entre os espíritos e os vivos, estando consequentemente sujeito às regras comuns de cortesia ' da mesma forma que se deverá responder a uma carta, ou uma mensagem verbal, antes de se receber a seguinte.

Em segundo lugar, crê-se que os espíritos (especialmente se forem vaNguni) apenas trabalham de forma eficaz durante algum tempo seguido, ficando depois cansados e abandonando o local. O adivinho terá, a partir dessa altura, que mobilizar a sua experiência e capacidades, tanto de observação quanto de leitura das pedras, de forma a completar o puzzle e a consulta. No entanto, quando se na contingência de recorrer a tais meios não se trata de kuvumbata mas de um palpite interpretativo, por muito exacto que este possa ser.

Após vários lançamentos do tinhlolo Nguni, contudo, o cliente poderá ainda necessitar de algumas respostas directas, para clarificar dúvidas que tivesse desde o início da consulta ou que se lhe tivessem colocado entretanto. Quando tal acontece, as perguntas do cliente não poderão ser dúbias e terão que ser formuladas de uma forma que permita uma resposta binária, como sim/não ou morto/vivo. Um dos conjuntos de seis peças será então lançado a partir das mãos do nyanga. Qual deles (tinguenha ou thiakata), dependerá das preferências do espírito que está a "trabalhar" naquela consulta.

Acompanhando até ao final este processo, podemos reparar que as conclusões da parte principal da consulta estão em grande medida pressupostas nos dados que foram confirmados ou adiantados pelo cliente e que uma significativa parte do trabalho do adivinho consiste em dar sentido, à luz dos princípios locais de interpretação do infortúnio, a coisas que o cliente sabia. Este último, no entanto, apenas confirmou o que lhe foi perguntado e, no caso de alguns tinyanga, recebeu quase uma aula acerca da forma como funciona o sistema de interpretação que referi e adiante exporei. Assim, a sua experiência de consulta não se limitou a proporcionar-lhe um sentido para os seus infortúnios e uma solução plausível (muitas vezes ritual) para os ultrapassar; também reafirmou e lhe deu um maior conhecimento acerca de referências culturais que, quase sempre, eram para si noções vagas e fragmentares. O cliente poderá ainda ' em particular se o objecto da consulta eram assuntos familiares ' ter recebido sugestões acerca do seu comportamento futuro, baseadas nas idiossincrasias do nyanga acerca das relações sociais e assumidas por ele como uma parte da sua responsabilidade e papel de conselheiro.

Domesticação da incerteza, caos determinístico e Moçambique Expostos estes aspectos, impõe-se clarificar qual o sentido preciso dos conceitos de "domesticação da incerteza" e de "caos determinístico".

Durante a pesquisa que realizei na refinaria de Sines (Granjo, 2004), tornou-se claro para mim o carácter socialmente específico e localizado da noção probabilística de "risco" e até que ponto ela induz ' do discurso técnico- científico para a sociedade circundante ' a ideia de que o risco constitui "a" realidade, e não uma tentativa de atribuir sentido a essa realidade.

Necessitei por isso de diferenciar, por um lado, os factores objectivos passíveis de causar danos às pessoas e coisas (as "ameaças") e, por outro, as várias formas possíveis de os conceber e representar, segundo diferentes princípios explicativos.

Quando nos centramos nestas diferentes formas de as conceber e representar, depressa verificaremos que as alternativas possíveis de conceber a "ameaça" e a incerteza podem variar entre dois pontos extremos (figura 7):

Figura 7: Contínuo de alternativas para conceber a incerteza e a ameaça

De um lado, a total assunção de que o "aleatório" é "real" e constitui o princípio subjacente aos acontecimentos incertos (com isso reconhecendo o acaso)20; do outro, assumir a completa "determinação" desses acontecimentos por parte de lógicas ou entidades extra-humanas ' como, por exemplo, a vontade divina, algumas acepções da palavra "destino" (Granjo, 2009) ou as leis mecanicistas de um universo concebido à imagem de um aparelho de relojoaria.

