Muros do Mediterrâneo: Notas sobre a construção de barreiras nas fronteiras de
Ceuta e Melilla
Muros do Mediterrâneo: Notas sobre a construção de barreiras nas fronteiras de
Ceuta e Melilla
Patrick Figueiredo*
*Instituto de Ciências Sociais - Universidade de Lisboa
patrick.figueiredo@ics.ul.pt
Abstract
There are many material cases that shape the frontiers between E.U. and Africa
thatdeserve attention. I will consider some theoretical approaches to the
fences that are beingbuilt in the territorial boundaries between Ceuta and
Melilla's enclaves, distancing theEuropean continent from the Moroccan
territory, and thus, from Africa. This tendency toseparate nation-states with
walls can be observed in every continent. Despite commercialliberalization and
an increasing flow of political speeches that appeal to the freedom
ofcirculation, developed countries are also engaged in this movement of barrier
proliferationthat checks and controls the circulation of social agents. To
better understand the conceptsunderlying these fences, I seek to insert them in
the constellation of security apparatusthat shape our late modernity.
Keywords: boundaries, "walls", immigration, Europe, stigma
Entre Agosto e Outubro de 2005, cerca de meio milhar de migrantes subsarianos,
que estavam acampados nas imediações dos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla,
situados no norte do território marroquino, protagonizaram um intento massivo
para escalar valas fronteiriças, e ultrapassar barreiras de alta segurança para
entrar em solo europeu2. Mais de quinze pessoas morreram baleadas ou ao caírem
de alturas de até seis metros. As autoridades espanholas e marroquinas
responsabilizaram-se umas às outras pelos assassinatos. As pessoas que caíram
do lado espanhol foram encaminhadas para os Centros de Estancia Temporal
deInmigrantes (CETI) de Ceuta e Melilla, enquanto outras tiveram destinos
variados de detenção e expulsão. Em Outubro do mesmo ano, uma equipa de
técnicos da Comissão Europeia visitou os enclaves de Ceuta e Melilla com o
objectivo de redigir um relatório sobre o controlo e a prevenção da imigração
ilegal em direcção ao continente europeu (European Commission, 2005). Neste
relatório, os redactores afirmam na primeira página que não tratariam dos
"acontecimentos trágicos" de Ceuta e Melilla, nem interfeririam na gestão da
fronteira por parte dos Estados marroquino e espanhol.
Historicamente disputadas, as Plazas de Soberanía3 vem passando por
transformações significativas desde a entrada de Espanha na Comunidade Europeia
(CEE), em 1986. A partir do momento em que se efectuou progressivamente a
"europeização" administrativa das fronteiras espanholas, o problema da gestão
de fluxos fronteiriços passou a ser não somente entre dois Estados-nação, mas
também entre dois continentes, o europeu e o africano. Por europeização
administrativa entende-se a sobreposição, além das políticas localmente e
nacionalmente aplicadas, de imposições vindas da organização peculiar que é a
União Europeia, em termos de segurança e gestão de fluxos migratórios no espaço
Schengen.
Antes disto, os territórios de soberania espanhola já representavam, de certa
maneira, resquícios do antigo protectorado espanhol (1912-1956) e das antigas
conquistas ultramarinas, cuja expansão começou nesta mesma região do
Mediterrâneo. Ceuta fora anexada por Portugal em 1497, porém em 1668, com um
primeiro Tratado de Lisboa, a cidade passou a fazer parte do domínio da Coroa
espanhola, assim como Melilla, que fora conquistada por Castela em 14974.
Esta conquista obedeceu aos princípios de combate, criação de fronteira e de
uma composição social de maioria cristã. Desde a ocupação da fortaleza em
Melilla, até ao começo do protectorado, instituiu-se a noção épica de uma
fronteira de vanguarda militar frente ao "infiel":
Desde o estabelecimento da fortificação espanhola em Melilla, antigo porto
fenício, cartaginense, romano e árabe, constitui-se uma larga relação de
fronteira entre os habitantes do enclave e as populações rifenhas que o
rodeiam. Esta população é conhecida desde fontes antigas como a confederação
tribal de Qal'aya (de fala rifenha, uma variante da língua tamazight).
Concretamente, o pequeno enclave se situa no núcleo da tribo de Imazzujan;
apesar disto, o mito fundador espanhol refere-se à instalação em 1497 das
tropas do duque de Medina Sidonia, dirigidas por Pedro Estopiñan, num espaço
abandonado [...] (Dieste, 2010, p. 78).
Se estas conquistas não determinaram o início da expansão transatlântica, elas
vieram pelo menos acrescentar aos paradigmas políticos da era medieval uma nova
componente: a fronteira5.
A história contemporânea destes dois territórios passou por uma reviravolta
recente. Sob efeito da pressão migratória e por causa do aumento consequente da
migração irregular, o governo espanhol decidiu, em 1993, cercar as duas cidades
com barreiras que, durante os anos noventa e dois mil, não pararam de ser
reforçadas e renovadas por novas tecnologias de controlo de fluxos, graças ao
financiamento da União Europeia (simultaneamente à formação da Frontex6). Foi
num contexto de cooperação económica crescente entre Marrocos e a União
Europeia, desde os anos 19907, que começou-se a construção das cercas de Ceuta
e Melilla. Enquanto as cercas deveriam servir para a contenção regulada da
circulação de migrantes, os pactos de cooperação económica abririam espaços
para possíveis implantações industriais e comerciais espanholas e europeias
(Ferrer-Gallardo, 2008, p. 305). Em volta de Melilla, as barreiras, altas de
três a seis metros, estendem-se por um perímetro de dez quilómetros e meio. Em
torno de Ceuta, acerca dupla atinge quase oito quilómetros, ao longo dos quais
se dispõem mais de trezentos agentes de polícia e seiscentos oficiais da Guarda
Civil espanhola. Tanto em Ceuta como em Melilla, as barreiras são
complementadas por lâminas e arames farpados, com vista a dissuadir qualquer
tentativa clandestina de passar por cima. Sem contar o aparato de segurança
multinacional que se desdobra na costa mediterrânica, a vigilância local é
garantida por cento e seis câmaras de vídeo, e um sistema de escuta e de
captação de movimentos por raios infra-vermelhos (Saddiki, 2009). O fenómeno
merece um tratamento sistemático para tentar compreender em que medida,
enquanto processo histórico, a construção destas barreiras faz parte de um
movimento global, e a que contradições sociais específicas correspondem estas
grades. Partindo de uma perspectiva global, é preciso considerar as várias
dimensões destas fronteiras cujos impactos ultrapassam as suas materialidades
localmente circunscritas, delimitando simbolicamente uma separação mais vasta
entre dois continentes, o europeu e o africano.
