Porque prevaleceu a paz?: Moçambicanos respondem
Lucia van den Bergh. Porque prevaleceu a paz? Moçambicanos respondem.
Amesterdão/Maputo: AWEPA. 2009. 143 pp. (também disponível no website http://
www.awepa.org)
Gabriel Mithá Ribeiro (Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) - CEA-IUL)
mitharibeiro@gmail.com
Um livro bom e mau
A 4 de Outubro de 1992 foi ratificado formalmente o Acordo Geral de Paz entre a
FRELIMO, então no governo, e a RENAMO, então movimento rebelde, que pôs termo a
dezasseis anos de guerra civil que terão ceifado a vida a pelo menos um milhão
de moçambicanos. De então para cá a paz e o multipartidarismo mantêm-se em
Moçambique. Lucia van den Bergh, representante da AWEPA (Association of
Europeans Parliamentarians for Africa) em Moçambique entre 1992 e 1998,
precisamente o período de transição do monopartidarismo e da guerra para a paz
e o multipartidarismo, tomou a iniciativa de, uma década depois (2008),
regressar ao terreno para fazer o balanço desse processo do qual resultou o
livro (Porque prevaleceu a paz? Moçambicanos respondem, Amsterdam/Maputo:
AWEPA, 143 págs.). O texto, que retrata a evolução de um dos casos de sucesso
na África contemporânea, é suportado em entrevistas com actores relevantes
envolvidos (sobretudo locais, mas também internacionais, como a própria autora)
nesse processo de transição.
Se a iniciativa é louvável, o conteúdo do livro oscila entre o bom e o mau.
Comecemos pelos aspectos positivos. Encarado na perspectiva de um testemunho
pessoal, trata-se de um documento com o valor acrescido de ser suportado numa
assinalável diversidade de testemunhos que a autora insere numa lógica
argumentativa eficaz. Com algumas gralhas ao nível da escrita em português
(facilmente corrigíveis), globalmente o livro é bem escrito e de leitura
bastante fluente.
Todavia, a tentação valorativa e parcial da autora, ao fim de poucas páginas,
transforma o texto de instrumento que analisa uma dada realidade empírica, em
objecto que merece, ele próprio, ser analisado dado suscitar sérias dúvidas
interpretativas. Em primeiro lugar, a argumentação de Lucia van den Bergh paira
numa ambiguidade prejudicial entre a perspectiva pessoal e a apreciação
escudada numa capa institucional (a da AWEPA). A última implica um cuidadoso
distanciamento crítico, tanto mais exigível quanto mais sensíveis forem as
situações geridas por uma organização dessa natureza. Em última instância,
acaba por estar em causa a perspectiva institucional da União Europeia sobre um
fenómeno concreto. O livro em apreço é pouco escrupuloso a esse nível. Sobra
uma identificação por excesso com uma das partes (a do governo da FRELIMO) e
por defeito com outra das partes (a do ex-movimento rebelde, a RENAMO). Tal
tendência remete não só para o passado da guerra em Moçambique, mas ousa
insinuar sobre o futuro: "Negar a natureza cruel da guerra e o modo como ela
começou [leia-se, por culpa da RENAMO], é agora uma ofensa às vítimas" (p.132).
Essa tese, retirada da "conclusão", traduz uma consistente sequência
argumentativa do texto. Uma das frases seleccionadas pela autora de uma das
suas entrevistas (poderia usar outros exemplos) é: "Está a acontecer uma
falsificação da História." (p. 89). Umas páginas antes, a atitude valorativa da
autora já havia atingido um surpreendente radicalismo. Escreve Lucia van den
Bergh que, logo a seguir aos acordos de paz, ainda em 1992, quando começou a
ser possível viajar por Moçambique para tratar da desmobilização das tropas,
num agrupamento militar da RENAMO na Zambézia, "Pedimos para dar uma palavra ao
comandante. Veio um homem que se aproximou de nós estendendo a mão. Eu tinha de
corresponder mas hesitei. Era como se estivesse a ver sangue duma guerra brutal
nas mãos dele" (p. 39). Quem conhece o tipo de dominação violenta do estado
pós-colonial sobre as sociedades em Moçambique que precedeu o alastrar da
guerra, ao ler a frase só pode concluir da parcialidade de alguém cuja missão
só faria sentido se fosse pela imparcialidade. Face a um processo social,
político e histórico de extrema complexidade, o livro assenta numa
interpretação demasiado simplista da realidade, acabando por evidenciar uma
série de estereótipos que, mais cedo ou mais tarde, devem ser trazidos a debate
nas academias que tratam de questões africanas.