Entre estes dois extremos, existe um contínuo de possibilidades conceptuais, que têm em comum a sua tentativa de atribuir um sentido e causalidade à incerteza e ao aleatório que os faz serem vistos como cognoscíveis, regulados ou mesmo dominados pelos seres humanos. São elas que constituem aquilo a que chamo formas de domesticação da incerteza.

A posição do caos determinístico neste contínuo de possibilidades ' ou mesmo num dos seus pontos extremos ' não é imediata.

No fundamental, esse conceito sustenta que os acontecimentos incertos são caóticos para quem os observa ou sofre as suas consequências mas, não obstante, existe um princípio de determinação que lhes está subjacente. De forma a compreendermos todas as suas implicações, no entanto, deveremos ter em mente que o caos determinístico tem como modelo as equações matemáticas que geram uma sucessão de números que não corresponde a ciclos finitos21, e que portanto nunca se repetem enquanto sequências, por muito que um mesmo resultado individual possa voltar a surgir. Portanto, embora exista uma instância de determinação, aquilo que resulta é de facto caótico, imprevisível e incontrolável ' a menos que tenhamos acesso à equação que gera os resultados.

Quando aplicamos esta noção à interpretação de um mundo ele próprio incerto, o seu estatuto conceptual e o seu lugar no contínuo de possibilidades que apresentei dependem, em última instância, da resposta que demos a três variáveis pertinentes: i) que estatuto de cognoscibilidade é atribuído à "equação"? ii) se é possível conhecê-la, que tipo de entidade é capaz de o fazer? iii) é possível alterar os acontecimentos resultantes da "equação", uma vez que esta seja conhecida? Dependendo da combinação de respostas a estas variáveis, podemos de facto estar a lidar com uma visão aleatória de caos, com um sistema determinista de natureza religiosa ou pseudocientífica, ou com diferentes sistemas de domesticação da incerteza.

É este último o caso do sistema dominante em Moçambique, que largamente extravasa as fronteiras do país22? À primeira vista, a resposta pareceria ser: "Não é bem isso".

A lógica de domesticação da incerteza que preside ao tinhlolo parte do princípio de que o acaso não existe, e que muito menos poderão existir esses acasos recorrentes a que chamamos coincidências. Por isso, acontecimentos que prejudiquem ou beneficiem alguém pressupõem a existência de causas que lhe estejam subjacentes, em especial se se repetirem.

Essas causas subjacentes, contudo, não substituem a causalidade material nem lhe são antagónicas. Considera-se, de facto, que o mundo está repleto de ameaças materiais e naturais, reguladas por causas materiais. Uma parte dessas causas será conhecida, outra não, mas nem por ser desconhecida deixará de existir.

No entanto, se os acontecimentos indesejados seguem relações de causalidade material, é considerado que eles apenas poderão atingir uma pessoa em resultado de causas sociais.

A primeira hipótese a verificar será a possível inabilidade ou negligência por parte da vítima. Se esta desconhecia a forma correcta de efectuar alguma acção, não tinha suficiente experiência para a fazer ou não tomou as precauções necessárias (ou seja, se era inadequada para fazer o que fez), será essa a razão do seu infortúnio. serão procuradas outras causas sociais se a vítima foi competente e cuidadosa mas, apesar disso, foi atingida ou prejudicada pelo acontecimento indesejável.

Uma dessas possíveis causas é a feitiçaria (normalmente motivada por inveja ou outros sentimentos e objectivos considerados negativos), que atrairá a pessoa para o perigo, ou a distrairá da sua existência e iminência. Acredita-se ainda que a feitiçaria possa agir directamente sobre factores materiais, mas tais diagnósticos são relativamente raros e, em geral, limitados a situações de tensão social de excepcional intensidade.

Outra razão poderá ser uma falta de protecção por parte dos antepassados da vítima, que a deveriam proteger do perigo e alertá-la em relação a ele, não o tendo feito naquele caso. Conforme referi, esta é a única forma que os antepassados têm para comunicar com os seus descendentes, pelo que o próximo passo será descobrir por que razão estão eles insatisfeitos e o que poderá ser feito para corrigir essas causas ou, pelo menos, apaziguá-los23.