Fortificação da fronteira em Ceuta (Fotografia do autor)
Barreiras
O Mediterrâneo não é apenas uma divisão política, demográfica e económica, mas
também uma fronteira moral e ideológica que pode ser percebida como sendo a
barreira entre, de um lado, democracia e secularismo, e de outro, fanatismo
religioso e regimes totalitários. Esta percepção é culturalmente parcial, visto
que a distinção ou separação entre "nós" liberais e "eles" fanáticos opera-se
apenas de um dos lados de uma fronteira ideológica popularizada pela teoria do
choque de civilizações (Roeder, 2003). Por outro lado, o Mediterrâneo também é
mar que une socialmente, politicamente, culturalmente e economicamente uma
série de processos históricos nas regiões circundantes8. As cercas de Ceuta e
Melilla simbolizam uma separação. Por mais que não se limitem a esta única
função, as grades de Ceuta e Melilla visam controlar fluxos de actores não
estatais, nomeadamente o contrabando de mercadorias, e a imigração irregular de
pessoas que querem chegar a território europeu. Esta é a característica
essencial de todas as barreiras que ultimamente se têm erguido em muitas outras
fronteiras pelo mundo: a ameaça, o movimento a ser contido, já não é o de
Estados estrangeiros, mas sobretudo o de pessoas que se movimentam por conta
própria. A permissão de certos tipos de circulação em detrimento de outros é
garantida pelos check points disseminados na fronteira.
A reconfiguração funcional das fronteiras terrestres entre Espanha e Marrocos
caracteriza-se deste modo por uma permeabilidade selectiva. De um lado, a maior
permeabilidade de fluxos de capitais, e de outro, um maior controlo de certo
tipo de migração laboral, no contexto da implementação do System of
IntegratedExternal Surveillance (SIVE), que vigia toda a costa do sul de
Espanha, desde 2002, e as Ilhas Canárias desde 2005. Estes equipamentos são
capazes de denunciar qualquer movimento por sensores que detectam batimentos
cardíacos à distância. A implementação do sistema SIVE nas costas
mediterrânicas não implicou uma diminuição da circulação de pateras9, mas pelo
contrário, incentivou mudanças contínuas de trajectórias. Houve um aumento de
rotas pelo Oceano Atlântico (MIGREUROP, 2004), principalmente em direcção às
Ilhas Canárias em 2006, que desde então recrudesceu substancialmente até este
ano de 2011.
Nunca existiu uma linha política europeia única quanto ao regime de fronteiras,
que é melhor descrito enquanto negociação compósita entre instâncias políticas
que operam em diferentes paradigmas, dando uma multiplicidade de percepções
(Berg & Ehin, 2006, p. 54). Entre as características das fronteiras
exteriores da União Europeia, podemos identificar modos de governo e graus de
abertura. Nos "modos de governo", temos as seguintes instituições
correspondentes: a "Política Regional Europeia", o "Espaço Schengen", e a
"Política de Vizinhança Europeia"10. Estas três instituições se sobrepõem,
revelando contradições internas na gestão das fronteiras. A Política Regional
Europeia representa o paradigma político mais antigo, com implicações directas
para o regime de fronteiras. Esta política tem origem no Tratado de Roma de
195711, porém só seria posta em prática a partir de 1975 para controlar
disparidades económicas e regular os mercados dos países periféricos. A
política regional tem implicações nas fronteiras pois incentiva a promoção do
desenvolvimento socioeconómico em regiões periféricas, através de iniciativas
de contactos transfronteiriços. Nesta perspectiva da política regional, o
regime de fronteiras emergente estaria alinhado com o objectivo estratégico de
cooperação transnacional para reduzir desigualdades e exclusões. A política de
"corte de fronteiras" seria assim substituída pela política de "costura de
fronteiras", vendo a zona de fronteira como factor de integração. Um primeiro
problema é o facto de que a política regional europeia para as fronteiras dá
mais poder a actores regionais, fazendo com que aumentem os conflitos entre
autoridades nacionais ' com as suas prioridades securitárias ' e demandas
locais para um regime de fronteiras mais aberto.
O acordo de Schengen, assinado em 1985, não era no início integralmente
europeu, pois excluía alguns países da União Europeia. Progressivamente, foi
amplamente adquirido como princípio da própria União. O acordo trouxe um
segundo paradigma político com maiores implicações para as fronteiras. Assim
como a Política Regional, o acordo de Schengen tem o objectivo de fortalecer o
mercado único europeu. Porém, a ênfase não é a coesão, mas a segurança. Para
reduzir os riscos associados à livre circulação de pessoas, a União Europeia
aumentou o controlo nas fronteiras externas, harmonizou os vistos, as políticas
de asilo e migração, criou o Sistema de Informação de Schengen (SIS), e
implementou uma cooperação entre as polícias e autoridades jurídicas nacionais
(Berg & Ehin, 2006, p. 59)12. O incentivo para uma política europeia de
imigração pressupõe fechar firmemente as portas dos fundos, enquanto as da
frente ficam parcialmente abertas para a migração legal que possa ser de
interesse para a Europa, levando em consideração o grau de desenvolvimento do
país de origem do imigrante, assim como o seu grau de especialização laboral.