Suponhamos uma conferência para a apresentação de um livro, como o de Lucia van
den Bergh. A apresentadora, ou alguém da mesa que dirigisse a sessão, trazia
consigo uma mala atractiva. Um dos presentes suspeitava que, no seu interior,
estariam peças valiosas (diamantes ou pedras preciosas, por exemplo) e, no meio
de uma sala apinhada, levantava-se alegando que tinha um explosivo pronto a
detonar, exigindo, para poupar vidas, que a carteira lhe fosse entregue de
imediato, mala cuja propriedade legítima ninguém discutia.
A metáfora é, talvez, a fórmula simples para explicar que, perante um dilema
moral equivalente, os regimes pós-coloniais das ex-colónias portuguesas
preocuparam-se sempre e em primeiro lugar em salvar a mala, mesmo que, depois,
e de forma hesitante, considerassem o "resto". Do lado dos seus opositores não
existiram grandes remorsos em fazer detonar o explosivo, pois o objectivo
primordial era o mesmo do dos "donos" da mala. No caso de Moçambique, o texto
de Lucia van den Bergh deixa perfeitamente clara a dimensão da tragédia. O
problema é querer introduzir-se, neste debate, uma dimensão moralista que penda
para um dos lados. Trata-se de um caso-tipo em que a análise social deve
limitar-se às dimensões da compreensão e da explicação, evitando ao máximo
resvalar para moralismos ou atitudes valorativas. Ao fazê-lo, o livro de Lucia
van den Bergh torna-se, ele próprio, um case study que nos distrai da realidade
empírica que lhe está subjacente. Moralidade, neste contexto, significa não
hesitar na renúncia a favor da não violência. Assim o fizeram Jesus Cristo,
Mahatma Gandhi, Martin Luther King ou Nelson Mandela (cf. O. Lourenço,
Psicologia de desenvolvimento moral..., 2002).
Em segundo lugar, o texto tem graves carências ao nível do conhecimento
histórico de longa duração, sem o qual não se compreende nenhuma guerra civil.
É mais um dos muitos casos em que se confunde a história de Moçambique com a
história da FRELIMO (basta consultar a cronologia ultra-simplista, pp.136-137),
como se tudo tivesse nascido apenas em 1962 com a fundação da FRELIMO e antes
tivesse havido tão-só uns anos novecentos em que se afirmou o retrógrado
colonialismo português. Este, por seu lado, é resumidamente despachado em
fórmulas como: "Famílias pobres de Portugal tinham vindo para Moçambique,
tomando a terra e os empregos e criando acesso à saúde e à educação apenas para
eles próprios. Os moçambicanos eram excluídos de tudo (...). Os deputados
holandeses Relus ter Beek e Jan Scholten, que mais tarde vieram a fundar a
Awepa, (...) [em 1973] ficam convencidos, não só de que a luta era por uma
causa justa, mas também de que os movimentos de libertação eram honestos e
determinados" (p.15); "Fábricas e equipamentos foram parcialmente destruídos
pelos colonialistas que partiram. Não havia infraestruturas nas áreas rurais,
onde quase não existiam estradas, escolas ou hospitais" (p. 16). Teses
redutoras deste tipo exemplificam uma manipulação demasiado grosseira da
história da colonização portuguesa que, enquanto processo histórico, só pode
ser caracterizada entre um extremo negativo (por exemplo, trabalho forçado,
culturas obrigatórias, discriminação racial, incapacidade de promover uma
transição pacífica para o período pós-colonial) e um extremo positivo (por
exemplo, dotar o país de uma rede de estruturas urbanas, rodoviárias,
ferroviárias, portuárias, aeronáuticas, expandir os cuidados de saúde ou a
escolarização, promover a ruptura com práticas tradicionais que atentam contra
a dignidade humana). Um europeu aventurar-se desta forma na história de outro
país europeu é abusivo. Mas percebe-se.