Dever-se-á notar que a falta de protecção por parte dos antepassados é uma questão estritamente social, visto que a sua motivação provém de algum comportamento social ' por parte dos seus descendentes ou mais tempo, quando o antepassado em causa ainda era vivo ' e que os antepassados não são entidades extra-sociais, vivendo num qualquer lugar extra-humano. Pelo contrário, são "o que sobra" dos seres humanos que antes foram e vivem na Terra junto dos seus descendentes, de quem dependem para serem recordados, cuidados e honrados, e com quem mantêm uma relação que segue as regras gerais de protecção e controlo familiares.

Chegados a este ponto, será claro para o leitor que a démarche de adivinhação e cura em que se insere o tinhlolo segue uma lógica de "domesticação do aleatório" que não é original em África. De facto, apesar do papel central que os espíritos e os antepassados assumem neste sistema explicativo moçambicano, os seus princípios gerais são similares, por exemplo, aos da clássica interpretação de Evans-Pritchard acerca da bruxaria azande (1978 [1937]). Devo contudo sublinhar que a atribuição de agência aos espíritos torna bastante mais complexo o sistema que temos vindo a acompanhar e que este não procura explicar apenas os infortúnios, mas também os acontecimentos vantajosos, ou mesmo aspectos socialmente reprovados ' como comportamentos abusivos na redistribuição da riqueza por parte de quem tem acesso a ela (West, 2008).

Tenderíamos também a concluir, se limitássemos a análise aos dados que apresentei, que a noção de "caos probabilístico" em parte é pertinente neste contexto conceptual. O mundo exterior parece, de facto, seguir uma lógica de caos determinístico, mas a relação entre o mundo e os indivíduos não; antes parece ser regida por "determinação", embora esta tenha uma base humana ou para-humana que faz dela uma forma de domesticação do aleatório.

Adivinhação e "risco" A aplicação dos princípios deste sistema à vida real é, contudo, menos directa do que a sua mera apresentação geral nos levaria a pressupor, devendo-se isso à complexidade que é reconhecida aos factores envolvidos nas relações sociais.

Na verdade, se estivéssemos na presença de um sistema determinista, seria de esperar que alguém sempre cuidadoso, que sempre se comportasse de forma socialmente correcta para com os vivos e sempre respeitasse as regras dos antepassados, estaria salvaguardado de surpresas indesejáveis. No entanto, não é esse o caso.

Entre os vivos, o próprio comportamento excepcionalmente correcto desse indivíduo poderia tornar-se objecto de inveja ' e, portanto, objecto do motivo mais frequente para fazer dele uma vítima de feitiçaria, seja como forma de retaliação, seja como meio para se apropriar das suas qualidades e força.

Na sua relação com os mortos, existiriam também várias razões passíveis de o vitimizar, independentemente da sua conduta exemplar. Por exemplo, se uma gota de saliva saltasse da boca de um parente sénior enquanto este comentasse as acções do indivíduo modelo que temos vindo a imaginar, os antepassados de ambos poderiam considerar esse acontecimento como sendo uma invocação, e as palavras do parente sénior como sendo um pedido de correcção do seu comportamento, por muito pouco que essa fosse a intenção do orador. É também assumido ' e com frequência diagnosticado ' que um espírito pode exigir aos vivos uma compensação pelas acções passadas de um seu parente, entretanto falecido. Por fim, um indivíduo pode ainda ser atingido, não devido às suas acções e omissões ou por herdar a culpa de um antepassado, mas como uma forma de chamar a atenção para as faltas de uma outra pessoa, que será neste caso um seu parente próximo.

Dessa forma, este sistema de domesticação do aleatório é baseado numa estrutura determinista, procura explicar e regular a incerteza, mas o seu resultado é caótico, devido à complexidade dos factores envolvidos, incognoscíveis na sua totalidade e caracterizados por agência humana ou para-humana. Voltando à nossa metáfora matemática, é postulada a existência de uma "equação" e a compreensão dos elementos que a compõem; pode nalguns casos ser mesmo assumido que a fórmula da equação seja conhecida (pelo menos pelos espíritos), mas é impossível identificar simultaneamente o valor de todas as incógnitas e, consequentemente, o resultado da equação.