Há portanto um movimento em direcção a uma regulação supranacional das
fronteiras externas: a europeização da legislação sobre fronteiras ficou
evidente com a incorporação do tratado de Schengen enquanto acquis
communautaire indispensável para os Estados membros, com a proposta fundamental
de estabelecer um "corpo comum de fronteira europeia", que não seria mais
controlado pelas autoridades nacionais. Esta ideia de corpo comum encontrou
oposição por parte de vários países membros. No entanto, as origens
intergovernamentais do tratado deixam claros os compromissos nacionais para a
implementação desta rede de segurança, e cada país é responsável pela protecção
das suas fronteiras. Assim, a vigilância nas fronteiras tem uma sobreposição de
políticas nacionais e supranacionais. Para garantir este factor comunitário, é
pela Frontex que a União Europeia financia o treino e as operações de controlo
migratório nas fronteiras de cada novo Estado membro.
O terceiro paradigma é a Política de Vizinhança implantada desde 2003 pela
Comissão Europeia. Em contraste com Schengen, que pressupõe o reforço de
fronteiras espacialmente delineadas, esta nova política que se vem adicionar às
duas anteriores vê as fronteiras como sendo móveis e fluidas. Ela oferece aos
Estados vizinhos financiamentos em infra-estruturas, pedindo em troca reformas
tangíveis nas suas políticas internas. Os "condicionalismos" são noções
centrais desta política de vizinhança, onde a abertura e a suavização das
fronteiras seriam recompensas aos vizinhos que se mostrem tendencialmente
cooperantes com a União Europeia: vizinhos bem comportados e politicamente
docilizados ganham a recompensa de melhores oportunidades de mercado num
ambiente político de estabilidade. Há portanto um alargamento dos limites
legais da União, sem que isto implique uma abertura institucional
significativa. A política de vizinhança fornece uma margem de manobra maior
para o alcance dos objectivos geopolíticos da União Europeia, com esquemas de
governabilidade externa. Por um lado, isto mostra um maior reconhecimento de
uma interdependência política entre vizinhos. Por outro, esta iniciativa parece
ser conduzida por um sentimento de insegurança: com o alargamento, há novas
zonas vizinhas que são consideradas como potencialmente perigosas, e a política
de vizinhança é um esforço para controlar esta insegurança directamente nos
países que não são membros da União Europeia13.
Para ilustrar aquilo que pode ser compreendido como graus de abertura ou uma
permeabilidade controlada e/ou selectiva na fronteira, olhemos para um caso
paralelo ao dos enclaves de Ceuta e Melilla, mas que representa, pelo
contrário, uma extensão do império britânico no Mediterrâneo: Gibraltar. A
soberania contraditória de Gibraltar deriva do mesmo facto de se tratar de um
enclave no meio de um país estrangeiro. Nos discursos de mito nacional
britânico, Gibraltar "tornou-se metáfora de solidez e permanência" (Stanton,
1994, p. 174). Em algum sentido, Gibraltar representou para os britânicos o
começo das suas missões imperiais, assim como teria sido a conquista de Ceuta
para os países ibéricos, e por extensão, para a Europa. A identidade de
Gibraltar ainda se debate com este aspecto British de ser, pela formação de uma
população de origem migratória complexa, que não se declara ferozmente atraída
pela coroa inglesa. Entre muitas comunidades de trabalhadores, a marroquina é
actualmente uma das mais activas. Se tivermos em conta o passado de Gibraltar,
notamos as mesmas qualificações atribuídas aos espanhóis, que vindos das
cidades andaluzas vizinhas, ofereciam grande parte da força de trabalho vendida
em Gibraltar nos finais do século XIX:
O trabalho convicto [de britânicos] que tem sido usado em Gibraltar chegava ao
seu fim em 1875 por razões económicas. Trabalhadores livres espanhóis eram duas
vezes mais produtivos que os convictos e os salários que eles recebiam somavam
menos do que os custos para manter os convictos. Esta força de trabalho
adicional espanhola, assim como os transportadores de carvão, vinham da cidade
de La Línea, do outro lado da fronteira [...] La Línea era a classe
trabalhadora do distrito rico de Gibraltar [...] os salários que esses homens
recebiam eram cerca de um quinto dos níveis correspondentes na Bretanha, mas
eram no entanto bons para o padrão da região, sendo três vezes maior do que a
renda usual para o trabalho agrícola na Andaluzia (Stanton, 1994, p. 180).
É importante prestar atenção a este paralelo estrutural: esta função do
trabalho de La Línea para Gibraltar nos finais do século XIX é a mesma do que a
das cidades marroquinas vizinhas dos enclaves de Ceuta e Melilla actuais. Mais
além, podemos identificar um paralelo idêntico que não envolve a venda da força
de trabalho, mas de mercadorias contrabandeadas:
No final do século até o governo britânico começou a se preocupar com a escala
do problema [do contrabando]. Em 1876, soube-se que vinha de Gibraltar quatro
vezes mais tabaco ilegalmente para Espanha do que aquele distribuído pelo
próprio governo espanhol. Dizia-se na altura que a introdução de uma taxa no
tabaco de Gibraltar seria um meio efectivo para combater o contrabando. Mas a
indústria de tabaco gerava cerca de 1450 empregos em Gibraltar naquela altura,
e qualquer medida directa contra os contrabandistas de tabaco arruinaria a
própria indústria local (Stanton, 1994, p. 183).
Consideremos portanto estes pontos comuns como recuos esclarecedores que podem
nos ajudar a compreender as funções estruturais desempenhadas pelas cercas de
Ceuta e Melilla no quotidiano dos trabalhadores locais, comerciantes, e para os
aparelhos de Estado nacionais ou supranacionais.