Daí derivam, em terceiro lugar, estereótipos que traduzem o complexo de
superioridade das "populações e governos mais progressistas do Norte da Europa"
(p. 9) sobre os povos do Sul da Europa, entre os quais os portugueses.
Estereótipos desse tipo são por demais óbvios no texto de Lucia van den Bergh.
No geral, na extrema direita do espectro político europeu o sintoma é associar
o atraso português no contexto europeu ao facto de ser o povo ocidental que
mais se miscigenou com os africanos e, por isso, degenerou (cf. Mia Couto, "O
primeiro branco", 29.01.2011, disponível na Internet). Na extrema esquerda
europeia existe o mesmo tipo de estereótipo, mas inverso. Este tende a
projectar-se nas representações alimentadas sobre o antigo império colonial
africano português, limitando-se a interpretações bastante selectivas (no
sentido do português bruto e ignorante que nunca soube nada sobre os africanos,
a não ser escravizá-los e explorá-los), assentes numa descoberta de África
através das interpretações das lideranças nacionalistas. Só que estas, com toda
a legitimidade, interpretam a realidade para defenderem o seu poder. Estranho é
o apoio acrítico e faccioso a tais interpretações.
Os estereótipos dos povos do Sul da Europa alimentados por Lucia van den Bergh
sugerem as depreciativas teses sobre os PORCOS (PIGS ' Portugal, Italy, Grece
and Spain). No processo de paz em Moçambique, tal como a autora o descreve, o
papel dos portugueses revela-se excessivamente menorizado ou quase satirizado:
"(...) recordo-me de um seminário em que a chefe da comunicação na assembleia
portuguesa explicou como lidar com o fluxo de informação e deu exemplos do
sistema avançado usado no Parlamento em Portugal. O Secretário Geral da Zâmbia
comentou então: "Isto é como idealmente se faz. Agora vamos olhar para as
possibilidades e prioridades num país pobre"" (p. 103). Os italianos
também levam por tabela. Fica a ideia, tal como os portugueses, de serem
"piores" do que os africanos, enquanto Lucia van den Bergh louva continuamente
holandeses (como a autora) ou noruegueses: "Redd Barna ("Save the
Children" da Noruega) [disse em entrevista à autora em 2008 que] "
(...) os italianos em Manica causaram problemas graves. (...) O seu
comportamento demonstrava uma falta total de respeito pela população,
conduzindo carros sem cuidado, causando acidentes, recusando pagar os
prejuízos." (...) Redd Barna descobriu abuso sexual de crianças,
organizado e em larga escala, por parte das tropas [italianas]. (...) Os
italianos foram substituídos por um contingente do Botswana. O contraste era
dramático. As tropas tswanas ganharam popularidade por levarem a cabo projectos
orientados para a comunidade" (p. 52). A reboque desse ataque nada inocente aos
povos do Sul da Europa, vem a mediocridade do catolicismo, conivente com o
regime fascista de Salazar, enquanto as igrejas protestantes "(...)
desenvolveram uma melhor compreensão da posição da população negra" (p. 28).
Tudo tão simples e tão óbvio! Tanto quanto o texto em si, preocupa-me o facto
de as universidades, na área das ciências sociais, se deixam arrastar para um
perturbante vazio crítico.
Em suma, o livro oscila entre, por um lado, o domínio seguro de aspectos
técnicos, burocráticos, logísticos e financeiros associados ao processo de
transição política dos anos noventa em Moçambique e, por outro lado, enormes
limitações quanto à inserção desse processo numa realidade histórica e social
cuja complexidade escapa, em aspectos essenciais, a Lucia van den Bergh.