Em suma, o sistema adopta, na aplicação prática dos seus princípios, uma lógica de caos determinístico, tanto mais que não enfrentamos neste caso muitos factores relacionados entre si de forma linear24, mas antes vários factores relacionados de forma não linear, interagindo de uma maneira que transforma a sua relação e evolução individual em resultado da sua história relacional, como no exemplo clássico de água pingando sobre uma faceta de Lorenz (1963).

Quando atentamos nas razões que obrigam o sistema a adoptar uma tal lógica, podemos detectar similitudes gritantes com a aplicação da teoria das probabilidades à gestão das "ameaças", sob a noção de "risco". De facto, este sistema moçambicano e a gestão probabilística do risco enfrentam os mesmos dilemas, e pelos mesmos motivos: embora ambos aspirem a atribuir ordem à incerteza e a assegurar o domínio humano sobre ela, ambos são incapazes de a controlar de forma prospectiva devido à complexidade dos factores envolvidos ' e, em resultado disso, cada um deles transforma a prevenção num paliativo parcial. Esta incapacidade é particularmente pertinente porque, quando olhamos para um sistema de domesticação da incerteza, seria um erro fundamental separar o seu objectivo de atribuir sentido aos acontecimentos do seu objectivo de guiar a agência humana. Se a existência de um qualquer tipo de lógica de domesticação da incerteza é provavelmente universal às sociedades humanas, é plausível que tal se deva à necessidade de superar a humilhação que resulta da ausência de sentido dos acontecimentos perniciosos e imprevistos; não obstante, o objectivo de um sistema de domesticação da incerteza nunca é apenas proporcionar sentido ao aleatório, inesperado e imprevisto, mas usar esse sentido para direccionar a acção humana de uma forma eficaz.

Quer isto dizer que não basta compreender a lógica e os princípios através dos quais o sentido é atribuído; é também necessário clarificar o potencial, limitações e fronteiras da sua projecção no futuro, enquanto guia para a agência ' não importa se a palavra que utilizamos é "adivinhação" ou "análise de risco".

Esta similitude deveria chamar a nossa atenção para a importância de alguma reflexão colectiva acerca das consequências práticas dos sistemas de domesticação da incerteza que se tornaram hegemónicos25 na área da gestão de risco e na forma como este é encarado nas sociedades de matriz cultural europeia, alastrando progressivamente às restantes. Contudo, como esse assunto é demasiado extenso para ser aqui desenvolvido e tive oportunidade de o abordar noutro local (Granjo 2008), regressemos à adivinhação no sul de Moçambique, às suas lógicas subjacentes e às consequências daquilo que acaba de ser dito.

Uma das consequências é evidente na observação presencial, no discurso das pessoas envolvidas e na contabilização dos motivos que levam as pessoas a procurar uma consulta26: a adivinhação moçambicana não constitui um objectivo em si própria, mas antes pretende atribuir ordem aos acontecimentos e guiar para a acção. Isto é relevante para o cliente, mas é ainda mais relevante para o adivinho, que é ao mesmo tempo um proporcionador de cura para doenças e problemas sociais, tendo na adivinhação o seu meio de diagnóstico: O tinhlolo é como o estetoscópio do médico. torna as coisas mais claras, não é? (...) É o médico que tem que saber o que significa o que ele está a ouvir e o que ele está a ouvir existe sem o estetoscópio, ele ajuda. O tinhlolo ainda é mais útil para nós, porque é o nosso estetoscópio, o nosso Raio X e as nossas análises, ao mesmo tempo.

No entanto, quando a adivinhação é examinada do ponto de vista do caos determinístico (um ponto de vista empiricamente adequado, conforme pudemos constatar), outros aspectos que se tornam mais fáceis de compreender.