Enquanto a política nacional espanhola reforça as barreiras europeias, ela não
pode ignorar os apelos para uma abertura minimamente controlada para a
interacção das populações locais que circulam nos dois lados nacionais das
fronteiras de Ceuta e Melilla. A Espanha negociou a implementação de um visto
excepcional para o fluxo fronteiriço nestes dois enclaves, dando a oportunidade
aos habitantes das cidades marroquinas de Tetuán e Nador de obterem uma
permissão de residência de um ano nos enclaves espanhóis, sem lhes conceder
visto automático para entrar no continente europeu. Isto facilita o movimento
diário de passagem na fronteira de vários trabalhadores que transportam
mercadorias de um lado para o outro, e trazem a sua força de trabalho para
estas cidades espanholas. Esta abertura não declarada não é produto de um
acordo bilateral entre Espanha e Marrocos, mas sim de uma negociação entre o
Estado espanhol e as autoridades europeias que controlam as fronteiras
continentais. Como uma consequência deste "chapéu-de-chuva jurídico" que é a
circulação entre Tetuán e Ceuta e entre Nador e Melilla, há uma grande migração
interna em Marrocos, de pessoas que pretendem instalar-se em Tetuán para
poderem ter a oportunidade deste "passe-livre" (Ferrer-Gallardo, 2008, p. 307).
Os preços de passaportes marroquinos com morada em Tetuán ou Nador, no mercado
negro, também aumentaram vertiginosamente.
Assim como na fronteira EUA-México, as fronteiras de Ceuta e Melilla têm o
duplo objectivo de garantir os benefícios da globalização, e ao mesmo tempo de
controlar os efeitos nefastos desta mesma globalização, que seriam os fluxos
transnacionais indesejáveis. Não há, nesta organização política de fronteiras,
nenhuma incoerência ou contradição teórica de duplo objectivo: a garantia de
uma estrutura capitalista e o controlo espacial de actores não estatais fazem
parte de uma mesma lógica, onde as relações de poder se encontram, de maneira
inerente e em escala internacional, no espaço da contradição entre trabalho e
capital. Enquanto territórios únicos que providenciam fronteiras terrestres
entre a União Europeia e a África, os enclaves de Ceuta e Melilla também são
ímanes para candidatos à migração irregular vindos de todo o continente
africano (é importante lembrar que a maior parte desta migração é oriunda de
países subsarianos). Apesar da crescente militarização nestas fronteiras, as
tentativas de passagem persistem e de inúmeras maneiras. Além do assalto
colectivo, há estratégias como esconder-se dentro de veículos que passam pelos
postos fronteiriços, abrir buracos nas grades, e principalmente entrar a nado
numa das baías, partindo de uma praia marroquina (MIGREUROP, 2009).
Mas a noção de permeabilidade evidencia-se também pela circulação de bens. O
estatuto de porto livre de Ceuta e Melilla, e uma localização estratégica, dão
vazão a uma "hipertrofia" do sector comercial. A economia informal garante uma
circulação mais abrangente de bens entre os enclaves e as cidades marroquinas
mais próximas. Em Ceuta, não há regulamento estrito que regule a circulação de
bens entre os dois países. O facto de o Estado marroquino perceber a fronteira
deste enclave como sendo ilegítima não permitiu o estabelecimento de
interacções comerciais inteiramente "normalizadas". Três tipos de práticas de
contrabando existem portanto nestas fronteiras: um contrabando de tabaco,
álcool e electrodomésticos passados esporadicamente por trabalhadores
estrangeiros, estudantes, e principalmente espanhóis ou marroquinos que têm
facilidades para entrar e sair dos enclaves; um "contrabando de subsistência",
que consiste num atravessar ilícito de bens de consumo como chocolate, leite,
perfumes ou baterias, por parte de marroquinos que habitam as cidades mais
próximas dos enclaves, e atravessam a fronteira várias vezes por dia; e por
último, há um contrabando de larga escala de equipamentos electrónicos, feito
por redes de profissionais (Hajjaji, 1986).
Se a implementação da zona de livre comércio não tem consequências económicas
que vão muito além de impactos na própria localidade, o interesse europeu pela
contenção da imigração irregular atinge grande parte dos países africanos.
Nesta longa duração de fronteiras que tiveram ao longo do tempo várias funções
diferentes, criou-se, por políticas económicas sucessivas, a distinção entre
dois mundos, que no entanto estão cada vez mais interdependentes no nível da
troca e dos contactos culturais. No seio desta interdependência, porém,
persistem conflitos na ordem do discurso histórico que impõem uma certa visão
patrimonial mais agressiva nestas zonas de fronteira, para legitimar a presença
espanhola em cidades que têm suas soberanias contestadas14. É por isso que a
tensão comercial e as trocas subsequentes se desdobram numa paisagem de
conflito político entre "dois mundos" vizinhos.