O tipo de utilidade que acaba de ser apontada à adivinhação por tinhlolo levanta de imediato uma nova questão: exactamente que tipo de respostas se espera que uma "consulta" forneça? Por outras palavras, qual é o estatuto atribuído às relações causais que são reveladas e à previsão que é feita? Uma coisa é certa: não se espera que a adivinhação revele apenas o futuro, e o futuro que ela revela não é considerado certo ou imutável. Por um lado, as consultas com adivinhos deverão detectar a posteriori as razões subjacentes aos acontecimentos passados e, ao fazê-lo, tornar esses acontecimentos compreensíveis e permitir uma reacção eficaz, através da correcção das suas causas mais profundas ou da protecção contra elas. Por outro lado, espera-se que a adivinhação vaticine quais os apoios e obstáculos a projectos futuros, de forma a permitir a adopção das estratégias, decisões e precauções mas adequadas.

Em caso algum ' mesmo quando se considera que uma "consulta" específica foi particularmente exacta ' as causas diagnosticadas serão imutáveis ou se poderão considerar assegurados os resultados pretendidos, por muito escrupuloso que seja o cumprimento dos procedimentos receitados pelo nyanga. As condições que estiveram na base dos problemas actuais podem ser alteradas e o futuro não está predeterminado; mas cada acção individual é apenas um factor entre muitos outros, todos eles interagindo e influenciando-se mutuamente. A adivinhação por tinhlolo produz, assim, uma conjuntura de quadros de causas e relações que deixa significativo espaço para a acção do cliente, mas que será também influenciada pela agência de muitos outros indivíduos, vivos e mortos.

Por outras palavras, a adivinhação não adivinha o futuro, mas como o futuro seria se se mantivesse a presente conjuntura de causas, condições e relações entre elas ' conjuntura que à partida se sabe ser mutável e complexa, e se pretende influenciar de forma vantajosa para o cliente.

Estamos então perante a noção de uma realidade regulada, mas de tal forma complexa que se transforma numa incerteza vivida, em que a capacidade de um indivíduo para manipular os princípios de determinação que estão subjacentes aos acontecimentos não é suficiente para o salvaguardar de danos, mas em que a sua ignorância acerca desses princípios o poderia conduzir ao desastre.

Tal pode ser dito da relação das pessoas com a adivinhação e, como creio ter ficado demonstrado, pode também ser dito acerca do seu funcionamento e do sistema conceptual que lhe serve de base.

A mais poderosa consequência que a perspectiva do caos determinístico traz ao estudo da adivinhação e dos sistemas de domesticação do aleatório existentes em África será, então, evitar que se assuma de forma ligeira que se trata de noções e práticas deterministas (conforme é geralmente pressuposto), antes de os analisar em profundidade.

Por outro lado, esta abordagem evita que se desperdice a complexidade e o potencial comparativo dos nossos dados, por duas diferentes razões: Em termos gerais, quando encaramos os objectos etnográficos afins daquele que tenho vindo a apresentar como sendo, antes de mais, formas específicas e culturalmente situadas de interpretação da incerteza, os campos comparativos onde se torna pertinente inseri-los extravasam o espaço relativamente homogéneo dos chamados fenómenos "Ngona" (Dijk et al., 2000; Janzen, 1992). Passamos a poder também equacionar outras formas de domesticação da incerteza a nível mundial, sejam elas baseadas ou não no caos determinístico, sem qualquer razão para que venhamos a cair, ao longo do processo, na lógica de "coleccionadores de borboletas" criticada por Leach (1961).

Dentro da área temática do Ngoma, entretanto, esta perspectiva estimula-nos a focar a nossa atenção nas visões do mundo subjacentes aos fenómenos que observamos ' em vez de, conforme é hábito, enfatizarmos as suas características de "cultos de aflição", acabando por reduzir a totalidade do sistema aos seus mecanismos de reprodução e legitimação. Esta não é apenas uma questão de deixarmos de etiquetar um fenómeno com o nome de uma das suas características ' por sinal resultante de um diagnóstico que é raro, no conjunto de todos aqueles que são quotidianamente produzidos pelos tinyanga. A partir do momento em que a análise deixa de estar focada quase exclusivamente na forma como o diagnóstico de possessão do paciente cria novos terapeutas, a própria possessão por espíritos retoma o seu lugar como uma das várias explicações possíveis para os infortúnios, dentro de uma lógica de interpretação bem mais vasta, sistémica e integrada. Uma lógica de interpretação que, assim, se torna muito mais compreensível na sua totalidade e nas suas implicações sociais.


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