A "fortaleza europeia"
A "fortaleza europeia" é um termo de denúncia política contra abusos policiais
nas novas fronteiras europeias, que só mais tarde seria aplicado nas ciências
sociais como conceito. Sua validade epistemológica é no entanto discutível, por
nunca ter sido totalmente aprovado e/ou benquisto em certos círculos
académicos, que consideram que o termo não contempla os meios mais flexíveis de
controlo migratório, ou a própria agência dos migrantes irregulares. O uso do
termo neste artigo tem por objectivo lançar o debate sobre a sua validade
científica, e logo, a legitimidade do seu uso em espaços que não são
inteiramente políticos. Além das barreiras materiais, as fronteiras da
"fortaleza europeia" são também invisíveis. Diluem-se através da complexidade
dos aparelhos burocráticos, dos sistemas de vigilância, das reformas
legislativas das identidades nacionais, na invisibilidade social do trabalhador
"sem papéis", na ilegalização destes últimos, na racialização dos problemas
sociais (Calavita, 2005), na tecnologia crescente dos modos de identificação
biométrica (Frois, 2008), e na estigmatização activa, por parte de alguns
sectores políticos, de certas pessoas como fazendo parte de uma "horda de
invasores" que vieram corromper um corpo social que, supostamente, teria sido
puro ou alguma vez intocado. Para pôr em perspectiva a construção das barreiras
de Ceuta e Melilla com toda uma lógica continental, e global, contextualizo
alguns aspectos securitários da política de controlo de fluxos por parte de
organizações estatais e supranacionais. A maior parte destes controlos são
efectuados nos "nós" críticos de trânsitos internacionais, como os portos, as
estações ferroviárias, rodoviárias, e os aeroportos. Podemos relacionar esta
situação com a disposição actual dos Centros de Estancia Temporal de
Inmigrantes15 de Ceuta e Melilla, onde desdobram-se diversas actividades de
intervenções militares e terapêuticas, sempre no exercício de confinamento de
migrantes que, uma vez interceptados pelas autoridades espanholas, ficam à
espera da obtenção de um estatuto de refugiado para não serem repatriados,
vivendo num limbo jurídico: eles estão suspensos numa fase transitória de
identidade (Mountz, Wright, Miyares and Bailey, 2002). Este não é um caso que
se restringe aos enclaves de Ceuta e Melilla ou às Ilhas Canárias, mas que se
encontra em diversos pontos de abrangência da chamada "fortaleza europeia":
Campos_de_refugiados_e_centros_de_detenção_de_imigrantes_irregulares_espalhados
na_Europa_e_na_zona_do_Mediterrâneo.
Existe uma tendência comum, na Europa do sul e que é particular, de países que
ao se alinharem nas políticas de integração europeia, passaram por uma mudança
estrutural em termos de gestão de fluxos: esses países que eram origens de
emigração, passaram rapidamente a ser acolhedores de imigrantes. Uma segunda
constatação é que essas mesmas nações vêem-se a administrar um novo fluxo de
migrantes oriundos de suas antigas colónias: trata-se da "presença em antigas
metrópoles imperiais de populações diaspóricas das outras colônias e que,
juntamente com seus filhos e os filhos de seus filhos, funcionam como incômodos
"lembretes do império"" (Feldman-Bianco, 2002, p. 386).
Não se pode, contudo, confundir precedentes mais longínquos de qualquer
política de fronteira como estando directamente relacionada com o que podemos
chamar de "fortaleza europeia". Esta refere-se explicitamente ao fechamento das
fronteiras exteriores do continente numa política de segurança supranacional.
Mais especificamente, duas características devem ser consideradas para a
compreensão da "fortaleza europeia", e da função das barreiras de Ceuta e
Melilla enquanto dispositivos materiais da sua fortificação. Primeiramente,
desde a implantação do espaço Schengen, que é completamente adquirido pelos
Estados membros a partir de 1999, os casos mais recorrentes de mortes por
tentativa de chegada clandestina no continente europeu concentram-se sobretudo
na região do Mediterrâneo16. Em segundo lugar, com a política de vizinhança
mais recente, as implicações dos controlos de fluxos passaram geograficamente
muito além das fronteiras imediatas do território europeu. Incapaz de controlar
as suas fronteiras contra fluxos transnacionais indesejáveis, a União Europeia
empreende a passagem da função de controlo de fluxos para países terceiros, de
onde a maioria dos imigrantes são oriundos: há uma externalização das
fronteiras, que alcança países subsarianos. Ao assinarem acordos para o "co-
desenvolvimento", esses países vêem-se forçados a controlar uma imigração que é
tratada como ilegal antes mesmo de existir17. Nesta mesma lógica, o "estatuto
avançado" oferecido ao Estado marroquino em 2008 faz parte de uma recompensa
dada pelo empenho das suas forças policiais nacionais no combate contra a
imigração ilegal18. Se o primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero
felicitou-se em 2009 pela redução de mais da metade de chegadas de "ilegais"
pelo mar em Espanha, isto não significa que haja menos mortes no deserto ou
maus tratos dispensados por agentes de outros Estados. Com a remodelação
constante das rotas de fluxos, que se adaptam a cada nova medida de segurança,
é possível perguntar-nos em que medida os muros de Ceuta e Melilla não se
tornam, no aspecto do controlo migratório, cada vez mais obsoletos. Mudando as
rotas, envolvendo polícias multinacionais, intervenções militares e
"preventivas", a externalização das fronteiras constitui uma fortificação
europeia cujas barreiras são um elemento que se torna cada vez menos prático e
mais simbólico. Uma outra dinâmica é encontrada no entanto numa série de campos
de refugiados e de detenção de imigrantes irregulares, lugares estes onde a
distinção entre refúgio e detenção apaga-se nas práticas de confinamentos,
legais ou ilegais.
Fronteiras da soberania
Para compreender as implicações da fronteira entre Marrocos e Espanha, não
podemos ignorar as implicações históricas da presença colonial da Espanha em
Marrocos (1912-1956). Na primeira década do século XX, o sultanato entrou em
crise devido a dívidas externas e pressões estrangeiras. Muitos países europeus
foram associados à partilha diplomática da tragédia marroquina, mas foram os
Estados de França e Espanha que receberam partes de Marrocos sob formas de
protectorados (Wesseling, 2009, p. 266). Neste período, os territórios de Ceuta
e Melilla separavam os territórios norte-africanos sob soberania espanhola, do
norte marroquino sob "protecção" espanhola. Esta distinção explica em parte por
que estes enclaves permaneceram sob domínio espanhol depois do fim do
protectorado franco-espanhol de Marrocos, em 1956. Porém, uma ambiguidade
deriva do facto de as fronteiras terem sido "atenuadas" durante todo o período
do protectorado, quando de facto as duas cidades não se distinguiam do resto do
território da "África espanhola". Desde então, Ceuta e Melilla são vistos pelo
Estado marroquino como sendo parte integral do território marroquino, e que
estão por ser descolonizados.
Nos últimos dez anos, o Estado marroquino tem erguido a voz contra a presença
espanhola no território19. Para Espanha, não se trata de uma ocupação, visto a
ancestralidade da presença castelhana desde os períodos da Reconquista. Em
Abril de 2010, uma tensão diplomática ocorrera quando a aduana marroquina pôs,
num edifício oficial na fronteira com Melilla, um cartaz a classificar a cidade
como sendo ocupada:
Redigido em árabe e em castelhano, o cartaz adverte aos melillenses da
necessidade de se renovar a licença de importação dos seus veículos em
Marrocos, sob pena de pagar uma multa. Mas a palavra "ocupada" para descrever a
situação de Melilla provocou as iras do Governo da cidade e do Partido
Popular20 (tradução do autor).
Em ambos os casos, parece haver pouco "diálogo" entre administradores estatais.
Há porém, através dos meios de comunicação social, discursos unilaterais em
cada país, acusando o vizinho de estar equivocado quanto ao estatuto
geopolítico das cidades. Estes discursos unilaterais ficam ainda mais patentes
ao analisarmos duas versões jornalísticas de um mesmo "facto", também recente:
a visita dos reis de Espanha aos enclaves em Novembro de 2007. Os
administradores de Ceuta e Melilla há muito tempo pediam uma visita do rei de
Espanha aos enclaves, para reafirmar a soberania nacional num acto simbólico
cujo protagonista é a coroa:
[...] os presidentes das duas cidades autónomas manifestavam seu interesse pela
visita dos monarcas em Ceuta e Melilla. Uma reclamação e um convite foram
realizados cada vez que tiveram a oportunidade. Inclusive deixaram-no patente
no encontro que tiveram com o Rei no palácio da Zarzuela, em Novembro de 2005,
quando as avalanches de subsarianos sobre as duas cidades revelaram a entidade
do problema migratório [...]21 (tradução do autor).
Neste mesmo artigo, o jornal lembra que a visita prevista do rei espanhol aos
enclaves poderia eventualmente provocar descontentamento na sociedade
marroquina. Mas lembra também que era por este motivo que a viagem se tinha
mantido até então secreta. E assegura, citando o porta-voz da coroa, que esta
visita não causaria problemas na "boa relação de Marrocos com Espanha". O tom
não é o mesmo do lado de um jornal marroquino de grande circulação:
Um "não" franco e maciço à visita controversa iniciada ontem a Sebta, pelo rei
de Espanha Juan Carlos nos presídios marroquinos ocupados. Foi o que expressou,
ontem, o Estado marroquino, governo, deputados, conselheiros e actores
associativos inclusive. O tom foi dado, ontem, pelos eleitos do Parlamento,
deputados e conselheiros, que, no âmbito de um "sit-in" em frente à embaixada
de Espanha em Rabat [...], entregaram uma carta de protesto ao embaixador
espanhol Luis Planas Puchades. "Enquanto parte do Estado marroquino,
denunciamos esta visita provocadora do Rei de Espanha Juan Carlos às cidades
marroquinas ocupadas de Sebta e Melilla", podemos ler nesta carta. "Esta visita
ofende os sentimentos marroquinos, e afecta gravemente as relações de boa
vizinhança entre as duas coroas", põem em guarda os deputados, que reafirmaram
na mesma ocasião a ligação com todos os marroquinos das cidades ocupadas22
(tradução do autor).
Temos portanto duas versões, discordantes, que giram em torno do que podemos
chamar de questão de soberania. Do lado marroquino, a oposição à presença
espanhola nas cidades eleva o teor do problema de soberania, ao classificá-la
de "incongruência colonial", invocando o anacronismo de uma África espanhola.
Esta não é a primeira vez que ocorreu um incidente diplomático tornado público
a nível internacional, como no caso de Perejil em 2002. Como Melilla, Ceuta, e
algumas ilhas em águas marroquinas, Perejil (situada no estreito de Gibraltar,
a 200 metros da costa marroquina) é outra possessão espanhola que escapou da
descolonização. Assim como na crise das ilhas Falklands e Malvinas23, mas em
miniatura, o problema aconteceu quando tropas de elite espanholas desembarcaram
na ilha desmilitarizada de Perejil e capturaram uma dúzia de soldados
marroquinos que ali tinham estabelecido um posto de observação alguns dias
antes (Hansen, 2004, p. 54). Com uma breve importância mediática, o caso de
Perejil teve pouca importância diplomática. No entanto, é um caso significativo
da persistência de desentendimentos clássicos em torno de territórios de
fronteira.
Analisando o debate jornalístico de forma objectiva, é possível anotar alguns
pontos para a compreensão da estrutura política na região. Podemos notar, do
Mediterrâneo até ao Saara ocidental, uma sequência em cadeia de problemas de
jurisdição territorial. Do Saara ocidental, que já foi domínio espanhol (Marks,
1976)24, aos enclaves de Ceuta, Melilla e Gibraltar, há uma série de conflitos
diplomáticos que não são independentes uns dos outros. A hesitação por parte do
governo espanhol em mediar uma solução para o exílio da activista sarauí
Aminatu Haidar em 2010 deveu-se, por um lado, ao facto de Espanha possuir
territórios contestados no espaço marroquino e, por outro, à dependência
crescente, por parte de Espanha e da União Europeia, das acções das autoridades
marroquinas para a contenção dos fluxos migratórios no seu território25. Daqui
deriva a segunda grelha de análise dessas matérias mediáticas, tão diferentes
em tratar de um mesmo acontecimento, que foi a visita do rei de Espanha a Ceuta
e Melilla. Cada discurso nacional, espanhol e marroquino, aponta para problemas
diferentes, como se não estivesse a tratar de uma mesma situação. Nos diversos
textos temos como cenário um problema de soberania, legítimo ou contestado.
Novos tipos de fronteira
A função das cercas de Ceuta e Melilla é a de impedir qualquer circulação
irregular, ou seja, a de controlar o tráfico em geral (de armas, de drogas e
mercadorias contrabandeadas) e a entrada em certo território de pessoas
indesejadas por conta da sua nacionalidade e consequentemente de uma suposta
propensão ao crime e à vadiagem. Face a este discurso, Wendy Brown (2009)
contrapõe duas vertentes: uma primeira vertente é a de que as barreiras
construídas em diversas fronteiras, nesta mesma função de impedir a circulação
de agentes indesejáveis, são ineficientes. Os poderes reguladores fazem com que
as barreiras sirvam de filtro com maior ou menor abertura, consoante for a
necessidade da economia flutuante, seja ela formal ou informal. Em segundo
lugar, e mais importante, é que o aparecimento exponencial de barreiras no
globo terrestre seria um sintoma de "desassociação" entre a "soberania" mais
clássica e o modelo político de Estado-nação. Neste sentido, segundo Wendy
Brown, as barreiras simbolizam uma viragem histórica nas relações políticas, em
que o modelo cultural hegemónico, o Estado-nação, está a transformar-se: a
soberania que antes lhe estava associada está lentamente a deslocar-se para se
pôr na sujeição da economia política ou da religião. Estes fenómenos culturais
e sociais não estatais posicionam-se acima de qualquer norma jurídica, pela
qual têm desprezo. Encontramos várias barricadas, e passagens, que separam
homens de negócios de grandes voos, viajantes ordinários, e aspirantes à
entrada julgados suspeitos por causa da sua origem ou aparência. Esta
"estratificação dos fluxos" de viajantes articula-se numa abertura de geometria
variável das barreiras: enquanto uns têm o benefício de um alargamento de uma
espécie de cidadania transnacional, para outros há, pelo contrário, uma redução
da sua condição de cidadão pelo mesmo processo conjunto de liberalização
económica e incremento da segurança nacional (Sparke, 2006, p. 152).
Temos portanto três tipos de processo: abertura e bloqueio; universalização
acompanhada de exclusão e estratificação; poder virtual em rede e barricadas
físicas. Não entra em questão, como vimos, a defesa da soberania de um Estado
frente a uma possível invasão de um Estado-nação vizinho ou inimigo. Essas
barreiras têm como alvo actores não estatais e transnacionais, como indivíduos,
grupos, organizações, movimentos e indústrias. Como estes muros formam-se muito
depois das convenções do tratado de Westphalia (Balibar, 2004), que foram
precursoras da futura formação do Estado-nação enquanto modelo global, Wendy
Brown classifica-os de sinais de um mundo "pós-westphaliano". Devemos aqui
considerar o prefixo "pós", que significa uma situação de posterioridade dentro
da qual as condições do passado continuam a configurar o presente. Numa ordem
pós-westphaliana não são os Estados soberanos que se encontram excluídos pelas
barreiras, mas sim os seus actores não estatais. Neste sentido, seria o
enfraquecimento da soberania estatal, e mais precisamente a "disjunção" entre a
soberania e o Estado-nação, que forçaria os Estados-nação a construírem estas
barreiras (Brown, 2009, p. 17). Num mundo contemporâneo em que aparecem cada
vez mais reivindicações independentistas ou até em que se assiste à criação de
novos Estados-nação (como por exemplo, o Kosovo), não podemos iludir-nos e
considerar que existe uma crise ou queda dos Estados-nação. O argumento central
deste artigo é o de que a construção de uma série de barreiras contradiz de
forma pragmática a ideia de um declínio do modelo de Estado moderno.
Os fluxos transnacionais (de pessoas, mercadorias, capitais, bens, ideias), a
violência e as redes políticas e religiosas minam a soberania, pois as suas
características são as de atravessarem fronteiras, mas não só. Uma vez
atravessadas, essas forças tornam-se potências no interior do território novo:
não há desterritorialização sem uma reterritorialização posterior. A soberania
do Estado-nação também é minada pelo neoliberalismo, que só reconhece a
soberania das decisões tomadas pelas empresas, substituindo critérios jurídicos
e políticos por mercantis, e reduzindo o soberano político ou governante à
função de gestor administrativo. Também o é, pelo aumento dos poderes de
instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional ou a
Organização Mundial da Saúde ou do Comércio. As barreiras específicas de Ceuta
e Melilla envolvem constelações pós-nacionais, e separam as zonas ricas das
zonas pobres do planeta: o direito e a política são incapazes por si só de
controlarem as múltiplas potencialidades liberadas pela globalização.
A separação de centros e periferias por barreiras dentro de cada conglomerado
urbano é também um problema exponencial tratado por uma nova antropologia
social das gated communities (Low, 2003, p. 387). As separações por barreiras
materiais destes espaços são uma tendência global (Van Houtum & Pijpers,
2005), e o recurso ao controlo e à vigilância tende a querer remediar uma
situação de "ingovernabilidade" (Foucault, 1976, p. 124). Considerando o
incremento do aparato de vigilância das barreiras, há o desmoronamento da
distinção entre controlo interno e controlo externo, entre polícia e exército,
entre sujeito e pátria, vigilantes voluntários e Estado, e confusão entre
criminosos internos e inimigos externos: a barreira tem esta dimensão irónica
de confundir a identidade local enquanto seu objectivo mais declarado seria o
de maior delimitação entre o "nós" e o "eles", entre o que é de dentro e o que
está fora da nação. Apesar da sua presença física massiva, as novas barreiras
funcionam frequentemente na forma de espectáculo, projectando a imagem de um
poder político soberano com a sua nação assegurada por estas mesmas fronteiras.
Esta encenação deve-se ao facto de a própria nação, cujo Estado erige a
barreira na sua fronteira, depender em certa medida da manutenção destes fluxos
que a ultrapassam, como por exemplo a mão-de-obra barata e o comércio informal.
Esta "desassociação" dos poderes soberanos em relação ao Estado-nação
compromete não só a segurança dos sujeitos, mas também um imaginário de
identidade individual e nacional que se apoia nas noções de horizonte e
limitação de um espaço cultural. O espaço delimitado pelas fronteiras deve ser
um espaço de jurisdição independente: em relação ao exterior, a soberania é
poder de autodeterminação, e em relação ao interior, um poder de decisão
derivado do contrato social. Contrariamente à ideia aristotélica segundo a qual
a vida política seria natural para o homem, e a polis a forma de vida "própria
da humanidade", para a teoria do contrato social o "político" nasceria de uma
condição ontológica não política, por meios artificias. O contrato social
constituiria o fim temporal e o limite espacial da soberania da natureza ou de
Deus, e inauguraria uma forma humana no domínio político. Para realizar a sua
autonomia, a soberania deve, no plano interno, sujeitar os poderes susceptíveis
de rivalizar com ela, ou aniquilá-los. A autonomia do político, expressa na
soberania, implica uma pretensão à dominação política ou à contenção de outros
poderes, principalmente económicos ou religiosos (Elias, 1978).
A soberania política não é o equivalente do Estado. Ao contrário, é uma
formação teológica ou "ficção material", sempre uma "aspiração", mesmo se for
irrealizável: "todos os conceitos geradores da teoria moderna de Estado são
conceitos teológicos secularizados" (Schmitt, 2008, pp. 46-48). Com um declínio
da soberania política, há uma "descontracção" de outras forças sociais que
enfraquecem a soberania do Estado-nação, que para se defender assume e afirma o
seu carácter vigilante de maneira aberta e agressiva, como é o caso das
barreiras nas fronteiras.
Uma dessas forças sociais, o capital, aparece como soberano global (Comaroff
& Comaroff, 2000): é fonte primordial da organização social; é autónomo,
pois não presta contas a ninguém; adapta-se a qualquer forma política ou
cultural (Sahlins, 1999); desconhece fronteiras ou territórios. Há uma
ascendência do capital como soberano universal, contra qualquer outra forma de
poder. Porém, a sua acção não toma uma forma "decisionista". O aspecto
decisionista só pode emanar de alguma pessoa ou organização que encarna a
soberania política. Neste contexto, os Estados encarnam esta função
administrativa da força de contenção, e de coerção. Os Estados não estão
enfraquecidos, pelo contrário, reemergem enquanto forma pós-soberana de poder.
Por estes mesmos dispositivos, assistimos a uma "renacionalização" da vida
política. Entre todos os aspectos, não há nada que incite mais o nacionalismo
do que a imagem fantasmagórica de "hordas" de imigrantes a violar as fronteiras
nacionais. Se as populações exigem a construção de barreiras nas fronteiras, é
porque têm medo: medo de perder a segurança física, material ou identitária. Um
sujeito ameaçado é um sujeito reactivo: a barreira encontra-se nesta
intersecção entre o Estado e o sujeito.
É neste contexto que, como resposta às ameaças dos fluxos indesejáveis, mas em
demanda26, as novas barreiras estatais, entre as quais as de Ceuta e Melilla,
militarizam os conflitos contra os quais querem responder. No caso de Ceuta e
Melilla, a construção das barreiras mostra como os "conflitos" de segurança
normalizados passam para as margens de um território soberano. Há uma espécie
de reconfiguração destas mesmas margens, como nos casos dos muros de Caxemira,
nas terras avançadas da Cisjordânia ou na apropriação do Saara ocidental por
Marrocos. Esta reconfiguração territorial é também uma performance política,
que consiste em teatralizar a solução de problemas mais complexos. Incompetente
nos seus objectivos, faz com que os fluxos se adaptem em novas rotas, mais
perigosas.
Conclusão
As várias dimensões das fronteiras de Ceuta e Melilla, ou seja, nacionais,
continentais e culturais, não são fruto da construção recente das suas
barreiras, mas têm uma longa história que se inicia com o período da
reconquista e da expansão de poderes a partir da península ibérica. No entanto,
a construção material de barreiras nestes enclaves participa do contexto de
criação de uma Europa face ao continente africano. A união política desta
Europa se constrói a conjugar atitudes de abertura e de fechamento das suas
fronteiras que podem parecer contraditórias. É dentro desta dinâmica entre
encerramento e abertura que uma fortaleza burocrática e cultural foi
rapidamente construída com o uso de discursos ancestrais, e métodos modernos de
vigilância. Sobrepõem-se, e direccionam-se por outros caminhos, argumentos
nacionalistas tanto em Espanha como em Marrocos sobre a disputa destes
enclaves, e a gestão burocrática de fronteiras supranacionais cuja tecnologia
de vigilância tem o respaldo de interesses europeus. Longe das metrópoles, os
corpos são disciplinados, e conjuntos de pessoas são seleccionados através de
uma rede montada por aparelhos de Estado com sobressaltos ideológicos
conjunturais. Eis que as barreiras construídas nas fronteiras de Ceuta e
Melilla não constituem uma situação idêntica às outras, mas numa política de
coerção dos movimentos por uma multiplicidade de métodos podemos encontrar uma
série de semelhanças estruturais. A existência dessas barreiras em Ceuta e
Melilla não contradiz a economia política contemporânea, no sentido em que não
está essencialmente contra uma certa lógica de circulação controlada, onde
certos fluxos têm privilégio de passagem e permanência por fronteiras, em
detrimento de outros.
A afirmação de que imperativos de segurança incitam a fortificação, também é
duvidosa. Hoje, a segurança não exige a restrição, mas pelo contrário, a
circulação: o alarme e a vigilância são mais importantes do que muros
blindados. Eis o sentido das "barreiras" de Ceuta e Melilla, que afinal são
grades para se poder ver o que se passa do outro lado.